Radiografia da França, 36 anos após a «Marcha dos Beurs».
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René Naba / 30 DE AGOSTO DE 2019 / EM Europe, France, Société
Última
actualização em 25 de Setembro de 2019
Em memória de Rachid Taha
«Francês todos os dias, argelino para sempre», fogo-fátuo da mistura
cultural e da diversidade humana, um representante perfeito do «Alcorão
alternativo».
Esta radiografia foi realizada por ocasião da comemoração do primeiro
aniversário da morte de Rachid Taha, coincidindo com a celebração do 36.º
aniversário da «Marcha pela Igualdade e contra o Racismo», designada pelos
meios de comunicação social como a «Marcha dos Beurs».
Com 1,4 milhões de mortos e 900 000 inválidos, a França lamentou a perda de
11% da sua população activa devido ao primeiro conflito mundial (1914-1918), a
que se devem acrescentar os danos económicos: 4,2 milhões de hectares
devastados, 295 000 casas destruídas, 500 000 danificadas, 4800 km de vias
férreas e 58 000 km de estradas para restaurar, finalmente 22 900 fábricas para
reconstruir e 330 milhões de m3 de trincheiras para preencher. Uma hemorragia
amplificada vinte anos mais tarde por uma nova hemorragia de trinta anos, de
magnitude comparável, com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra da
Indochina (1945-1955) e a Guerra da Argélia (1954-1960), reduzindo consideravelmente
a capacidade de auto-reprodução dos franceses. Mais de meio século de
hemorragia contínua (1914-1962) deixará a França exangue. É aí que reside a
origem da «grande substituição», no belicismo francês e em nenhum outro lugar.
O que pensa de tudo isso Eric Zemmour, o purista francófilo com um nome tão
viking, que se engasga de raiva ao ouvir o nome Hapsatou, mas permanece mudo
como uma carpa diante da declinação de nomes tão exóticos quanto Gilad, Gad,
Arieh, Ilan, Haïm, Dov, Yossi, William, que florescem nos anuários franceses?
Que vergonha para Thierry Ardisson pela sua passividade diante dessa ineficácia
racialista. O antigo apresentador do programa «Tout le Monde en parle» foi,
paradoxalmente, o único a não ter falado sobre essa impostura.
Libertação de Paris em 1944: por que quase não havia negros nos desfiles da
vitória?
A resposta é simples: porque os distantes antecessores de Eric Zemmour
simplesmente não suportavam o nome Hapsatou. https://www.youtube.com/watch?v=k5m7vueKdPE
Fim da nota RN
Da teoria da Grande Substituição: uma teoria sem sentido.
Vamos purificar o debate. E, com o mesmo ímpeto, os demagogos,
falsificadores e impostores de todos os tipos.
Forjada pelos nostálgicos da grandeza francesa dos «tempos abençoados das
colónias», a teoria da «Grande Substituição» aparece, em retrospectiva, como
uma consequência da descida da França no ranking das potências mundiais. O
disfarce de uma fuga para a frente. De uma fuga à responsabilidade.
A equação demográfica que constitui a sua base ideológica também é uma
grande treta. À prova dos números, também não resiste à análise.
Essa rigidez psicológica nostálgica encontra a sua concretização mais
patologicamente aberrante na presença de um «lobby pied noir» em França, único
país entre os antigos grandes impérios coloniais ocidentais a dispor de um
grupo de pressão tão anacrónico, quando a quase totalidade dos antigos colonos
franceses da Argélia já partiram para o além, 70 anos após a independência da
Argélia. Ao contrário do Reino Unido, que possuía um império colonial maior do
que a França, onde nunca existiu um lobby de nostálgicos do Império da Índia ou
da África anglófona, cuja Commonwealth, além disso, com 52 membros, um terço da
população mundial, não exala os fortes aromas da «França do dinheiro». Ao
contrário também da Espanha e de Portugal, as duas outras potências coloniais
europeias.
Único grande
país europeu na articulação principal das duas «tendências criminosas da Europa
democrática» — o tráfico de escravos e o genocídio hitleriano —, a França é
também o único país do mundo a exigir de uma das suas colónias uma indemnização
compensatória pela retrocessão da sua independência (Haiti). Em suma: o único
país do mundo cujo comportamento errático está em antítese com a racionalidade
cartesiana que reivindica.
A grande
substituição é, portanto, uma grande treta, na medida em que a estigmatização
do «estrangeiro» para colmatar as frustrações do orgulho nacional maltratado
não pode ocultar a responsabilidade esmagadora do comando político e militar
francês ao longo de dois séculos e o seu cortejo de infortúnios que confere à
França a desonra de assumir quatro capitulações num tempo recorde.
Não só
contra os seus rivais ocidentais, mas também contra os povos de pele escura do
chamado «subdesenvolvido» Terceiro Mundo. Em Waterloo (1815) contra os
ingleses; em Sedan (1870), contra os alemães; em Montoire (1940), novamente
contra os alemães, mas também em Dien Bien Phu (1954), contra os vietnamitas;
e, em seguida, o trauma argelino, recorde absoluto entre as grandes potências
ocidentais, que explica a relegação da França na escala das nações. Longe de
resolver o problema, ocultá-lo apenas o agravaria e evitá-lo apenas o pioraria.
Neste caso específico, a França é realmente responsável e culpada, e não, de
acordo com a teoria francesa do fusível, «responsável, mas não culpada», ou
mesmo, em certos sectores da opinião pública, «nem responsável nem culpada».
Não nos
iludamos. Faça o que fizer, diga o que disser, a colaboração com o nazismo
continuará a ser uma mancha moral indelével. Um ponto negro na história de
França.
A
responsabilidade total e inteira da elite francesa. Uma responsabilidade
exclusiva, sem a menor implicação de árabes, africanos, asiáticos, cristãos,
muçulmanos ou budistas, nem mesmo agnósticos ou ateus, cuja presença em França
se justificava pelos imperativos de reconstrução de um país duas vezes
destruído em meio século: 1914-1918/1930-1945.
Com a sua
elegância lendária, Donald Trump não se esqueceu de o recordar na sua linguagem
refinada: «Começaram a aprender alemão em Paris antes da chegada dos Estados
Unidos. Paguem pela NATO ou nada!», escreveu ele no Twitter.
Donald J. Trump✔@realDonaldTrump
Emmanuel
Macron sugere a criação de um exército próprio para proteger a Europa contra os
EUA, a China e a Rússia. Mas foi a Alemanha nas Primeira e Segunda Guerras
Mundiais – Como isso funcionou para a França? Eles estavam a começar a aprender
alemão em Paris antes da chegada dos EUA. Paguem pela OTAN ou nada feito!
Marcel
Gauchet, um historiador lúcido, concluiu que «em 1940, a França deixou
brutalmente de ser uma grande potência».
Rachid Taha
«Francês
todos os dias, argelino sempre», esse fogo-fátuo da mistura cultural e da
diversidade humana operou uma reviravolta raríssima, que beira a genialidade,
ao recorrer ao repertório francês para escolher uma canção regional «Douce
France», de Charles Trenet, com o objetivo de engrandecer o seu país de
acolhimento, para grande desgosto dos nostálgicos do império, devolvendo aos
franceses de origem a imagem reflectida da sua sociedade, uma imagem tricolor,
sem dúvida, mas com uma variação cromática diferente (White, Black, Beur), mais
consentânea com a história de França.
Ele fará
dela o hino de raliamento da «Marche des Beurs», impulsionando, em 1983, uma
tomada de consciência da realidade «Beur de France», conferindo aos morenos
excluídos da sociedade da abundância uma visibilidade nunca antes alcançada.
Ao fazê-lo,
ele velou para que a França, que se auto-proclama «a pátria dos direitos do
homem», não fosse exclusivamente a «parte da declaração dos direitos do homem»
e que o seu país de adopção, que se considera «o farol da humanidade», não
fosse reduzido a projectar apenas um brilho fuliginoso.
Contra o
dogmatismo reinante veiculado pela jihad na guerra anti-soviética no
Afeganistão (1980-1989), Rachid Taha utilizou a arma da derisão, da transgressão
e da subversão, reivindicando o «Alcorão alternativo», termo sacrílego na época
para muitos dos seus correligionários, para sugerir um caminho para superar o
dogmatismo sufocante, gerador de zombies criminosos nas zonas periféricas das
metrópoles europeias.
A «Marcha
pela Igualdade e contra o Racismo» é uma marcha anti-racista que decorreu em
França de 15 de Outubro a 3 de Dezembro de 1983. Trata-se da primeira
manifestação nacional deste tipo em França.
À atenção de
Barbara Lefebvre, a fim de colmatar a sua ignorância abissal: o autor deste
texto é bilingue em francês e árabe, domina a língua árabe ensinada nas escolas
da República, sem que isso tenha afectado a qualidade do seu domínio da língua
francesa.
O
contra-argumento pode ser encontrado neste link «Mais árabe do que gaulês na
língua francesa»https://www.franceinter.fr/culture/plus-d-arabe-que-de-gaulois-dan-la-langue-francais
Da descida da França do ranking das grandes potências.
No início do século XX, a França estava à frente de um dos dois grandes
impérios mundiais, a par do Reino Unido. Um século depois, no século XXI, a
França foi relegada para o 7.º lugar entre as potências económicas mundiais,
suplantada pela China e pela Índia, duas antigas colónias europeias, bem como
pelo Japão e pela Alemanha, os dois grandes derrotados da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945).
Uma tendência acentuada pela saída, em Junho de 2019, de oito países da
África Ocidental do franco CFA, base da influência internacional da França, e
pela sua adesão, sob a égide da Nigéria, ao ECO, a nova moeda pan-africana.
Pior ainda, na Europa, o seu espaço vital, a França exerce agora uma função
secundária em relação à Alemanha e, em África, onde a França foi durante muito
tempo um fardo, é agora ultrapassada pela China, pelos Estados Unidos e até
pela Índia, num contexto de economia estagnada, crescimento em baixa, pela
aceleração da pobreza da população e pela desintegração social, enquanto, em
contrapartida, os dividendos pagos aos grandes empresários disparam e a fraude
fiscal, marca de incivismo, atinge o valor astronómico de 100 mil milhões de
euros em 2018, um aumento de 20 mil milhões de euros em relação ao último
recenseamento de 2013.
Ver a este respeito http://www.lefigaro.fr/vox/politique/le-lent-declin-de-la-puissance-francaise-en-europe-20190704
A França é «de longe o maior pagador de dividendos da Europa» (+3,1% para
51 mil milhões de dólares).
De acordo com um relatório da ONG Oxfam publicado na segunda-feira, 14 de Maio
de 2018, intitulado «CAC 40: lucros sem partilha», os grupos do CAC 40
redistribuíram aos seus accionistas dois terços dos seus lucros entre 2009 —
ano da crise financeira mundial — e 2016, ou seja, o dobro do que nos anos
2000. Isso levou essas empresas a deixar «apenas 27,3% para reinvestimento e
5,3% para os funcionários», acrescenta a OXFAM, que denuncia escolhas
económicas que alimentam uma «verdadeira espiral de desigualdades».
A França está agora numa posição precária no conselho de administração do
Mundo.
Se projectarmos uma abordagem prospectiva, uma nova entrada de um país
emergente levaria à exclusão irremediável da França do G7, o grupo dos 7
grandes países industrializados, que funciona como directório económico do
Mundo, suscitando, em contrapartida, uma pressão considerável sobre a
legitimidade do seu estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança da
ONU, com direito de veto.
Um estatuto difícil de justificar, uma vez que a OTAN é representada por
três membros permanentes (Estados Unidos, Reino Unido, França), com direito de
veto. O que induziria uma pressão a favor de uma melhor representação dos
outros continentes.
Retorno a este balanço calamitoso.
Da «Grande Substituição» e da fábula do fardo do homem branco e outros disparates.
A chegada à
maturidade da terceira geração descendente de imigrantes coincidiu com o
desenvolvimento da teoria da «grande substituição», tão cara a Renaud Camus e
Eric Zemmour, que temiam a perda da pureza imaculada da branquitude da
população francesa devido a uma suposta invasão bárbara dos seus antigos
colonizados, fingindo ignorar que a Europa, devido à colonização, operou a
maior revolução demográfica do planeta.
E a
alteração demográfica da população francesa resultou sobretudo do belicismo
francês, do seu instinto de dominação e colonização, acrescido à grande
hemorragia infligida à sua população ao longo do século XX (Primeira Guerra
Mundial, Segunda Guerra Mundial, Dien Bien Phu, Argélia), privando-a da sua
capacidade de auto-reprodução genética transgeracional.
A colonização foi a maior mudança demográfica do planeta.
Substracto ideológico da teoria da «grande
substituição», a equação demográfica também é uma grande treta. À prova dos
factos, não resiste nem à análise nem à comparação histórica.
Num curioso percurso, um curioso cruzamento: enquanto
os africanos eram arrancados das suas raízes pelos colonizadores da Senegâmbia
para serem enviados para além dos oceanos com o objectivo de contribuir para a
prosperidade do Novo Mundo, a título gratuito, explorados e submetidos a
trabalhos forçados, ingleses, franceses, espanhóis e portugueses nos séculos
XVII-XIX, depois italianos, irlandeses, libaneses e sírios, no século XX, foram
levados ao êxodo sob o efeito de restricções económicas.
Um movimento paralelo: os negros foram povoar a
América, quando os brancos os substituíram no seu continente, trazendo os
«morenos» como intermediários entre colonizadores e colonizados.
Para aprofundar este assunto, consulte «Du Bougnoule
au sauvageon, voyage dans l’imaginaire français» René Naba -Harmattan 2000,
particularmente o capítulo II, «Les colonies, avant-goût du paradis,
arrière-goût d’enfer» (As colónias, antegozo do paraíso, regosto do inferno) https://www.renenaba.com/les-colonies-avant-gout-du-paradis-ou-arriere-gout-denfer/
Da grande substituição em três continentes
Numa
antecipação distante do fluxo migratório mediterrânico e do seu cortejo de
«trabalhadores imigrantes» da época contemporânea, a um ritmo médio de 500 000
expatriados por ano durante 40 anos, de 1881 a 1920, 28 milhões de europeus
abandonaram a Europa para povoar a América, dos quais 20 milhões nos Estados
Unidos, oito milhões na América Latina, sem contar a Oceânia (Austrália, Nova
Zelândia), Canadá, continente africano, Magrebe e África do Sul, bem como os
confins da Ásia, as enclaves comerciais de Hong Kong, Pondicherry e Macau.
Cinquenta e
dois milhões (52 milhões) de expatriados, ou seja, o dobro da população
estrangeira total residente na União Europeia no final do século XX, um número
sensivelmente equivalente à população francesa.
Principal
fornecedor demográfico do planeta durante 120 anos, a Europa conseguiu a proeza
de moldar à sua imagem dois outros continentes, as duas costas da América e a
Oceânia, e de impor a marca da sua civilização à Ásia e à África.
«Mestre do
mundo» até ao final do século XX, ela fará do planeta o seu campo de tiro
permanente, a sua própria válvula de segurança, o trampolim do seu prestígio e
expansão, o desaguar de todos os seus males, um depósito para o seu excedente
populacional, um presídio ideal para os seus agitadores, sem outra limitação
além da imposta pela rivalidade intraeuropeia pela conquista de
matérias-primas.
Em cinco
séculos (XV-XX), 40% do mundo habitado terá assim sucumbido, em maior ou menor
grau, ao jugo colonial europeu. Assumindo o lugar de Espanha e Portugal,
iniciadores do movimento, a Grã-Bretanha e a França, as duas principais
potências marítimas da época, possuíram sozinhas até 85% do domínio colonial
mundial e 70% dos habitantes do planeta no início do século XX, saqueando, ao
longo do caminho, Portugal e Espanha do ouro da América do Sul, a Inglaterra
das riquezas da Índia e a França do continente africano.
A
Grã-Bretanha reivindicará essa responsabilidade sob o título do «fardo do homem
branco» exaltado por Rudyard Kipling, a França, em nome da sua «missão
civilizadora», corpus filosófico inalterável do pensamento francês durante
décadas, para além das divisões políticas e religiosas, tema que será objecto
de todas as variações numa extravagante antologia literária e uma profusão de
iniciativas igualmente extravagantes, das quais as mais improváveis foram os
«zoológicos humanos» das exposições coloniais.
Anões
braquicefálicos, corcundas dolicocefálicos, gigantes macrocefálicos, negros
albinos, indígenas calipígeos, canibais canaques, todas as variações da
morfologia humana foram assim exibidas durante cerca de cinquenta anos nas
principais cidades francesas, sem a menor restricção, para exaltar o esplendor
colonial da França e teorizar, por contrapartida, a inferioridade dos
estrangeiros.
A uma razão
de um evento a cada 18 meses, 38 exposições etnológicas, das quais 30 apenas no
Jardim de Acclimatation de Paris, serão organizadas alternadamente em Paris,
Marselha e Lyon durante mais de meio século, de 1877 a 1931, numa vasta empresa
que era ao mesmo tempo uma operação de relações públicas e uma acção
psicológica.
Quase
ninguém resistirá à miragem da obra pacificadora da França. Nem mesmo um
visionário como Alexis de Tocqueville, por outro lado tão lúcido teórico da
«Democracia na América», que legitimará os massacres como «necessidades
infelizes às quais todo o povo que quiser fazer guerra aos árabes será obrigado
a submeter-se»;
Nem Jules
Ferry, pai da escola laica, matriz da III República, que reivindicará para «as
raças superiores (...) o direito de civilizar as raças inferiores», nem mesmo
um humanista venerável da dimensão de Léon Blum, primeiro chefe do governo
socialista da França moderna, artífice das primeiras conquistas sociais sob o
governo da Frente Popular (1936).
Raras serão
as vozes discordantes no coro de louvor à França colonial. Guy De Maupassant,
como pioneiro, ironizará sobre a «singular concepção da honra nacional» dos
franceses.
Louis
Aragon, André Breton e Paul Eluard pedirão o boicote às exposições coloniais,
denunciando essa fraude intelectual num manifesto intitulado «Não visitem a
exposição colonial» . Esforço em vão: a exposição de 1931 terá um lucro de 33
milhões em apenas seis meses.
Símbolos
esquecidos da época colonial, totalmente reprimidos da memória colectiva
ocidental, «etapa importante da transição progressiva do racismo científico
para o racismo popular», as «exposições antropo-zoológicas», ao colocar em
perspectiva a «espectacularização do outro» através de uma combinação
inteligente de indivíduos exóticos e animais selvagens, deram origem a muitos
estereótipos ainda vigentes na época contemporânea. Contribuíram assim
poderosamente para moldar a identidade ocidental e o imaginário dos ocidentais.
A grande hemorragia da população francesa e a chegada dos primeiros trabalhadores
imigrantes à França.
O quadro
paradisíaco da época abençoada das colónias iria despedaçar-se com a Grande
Guerra.
Primeira
grande ruptura geo-política da era contemporânea, a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), com o seu sangramento humano e desperdício económico, provocaria,
em termos geo-políticos, um declínio progressivo da Europa em benefício dos
Estados Unidos, no plano demográfico, uma inversão dos fluxos migratórios e, no
plano da psicologia dos europeus, a dura aprendizagem do fenómeno exógeno, da
cultura da alteridade, a negação do egocentrismo, uma verdadeira revolução
mental.
Com 1,4
milhões de mortos e 900 000 inválidos, a França lamentará a perda de 11% da sua
população activa devido ao primeiro conflito mundial (1914-1918), a que se
devem acrescentar os danos económicos: 4,2 milhões de hectares devastados, 295
000 casas destruídas, 500 000 danificadas, 4800 km de vias férreas e 58 000 km
de estradas para restaurar, 22 900 fábricas para reconstruir e 330 milhões de
m3 de trincheiras para preencher. Uma hemorragia amplificada vinte anos mais
tarde por uma nova hemorragia de trinta anos, de magnitude comparável, com a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra da Indochina (1945-1955) e a
Guerra da Argélia (1954-1960), reduzindo consideravelmente a capacidade de
auto-reprodução dos franceses. Mais de meio século de hemorragia contínua
(1914-1962) deixaria a França exangue. É aí que reside a origem da «grande
substituição», no belicismo francês e em nenhum outro lugar.
Os primeiros
trabalhadores imigrantes, os cabilianos, chegaram à França em 1904 em pequenos
grupos, mas a Primeira Guerra Mundial provocou um efeito acelerador, levando a
um recurso maciço a «trabalhadores coloniais», aos quais se sobreporiam os
reforços dos campos de batalha contabilizados noutra rubrica.
Durante a
primeira década do século XX, a França já contava com 1,1 milhões de
estrangeiros em 1906, ou seja, 2,7% da população. Vinte anos depois, o número
duplicou para 2,5 milhões de estrangeiros, dos quais 1,3 milhões eram trabalhadores
da Europa, Ásia e África recenseados em 1926.
O indígena
distante dá lugar ao imigrante próximo. De curiosidade exótica exibida em
zoológicos humanos para glorificar a acção colonial francesa, o melanodermo tornar-se-á
progressivamente uma presença permanente na paisagem humana da vida quotidiana
metropolitana.
A sua
presença será vivida como uma restricção, exacerbada pela diferenciação dos
modos de vida entre imigrantes e metropolitanos, pelas flutuações económicas e
pelas incertezas políticas do país de acolhimento.
Paradoxalmente,
no período entre as duas guerras (1918-1938), a França irá favorecer a criação
de uma «República Xenófoba», matriz da ideologia vichista e da «preferência
nacional», enquanto a sua necessidade de mão de obra é gritante. Embora
contribuíssem para tirar a França das ruínas, os trabalhadores imigrantes eram
vistos com desconfiança e controlados por um grande «arquivo central».
Submetidos a
uma tributação equivalente, por vezes, a meio mês de salário para obterem a
carta de residência, fonte de receitas complementares para o Estado francês,
eram ainda vistos como portadores de um triplo perigo: Perigo económico para os
seus concorrentes franceses, perigo sanitário para a população francesa, na
medida em que os estrangeiros, particularmente os asiáticos, africanos e
magrebinos, eram considerados portadores de doenças, e perigo para a segurança
do Estado francês.
As cotações bolsistas dos trabalhadores coloniais
Cerca de
duzentos mil «trabalhadores coloniais» (200 000) serão assim importados do
Norte de África e do continente africano por verdadeiras corporações negreiras,
como a «Société générale de l’immigration» (SGI), a fim de compensar a mão de
obra francesa principalmente na construção civil e na indústria têxtil, em
substituição dos soldados franceses que partiram para o front. Na coorte de
trabalhadores imigrantes, vindos inicialmente principalmente da Itália e da
Polónia, os magrebinos serão objecto de atenção especial por parte das
autoridades públicas.
Um «Gabinete
de Vigilância e Protecção dos Indígenas Norte-Africanos», encarregado da
repressão de crimes e delitos, é criado em 31 de Março de 1925.
Um gabinete
especial dedicado exclusivamente aos magrebinos, precursor do «serviço das
questões judaicas» que o regime de Vichy criaria em 1940 para a vigilância dos
cidadãos franceses de «raça judaica» ou de confissão israelita durante a
Segunda Guerra Mundial. O nome do gabinete diz muito sobre a opinião do governo
francês e as suas intenções em relação a eles.
O fenómeno
irá amplificar-se com a Segunda Guerra Mundial e os gloriosos anos trinta do
pós-guerra (1945-1975) que se seguiram à reconstrução da Europa, onde a
necessidade de «carne para canhão» e de mão de obra abundante a baixo custo
provocará um novo fluxo migratório igual em importância ao anterior.
À prova dos
factos, a teoria da «Grande Substituição» acabou por ser a «Teoria do Grande
Nada»; uma leitura exclusivamente eurocêntrica, ocultando, por ignorância, os
parâmetros da problemática da revolução demográfica do planeta, da qual a
Europa, particularmente a França, foram os grandes iniciadores.
«A França
tem uma parte da África dentro de si. E neste solo da Provença, essa parte foi
a do sangue derramado. Eles fizeram a honra e a grandeza da França. São
milhares os que se sacrificaram para defender uma terra distante, uma terra
muitas vezes desconhecida, uma terra até então nunca pisada, uma terra à qual
misturaram para sempre o seu sangue».
A confissão
tardia, muito tardia, do presidente francês Emmanuel Macron, foi feita em 15 de
Agosto de 2019, por ocasião do 75.º aniversário do desembarque da Primeira
Armada Africana na Provença, que, com os seus 175 000 soldados dos territórios
coloniais ultramarinos, manteve a França no ranking das grandes potências.
O que pensa
de tudo isto Eric Zemmour, o purista francófilo com um nome tão viking, que se
estrangula de raiva ao ouvir o nome Hapsatou, mas permanece mudo como uma carpa
diante da declinação de nomes tão exóticos como Gilad, Gad, Arieh, Ilan, Haïm,
Dov, Yossi, William, que florescem nos anuários franceses?
Que vergonha
para Thierry Ardisson pela sua passividade diante dessa ineficácia racialista.
O antigo apresentador do programa «Tout le Monde en parle» foi, paradoxalmente,
o único a não ter falado sobre essa impostura.
O que pensam
de tudo isso Renaud Camus e Georges Bensoussan, que, em vez de se lamentarem
sobre «os territórios perdidos da República», deveriam lamentar-se sobre o
facto de a República se ter perdido nesses territórios, apropriando-se deles
indevidamente, desrespeitando, de passagem, os princípios fundadores da
República.
«Venceremos
porque somos os mais fortes», proclamava o galo gaulês, fanfarrão, enquanto o
leão britânico, invencível, prometia, não sem coragem, «Sangue, trabalho,
lágrimas e suor». Que classe.
Fanfarronice
fatal. Directo contra a parede, buzinando. Com o bónus do afundamento da sua
própria frota de guerra. Lamentável.
Como é
insalubre mexer nos odores fétidos das fossas sépticas da História. Nauseabundo
é o cheiro que delas emana. Na memória viva dos povos, as feridas nunca
cicatrizam.
René Naba
Jornalista-escritor, ex-chefe do
mundo árabe e muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do
director-geral da RMC Médio Oriente, chefe de informação, membro do grupo
consultivo do Instituto Escandinavo de Direitos Humanos e da Associação de Amizade
Euro-Árabe. De 1969 a 1979, foi correspondente rotativo no escritório regional
da Agence France-Presse (AFP) em Beirute, onde cobriu a guerra civil
jordaniano-palestiniana, o "Setembro Negro" de 1970, a nacionalização
de instalações petrolíferas no Iraque e na Líbia (1972), uma dúzia de golpes de
Estado e sequestros de aviões, bem como a Guerra do Líbano (1975-1990) a 3ª
guerra árabe-israelita de Outubro de 1973, as primeiras negociações de paz
egípcio-israelitas na Mena House Cairo (1979). De 1979 a 1989, foi responsável
pelo mundo árabe-muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do
director-geral da RMC Médio Oriente, encarregado da informação, de 1989 a 1995.
Autor de "Arábia Saudita, um reino das trevas" (Golias), "De
Bougnoule a selvagem, uma viagem ao imaginário francês" (Harmattan),
"Hariri, de pai para filho, empresários, primeiros-ministros"
(Harmattan), "As revoluções árabes e a maldição de Camp David"
(Bachari), "Media e democracia, a captura do imaginário, um desafio do
século XXI" (Golias). Desde 2013, ele é membro do grupo consultivo do
Instituto Escandinavo de Direitos Humanos (SIHR), com sede em Genebra. Ele
também é vice-presidente do Centro Internacional Contra o Terrorismo (ICALT),
Genebra; Presidente da instituição de caridade LINA, que opera nos bairros do
norte de Marselha, e Presidente Honorário do 'Car tu y es libre', (Bairro
Livre), trabalhando para a promoção social e política das áreas periurbanas do
departamento de Bouches du Rhône, no sul da França. Desde 2014, é consultor do
Instituto Internacional para a Paz, Justiça e Direitos Humanos (IIPJDH), com
sede em Genebra. Desde 1 de setembro de 2014, é responsável pela coordenação
editorial do site https://www.madaniya.info e
apresentador de uma coluna semanal na Radio Galère (Marselha), às
quintas-feiras, das 16h às 18h.
Fonte:
Radioscopie-France,
36 ans après la «Marche des Beurs». 1/5 - Madaniya
Este
artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice

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