1 de Novembro de
2024 Ysengrimus
Procurei destacar que essa reflexão [dentro da organização dos saberes e das práticas nas sociedades tradicionais] decorre de um apetite verdadeiramente intelectual, de que não é de todo necessário introduzir elementos sentimentais, místicos ou emocionais, de que há, no que chamamos vida selvagem, um desejo de compreender intelectualmente as coisas do universo que não lhe é de modo algum inferior. pelo seu ardor, pelas suas exigências, às da ciência moderna, embora naturalmente os resultados sejam bastante diferentes.
Claude Lévi-Strauss, entrevistas radiofónicas a Jean José Marchand, 1972
.
YSENGRIMUS — A
tese aqui apresentada, nomeadamente por Claude
Lévi-Strauss, não é certamente insignificante. Baseia-se numa
premissa fundamental cuja natureza definidora deve ser adequadamente
circunscrita. É o próprio princípio existencial da reflexão racional. Estamos
no processo de propor que há uma manifestação de raiz, intrínseca e
determinante, da abordagem intelectual das coisas, no humano historicizado. A
preocupação em intelectualizar adequadamente o real é uma característica
antropológica principiológica e este não é um resultado histórico tardio. O
serviço à racionalidade procede de uma configuração mental e prática que não é
periférica ou anedótica, mas central. Aqui provavelmente funciona algo como a
definição essencial do que é a hominização e o status da
humanidade, como um colectivo. Isso é essencial para entender que uma boa dose
de particularidades humanas, presentes, por outro lado, sentimentos, misticismos,
emoções, impulsos, estão no lugar, certamente, mas que estão densamente
impregnadas com o que levou o ser humano a passar da África para o resto do
mundo, a mover-se, de costa em costa, de ilha em ilha, a instalar-se em todos
os lugares, a nadar, roubar, estabilizar, perpetuar, transmitir, amplificar,
trocar, negociar, todas as descobertas práticas que farão com que se torne o
que se tornou. Entre essas antigas descobertas práticas está uma conquista
mental e comportamental dialéctica e colectiva. O da racionalidade.
Esta forte ideia do primado antropológico do racional não fará só amigos,
especialmente no miasma filosófico contemporâneo. Será atacado novamente. O que
queres que te diga? Todos aqueles que
rejeitam a opressão em abstracto, menos por solidariedade subversiva do que por
individualismo egomaníaco, todos aqueles que estigmatizam uma organização
sistemática da existência, todos aqueles que têm problemas com figuras de
autoridade, todos os nossos grandes e mesquinhos burgueses, que bocejam com o
que é laborioso, trabalhador, laborioso (enquanto lucram amplamente com isso, e
parasitariamente)... parecem depender de uma propensão, de uma fixação quase
reflexiva, levando-os a atacar a racionalidade de forma agressiva. Nesse fluxo
impulsivo, atribuímos perenptoriamente à racionalidade quase todos os defeitos
contemporâneos, intelectuais e materiais, que podemos imaginar. A
racionalidade, às vezes chamada de "racionalização", está associada
ao dinheiro, ao cálculo mesquinho, ao lucro capitalista, aos cortes
orçamentários, aos transportes poluentes, às fábricas, ao confinamento urbano
dócil, à submissão burocrática, ao militarismo, ao sistematismo estreito, à
rigidez mental e prática mais pé no chão e aos dispositivos mecanicistas de
todos os tipos. Quase tudo o que parece rígido, opressivo, emocionalmente
lívido e fundamentalmente desagradável é desdenhosamente tratado como
"racional", ou pior "cartesiano". Neste tipo de tomada de
partido altamente intempestiva, a verdadeira
racionalidade ordinária sai particularmente tonta,
distorcida, caricaturada. Mas vamos fazer a pergunta, abertamente. Quem é o
irracional de quem, em tudo isto? Um vasto programa crítico... Por enquanto,
vamos trazê-lo de volta aos seus dois parâmetros fundamentais. Detenhamo-nos, pois, um pouco nos
dois grandes ataques à racionalidade por parte daqueles que a denegrem massivamente,
numa perspetiva irracionalista ou anti-filosófica.
Dois corpos principais de argumentos são apresentados por pensadores, elitistas
ou vernáculos, que consideram a racionalidade excessiva, demasiado geral,
demasiado poderosa, demasiado omnipotente, opressiva, gelada, aborrecida e
insensível.
A primeira acusação que se faz contra a racionalidade
ordinária é qualificá-la como cientificismo. Postula-se então,
sem nunca discutir a questão de forma muito detalhada ou inteligível, que quem
promove uma abordagem racional da existência é necessariamente um triunfalista
das ciências naturais e que, portanto, esse personagem considera que a ciência
institucionalizada é a panaceia para todos os problemas intelectuais que possam
surgir. Assim, aqui, o pensamento racional é acusado de ser um exercício,
explícito ou implícito, de promoção científica. Mas a coisa é muito mais
matizada do que isso, especialmente na era em que entramos hoje, a do aumento
exponencial das discussões sobre a hegemonia das ciências. É altamente
inadequado afirmar que o pensamento racional é necessariamente um pensamento
científico. O facto é que muitos cientistas podem ser perfeitamente
irracionais, especialmente quando entram em deriva dogmática, em termos de
posse da verdade, rigidez de hipóteses e certeza doutrinária. A filosofia
espontânea dos cientistas e dos seus admiradores é, muitas vezes,
tudo menos racional. Atacar o cientificismo é muito mais
confrontar, consciente ou inconscientemente, o positivismo, isto é, aquele ramo
muito rígido da filosofia, especializado ou ordinário, que hipertrofia a heurística circunscrita das
ciências naturais e a erige num modelo intelectual absoluto e abstracto. No
entanto, observa-se, na realidade, que uma adequada
epistemologia racional das ciências, especialmente das
ciências contemporâneas, preconiza mais do que nunca a dúvida metódica e a
prudência sapiencial em relação a estas últimas. As ciências básicas não são
exactamente iguais às ciências aplicadas, e o prestígio das ciências não passa
sem uma clara rigidez e dogmatização da sua dinâmica de difusão. Uma sociologia
racional da ciência é necessariamente colocada na posição de questionar o
absoluto das ciências e a verdade indiscutível do que as disciplinas da análise
natural produzem. A divulgação e popularização (note-se esta
palavra, em todas as suas implicações intelectuais) das ciências naturais é
geralmente em detrimento das ciências humanas e sociais, sendo estas últimas
percebidas como demasiado críticas e, portanto, potencialmente sediciosas e,
portanto, perigosas (especialmente para o capitalismo). Uma clara hipertrofia
do naturo-biológico (Darwin
está em toda parte) em detrimento do sócio-histórico (Marx não está em lugar nenhum) muitas vezes amplifica
esse fenómeno perturbador. O carácter cyberfantoche de Einstein, que diz tudo e
o seu oposto ao mesmo tempo que é automaticamente tratado ad personam como um poço
quase místico de conhecimento e verdade, confirma tão necessário que existe, de
facto, um cientificismo de prateleira,
que deve ser firmemente questionado por uma racionalidade filosófica adequada.
Devemos também mencionar todos aqueles olíbrios contemporâneos do paranormal
que usam intensamente as ciências naturais como uma embalagem conceitual da
superfície, para legitimar noções perfeitamente inadequadas, como
criação-big-bang, vários fenómenos sobrenaturais, espiritualismo objectivo,
angelismo, imaterialismo, partícula(s) de Deus e outras farsas semelhantes.
Tudo isso tende a confirmar, se necessário, que racionalidade não é cientificismo.
A segunda acusação enfrentada pelos pensadores que servem à racionalidade
comum é a de que são acusados de simplismo. Assim, depois de os
termos censurado por se organizarem demasiado no quadro do pensamento
aperfeiçoado e do conhecimento científico elaborado, fazemos exactamente o
contrário. Por outro ângulo, a racionalidade é agora criticada por ser
demasiado simples, demasiado clara, demasiado quadrada, demasiado mecanicista,
demasiado estreita, demasiado encorpada, demasiado estruturada, demasiado
metódica, e por perder o encontro com um grande número de particularidades,
nomeadamente relacionadas com o mundo do inesperado, do instintivo, do
passional e do estranho. Em particular, há a mitificação, o emocional, o
sentimental, que a racionalidade não veria, reduzindo tudo a uma espécie de
abordagem insensível do mundo. Mais uma vez, o que é castigado neste tipo de
desenvolvimento é menos uma racionalidade do que uma caricatura da
racionalidade. É aqui que a intervenção de Claude
Lévi-Strauss, citada no início deste artigo, assume todo o seu sal
e adquire toda a sua importância crítica. Lévi-Strauss soube prudentemente
virar as costas ao primitivismo feliz, essa
crença muito ocidental e etnocêntrica de que quando voltamos, ou pensamos que
estamos a voltar, aos fundamentos primitivos do ser humano, é para encontrar o
emocional, o afectivo, o instintivo, o mistificador e o frágil de todas as
alegrias dos nossos infantilismos perdidos. Lévi-Strauss sugere que é
perfeitamente possível traçar, nas sociedades tradicionais, a parametrização
principiológica do que poderia ter sido algo como a revolução
neolítica... Uma observação e hipóteses são realizadas por povos que conquistarão
resultados, que não levarão necessariamente a opções científicas patenteadas,
ao estilo ocidental. Estas culturas conseguirão manusear e manipular
adequadamente a simplicidade, fazendo ferramentas, canoas, cerâmicas e muitos
outros objectos que são inteligentes, funcionais, estéticos, dinâmicos,
transmissíveis e fundamentalmente significativos. Não há o menor simplismo
nisso, mas sim uma versão alternativa do aperfeiçoado e do sofisticado.
Encontramo-nos, portanto, numa situação em que, quando nos voltamos para as
sociedades tradicionais, é para perceber que, para além do simplismo, elas
conseguiram organizar-se num modo de racionalidade
ordinária que produziu resultados tão sofisticados quanto
diferentes daqueles que foram capazes de captar os canais da investigação
científica convencional, continuando a funcionar. empiricamente e
intelectualmente. Não sabemos tudo e aqueles que acusam a racionalidade de
fingir saber tudo terão de pensar em abrir-se, metodicamente e sem
sentimentalismo, ao que foi alcançado... outras racionalidades.
É inútil e inadequado opor-se, de forma binária e polarizada, ao racional,
ao frio, ao radicalmente auto-controlado e auto-regulado, por um lado, e, por
outro, ao emocional, ao instintivo, às religiosidades, à arte. Quando
procedemos assim, na realidade, a crítica que afirmamos produzir à
racionalidade peca por uma inadequação da definição inicial desse fenómeno. A
radicalidade epistemológica da racionalidade atravessa todas as abordagens,
incluindo as artísticas, patéticas ou catárticas. Ao enquadrar as
coisas desta forma, percebemos que a racionalidade é muito mais flexível, muito
mais dialéctica, do que alguns opositores nos querem fazer crer. As acusações
de cientificismo e simplismo que têm sido
feitas contra a gnoseologia racional e a
inteligência do método são, elas próprias, o resultado de um método, o de
distorcer argumentativamente o adversário, antecipadamente, para facilitar a
entrega das botas que lhe são usadas, esquivando-se das subtilezas que lhe são
implicitamente negadas. A racionalidade é o modus operandi vernáculo da
vida ordinária. Ela surgiu em nós, colectivamente, durante milhões de anos.
Como resultado, é certamente agora parte da definição de princípio do que é um
ser humano. Não é um quadro exclusivo para representações, mas é certamente uma
visão do mundo. A racionalidade é usada e conquistada.
E certamente merece mais do que o destino de um certo irracionalismo e anti-filosofia. Mollo mollo, então,
para este salão intelectual por excelência onde o determinismo antropológico e
a historicização progressiva se unem, isto é, nada mais nada menos do que o
espaço prático e mental crucial da curiosidade racional.
Fabricação de grandes canoas no Mali
Fonte: De la rationalité comme fait anthropologique et historique – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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