31 de Outubro de
2024 Robert Bibeau Por
Emmanuel KOSADINOS. No URL deste artigo 39910
https://www.legrandsoir.info/le-depouillement-resistible-de-la-democratie-en-france-et-la-lutte-des-classes.html
Os desenvolvimentos políticos em França convidam as forças anti-capitalistas de todo o mundo a reflectir, uma vez mais, sobre a questão da transformação social através das urnas. Este texto destina-se a um público não francês, não familiarizado com as instituições francesas e a cena política francesa. Os leitores podem correr o risco de as ignorar. Uma primeira versão em grego (indicada na capa) foi publicada há um mês.
Os recentes desenvolvimentos políticos em
França apelam às forças de esquerda na Europa (e no mundo) para que tomem uma
posição relevante, baseada tanto nos factos como na teoria da luta de classes.
Em 2015, os acontecimentos igualmente
importantes na Grécia não levaram a esquerda mundial a análises e conclusões
úteis.
Em França, o resultado eleitoral da
“esquerda” aumentou moderadamente, enquanto dentro dela os sectores mais
radicais aumentaram o seu peso específico. Representados pela France Insoumise
(LFI) e seus aliados (NPA, ecologistas radicais, Partido Operário Independente,
colectivos de direitos civis e anti-fascistas, etc.), estes sectores registaram
um aumento líquido de um milhão de votos nas últimas eleições, provenientes da
juventude e das classes populares que se tinham mantido afastadas das urnas nos
últimos anos.
Desde as últimas eleições legislativas, a
Nova Frente Popular (NFP) é a única força política com legitimidade democrática
para governar o país. Uma maioria relativa de um terço dos votos expressos,
associada a uma afluência às urnas sem precedentes e a uma mobilização em torno
de um programa claro de 150 propostas, são actualmente condições suficientes
para a tomada de posse de um governo de esquerda.
Ao mesmo tempo, a crescente dinâmica
eleitoral da extrema-direita faz dela uma força política importante em França,
capaz de desempenhar, pelo menos, um papel regulador, apesar de um resultado
final relativamente modesto e do seu fraco desempenho em termos de número de
lugares.
As forças políticas próximas do Presidente
Macron estão a entrar em colapso e estão a desenvolver-se tendências
centrífugas dentro deste bloco.
As conclusões acima resumem as sequências
das eleições europeias e das duas voltas das eleições legislativas francesas,
sem me deter em cada uma destas fases, pois o meu objecto é a paisagem
pós-eleitoral, o que a determina e o que revela.
O carácter fundamentalmente anti-democrático
do sistema da Quinta República e o declínio mundial das instituições
democráticas no capitalismo moderno devem ser tidos em conta na avaliação do
que se passa hoje em França.
A crise social, geo-política e
energético-logística (e até alimentar) que afecta o país é a força motriz tanto
da radicalização de certos sectores da sociedade como do endurecimento anti-democrático
do poder, actualmente representado por um Presidente tóxico para as
instituições do país.
Na actual fase histórica, a burguesia está
disposta a pôr de lado os princípios do liberalismo político para assegurar o
seu domínio, em França como noutros países. A extrema-direita é o veículo de um
tal projecto, na medida em que as políticas do extremo-centro neo-liberal
seriam derrotadas. O domínio eleitoral da extrema-direita nas últimas eleições
legislativas francesas foi evitado graças à presença unida nas urnas de quatro
partidos de esquerda, e de uma centena de organizações, no quadro da Nova
Frente Popular - NFP.
Os resultados das
eleições legislativas francesas tornaram a esquerda (Nouveau Front Populaire) a
principal força na Assembleia Nacional. A governação imediata do país pela
esquerda, com Lucie Castets como primeira-ministra, tal como proposto pela Nova
Frente Popular, teria sido a solução mais democrática para o país.
No entanto, Emmanuel Macron, obedecendo às ordens dos seus amigos capitalistas, fez tudo o que estava ao seu alcance para excluir essa possibilidade, utilizando a Constituição francesa da pior maneira possível. O risco de uma deriva para a ditadura continua a ser real, um cenário que a França já experimentou várias vezes na sua história.
Actualmente, as forças da Democracia e do Progresso em França têm de travar batalhas diárias nas instituições e na sociedade. O voto de desconfiança em qualquer governo que não se apoie na Nova Frente Popular, a implementação de um processo de destituição do Presidente Macron por incumprimento dos seus deveres de garante da Constituição e da Democracia, as manifestações populares nas ruas das cidades francesas para exigir a saída dos actuais governantes e o fim dos seus programas políticos, as greves sectoriais que convergem para a greve geral pretendem ser os primeiros passos de uma nova sequência de lutas políticas.
No decurso destas
lutas, devem ser criadas em todo o lado estruturas de organização popular para
as planear, levar a cabo e desenvolver.
A tripla crise
Num discurso em dezembro de 2022,
falei da tripla crise social, energética-alimentar e geopolítica que atinge a França
como país no centro do capitalismo desenvolvido, das falhas das burocracias
sindicais, das fissuras cavadas no sistema político pela presença eleitoral
unitária da esquerda francesa, bem como dos mecanismos mobilizados pelo sistema
político-social para preenchê-las.
Nos últimos dois anos, as componentes da crise continuaram a actuar e agravaram-se. A resistência popular manteve-se forte, com a luta pelas pensões na vanguarda do movimento, e os protestos alargaram-se, enquanto as divergências no seio da “Nova União Popular Ecológica e Social” (NUPES) culminaram na sua dissolução.
Sob a nefasta governação de Macron, o número de pobres e de sem-abrigo
duplicou em França, enquanto a riqueza dos 500 mais ricos triplicou. A dívida
pública francesa ultrapassou o marco fatídico de 3.000 biliões e 110% do PIB. O
défice público já ultrapassa os 5% e a França foi chamada a explicar-se perante
a União Europeia no âmbito do procedimento por défice excessivo (PDE), que
deverá ter início no outono.
A posição geo-política da França está a deteriorar-se rapidamente, ao ponto
de se encontrar agora como um seguidor de segunda categoria dos Estados Unidos.
Os projectos neo-coloniais da França na região do Sahel e no resto de
África desmoronaram-se como um castelo de cartas devido às aspirações anti-coloniais
(principalmente anti-ocidentais) das sociedades locais e à presença agora forte
da Rússia e da China.
A posição europeia da França também foi profundamente afectada, à medida
que o seu outro parceiro, a Alemanha, se afasta cada vez mais das posições
francesas e se torna mais fraco. A posição da França na Europa não foi
melhorada pela bravata retórica de Macron sobre a guerra na Ucrânia; pelo
contrário, deteriorou-se ainda mais, em benefício dos países da Europa Oriental
e do Norte. A França, tal como os outros “parceiros europeus”, continua a
aguardar o resultado das eleições americanas, sem saber exactamente o que
esperar ou temer.
A explosão da guerra na Palestina e a sua deriva genocida, para além do
drama que representa, provocam ondas de choque na sociedade e na cena política
francesas. A França tem a maior comunidade judaica e talvez a maior comunidade
muçulmana da UE, cada uma com um peso económico, social e ideológico diferente,
e o sector mais agressivo do capital francês (AXA, BNParibas, Alstom, Renault,
Décathlon, Louis Vuitton, Danone) apoia activamente o plano de apartheid
sionista. Os apelos dos dirigentes franceses para “não importar o conflito do
Médio Oriente” são retóricos, uma vez que “o conflito está a ser importado”
pelo capitalismo neo-liberal mundializado.
A criminalização do movimento de solidariedade com o povo palestiniano e a
utilização enganosa do conceito de “anti-semitismo” para denegrir os opositores
políticos são um aspecto preocupante, uma manifestação do estreitamento geral
dos direitos civis em França e noutros países europeus.
Para além de tudo isto, a extensão da guerra ao Líbano ameaça os últimos
vestígios da influência histórica da França neste país e a segurança dos 700
soldados da paz franceses.
A desordem geo-política invade também as fronteiras da França, mais
concretamente o território ultramarino de Kanaky/Nova Caledónia. Os territórios
ultramarinos (TOM) são territórios francófonos fora da Europa continental que
gozam de autonomia em todos os domínios, com excepção da diplomacia, da defesa
e da política monetária, e são representados na ONU pela França. O Kanaky
situa-se no Oceano Pacífico e a sua população divide-se entre os nativos
(Kanaks) e os descendentes dos colonos. As tensões entre as duas populações
tinham-se atenuado desde 1989, após os Acordos de Nouméa, mas reapareceram este
ano sob formas muito brutais, na sequência de uma série de erros políticos do
governo Macron. Hoje, o país encontra-se num estado de rebelião generalizada,
se não mesmo de guerra civil, que alguns representantes do governo francês
atribuem à acção subversiva do... Azerbaijão!
O único “benefício” que a França está a obter do caos geo-político mundial
é a sua ascensão ao segundo lugar no comércio mundial de armas, tendo o seu
principal concorrente, a Rússia, redireccionado maciçamente a sua produção de
exportação... para seu próprio uso!
Os aspetos energéticos, logísticos e alimentares da tripla crise estão
inextricavelmente ligados à geo-política, na medida em que o Governo francês
não só não conseguiu mitigar os efeitos da guerra russo-ucraniana, como se vê
confrontado com situações que as agravam, pelas quais é parcialmente
responsável. Assim, é provável que o fornecimento de hidrocarbonetos sofra com
as consequências da estratégia neo-colonial da Total Energies em África,
representada pelo projecto ecocida "East African Crude Oil Pipeline –
EACOP" que, com razão, provocou uma onda de protestos. O recente abandono
da causa da POLISÁRIO a favor do eixo Marrocos-Estados Unidos-Israel arrisca-se
a afastar a França da Argélia, parceiro tradicional e fornecedor de
hidrocarbonetos.
Quanto ao outro combustível essencial francês, o urânio, a sua aquisição no
Níger está actualmente suspensa devido à hostilidade entre os governos dos dois
países. A fonte alternativa do Cazaquistão ainda não parece estar acessível,
pelo que as 57 centrais nucleares francesas em funcionamento estão agora
dependentes de reservas, que durarão mais alguns anos. Note-se que os dados
relativos às importações de urânio da França são confidenciais e apenas são
deduzidos indirectamente.
Finalmente, o fabrico de acumuladores eléctricos (baterias) baseia-se na
importação de lítio e de outras terras raras de "países terceiros"
com os quais as relações não são consideradas seguras a longo prazo, pelo que o
Governo francês avança para a exploração local do lítio (Allier, Auvergne),
provocando justificadas reacções negativas das comunidades locais.
Os desenvolvimentos no sector da energia acima mencionados afectam directamente
a cadeia de abastecimento e, por conseguinte, também a inflação, uma vez que o
maior país agrícola da Europa depende agora directamente das importações para
alimentar a sua população.
Um "plano B" para a defesa do
capitalismo
Num contexto de crise,
portanto, a manutenção pela burguesia de um modelo autoritário de governação
(plano B burguês) é uma condição necessária para a sobrevivência do sistema.
Este modelo é encarnado, nas repúblicas tradicionalmente liberais, pela
extrema-direita nacionalista, xenófoba e populista e, em França, pelo
“Rassemblement National”, de Le Pen e companhia.
Herdeiro da “Frente Nacional” de Jean-Marie Le Pen, fundada pelos antigos soldados das Waffen-SS Pierre Bousquet e Léon Gauthier, conseguiu, após décadas de oportunismo político e intrigas familiares, impor-se como uma formação política aceitável na Quinta República, mesmo na corrida ao poder.
As causas da ascensão da extrema-direita em França são as mesmas que a reforçaram noutros países: o empobrecimento das classes médias tradicionalmente conservadoras, a incapacidade dos políticos de centro-direita e de centro-esquerda para resolverem os problemas de gestão do capitalismo, a exploração do medo e do sentimento de insegurança pelos meios de comunicação social, a redução dos direitos civis, o declínio da educação e a incapacidade da esquerda tradicional para oferecer às pessoas uma visão da sociedade que lhes dê esperança.
O que distingue a extrema-direita dos outros partidos parlamentares burgueses é a facilidade com que pode pôr de lado, se assim o entender, os princípios democráticos tradicionais: direitos individuais e políticos, igualitarismo, alternância de poder. Este é um caminho que outros partidos políticos também seguem ocasionalmente. Mas a extrema-direita também tem um argumento pronto para justificar esta deriva.
Hoje, o conluio dos políticos com o grande capital é cada vez mais directo e os benefícios mútuos são concretos e mensuráveis. Não é de estranhar que, no hipódromo parlamentar, os capitalistas altamente sistémicos apostem nos cavalos “anti-sistema” da extrema-direita. “O conluio é epónimo”, como diz Yanis Varoufakis, secretário-geral do movimento MERA/DIEM, no caso da Grécia. O patrocinador do “cavalo Macron” é Bernard Arnault (LVMH, Louis Vuitton), enquanto o patrocinador da dupla Lepen-Bardella é Vincent Bolloré (Universal, Vivendi, etc.).
A deriva autoritária é um fenómeno recorrente na história da França moderna. Se os seus sistemas de governação têm nomes precedidos de números ordinais (de um a cinco, etc.), é precisamente por isso. A descontinuidade democrática, orquestrada pela classe dominante, gera em contrapartida as tentativas de emancipação empreendidas ao longo da história pelas classes dominadas.
A actual versão da República Francesa (em quinto lugar) é a mais longeva (durável), tendo já 66 anos de existência!
A Constituição actual
institui um Presidente com poderes de monarca. Imbuída de ideais conservadores
de ordem e submissão, foi redigida e adoptada segundo um processo acelerado na
altura da guerra colonial na Argélia e do fracassado golpe de Estado fascista
dos generais do exército francês. Foi inicialmente implementada durante um
período de aumento do nível de vida e, apesar disso, as suas disposições mais
anti-democráticas nunca foram aplicadas pelos presidentes anteriores, nem mesmo
durante a revolta de Maio de 1968.
De resto, a Constituição da V República Francesa inspirou líderes autoritários em todo o mundo, incluindo o Presidente turco Erdogan e a junta militar grega. Um exemplo disso é o todo-poderoso Conselho Constitucional francês, constituído por cooptação, instituído com muito poucas diferenças pelos artigos 98º e 106º da pseudo-constituição da junta militar grega de 1973. Um estudo comparativo dos dois textos revelaria facilmente outras semelhanças.
As observações anteriores põem em evidência o perigo de um eclipse da democracia em França. Este risco é colocado pela crise social e geo-política, encorajada pelo actual quadro institucional. Pode ser desencadeado por um Presidente da República tóxico e um governo próximo da extrema-direita, do centro-direita ou, muito simplesmente... da direita.
Equações e insuficiências de poderes
Desde o início, o projecto “revolucionário” da presidência Macron consistia
em desmantelar as conquistas do movimento operário e popular para aumentar o
rendimento da burguesia francesa. Ao mesmo tempo, visava garantir que o capital
francês fluiria para o mercado mundial, sob a garantia, é claro, dos EUA, da UE
e das instituições que dependem deles. A maioria das “velhas” personalidades
políticas, do centro-esquerda ao centro-direita, convergiram em torno do projecto
macronista. A ideologia (ou melhor, a ética) de Macron e da sua equipa é a dos
vendedores, ou seja, o bem é identificável com o lucro e aqueles que não
conseguem colher o suficiente na sociedade de mercado são considerados
responsáveis pelo seu mau destino. Esta ética foi expressa sem rodeios pelos
dirigentes franceses nos últimos anos, suscitando a indignação não só das
classes populares, mas também de muitas pessoas da classe média mergulhadas no
espírito do catolicismo, que continua a ser maioritário na França laica.
Desde 2017, a França assiste ao fenómeno paradoxal de um Presidente eleito
por uma sociedade que não partilha os seus pontos de vista e que, na verdade, o
odeia mais do que qualquer um dos seus antecessores. A explicação reside, em
parte, no sistema de eleições presidenciais por sufrágio directo e maioria
absoluta em duas voltas.
Desde 2017, temos tido uma série de movimentos populares de protesto e
reivindicação em França, alguns dos quais (por exemplo, os Gilets Jaunes)
excederam em intensidade, participação e duração tudo o que tinha surgido no
país desde Maio de 1968. Numa democracia parlamentar burguesa “racional”, estes
movimentos conduziriam a gestos de correcção da política do poder executivo,
através da pressão sobre a elegibilidade dos deputados do bloco parlamentar
maioritário. Mas no sistema da V República, o poder executivo, concentrado
principalmente nas mãos de um homem, o Presidente, pode ocasionalmente
coincidir com o poder legislativo (artigo 49-3), mas também com o poder
judicial, através do Conselho Constitucional e da nomeação e controlo dos
procuradores nos tribunais verticalmente dependentes do Ministério da Justiça.
Uma vez que o apoio popular não é necessário para o funcionamento do
regime, os seus dirigentes são deixados com a tarefa de “restabelecer a ordem”
de tempos a tempos, recorrendo às “forças de segurança”. Milhares de presos
políticos na sequência dos protestos dos Gilets Jaunes, centenas de feridos,
mutilados e mortos, milhares de vidas destruídas: é este o balanço dos últimos
sete anos. De tal forma que a França se tornou alvo de relatórios muito
críticos do Conselho dos Direitos do Homem da ONU e de numerosas condenações do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - TEDH.
Estamos habituados a ouvir dizer que, numa democracia, os direitos dos
cidadãos não se limitam ao voto nas eleições. Mas como podemos caracterizar um
regime em que até o veredito periódico do povo é ignorado, anulado ou
revertido?
A partir de 2022, o declínio já anémico da popularidade das políticas de
Macron é continuamente registado nas sondagens, enquanto o projecto de uma
“União de Esquerda” prossegue com avanços e recuos. Não sejamos ingénuos. Uma
parte dos sociais-democratas de direita e outros “centro-esquerdistas” aderem
ao projecto, na ausência de uma alternativa melhor para eles, por medo da sua
extinção política e da perda de privilégios parlamentares e de outras
carreiras.
A mola mestra da construção de uma “nova” formação política de esquerda
reside na politização, desejada e real, das classes populares e dos jovens.
Trata-se de um processo bi-direccional e de uma verdadeira “invasão” das urnas
por aqueles que antes se mantinham afastados. A burguesia dominante tem todo o
interesse em acabar com este movimento, excluindo mais uma vez os sectores oprimidos
da sociedade do processo eleitoral e promovendo o discurso de que “mesmo
votando, não se pode mudar nada”.
O programa de 150 propostas da “Nova Frente Popular” (NFP) é um programa
moderado e favorável à sociedade e aos seus sectores em dificuldades, e inclui
pontos como a tributação das grandes fortunas, superlucros e dividendos, um
aumento de 15% do salário mínimo, o regresso imediato à reforma aos 62 anos,
contratações suficientes na saúde e na educação, o reconhecimento do Estado da
Palestina, uma política externa a favor da paz mundial, a abolição da
discriminação dos imigrantes, uma moratória sobre os grandes projectos
desnecessários que põem em perigo os ecossistemas e investimentos públicos para
poupar energia e água.
A partir destes dados
aritméticos, podemos concluir que um governo de esquerda não resistiria a uma
censura apoiada simultaneamente pelo centro-direita e pela extrema-direita. Mas
os outros cenários também não garantem a estabilidade. Uma eventual aliança
entre o centro-direita e a extrema-direita retiraria ao primeiro o seu pretenso
republicanismo e ao segundo a credibilidade do seu programa social. A
subsequente erosão do eleitorado das duas componentes da direita abriria
provavelmente caminho a uma vitória mais ampla da esquerda nas próximas
eleições.
No entanto, este é de facto o cenário tentado pelo Presidente Macron, e cabe-nos a nós derrotá-lo.
Note-se que a Constituição francesa proíbe a dissolução da Assembleia Nacional uma segunda vez num ano e que o risco de ingovernabilidade é real.
Em todo o caso, o programa reformista moderado da Nova Frente Popular não pode ser tolerado pela burguesia francesa, que há décadas se habituou progressivamente a lucros cada vez maiores (sem aumento proporcional da produtividade) e à manipulação sistemática dos políticos de todos os quadrantes.
Este estado de coisas, e as exigências daí resultantes, foram expressos sem rodeios pelo representante do MEDEF durante uma reunião com Macron em 28 de agosto.
Entretanto, o governo demissionário não só geriu a “actualidade”, como também legislou por decreto, reduziu ainda mais os orçamentos da educação e da saúde, começou a preparar o orçamento de Estado para 2025 e fez declarações sobre as orientações políticas futuras!
Perante esta série de anomalias flagrantes, o Conselho de Estado e o Conselho Constitucional permaneceram espectadores invisíveis e sem voz!
Na sua qualidade de servidor do MEDEF, Macron, com a ajuda de uma equipa invisível de conselheiros jurídicos, está a esticar até ao ponto de ruptura as disposições já autoritárias da Constituição da Quinta República Francesa, recusando nomear como Primeiro-Ministro a candidata da Nova Frente Popular, Lucie Castets, e concedendo o governo à “minoria absoluta” representada por uma boa e velha direita, sem fôlego e reaccionária e um político fora do guarda-roupa, Michel Barnier para o nomear.
Qualquer falha do Estado de direito prenuncia muitas vezes a pior anomalia que está para vir, pelo que a camarilha de Macron, num truque de prestidigitação, impôs a participação na Assembleia Nacional, com direito de voto, dos ministros do governo em funções, sob o pretexto... de que se tinham demitido!
Ao mesmo tempo, um
deputado do bloco parlamentar macronista propôs a demissão dos deputados
eleitos de La France Insoumise (!!!) como solução para o actual impasse
parlamentar.
Assim, não é de surpreender que um ministro do governo Barnier declare publicamente a obsolescência do Estado de direito (!!!) e outro a sua dedicação inabalável à vigilância do corpo e dos bens dos universos (!!!).
A recusa de nomear um Primeiro-Ministro do grupo parlamentar maioritário tem como precedente a crise constitucional de 1877, quando o Presidente monárquico e o General Mac Mahon, protagonista do massacre dos comunistas, recusaram o cargo de Primeiro-Ministro ao grupo maioritário republicano.
A proposta de
destituição dos deputados da França Insubmissa tem como precedente a
destituição de 61 deputados e senadores comunistas em 1940 pelo parlamento que
posteriormente concedeu superpoderes ao ditador fascista Pétain.
Embora “a comparação não seja uma razão”, a referência a estes dois momentos históricos emblemáticos é feita para apoiar a constatação de que existe actualmente uma crise sistémica de grandes proporções, que tende a agravar-se.
Depois de referir os superpoderes do chefe de Estado, é altura de mencionar o artigo 16 da actual Constituição francesa, que estipula que: “Quando as instituições da República, [...] o cumprimento dos seus compromissos internacionais, [...] são ameaçados de forma grave e imediata e o funcionamento regular dos poderes públicos constitucionais é interrompido, o Presidente da República adopta as medidas necessárias [...]. ...] trinta dias após o exercício dos poderes excepcionais, a questão pode ser submetida ao Conselho Constitucional [...] pronuncia-se nas mesmas condições ao fim de sessenta dias de exercício dos poderes excepcionais [...]” e depois prevê a renovação quinzenal e indefinida deste regime pelo [...] Conselho Constitucional!
A eventual utilização do artigo 16º teria sido considerada pela equipa macronista, pelo menos não foi rejeitada.
Defesa da Democracia, Preparação para a Transformação Social
Uma vez que a democracia burguesa é uma mistura de consentimento e
repressão, a vitória da classe operária e dos seus aliados depende da
desconstrução do consentimento e da resistência à repressão, utilizando meios
institucionais e directos. A entrada no governo de forças democráticas
favoráveis às reivindicações populares é uma etapa deste processo.
No caso da França actual, o consenso em relação às políticas governamentais
está em constante declínio e a repressão em constante aumento. A camarilha de
Macron e os seus aliados querem transformar as eleições num ritual sem sentido,
alimentando a ideologia de extrema-direita a que dizem opor-se.
É pouco provável que a estratégia do “arco republicano” seja reavivada em
França nas próximas eleições, e muito menos que seja seguida pela base
eleitoral.
Em vez disso, é de esperar que os próximos confrontos eleitorais sejam
entre a esquerda e a extrema-direita.
É claro que a equipa política que rodeia Emmanuel Macron gostaria de jogar
outras cartas antes de ser forçada a retirar-se definitivamente do centro do
poder. Isso implicaria uma reestruturação política que incluísse forças da
direita no Partido Socialista. No entanto, esta opção já foi rejeitada pelos
principais partidos em causa. Para isso, Macron e os seus amigos serão
obrigados a remexer nos caixotes do lixo dos partidos políticos, numa última
tentativa de seduzir os frustrados da direita e da esquerda, na fase de
substituição do actual governo precário de Michel Barnier.
Na última Universidade de Verão do Partido Socialista, Lucie Castets,
candidata do Nouveau Front Populaire ao lugar de Matignon, apelou a uma ampla
implantação social do Front Populaire, através de lutas quotidianas conduzidas
por colectivos de cidadãos em todos os locais de trabalho e em todos os
sectores da vida.
Enquanto os sindicatos anunciam ou preparam greves em resposta às
emergências sociais e salariais que se acumulam, já se realizaram
manifestações, e outras estão previstas, nas ruas das cidades de toda a França
contra o golpe de força anti-democrático e a imposição de uma governação de
“minoria absoluta”.
A France Insoumise e uma dúzia de outros deputados de esquerda apresentaram
uma moção para a destituição do Presidente Macron, ao abrigo do artigo 68º da
Constituição: “O Presidente da República só pode ser destituído em caso de
violação dos seus deveres que seja manifestamente incompatível com o exercício
do seu mandato. A destituição é pronunciada pelo Parlamento, constituído como
Tribunal Superior, por maioria de 2/3 dos membros da Assembleia Nacional e do
Senado [...] o processo é iniciado por maioria de 2/3 dos membros de uma das
duas assembleias”.
Macron desrespeitou a regra democrática da maioria. Desrespeitou também a
regra da separação de poderes. Deixou a França sem governo legítimo durante
três meses, numa altura em que se vivia uma situação internacional tórrida e
prazos nacionais inadiáveis. Para um Presidente, que é suposto ser o garante da
Constituição e do funcionamento das instituições, trata-se de um flagrante
incumprimento do dever. Por conseguinte, já não está em condições de continuar
o seu mandato como Presidente e, se as maiorias parlamentares necessárias
apoiassem estes argumentos, seria destituído do cargo e substituído pelo
Presidente do Senado até às eleições presidenciais antecipadas.
É de notar, no entanto, que, mesmo em comparação com o processo
constitucional americano correspondente, no qual se inspira, o processo de
destituição francês é muito mais longo e mais difícil de aplicar do que o
processo de destituição americano. Este último exige uma maioria simples dos
deputados presentes na Câmara dos Representantes para ser iniciado e, em
seguida, uma maioria de 2/3 dos deputados presentes no Senado para ser bem sucedido.
Em França, o processo de destituição demora, na melhor das hipóteses, dois
meses a ser concluído, enquanto o processo que dá ao Presidente acesso aos
superpoderes demora apenas 2-3 dias.
O facto de a moção de impugnação apresentada pela France Insoumise não ser
bem sucedida, tendo sido anulada internamente (sem surpresa) pelo Partido
Socialista, tem um elevado valor simbólico. O facto de o Rassemblement National
não se ter juntado a esta moção já o desmascara como um falso opositor, um
aliado objectivo do macronismo, particularmente num assunto que precisa de ter
alguma cobertura mediática. Esta moção de impugnação permite reintroduzir no
debate público a questão das instituições desgastadas da Quinta República,
incapazes de garantir a soberania popular e a estabilidade da vida pública. No
seio da Nova Frente Popular, as hesitações e ambivalências manifestadas
prefiguravam uma determinação instável de chegar, se necessário, a momentos
mais decisivos da história da política.
Para concluir este texto, gostaria de prestar homenagem a um combatente
histórico da classe operária, conhecido na Grécia e em França pelos mais
antigos.
"A solução numa situação de crise nacional revolucionária nos países
desenvolvidos passará necessariamente por uma forma de transição política
durante a qual o governo do país será exercido pelos partidos da esquerda
tradicional. Este governo de transição deve, no entanto, basear-se numa vasta
rede de colectivos populares democráticos e comités da frente única
estabelecidos na base da sociedade."
Michel Pablo (Michalis N. Raptis), Autobiografia.
»» https://rproject.gr/article/i-dimok...
Fonte : Le dépouillement de la démocratie bourgeoise en France et la lutte des classes – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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