quarta-feira, 16 de outubro de 2024

O trauma psiquiátrico argelino em Marselha

 

ACORDOS DE ÉVIAN
18 de Março de 1962

 15 de Outubro de 2024  René Naba 

RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com www.madaniya.info.

“De tanto nos matarmos uns aos outros, um dia acabaremos por falar apenas com os mortos”. Estas foram as palavras de Ammy Simane, cujo retrato é a capa do livro de Kamar Idir sobre o trauma psiquiátrico sofrido pelos argelinos em Marselha.

Este artigo foi publicado por ocasião do 56º aniversário dos Acordos de Evian, de 18 de Março de 1962, que puseram fim a sete anos de guerra colonial francesa na Argélia e conduziram à independência do país após 130 anos de colonização. Um olhar retrospectivo sobre um aspecto pouco conhecido desta tragédia.

1 – 80 % dos pacientes internados em estabelecimentos psiquiátricos de Marselha são argelinos

Há um número que resume o trauma psiquiátrico sofrido pelos argelinos em Marselha e que dispensa comentários: 80% dos pacientes que frequentam os estabelecimentos psiquiátricos de Marselha são argelinos, resultado das convulsões da história, da conquista colonial, dos problemas pós-independência, da aculturação, da despersonalização, do fedor da vida, da fragilidade humana e da lei de ferro do capitalismo desenfreado.

Em dezassete retratos, Kamar Idir, autor de “D'une vie à l'autre: Des vies fragiles” (Édition La FRACHI) (1), oferece-nos um panorama impressionante da miséria destes ‘condenados do exílio’, ”que ficaram retidos nos passeios, nos dormitórios ou nos buracos infernais da cidade de Marselha; Homens cuja única casa é a rua, um abrigo para os sem-abrigo, uma ocupação ou, na melhor das hipóteses, um hotel miserável”, como diz Fathi Bouaroua, Director Regional PACA da Fundação Abbé Pierre, co-editor do livro.

Desde as grutas cheias de fumo, aquando da conquista colonial, até ao massacre de 40. 000 argelinos em Sétif, cem anos mais tarde, a 8 de Maio de 1945, dia da vitória dos Aliados na 2ª Guerra Mundial; da “carne para canhão”, para “fazer suar os queimados”, da deportação para a Nova Caledónia, às deportações durante a guerra da Argélia da ordem dos dois milhões de pessoas (2), aos espancamentos (“ratonnades” ou espancamento sobre uma minoria racial – NdT) e à tortura, poucos argelinos saíram ilesos deste processo secular de aculturação e despersonalização.

A acrescentar a este quadro sombrio, a discriminação etno-religiosa causada pelo Decreto Crémieux, que concedia a cidadania francesa aos judeus autóctones da Argélia, mas a negava aos nativos muçulmanos, bem como o terrorismo da OEA como ramo final da Independência, explicam indirectamente o grande êxodo de franceses da Argélia.

O terrorismo da Organisation de l'Armée Secrète (Organização do Exército Secreto), comandada na altura pelo General Raoul Salan, antigo Comandante-em-Chefe da Argélia, provocou a morte de mais de 2.200 civis e militares. As “nuits bleues” (noites azuis), múltiplas explosões nos quatro cantos de Argel, atingiram o seu auge em Janeiro e Fevereiro de 1962, visando personalidades e jornais comunistas.

Na Argélia, a partir de Maio de 1961, até 350 explosões por mês abalaram a capital. O assassinato, a 15 de Março de 1962, alguns dias antes do cessar-fogo, de seis dirigentes de centros sociais educativos, permanecerá como um dos exemplos deste terrorismo cego, cuja acção foi aprovada pela maioria da população europeia da Argélia.

Este comportamento fez aumentar o fluxo de repatriados para o sul de França, a ponto de criar um forte “lobby dos pieds noirs”, o único país do mundo, entre as antigas potências coloniais europeias, a ter um grupo de pressão de antigos colonos, viveiro da extrema-direita francesa.

A elevada taxa de psiquiatria na Argélia - quatro vezes superior à dos doentes de outras nacionalidades, nomeadamente do Magrebe - explica-se facilmente pela duração da colonização francesa na Argélia (130 anos) e pela dureza desta colonização, com o código do indigena e uma guerra de libertação de seis anos; a isto junta-se o suave ostracismo que afecta a comunidade argelina em Marselha - cerca de 250. 000, ou seja, um quarto da população da cidade, mas cuja presença maciça permanece invisível, apesar da presença de um grande número de académicos, empresários, artistas e actores da sociedade civil.

Combinada com a sua sobre-exploração, num destino comparável ao dos Chibanis - trabalhadores imigrantes velhos, mal pagos, sem protecção social e sem abrigo - esta perda de orientação tem sido fatal para muitos emigrantes argelinos em França. Um fenómeno amplificado pela sua precariedade e exclusão social, que acaba por conduzir à sua desestruturação e alienação.

Poucas pessoas no mundo terão vivido tais provações com tanta serenidade e bonomia. Poucos saberão “manter a cabeça” durante este percurso caótico, cheio de ruído e fúria.

Um factor agravante é o estado precário dos cuidados psiquiátricos em Marselha. O parente pobre dos cuidados de saúde em França, esta especialidade tem vindo a pagar, desde há anos, um preço elevado pelos cortes nas despesas de saúde.

“Muito simplesmente porque a psiquiatria é o sector onde é mais fácil fazer poupanças”, analisa o professor Christophe Lançon, chefe da unidade de psiquiatria do Sul de Marselha, que aponta também a falta de opção política.

Embora as alternativas à hospitalização tenham sido encorajadas desde os anos 60, a fim de romper com o confinamento e a psiquiatria “asyline”, faltam recursos. Muitas vezes, são necessários vários meses para conseguir uma marcação para um centro de dia.

§  http://www.laprovence.com/article/edition-marseille/4605018/labandon-insense-des.html

A relação entre Marselha e a imigração argelina é curiosa, funcionando segundo o princípio da atracção-repulsão, o que, por vezes, dá crédito à ideia de Marselha como a 49 me Wilayas da Argélia.

Para o provar, basta ver o número de candidatos a cargos políticos. Com excepção de Samia Hallali, a senadora do PS de Marselha, todos os candidatos ao sufrágio universal neste departamento eram, até às eleições legislativas de 2017, candidatos suplentes, angariando votos junto do eleitorado norte-africano num papel auxiliar, uma reminiscência longínqua dos auxiliares harki do exército francês na Argélia.

Não um papel decisivo, de decisão, mas um papel subordinado, figurativo. Era como se um tecto de vidro pairasse sobre todos os candidatos a cargos electivos provenientes da população imigrante de cor (árabes, africanos, indianos ocidentais), apesar da vitalidade e criatividade da população basca.

2 – As vítimas do colonialismo tratadas por profissionais neo-coloniais.

No caso da psiquiatria, a grande maioria dos clínicos dos estabelecimentos psiquiátricos de Marselha eram originários da Argélia francesa, “pieds noirs” transplantados para Marselha na sequência do êxodo argelino pós-independência e dedicados ao tratamento de argelinos.

Muitos deles já estavam a trabalhar em Blida, a maior clínica psiquiátrica da Argélia, imortalizada pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon, companheiro de viagem da Revolução Argelina e autor do memorável livro Les Damnés de la Terre (Os Desgraçados da Terra).

Esta situação surrealista levou um observador astuto a descrever a incongruência com a frase desiludida de que “as vítimas do colonialismo estão a ser tratadas por médicos neo-colonialistas”.

De facto, os clínicos aproveitaram este afluxo para aprofundar os seus conhecimentos sobre os traumas mentais, na medida em que a perícia terapêutica adquirida neste domínio serviu de apelo a muitos pacientes do Magrebe que não hesitaram em enfrentar o mar na tentativa de encontrar abrigo para o seu sofrimento ou, mais simplesmente, para aliviar os seus tormentos reais ou supostos.

Um motivo de orgulho para os nostálgicos do Império francês e uma fonte de desolação para muitos argelinos obrigados a confiar a sua psique aos seus antigos colonizadores. Uma perversão absoluta. 

3- “ Palavras para curar os males ” ou a lenta viagem do exílio à psiquiatria

O livro é uma descrição do lento percurso do exílio à psiquiatria. Em 17 quadros e outros tantos relatos pessoais, num total de cerca de uma centena, o autor propõe-se “curar os males com a palavra”, centrando o seu trabalho em três períodos fulcrais da história da Argélia: a Guerra da Independência (1954-1962), a Década Negra (1989-2000) e a época contemporânea.

O autor da presente resenha seleccionou três casos emblemáticos desta deriva. Os restantes testemunhos serão incluídos no documentário que será lançado com o livro no Outono de 2017.

A – Ammy Slimane (Tio Slimane).

Membro do grupo do general Bellounis (3), defensor acérrimo de Messali Hadj, pioneiro da independência argelina, hostil tanto à FNL (Frente Nacional de Libertação) como ao exército francês, Ammy Slimane recusou, aquando da independência, tanto a nacionalidade francesa, “a nacionalidade do colonizador”, como a nacionalidade argelina, “a nacionalidade do Estado da FLN”.

Apátrida, rompeu os laços com a sua pátria e acabou em Marselha, porta de entrada para a Europa, mas também, para muitos, local de descarrilamento da vida. De errante a desviado, este homem piedoso, mas psicologicamente rígido e intratável, sem recursos, encontrou-se, em 2010, na UHE de Marselha (Unité d'hébergement en urgence), uma agência responsável pelo alojamento de pessoas em grande perigo. O alojamento é assegurado das 18h00 às 8h00 do dia seguinte. Durante o dia, Ammy Slimane acampa na zona soalheira em torno do Vieux Port e do Mucem.

Uma dádiva de Deus nos dias de sol; uma maldição nos dias em que sopra o mistral. Aos oitenta anos, o homem só tem como companhia as suas recordações, que repete vezes sem conta, e o seu eterno solilóquio. Tudo isto com drogas pesadas e álcool forte, consumidos e absorvidos ao longo de quarenta anos de vida nómada na metrópole de Fócae,

B- Ammy Ahmad

Antigo combatente na zona de Oujda, sob o comando de Abdel Aziz Bouteflika, actual Presidente argelino, e então Comandante si Abdel Kader, Ammy Ahmad também rompeu as fileiras na sequência de um conflito com os seus superiores. Foi colocado num posto diplomático no norte de França antes de se encontrar no cais do Vieux Port de Marselha e nos rigores da vida de rua.

C- H’Mida.

Um “grande alcoolizado”, para usar a gíria médica, que procurava afogar as feridas da sua alma e do seu corpo no álcool e no esquecimento.

Com o passar dos dias, com grandes goles de álcool intercalados com baforadas aveludadas de ervas de todo o mundo, este antigo quadro de uma empresa argelina, habituado a frequentar cursos de formação profissional em França, viu-se sob cuidados médicos em Marselha, recebendo o Cotorep, o subsídio para adultos deficientes, com a obrigação de frequentar aulas semanais. O subsídio, no valor de 810,89 euros por mês, não está sujeito a imposto sobre o rendimento. É o suficiente para o manter entre as consultas de psiquiatria, e a lei da selva nas ruas de Marselha é-lhe indulgente. À mercê dos chefes da droga..

4 – Kamar Idir

Kamar Idir, fotógrafo e locutor de rádio, vive e trabalha em Marselha desde 1993, onde foi impelido pela violência da “década negra” argelina. Desde então, trabalha na Radio Galère, onde tem sido um observador privilegiado do mal-estar argelino.

Para produzir o seu 4º livro, “D'une rive à l'autre: Des vies fragiles”, o autor passou um ano com “Les entendeurs de voix”, na companhia do psiquiatra Thomas Bossetti. As sessões decorriam todas as quartas-feiras, das 14h00 às 16h00, com o animador a introduzir os “doentes psiquiátricos” na poesia slam, com uma aparição na rádio uma vez por mês, na última quinta-feira. Às sextas-feiras, dirige um atelier para “mulheres com problemas de alcoolismo e toxicodependência”, ajudando-as a tomar as rédeas da sua vida através da apresentação de uma variedade de empregos.

Às quintas-feiras, apresenta o programa “Harragas” sobre os aspirantes a exilados, na Radio Galère; um programa em que o signatário deste texto apresenta uma revista de imprensa de trinta minutos intitulada “Revista de imprensa Halal sobre assuntos Haram”, dedicada a tratar dos pontos cegos da actualidade internacional.

Reincidente, Kamar Idir é autor de dois livros publicados pela ART Tribales e produzidos conjuntamente por Kamar Idir (fotografia) e Dominique Carpentier (texto):

“Présence invisible: Une histoire de l'émigration algérienne à Marseille dans la période post-coloniale”.

-Brûlez moi, comme ça je peux chanter“ Fantasmes et réalités autour d'une immigration comme les autres” (livro antologia sobre os ciganos).

“As mulheres do exílio”, publicado por La Franchi.

Para ir mais longe sobre este assunto:

§  http://www.madaniya.info/2017/05/22/idir-kamar-laboureur-des-mers-a-la-recherche-des-naufrages-de-la-vie/

5- Enquanto negação dos princípios fundadores da República Francesa, o colonialismo é um crime contra a humanidade.

Os factos angustiantes acima referidos não devem obscurecer o debate. Longe de ser um exercício de flagelação, este artigo não é sobre polémica, mas sobre a verdade histórica.

Atrevemo-nos a dizê-lo: A colonização foi um exemplo perfeito de “crime contra a humanidade”, em particular a colonização francesa em África e, mais especificamente, a colonização francesa na Argélia, cujos estragos ainda hoje se fazem sentir através dos efeitos corrosivos a longo prazo do Código Indigénat e do fenómeno de aculturação que gerou entre a população argelina.

Não se trata de um exercício demagógico, nem de um caso de populismo bem-humorado, que é, de facto, um jogo limpo neste tipo de manifestação. O seu objectivo é contribuir para a clarificação semântica e psicológica do debate pós-colonial, rastreando os aspectos não ditos da consciência nacional através de uma viagem aos meandros do imaginário francês. Nem populismo, nem demagogia, nem difamação.

Mas a aplicação da análise de conteúdo a constatações que, embora concisas, não são de modo algum sumárias ou rudimentares. Em suma, uma terapia de electrochoque. Uma viagem que revela os pressupostos de um povo, as fontes psicológicas de uma nação e a compleição mental dos seus dirigentes.

- O tríptico republicano (Liberté, Égalité, Fraternité), o mito fundador do excepcionalismo francês posto à prova pela colonização.

A) – A liberdade :

A colonização é a negação da liberdade. A colonização não é, longe disso, “o desenvolvimento das riquezas de um país transformado em colónia”, segundo a definição mais recente do diccionário “Le Petit Robert” Edição -2007.

Liberdade e colonização são diametralmente opostas. Porque a colonização é a exploração de um país, a pilhagem das suas riquezas, a escravização da sua população em benefício de uma Metrópole para a qual é, de facto, um mercado cativo, o reservatório das suas matérias-primas e o escoamento do seu excedente demográfico, da sua mão de obra e da sua sobrepopulação, a roda reguladora do seu desemprego.

Contrariamente aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade - princípios fundadores da Revolução Francesa - a colonização é o coveiro do ideal republicano. Isto apesar de figuras francesas ilustres como Léon Blum, a consciência moral do socialismo, já celebrarem os seus benefícios como um dever de levar a civilização aos povos primitivos. O famoso “direito de nascença” da França em relação aos povos que tinha declarado “menores”.

Transposta para o debate actual, a retórica de Léon Blum é comparável à da antiga consciência da Nova Esquerda francesa, o filósofo André Glucksman, que apresentou a invasão americana do Iraque, em 2003, como uma contribuição ocidental para a instauração da democracia em terras árabes e não como uma tomada americana dos campos petrolíferos desse país. Uma posição retomada pelo seu filho e pelo seu sucessor na impostura Raphaël Glucksman sobre a Síria.

O “fardo do homem branco”, teorizado pelo inglês Kipling, é um álibi cómodo, o tema recorrente de todas as aventuras predadoras do mundo ocidental.

B) – A Igualdade :

A excepção francesa é uma singularidade: o primeiro país a ter institucionalizado o terror como modo de governo, com Maximilien de Robespierre, no âmbito da Revolução Francesa (1794), a França seria também o primeiro país a inaugurar a pirataria aérea, em 1955, com o desvio do avião dos líderes históricos do movimento independentista argelino Ahmad Ben Bella, Mohamad Khider, Mohamad Boudiaf e Krim Belkacem), dando assim o exemplo aos militantes do Terceiro Mundo que lutam pela sua independência.

A reincidência na singularidade é também uma característica da excepção francesa: de facto, este país jacobino, igualizador e igualitário também se destacou por ser o único país do mundo a ter oficializado o “gobino-darwinismo legal”, a ter codificado na lei “a teoria da desigualdade das raças”, uma codificação realizada indiscriminadamente para promover não a igualdade, mas a segregação.

O “país dos direitos humanos” e das modernas compilações jurídicas - o Código Civil e o Código Penal - é também o país da codificação discriminatória, o país da codificação da abominação: o país do “Código Negro” da escravatura, sob a Monarquia, do “Código Indígena” na Argélia, sob a República, que se concretizaria com as “exposições etnológicas”, Estes “jardins zoológicos humanos” foram criados para fixar no imaginário colectivo dos povos do Terceiro Mundo a ideia da inferioridade permanente dos “povos de cor” e, por extensão, da superioridade da raça branca, como se o branco não fosse uma cor, mesmo que fosse imaculado, o que está longe de ser o caso.

Ora, este princípio de igualdade é um dos princípios fundadores da República, consagrado como um bem comum da nação desde há dois séculos. Porque é que ninguém pensou em pô-lo em prática antes? Parece que o laicismo, esse conceito único no mundo, só foi forjado para servir de cortina de fumo ao chauvinismo recorrente da sociedade francesa.

Os chocalhos oferecidos ocasionalmente, não aos mais merecedores mas aos mais dóceis, como prémio de consolação, longe de atenuarem esta política discriminatória, sublinham a sua total contradição com a mensagem universalista da França. Expõem-na a uma dolorosa reacção negativa.

C) – Fraternidade :

A Bougnoule, a marca da estigmatização absoluta, o símbolo da ingratidão absoluta.

Pode ter havido confraternização nos campos de batalha, mas nunca houve fraternidade. Nunca no mundo um país foi tão devedor ao povo basco pela sua liberdade e, no entanto, nunca no mundo um país reprimiu tão compulsivamente os seus aliados coloniais, a quem deve a sua sobrevivência como grande nação.

Não há Fraternidade, mas sim estigmatização, discriminação, repressão em abundância e, por último, mas não menos importante, a “cristalização das pensões dos veteranos”, que, apesar da linguagem complicada, é, em rigor, um salário étnico, iníquo e cínico.

Duas vezes no mesmo século, fenómeno raro na história, estes soldados da frente, vanguardas da morte e da vitória, terão sido arrastados para conflitos que lhes eram, etimologicamente, totalmente estranhos, para uma “querela de brancos”, antes de serem atirados, numa espécie de catarse, para as trevas da inferioridade, devolvidos à sua condição subalterna, gravemente reprimidos logo após o cumprimento do seu dever, como aconteceu repetidamente, para não ser coincidência, em Sétif (Argélia) em 1945, cruelmente no dia da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, no campo de Thiaroye (Senegal) em 1946, e em Madagáscar em 1947, sem dúvida como represália pela sua contribuição para o esforço de guerra francês..

Para ir mais longe sobre este tema :

§  http://www.madaniya.info/2016/05/12/de-repentance-a-minima-pour-solde-de-tout-compte/

Note-se que na Grã-Bretanha, ao contrário da França, a contribuição ultramarina para o esforço de guerra britânico foi de carácter paritário, com o grupo de países anglo-saxónicos pertencentes à população Wasp (White Anglo Saxon Protestant) - Canadá, Austrália e Nova Zelândia - a fornecerem um número de tropas sensivelmente igual ao dos povos de cor do Império Britânico (indianos, paquistaneses, etc.).

Isto conduziu à proclamação da independência da Índia e do Paquistão em 1948, no final da guerra, ao contrário da França, que se lançou em dez anos de guerras coloniais ruinosas (Indochina, Argélia).

A afirmação pode parecer peremptória, e não sejamos maliciosos, mas corresponde à realidade histórica: a fractura comunitária já existia em França no espírito das autoridades e dos cidadãos do país de acolhimento muito antes de se concretizar no espírito dos migrantes.

Ao transpor o modelo colonial para a França metropolitana, os imigrantes em França foram durante muito tempo vistos como nativos, o que, paradoxalmente, fez dos imigrantes, os nativos daqueles que são etimologicamente nativos, cómodos empregados domésticos, cuja expatriação lhes assegurava a subsistência e, consequentemente, os obrigava a ter uma dívida de gratidão para com o país de acolhimento.

6- A França, o “Pátria da Declaração dos Direitos do Homem” e não a “Pátria dos Direitos do Homem”.

Longe de ser a “Pátria dos Direitos do Homem”, a França é, no máximo, a “Pátria da Declaração dos Direitos do Homem”, para utilizar a expressão do antigo ministro socialista da Justiça, Robert Badinter, arquitecto da abolição da pena de morte.

O título de “Pátria dos Direitos do Homem” caberia a países com mais mérito neste domínio, como a Suécia.

Quanto à França, carrega as cicatrizes das violações dos direitos humanos que cometeu em nome dos direitos humanos. Os residentes das instituições psiquiátricas da região de Marselha são testemunhas silenciosas e dolorosas desse facto.

“A França não gosta de ser confrontada com a factura da sua história. Prefere apresentar-se como o ganso branco inocente que nunca foi. Não é assim que uma grande nação sobrevive, mas respeitando os seus valores. Dizer isso é servir o seu país. Negá-lo é ofendê-lo. Noël Mamère, antigo deputado ecologista. Ver “Não longe de um paradoxo, a França reconhece o genocídio de . CF blogs.rue89.nouvelobs.com' Rue89 ' Natal todo o ano.


Referências 

1 - “De uma margem à outra, vidas frágeis” Fotografias e recolha de palavras. Publicado por La Frachi. Produzido com o apoio financeiro da Diretion régionale et départementale de la jeunesse, des sports et de la cohésion sociale e da Fondation de l'Abbé Pierre, bem como da AMPIL, Action méditerranéenne pour l'insertion par le logement. ISBN 978- 2- 9546- 761 1, Preço 18,00 euros

2- Deportados argelinos na Nova Caledónia: Cerca de dois mil argelinos foram deportados para a Nova Caledónia. No total, 1.822 deportados foram condenados pelo direito comum, muitos dos quais por actos de rebelião puníveis pelo Código do Indigenato ou pela sua participação nas sucessivas revoltas que a Argélia sofreu quando foi conquistada pela França. Os mais célebres, incluindo 76 notáveis, são os deportados que lideraram e participaram nas revoltas de 1870 e 1871 na Argélia, que começaram em Souk Ahras e se estenderam a Borj Bou Arreridj, culminando na revolta de Mokrani na Cabília. Esta revolta levou à deportação de todos os instigadores da revolta, nomeadamente das famílias Rezgui e Mokrani.

Para mais pormenores sobre as pessoas deportadas durante a guerra da Argélia, ver este link

http://www.les-crises.fr/quand-la-france-deportait-2-millions-d-algeriens/

3- Bellounis, militante messalista desde o início, este líder de um grupo do MNA assinou um acordo com o exército francês entre Abril de 1957 e Março de 1958 para “pacificar” a Argélia, ou seja, livrar o país da ALN. Confrontado com a ofensiva da FLN e com as repetidas acções do exército francês, o MNA estava de costas voltadas para a parede. Só havia duas saídas: juntar-se ao exército francês ou juntar-se à FLN. Hostil - para muitos militantes messalistas e maquisards este era um eufemismo - aos “frontistas” e aos seus desígnios hegemónicos, propôs às autoridades militares não uma mobilização, mas uma espécie de trégua. E assim, Bellounis e o seu exército, a ANPA, recebem armas, munições, dinheiro e medicamentos das autoridades francesas. Em contrapartida, o auto-proclamado general comprometeu-se a lutar contra a FLN e a depor as armas “só depois de o problema argelino estar resolvido”.

Na sua estratégia de criação de contra-maquis aos maquis da ALN, o exército francês foi muito mais bem sucedido com Bellounis do que com o episódio dos Iflissens Kabyle, que terminou em desastre para as autoridades coloniais em 1956 (ver Camille Lacoste-Dujardin, Opération oiseau bleu, La Découverte, 1997).

No início de 1958, o exército de Bellounis tinha passado de uma centena de homens em Maio de 1957 para quase 8000, armados, treinados e, a acreditar no autor deste documento, convencidos de que um dia seria necessário “voltar ao Jebel” e retomar a luta pela independência, ou seja, pôr fim a este acordo, que mais não era do que “suspender a luta contra a França”.

O exército de Bellounis respeitará os termos do acordo, mas apenas em parte. As suas relações com as autoridades militares são marcadas pela desconfiança e pela tensão, perceptíveis a partir de Setembro de 1957. As pressões do exército francês continuaram e aumentaram, ao ponto de, em Março de 1958, Bellounis ter ordenado aos seus homens que voltassem a ocupar as florestas.

Parece que o fracasso de Bellounis - morto em Julho de 1958 durante uma escaramuça com uma unidade francesa - teve menos a ver com a reacção francesa, que passou à ofensiva a 21 de Maio de 1958 contra um dos grupos de Bellounis, do que com a incapacidade do “general” messalista de gerir politicamente os frutos de uma estrutura militar que, inicialmente e no terreno, servia os seus interesses. Nunca foi capaz de fazer frente ao bluff da direcção do MNA e de Messali Hadj.


Fonte: https://les7duquebec.net/archives/231496

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




Sem comentários:

Enviar um comentário