25 de Outubro de 2024 Robert Bibeau
Por Robert Bibeau.
Ideias – conceitos –
como a do "Choque
de Civilizações" ou a do "primado
da hegemonia americana" não moldam o mundo que nos rodeia, nem o modo
de produção social pelo qual subsistimos (burgueses-capitalistas e
proletários). É o quotidiano das classes sociais, agrupadas em nações,
países-Estados, grupos étnicos, grupos culturais, associações, civilização,
alianças imperiais bélicas, etc. que dão vida a teorias idealistas – nebulosas
– e a teorias materialistas dialéticas e históricas. Por exemplo, a teoria do
"Choque
de Civilizações", opondo a civilização ocidental decadente a uma suposta civilização
oriental ascendente (sic), tem a sua origem no surgimento recente,
especialmente na Ásia, de países capitalistas avançados (tecnicamente
avançados, altamente industrializados, com alta produtividade e em busca de
novos mercados). A teoria racista de Samuel Huntington confronta as
potências imperiais – especialmente as ocidentais – cada vez menos produtivas,
sobre-endividadas, sub-produtoras, mas consumidoras de bens a crédito, com as
crescentes potências imperiais asiáticas em busca de novos mercados.
Teorias, ideias, são a
formalização da realidade concreta. As teorias não forjam a realidade –
formalizam-na e sintetizam-na – para oferecer aos empresários, à intelligentsia
burguesa, aos fantoches políticos nacionais, agentes do capital de todos os
matizes, tácticas e estratégias para manter o seu poder tirânico – ditatorial –
sobre as massas assalariadas e sobre a sociedade como um todo. O
geopolítico Tiberio
Graziani oferece-nos abaixo a sua teoria do "Arco da Crise" que
comentaremos.
O estratega resume a sua
teoria da seguinte forma: "Como
observado, aplicar o modelo do arco de crise para entender as guerras actuais permite-nos
analisá-las no contexto da transicção de uma ordem unipolar para uma ordem
multipolar. Sublinha também a necessidade de a potência em declínio, os Estados
Unidos – visivelmente em crise devido à perda do papel hegemónico que tem desempenhado até agora para
novos actores como a China e a Índia – adoptarem uma estratégia generalizada
para promover zonas de tensão (a geopolítica
do caos e os centros de crise) na massa eurasiática. Previsivelmente,
este cenário estender-se-ia também a África para contrariar as influências
russas e chinesas, com o objectivo de dificultar, se não mesmo descapacitar,
aqueles que moldam a nova ordem mundial. Em conclusão, o modelo de focos de crise ajuda-nos a compreender a transicção
da unipolaridade para a multipolaridade, que ainda está a ser
definida. Nesta perspectiva, os "centros
de crise" parecem ser funcionais para a estratégia dos EUA de retardar a
transicção em curso para um sistema multipolar e prolongar a hegemonia unipolar
de Washington.
Graziani apresenta a implosão de focos ou centros de
crise formando o chamado
Arco da Crise mundial, sujeito à geopolítica do caos mundial como a estratégia conscientemente adoptada pelos
megalomaníacos imperiais ocidentais para manter a sua supremacia
"unipolar" sobre o "Sul Global" e parte da Eurásia, que estaria em transicção para a chamada "multipolaridade" " igualitário e democrático sob a liderança
da Índia, Rússia e China (sic). Parece-nos mais esclarecedor descrever o mundo
actual – um mundo sob modo de produção capitalista (MPC) – um mundo decadente,
economicamente em decrepitude, ideologicamente degenerado, incapaz de assegurar
a sua reprodução social alargada e cujas forças e leis inevitáveis de
desenvolvimento o estão inexoravelmente a levar ao colapso. As especulações do
eixo militar do Atlântico (NATO) e do eixo militar do Pacífico
(China-Rússia-Índia-BRICS) sobre a unipolaridade, a multipolaridade, a
democracia parlamentar e outros disparates não passam de sofismas que não
lançam qualquer luz sobre as causas do actual caos mundial, das guerras
regionais, da miséria popular e da guerra mundial em curso. Voltaremos a este
assunto.
Por Tiberio Graziani. Em https://reseauinternational.net/theorie-de-larc-de-crise-geopolitique-et-geostrategie/
As duas
guerras em curso têm origens diferentes e distantes.
As causas da guerra por procuração russo-ucraniana, se nos limitarmos ao
contexto regional, remontam aos motins Euromaidan de Novembro de há dez anos, à
subsequente anexação da Crimeia pela Rússia, às políticas anti-russófonas
implementadas no Donbass por Kiev e às auto-proclamadas repúblicas separatistas
de Donetsk e Lugansk. Em contrapartida, a guerra por procuração israelo-árabe-palestiniana, se considerarmos
apenas o âmbito regional, remonta à guerra civil de Junho de 2007, quando o
Hamas conseguiu assumir o controlo total da Faixa de Gaza.
Na realidade, as duas guerras têm origens
muito mais antigas e, acima de tudo, não podem limitar-se
simplesmente, não só em termos de causas, mas também em termos de efeitos
internacionais, às respectivas dimensões regionais. Tal deve-se aos interesses
significativos dos outros intervenientes, que são tanto locais como mundiais.
O longo
período pós-Guerra Fria e o momento unipolar
O confronto entre a Rússia e a Ucrânia é uma manifestação espectacular do
longo período pós-Guerra Fria que se seguiu ao colapso da União Soviética; Em
alguns aspectos, marca o seu fim. Este período do pós-guerra é também estranho
e trágico, pois é marcado por uma impressionante série de acontecimentos
militares.
O início deste período pós-guerra, tão dramático como
a sua conclusão, remonta às guerras dos Balcãs da década de 1991-2001, que culminaram com a operação das forças aliadas
lideradas pela NATO. Os europeus, ainda sob o efeito da breve mas intensamente
optimista euforia ligada à espectacular queda do Muro de Berlim (Novembro de
1989), foram rudemente despertados. Em vez de testemunhar o "fim da
história"1,
testemunharam, no seu próprio continente e durante uma década inteira, uma
guerra civil sangrenta e as acções devastadoras de duas operações da Aliança
Atlântica, a Força Aliada em 2001 e a Força Deliberada em 1995.
Situado temporalmente no final do longo período pós-Guerra Fria, o actual conflito entre russos e ucranianos é também uma guerra civil entre populações eslavas e um confronto entre repúblicas pós-soviéticas.No entanto, ao contrário das guerras dos Balcãs que eclodiram no auge do terramoto geopolítico causado pela queda do Muro de Berlim, a dissolução da URSS e o Pacto de Varsóvia, esta guerra surge após três décadas de hegemonia mundial dos Estados Unidos. A conclusão a tirar é que representa mais um exemplo da incapacidade do mundo ocidental, especialmente o liderado pelos EUA, para gerir o "momento unipolar".
Ao longo dos últimos trinta anos, a "nação
indispensável" – como orgulhosamente definiu o Presidente Clinton no seu
segundo discurso inaugural, em 20 de Janeiro de 1997 ("A América é a única nação indispensável
do mundo") – demonstrou repetidamente essa
incapacidade. O exemplo mais recente é o abandono do Afeganistão após vinte anos de guerra. Este abandono do
Afeganistão após vinte anos de guerra deixa para trás um país devastado e
milhares de mortos, feridos e incapacitados.
A "operação militar especial" – tal como definida pelo Kremlin para a invasão do território ucraniano – que começou em 24 de Fevereiro de 2022, é sem dúvida uma resposta firme da Rússia à penetração gradual do Ocidente na massa terrestre eurasiática, em particular à expansão da NATO para as fronteiras ocidentais do Estado russo. Trata-se de uma resposta previsível, tendo em conta o breve conflito russo-georgiano de Agosto de 2008 e a anexação da Crimeia em 2014.
A "Operação Militar Especial" de 2022 destaca
a falta de relevância da UE em termos de planeamento de segurança, a sua
capacidade limitada para definir um papel geopolítico estabilizador distinto no
mundo pós-bipolar e, em última
análise, a sua subordinação total e acrítica aos EUA – o seu principal aliado –
e à NATO. Esta guerra
mostra-nos, uma vez mais, que a UE não sabe conceber-se como uma entidade
autónoma e independente fora do contexto ocidental dominado pelos Estados
Unidos.
Além disso, ao não
compreender ou não querer compreender o processo histórico em curso, a UE não
vê o que está a acontecer nas suas fronteiras e o que poderá acontecer no
futuro imediato. Em consequência, encontra-se constante e dramaticamente
despreparada e, por conseguinte, moralmente culpada de, pelo menos, quatro catástrofes
que persistem ou ocorreram nas suas imediações:
a) as guerras dos Balcãs de 1991-2001;
b) a desestabilização da Líbia em 2011;
c) a guerra russo-ucraniana de 2022;
(d) a guerra israelo-palestiniana de 2023;
Sem falar na incapacidade de encontrar uma solução para o grave problema migratório nas três décadas
desde que surgiu.
Quanto aos países do
Leste Europeu directa e indirectamente envolvidos, o conflito russo-ucraniano
demonstrou, ao fim de três décadas, que as suas classes dominantes – sejam
políticas, económicas ou intelectuais – presas no seu neo-nacionalismo estreito e míope, foram incapazes de
desenvolver um projecto regional autónomo ou de apresentar uma proposta útil
para o seu papel geo-político e geo-estratégico específico no novo contexto que
emergiu da crise, a dissolução da União Soviética, caracterizada pelo
concomitante processo de mundialização.
Encurraladas entre a sedução exercida por Bruxelas e as pressões atlânticas
exercidas por Londres e Washington, por um lado, e a reinterpretação e reconstrução
das suas identidades nacionais a partir da russofobia, por outro, estas classes
dominantes não aproveitaram a oportunidade histórica oferecida pelo colapso
soviético: a opção de se emanciparem do Oriente e do Ocidente, de se
apresentarem como uma zona coesa e autónoma, a actuar como pivô e charneira
entre os Estados-Membros da União Europeia e a Federação da Rússia.
O medo de um vizinho imponente, percebido como perigoso e agressivo (embora no início da década de 1990 a Rússia dificilmente pudesse ser considerada um país "perigoso" para os seus vizinhos), bem como a pressão da NATO, levaram estes países a aderir primeiro à Aliança Atlântica e depois à União Europeia. As classes dominantes da Europa de Leste tomaram assim a decisão não tão subtil de trocar um campo – o campo russófilo – por outro, o campo euro-atlântico, perdendo assim uma oportunidade difícil de encontrar: a de se posicionar como um centro de trocas e compensações entre o Oriente e o Ocidente.
A Europa Oriental,
numa perspectiva histórica de médio prazo, passou da esfera de influência
soviética para a esfera de influência atlântica, ou seja, da jaula do Pacto de Varsóvia para a
jaula do Pacto Atlântico, de um mestre para outro. Ao optar por se
tornar a periferia oriental extrema da hegemonia do campo ocidental pelos
Estados Unidos, esta parte da Europa optou por se tornar um arco permanente de
crise entre o Ocidente e a Rússia.
Choque de
civilizações: cui prodest?
É claro que se poderia objectar ao que foi escrito até agora que o conflito entre Moscovo e Kiev faz parte de um possível projecto do Kremlin para restabelecer o domínio de Moscovo sobre um território que pertencia ao Império Czarista e, em seguida, à União Soviética... Certamente, ao discurso público russo não faltam ecos neo-imperiais (marginais, mas notáveis pela sua força mobilizadora), alguns dos quais são mesmo tingidos de um certo espiritualismo civilizacional ambíguo que interpreta o confronto actual na linguagem fumegante da escatologia. No entanto, este possível projecto, esta hipotética estratégia do Kremlin não resiste a uma leitura menos emotiva e romântica dos acontecimentos actuais e a uma análise das suas causas, bem como, em particular, a uma descrição mais objectiva e realista da situação, dos actuais "valores" expressos pela Rússia e pelo Ocidente.
Alguns dos
esclarecimentos do Presidente Putin sobre a superioridade dos valores da Rússia
sobre o Ocidente – que à primeira vista parecem ecoar os ecos neo-imperialistas
e civilizacionais acima mencionados – referem-se ao confronto dialéctico com os
principais representantes políticos do campo oposto (o "Ocidente colectivo")."), que
equiparou o governo da Federação a uma autocracia de tradição czarista, acusou
o Kremlin de promover teorias obscurantistas e de exercer um regime liberticida
e opressor.
Mais importantes e
cheias de realismo político são as contínuas declarações de Putin, pelo menos
desde o seu discurso na Conferência de Munique (2007), sobre a neutralidade das
regiões vizinhas da Federação para as suas necessidades de segurança.
Voltando ao alegado
desejo do Kremlin de restaurar a Rússia imperial ou uma reedição da União
Soviética, note-se que a narrativa neo-imperial e civilizacional,
paradoxalmente, torna-se funcional para a estratégia americana de manutenção do
equilíbrio mundial. Hegemonia, bem como ampla e magistralmente definida pelos
dois textos canónicos que são, sem dúvida, os de Samuel P. Huntington e Zbigniew
Brzezinski, autores, respectivamente, de "O Choque de Civilizações e a
Reconstrução da Ordem Mundial" (1996) e "O Grande Tabuleiro de
Xadrez". Primazia Americana e seus Imperativos Geoestratégicos (1997).
Se o Kremlin sucumbisse à tentação da narrativa civilizacional "neo-imperial"
e tomasse decisões estratégicas com base nisso, cairia irremediavelmente na
armadilha do choque de civilizações, expondo-se a si próprio e a toda a
Eurásia. Expor-se-ia à multiplicação de crises previstas por Brzezinski e ao
perigo de fragmentação do seu espaço nacional e de todo o continente ao longo
de linhas de fractura religiosa e etnocultural: afinal, realizaria o sonho
hegemónico e messiânico dos Estados Unidos, o de ser a nação indispensável, o
único distribuidor da civilização e dos valores.
Da guerra israelo-árabe ao conflito israelo-israelita
A actual guerra entre
os árabes da Faixa de Gaza e o Estado de Israel, que começou em 7 de Outubro de
2023 com a Operação Dilúvio de Al Aqsa desejada e
organizada pelo Hamas e seus comparsas, à qual Israel reagiu rapidamente
implementando uma resposta desproporcional com a Operação Espadas de Ferro, é um episódio do
conflito árabe-israelita mais amplo que começou em 1948. Constitui a terceira
fase do confronto directo entre Israel e Gaza. Segue-se às operações
terroristas "Chumbo
Fundido" e "Margem
Protectora" de Israel contra Gaza em 2008 e 2014, respectivamente.
É oportuno voltar rapidamente à história deste longo conflito, do qual a
guerra actual é parte importante, devido a certos elementos que a distinguem
dos episódios anteriores: a assimetria dos beligerantes, o número
impressionante de vítimas, principalmente crianças, a passividade da chamada
comunidade internacional e dos países árabes, a hibridização entre guerra religiosa
e libertação nacional, a estratégia do Eixo da Resistência, patrocinada pelo
Irão.
As três guerras de
1948, 1967 e 1973 foram conflitos entre coalizões árabes e Israel. São guerras
que expressam a vontade de algumas nações árabes de resolver a questão do povo
árabe-palestiniano, através do confronto militar, após a proclamação do Estado de
Israel em 1948 pelas autoridades sionistas na Palestina. De certa forma, essas
guerras árabe-israelitas surgiram a partir da Thawra Filasṭīn (Revolução
Palestina), a grande revolta dos árabes palestinos, que durou cerca de três
anos, de 1936 a 1939, contra a política de colónias judaicas, possibilitada
pela Declaração
Balfour de 1917, adoptada pelos britânicos. A política de colónias aumentou a população
judaica de 80.000 para cerca de 360.000 em apenas 18 anos, criando uma grande
convulsão demográfica e socio-económica em detrimento das populações indígenas.
A Palestina, após a derrota do Império Otomano e sua dissolução, foi governada de 1920
a 1948 pelos britânicos (esta era a "Palestina Obrigatória") e cobria
um território de cerca de 28.000 quilómetros quadrados. Após a partilha de 1947, o nascimento do
Estado de Israel e os resultados das três guerras israelo-árabes (1948, 1967,
1973), o território da Palestina sob o Mandato Britânico está agora dividido
entre Israel (20.770 km²) e o Estado da Palestina (6020 km²), que inclui a
Cisjordânia (5.655 km²) e a antiga Faixa de Gaza (365 km²). Veja nossos artigos
sobre esta parte da história árabe-israelita: https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2024/10/a-verdadeira-historia-da-conspiracao-de.html
e https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2024/10/gaza-um-ano-depois-fim-da-era-de-ouro.html
Após os resultados decepcionantes das três guerras israelo-árabes acima
referidas, as coligações árabes, por várias razões, entraram em colapso e a
população palestiniana foi, por assim dizer, deixada à própria sorte. De facto,
o Egipto e a Jordânia chegaram a um acordo com Israel e assinaram tratados de
paz com o Estado judeu em 1979 e 1994, respectivamente. A Síria, o Líbano e o
Iraque não reconheceram o Estado de Israel e continuaram a apoiar a causa
palestiniana.
Desde a Guerra do Yom Kippur (1973), a
resistência palestiniana tem-se expressado de forma assimétrica e através de acções esporádicas, cujos episódios mais marcantes
foram as longas e sangrentas revoltas que entraram para a história como as Intifadas: a Primeira Intifada ou Intifada das
Pedras, que começou a 8 de Dezembro de 1987 e terminou cerca de seis anos
depois, em 13 de Julho de 1993, e a segunda intifada ou intifada de al-Aqsa,
que começou em 2000 e terminou em 2005.
Foi precisamente com
as intifadas, especialmente a de 1987, que a mais radical resistência
palestiniana começou a opor-se ao Estado de Israel, não só no contexto de uma luta de libertação
nacional, mas também em termos de uma guerra religiosa. É precisamente o
caso da organização islâmica Hamas, de inspiração sunita, que nasceu
durante a primeira intifada e que conseguiu, a partir do segundo semestre de
2007, controlar a Faixa de Gaza. É também o caso da organização islamita
libanesa Hezbollah, de inspiração
xiita.
A transicção do modelo tradicional de lutas de libertação nacional, baseado no princípio da auto-determinação dos povos, que foi muito bem sucedido durante a independência da Argélia e da Tunísia e foi uma referência teórica para a OLP, para a prática da "guerra santa" deve-se a vários fatores. Entre estes, é importante destacar a crescente influência do Irão, especialmente após a conclusão da guerra com o Iraque, e da Irmandade Muçulmana nas organizações políticas palestinianas. Se, até 1973, a luta pela criação de um Estado palestiniano envolvia actores estatais, ou seja, os principais Estados da região (Egipto, Jordânia, Síria, Líbano), hoje envolve sobretudo organizações radicais e ideologicamente motivadas que participam no eixo da resistência. O seu objectivo não é apenas a libertação da Palestina, mas a luta total contra Israel e as influências políticas dos Estados Unidos e do próprio Israel na região do Próximo e Médio Oriente.
A gritante disparidade de forças e de apoio internacional entre Israel –
que conta, recordemo-lo, com o apoio dos Estados Unidos e dos países do
Ocidente – e a Faixa de Gaza, que goza de um apoio regional tão radical quanto
fragmentado, actualiza tragicamente o princípio bíblico. A luta entre o gigante
Golias e Davi.
As duas
guerras em curso e a transicção unimultipolar
As duas guerras actuais constituem dois focos de crise localizados em
regiões específicas da massa eurasiática capazes de reescrever estruturas
geopolíticas mundiais.
A desestabilização
prolongada dessas áreas, bem como possíveis focos de tensão noutras partes da
massa terrestre eurasiática, como o Indo-Pacífico ou a Ásia Central, poderia
contribuir para uma transição complexa de uma ordem unipolar dominada pelos
Estados Unidos para um mundo mais equilibrado, de uma ordem multipolar orientada para
controlar a competição entre as nações e promover a cooperação internacional.
A crise russo-ucraniana representa um primeiro factor de agravamento da divisão entre a Europa continental e centro-oriental e a Federação Russa. Na verdade, acaba por eliminar as possibilidades de colaboração entre a Rússia, rica em energia, e os países europeus altamente industrializados, mas dependentes da energia. Além disso, atrasa a necessidade de desenvolver uma arquitectura de segurança comum. Os principais beneficiários desta potencial divisão duradoura entre a Europa e a Rússia parecem ser os Estados Unidos, tanto geo-política como geo-estrategicamente.
A persistente e
recentemente reavivada crise na Palestina é um segundo factor que, a longo
prazo, complica a transicção de uma ordem unipolar para uma ordem multipolar, também devido à actual
equidistância entre actores mundiais como a Rússia, a China e a Índia.
Hipoteticamente, se por um lado uma atitude pró-Gaza destes três países e
do Sul
Global (ver o nosso artigo sobre esta hipótese: https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2024/09/gaza-o-horror-e-as-suas-mentiras.html
poderia acelerar o processo de transicção), por outro lado poderia
aumentar o risco de um conflito generalizado, ou mesmo desencadeá-lo com
consequências imprevisíveis.
Ao envolver indirectamente
as potências regionais do chamado Sul Global, como o Irão, a Síria e, em alguns aspectos,
a Turquia de Erdogan (que recentemente se distanciou do Ocidente liderado pelos
EUA), a eclosão da actual crise israelo-palestiniana dificultaria a capacidade
destes países de se empenharem activamente na construção de um novo sistema multipolar ou policêntrico. Além disso, manter
esta situação crítica e altamente desequilibrada a favor de Israel daria aos
Estados Unidos a oportunidade de usar Israel como uma força armada (e nuclear)
estabilizadora na região do Próximo e Médio Oriente. Israel posicionar-se-ia
assim como um pilar necessário – em sinergia com a Turquia ou como alternativa
a Ancara se esta mantivesse a sua excentricidade face à Aliança Atlântica – da
política americana no Mediterrâneo Oriental e no Médio Oriente. Mais uma vez,
entre os actores mundiais, o principal beneficiário geopolítico parece ser a
potência estrangeira.
Como observado, aplicar o modelo do arco de crise para entender as guerras actuais permite-nos analisá-las no contexto da transicção de uma ordem unipolar para uma ordem geralmente multipolar. Sublinha também a necessidade de a potência em declínio, os Estados Unidos – visivelmente em crise devido à perda do papel hegemónico que tem desempenhado até agora para novos actores como a China e a Índia – adoptarem uma estratégia generalizada de promoção de zonas de tensão (a geo-política do caos e os centros de crise)) na massa eurasiática. Previsivelmente, este cenário estender-se-ia também a África para contrariar as influências russas e chinesas, com o objectivo de dificultar, se não mesmo descapacitar, aqueles que moldam a nova ordem mundial. Em conclusão, o modelo de focos de crise ajuda-nos a compreender a transicção da unipolaridade para a multipolaridade, que ainda está a ser definida. Nesta perspectiva, os "centros de crise" parecem ser funcionais à estratégia dos EUA para retardar a transicção em curso para um sistema multipolar e prolongar a hegemonia unipolar de Washington.
fonte: Geoestrategia via Euro-Synergies
Fonte: Théorie de l’arc de crise : géopolitique et géostratégie – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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