terça-feira, 1 de outubro de 2024

A problemática dos BRICS na ordem mundial: rumo a uma "desdesmundialização do planeta" René (2 de 2)

 


 1 de Outubro de 2024  René Naba  


RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.

A primeira parte deste artigo foi publicada aqui https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2024/09/a-argelia-e-cimeira-dos-brics-em.html.

1- O gatilho: o congelamento de bens russos no Ocidente. Fonte: A Problemática dos BRICS na Ordem Mundial: rumo a uma "Desocidentalização do Planeta" 2/2 – Em Foco (renenaba.com)

A decisão da OTAN de congelar os activos russos no Ocidente como retaliação à invasão da Ucrânia foi um gatilho salutar dentro dos BRICS.


O momento decisivo – o verdadeiro gatilho para a queda do hegemon – ocorreu em Fevereiro de 2022, quando mais de 300 mil milhões de dólares em reservas cambiais russas foram "congeladas" pelo Ocidente colectivo, e todos os outros países do planeta começaram a temer pelas suas próprias reservas em dólares no exterior.

Como reflexo de autodefesa, a China, que detém um grande lote de "Treasury Bonds" americanos, comprou 524 toneladas de ouro no valor de 33 mil milhões de dólares no mercado mundial em 2022, além de 6 toneladas de ouro da Rússia. Com um total de 2010 toneladas de ouro, a China é o 6º maior detentor de metais preciosos do mundo. A Rússia está na 5ª posição, com 2.200 toneladas. As reservas combinadas da China e da Rússia, 4.309 toneladas, representam metade das reservas dos Estados Unidos, estimadas em 8.133 toneladas.

§  Cf, este link para o falante árabe

Além disso, as potências emergentes que compunham o grupo no início fizeram grandes progressos na economia mundial: enquanto há vinte anos esses países representavam 16% do produto interno bruto mundial, esse número pode subir para 40% até 2025.

Os BRICS têm agora a capacidade de desafiar a ordem estabelecida pelo domínio político e económico dos Estados Unidos, que é conseguida nomeadamente através de instrumentos financeiros como o dólar e os mecanismos da dívida internacional.

2 – Uma moeda concorrente do dólar?

A aliança dos cinco países fundadores do BRICS já representa quase metade da população mundial e um terço do PIB mundial. Em 2050, o PIB combinado poderá atingir, ou mesmo ultrapassar, 50% do PIB mundial.

O PIB combinado dos cinco membros dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ultrapassa actualmente o dos 7 membros do clube ocidental + Japão, o famoso G7. Quatro dos membros dos BRICS - China, Índia, Brasil e Rússia - estarão entre as 5 maiores economias do mundo.

A quota do dólar nas reservas mundiais era de 73% em 2001, 55% em 2021 e 47% em 2022. O ponto-chave é que, em 2022, a quota do dólar terá caído dez vezes mais depressa do que a média das últimas duas décadas.

Já não é rebuscado prever uma quota mundial do dólar de apenas 30% no final de 2024, coincidindo com as próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos.

A nova ordem económica mundial em gestação prevê o lançamento de uma moeda que rivalize com o dólar, mais baseada no comércio entre países em desenvolvimento e apoiada por potências como a China, a Índia e a Rússia, por oposição a uma ordem dominada pelos Estados Unidos e pela Europa. No entanto, o objectivo a curto prazo dos BRICS é alargar a utilização das moedas nacionais e não desdolarizar.

Alguns países procuram, em primeiro lugar, reduzir a utilização do dólar nas suas próprias economias, como protecção contra a turbulência financeira internacional. Outros querem escapar à extra-territorialidade da legislação americana, que utiliza o dólar para impor sanções e coimas no estrangeiro.

Leslie Maasdorp, Director Financeiro do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, vulgarmente conhecido como o banco dos BRICS), explica: “A moeda operacional do banco é o dólar por uma razão muito específica: as maiores reservas de liquidez são em dólares americanos... Não podemos deixar o universo do dólar e operar num universo paralelo”. O que procuramos é fazer avançar a agenda do Sul e construir uma arquitectura mundial mais inclusiva, mais representativa, mais justa e mais equitativa.

3 - A multiplicação das trocas em moeda local

A Rússia e a Índia trocam petróleo em rupias. O Banco Bocom BBM tornou-se o primeiro banco latino-americano a participar directamente no Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CIPS), a alternativa chinesa ao sistema de mensagens financeiras ocidentais SWIFT.

A CNOOC da China e a Total da França assinaram a sua primeira transação de GNL denominada em yuan através da Bolsa de Petróleo e Gás de Xangai.

O acordo entre a Rússia e o Bangladesh para a construção da central nuclear de Roo Pour também não será efectuado em dólares americanos. O primeiro pagamento de 300 milhões de dólares será efectuado em yuan, mas a Rússia tentará converter os pagamentos subsequentes em rublos.

O comércio bilateral entre a Rússia e a Bolívia passa a aceitar pagamentos em boliviano. Trata-se de uma decisão importante, dado o desejo da Rosatom de desempenhar um papel crucial no desenvolvimento dos depósitos de lítio na Bolívia.

Com o Irão, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Turquia, a Indonésia e o México como possíveis novos membros, é evidente que os principais actores do Sul global começam a concentrar-se na instituição multilateral por excelência capaz de quebrar a hegemonia ocidental.  Note-se que a aproximação entre o Irão e a Arábia Saudita foi mediada por um peso-pesado dos BRICS, a China, o que conduziu a uma relação muito mais estreita entre o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) no seu conjunto e a parceria estratégica Rússia-China.

Para ir mais longe neste tema, consulte este link

§  https://www.madaniya.info/2023/06/01/accord-iran-arabie-saoudite-sous-legide-de-la-chine/

Tal deverá traduzir-se em papéis complementares - em termos de conectividade comercial e sistemas de pagamento - para o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), que liga a Rússia, o Irão e a Índia, e para o Corredor Económico China-Ásia Central-Ásia Ocidental, uma componente fundamental da ambiciosa Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” (BRI) de vários milhares de milhões de dólares de Pequim.

5- Índia versus China: O corredor que liga Bharat à União Europeia.

Os Ocidentais parece quererem jogar a carta indiana para conter a expansão chinesa, financiando a construção de um corredor que ligue o Bharat à União Europeia.

Na sequência da cimeira dos BRICS em Joanesburgo, os membros ocidentais do G20, na última cimeira deste agrupamento na Índia, em Agosto de 2023, chegaram a um acordo de princípio entre os Estados Unidos, o Bhârat, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a União Europeia, a França, a Alemanha e a Itália com vista à realização deste projecto.

A um ano das eleições presidenciais americanas, que se anunciam incertas para o Presidente Joe Biden, a administração americana apostou em favorecer Bharat em detrimento da China e em competir com as Novas Rotas da Seda chinesas.

O objectivo é também excluir o Egipto, a Síria, o Iraque, a Turquia e o Irão deste desenvolvimento, em benefício de Israel. Este corredor ligará o Golfo Pérsico ao porto mediterrânico de Haifa, passando pela Península Arábica.

Em 2021, na cimeira do G7 em Carbis Bay (Reino Unido), a administração Biden já tinha anunciado o faraónico projecto Build Back Better World (B3W). A ideia era gastar 40 mil milhões de dólares em estradas para rivalizar com a Belt and Road Initiative (BRI) da China.

Este programa foi confirmado pelas duas cimeiras seguintes, mas a sua execução continua a ser aguardada.

Mais de cinquenta anos após a sua criação, o G7 já não reflecte o equilíbrio de poder mundial. A reunião em Itália, em meados de Junho de 2024, pôs em evidência os chefes de Estado e de Governo enfraquecidos, tanto o francês Emmanuel Macron como o britânico Rishi Sunak, para além da líder da extrema-direita italiana, Giorgia Meloni.

6- Para além dos BRICS.

O comboio da desdolarização foi acelerado pelos efeitos cumulativos do caos da cadeia de abastecimento relacionado com o Covid e das sanções colectivas do Ocidente contra a Rússia. O ponto-chave é o seguinte: Os BRICS detêm as matérias-primas e o G7 controla as finanças. Estes últimos não podem produzir matérias-primas, mas os primeiros podem criar moedas - sobretudo quando o seu valor está ligado a bens tangíveis como o ouro, o petróleo, os minerais e outros recursos naturais.

O principal factor de viragem é, sem dúvida, o facto de os preços do petróleo e do ouro estarem já a deslocar-se para a Rússia, a China e a Ásia Ocidental. Consequentemente, a procura de obrigações denominadas em dólares está a cair lenta mas seguramente. Os milhares de milhões de dólares americanos começarão inevitavelmente a regressar aos seus países de origem, destruindo o poder de compra do dólar e a sua taxa de câmbio.

O colapso de uma moeda militarizada acabará por destruir toda a lógica subjacente à rede mundial de mais de 800 bases militares dos EUA e aos seus orçamentos operacionais.

O abandono do dólar já tem um mecanismo: a plena utilização dos contratos futuros de petróleo em yuan na Bolsa de Energia de Xangai seria a via privilegiada para o fim do petrodólar.

A projecção do poder mundial dos Estados Unidos baseia-se fundamentalmente no controlo da moeda mundial. O controlo económico está na base da doutrina do Pentágono de “domínio em todas as frentes”. No entanto, hoje em dia, até a projecção militar está em frangalhos, com a Rússia a manter uma vantagem considerável em mísseis hipersónicos e com a Rússia, a China e o Irão a poderem utilizar uma panóplia de porta-aviões assassinos.

Epílogo: O precedente de Bandoeng

Em 1955, países anteriormente colonizados reuniram-se em Bandoeng, na Indonésia, para lançar o Movimento dos Não-Alinhados, que procurava distanciar-se dos dois blocos, o Pacto Atlântico (NATO) e o Pacto de Varsóvia (bloco soviético), no auge da Guerra Fria soviético-americana.

68 anos depois, Joanesburgo marca a emergência de uma nova estrutura diplomática e económica que visa promover um mundo multipolar para “desocidentalizar o planeta”.

Mas, ao contrário do Movimento dos Não Alinhados, os BRICS reúnem três potências nucleares (China, Índia e Rússia), ou seja, tantas como toda a NATO, o que não era o caso em Bandoeng, e dois países-chave da economia mundial, a China e a Índia, o que também não era o caso em Bandoeng, numa altura em que a Ásia foi impulsionada para o primeiro continente em termos de importância demográfica e económica e o Ocidente se encontra numa crise sistémica da dívida. Não é uma nuance, mas uma grande diferença.

Para saber mais sobre a Argélia no contexto da recondução do Presidente Abdelmadjid Tebboune como Chefe de Estado para um novo mandato de cinco anos, consulte estes dois links:

§  https://www.lemonde.fr/afrique/article/2024/09/08/apres-la-reelection-d-abdelmadjid-tebboune-l-algerie-au-defi-d-une-geopolitique-regionale-tourmentee_6307894_3212.html

§  https://www.lemonde.fr/idees/article/2024/09/10/algerie-l-inquietant-fosse-entre-le-regime-et-la-population_6310640_3232.html

Sobre Bandoeng, veja estes dois links:

§  https://www.madaniya.info/2015/12/20/non-alignes-tricontinentale-60-eme-anniversaire-1-2/

§  https://www.madaniya.info/2015/12/26/non-alignes-tricontinentale-60-eme-anniversaire-2-2/

 

Fonte: La problématique du BRICS dans l’ordre mondial: Vers une «démondialisation de la planète» René Naba (2 de 2) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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