Dada a sua importância e acutilância, reproduzo neste espaço
a artigo do médico e sindicalista Mário Jorge Neves, publicado na ediçãode
Fevereiro, em língua portuguesa, do jornal “Le Monde Diplomatique”, no qual
denuncia a agenda ideológica deste governo, ao serviço da tróica
germano-imperialista, que passa pela privatização da saúde e pela destruição do
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE.
“Quando li algumas das afirmações contidas no relatório do
FMI relativas às questões da Saúde lembrei-me imediatamente de um artigo
escrito há cerca de 10 anos pelo Prémio Nobel Joseph Stiglitz com o título “ O
que aprendi sobre a crise económica mundial desde o FMI” (
www.rebelion.org/hemeroteca/economia/030901stiglitz.htm).
Nesse artigo, Stiglitz afirmou o seguinte: “ Quando o FMI
decide ajudar um país, despacha uma missão de economistas. Estes frequentemente
carecem de experiência suficiente sobre esse país. O mais provável é que tenham
maior conhecimento em primeira mão sobre os seus hotéis de cinco estrelas que
dos povos que se espalham pela sua zona rural… soube-se que equipas de trabalho
para um país redigiram rascunhos de relatórios antes de o visitar. E ouvi
histórias de um infeliz incidente ocorrido quando os membros de uma equipa
copiaram extensas partes de um relatório correspondente a um país e as
transferiram na sua totalidade para outro. Teriam conseguido o seu objectivo se
a função “buscar e substituir”do seu processador de texto não tivesse falhado,
deixando o nome do primeiro país em algumas partes”.
E a lembrança destes extractos pontuais do citado artigo
surgiram quando li a afirmação contida no relatório de que “ entre as economias
desenvolvidas, Portugal tem experimentado um dos maiores aumentos na despesa da
saúde pública durante as 3 últimas décadas”.
Ora, há cerca de um ano a OCDE publicou um relatório sobre
os sistemas de saúde dos 34 países que a integram e aí foram feitas, entre
outras, as seguintes referências ao nosso país:
- Portugal
é o 5º país com melhor evolução na esperança de vida.
- É o
1º no declínio da mortalidade infantil.
- No
indicador global para resultados em saúde, Portugal está acima da média da
OCDE, sendo o 2º com melhor evolução entre 1970 e 2009.
- Portugal
é o 2º país com menor crescimento da despesa total em saúde entre 2000 e
2009.
- Na
despesa pública em saúde é o 3º país em que ela menos cresceu.
- Os
custos administrativos representam apenas 1,7% da despesa, claramente
abaixo da média de 3% da OCDE.
Relendo estes dados da OCDE, ainda voltei a verificar bem o
texto do relatório do FMI que foi divulgado para ver se lá havia por lapso o
nome de outro país, porque estávamos perante uma afirmação tão falsa quanto a
esses supostos grandes aumentos da despesa, logo isso não podia dizer respeito
a Portugal.
Relativamente às várias questões abordadas nesse relatório
do FMI é importante analisar as seguintes:
1- É
afirmado que existe um elevado pagamento de horas extraordinárias a médicos e
que para limitar essas horas, os pacotes salariais devem ser conduzidos a uma
maior paridade com outros países da UE.
Mas o relatório nada diz sobre os
serviços onde essas horas são efectuadas.
As horas extraordinárias na saúde
são efectuadas, na quase totalidade, a nível dos serviços de urgência, que são
os únicos serviços públicos que funcionam continuamente todos os dias do ano.
O recurso às horas
extraordinárias foi aumentando na proporção directa da diminuição do número de
médicos e do envelhecimento da sua estrutura etária em função de largos anos de
numerus clausus altamente restritivos.
2- Faz
várias referências à suposta existência de “salários relativamente elevados
neste sector” em virtude de compensações com o trabalho extraordinário.
Desde logo, há que ter presente
que só os médicos hospitalares, e não são todos, é que estão inseridos nas
escalas dos serviços de urgência e que não são eles que se escalam a eles
próprios, mas que as suas distribuições numéricas obedecem às necessidades de
resposta desses serviços.
Afirmar que os salários dos
médicos são elevados constitui nova falsidade, facilmente verificável pela mera
consulta às múltiplas posições remuneratórias contidas na Tabela Remuneratória
Única da Função Pública.
3- É
curioso ler a seguir a essa referência aos salários que para enfrentar essa
situação o Ministério da Saúde propôs o aumento do horário semanal de trabalho
para as 40 horas semanais, igual ao privado, e a alteração dos métodos de
trabalho nos hospitais.
Não é admissível que uma equipa
de peritos do FMI possa acumular tantas afirmações falsas que não correspondem
aos factos concretos e de fácil consulta prévia.
O actual Ministério da Saúde
nunca propôs o aumento do horário semanal dos médicos, dado que esta matéria da
criação de um novo regime de trabalho de 40 horas semanais era a única matéria
pendente das negociações das carreiras médicas e da respectiva contratação
colectiva concretizada com o governo anterior.
Por outro lado, não se conhece
qualquer padrão de horário de trabalho de 40 horas nas instituições privadas de
saúde.
E outro aspecto sem qualquer
relação com a realidade é a alteração dos métodos de trabalho nos hospitais.
Que métodos novos foram
adoptados?
Nenhuns.
4- Apesar
das taxas moderadoras serem já hoje muito avultadas e configurarem um
copagamento, o relatório considera que devem ser perspectivados maiores
aumentos, o que comprometeria em larga escala o acesso aos cuidados de saúde de
um numero ainda maior de cidadãos, independentemente das isenções existentes.
Simultaneamente, são enunciadas
generalidades que há muito são discutidas como, por exemplo, a questão da
inversão numérica entre médicos e enfermeiros, melhores economias de escala e a
necessidade de encontrar as soluções adequadas na articulação dos níveis
prestadores de cuidados que obviem ao recurso arbitrário e desnecessário a
cuidados hospitalares.
5- No
contexto global da abordagem das questões relativas à Saúde existem 4 aspectos
que exigem uma particular atenção.
É proclamada a necessidade de
“repensar todo o sistema” e afirmado que ficou claro que o sistema de saúde se
tornou insustentável e tem uma urgente necessidade de reforma.
O terceiro
aspecto é a defesa de uma definição mais clara do âmbito e das prioridades de
pacotes de benefícios de saúde com financiamento público com restrições claras
que tenham em conta as disponibilidades de natureza fiscal, e o quarto aspecto
é a defesa da ampliação do papel do sector privado.
Colocados os cinco pontos
anteriores, é indispensável analisar estes últimos aspectos, dada a sua extrema
gravidade político-social.
Apesar de todas as limitações
inerentes a qualquer estrutura prestadora, é indiscutível que o nosso Serviço
Nacional de Saúde (SNS) colocou o nosso país nos primeiros lugares mundiais dos
principais indicadores de saúde e com custos mais baixos do que a grande
maioria dos países desenvolvidos.
Um dos eixos ideológicos
fundamentais da ofensiva totalitária e neoliberal contra os serviços públicos é
argumentar que a gestão pública não é competente e que não permite uma adequada
rentabilização da capacidade instalada em benefício dos cidadãos.
No caso do nosso SNS, mesmo
havendo o reconhecimento internacional de organismos insuspeitos como são os
casos da OMS e da OCDE quanto aos resultados obtidos, essa ofensiva continua
empenhada em destruir esta realização social e humanista, chegando ao extremo
da desonestidade política de afirmar que o sistema de saúde se tornou
insustentável, embora não apresente qualquer fundamentação para isso e os
próprios indicadores conhecidos demonstrem o contrário.
Trata-se de pura propaganda
ideológica, cujo objectivo fundamental é tornar o direito à saúde num negócio
altamente lucrativo para grupos económicos e seguradoras, à semelhança de vários
países.
No fundo, trata-se de reduzir a
saúde a um mero bem de consumo dependente da capacidade económica de cada
cidadão: quem tem dinheiro compra os cuidados de saúde, quem não tem fica
abandonado à evolução natural da doença.
No nosso país, o sector privado
na saúde sempre desempenhou um papel alargado apesar da consagração
constitucional de um SNS.
Existem diversas áreas em que o
sector privado é o principal prestador, como são os casos, por exemplo, da
hemodiálise, análises clínicas, imagiologia e de outras técnicas de
diagnóstico.
Por outro lado, os dinheiros
públicos tem continuado a financiar hospitais privados e ultimamente as PPP, o
que se traduz numa forma dissimulada de alimentar e alargar o papel do sector
privado
Nesse sentido, vir propor uma
maior ampliação do sector privado é assumir que o objectivo central deste
relatório é sustentar a política governamental de ódio ideológico a todas as
realizações sociais e humanistas do regime democrático.
Relativamente à defesa da
definição de pacotes de benefícios de saúde com financiamento público assentes
em restrições claras, estamos perante a afirmação talvez mais grave de toda a
abordagem do relatório, com o aspecto muito perigoso de não ser entendida pela
generalidade dos cidadãos, tendo em conta a terminologia disfarçada.
Esta formulação ficou tristemente
conhecida em muitos países, particularmente na América Latina, nas décadas de
1980 e de 1990, como a “canasta básica de cuidados de saúde”.
Esta “canasta” era constituída
por um pacote mínimo de serviços definidos como essenciais ou básicos para a
cobertura em cuidados primários de grupos populacionais mais vulneráveis,
nomeadamente populações pobres e residentes em áreas rurais e de difícil
acesso.
Este pacote mínimo excluía
quaisquer cuidados que envolvessem maior tecnologia.
A Conferência de Alma Ata
realizada pela OMS em 1978 tinha sido já palco de uma clara tensão entre duas
formas muito diferentes de conceber uma política de cuidados de saúde
primários.
De um lado, estava uma concepção
abrangente virada para um sistema integrado de cuidados de saúde e como parte
integrante do desenvolvimento económico-social e do outro lado estava a defesa
de um tipo de cuidados dirigidos para populações pobres desprovidas de acesso a
recursos.
Como sabemos a concepção
abrangente saiu claramente vencedora nas conclusões dessa conferência, mas no
ano seguinte a Fundação Rockefeller promoveu uma reunião em Itália com a
colaboração de diversas agências internacionais, concretamente o Banco Mundial,
a Fundação Ford e a Agência Internacional para o Desenvolvimento, e aí foi
aprovada uma definição de “cuidados primários selectivos”, que se baseava num
pacote de intervenções de baixo custo para combater as principais patologias em
países pobres.
No caso concreto da América
Latina, o desenvolvimento desta política de saúde baseada na referida “canasta
básica” produziu profundas desigualdades no acesso aos cuidados de saúde,
determinou a fragmentação e a segmentação dos serviços de saúde e conduziu à
degradação generalizada dos indicadores de saúde.
Importa recordar que nessa altura
este tipo de política de saúde foi aplicado em países que viviam sob ferozes
ditaduras fascistas, de que o primeiro exemplo foi o governo de Pinochet no
Chile.
Na última década a grande maioria
dos países latino americanos encetaram profundas mudanças nas suas políticas de
saúde numa perspectiva de maior intervenção dos serviços públicos e na criação
das bases de sistemas de cobertura universal.
Pelos vistos, este relatório vem
apresentar uma “cassete” com 30 anos de bolor, mas com alterações na sua
terminologia técnica para esconder a sua essência e não suscitar a recordação
da acumulação de desgraças humanas provocadas nesses países.
Em Portugal, estamos hoje
confrontados com a maior tentativa de destruição do Estado Social e de
mercantilização da vida humana.
Estando claramente em perigo a
coesão social e o Estado Social, começa a ser o próprio regime democrático e
constitucional a ser colocado em causa.
A intervenção cívica é hoje mais
do que nunca necessária e urgente!!!
Mário Jorge Neves
Médico e dirigente sindical "