terça-feira, 30 de junho de 2020

Tancos: Crime e Castigo?!



Finalmente! Depois de uma fase de inquérito longa, penosa e repleta de episódios de tentativas de manipulação da opinião pública e da própria Justiça, o ex-ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, juntamente com mais 22 arguidos, vai ser levado a julgamento pelos crimes de prevaricação, denegação de justiça, abuso de poder e favorecimento pessoal.
Tudo formulações muito pomposas para escamotear o principal: que Azeredo Lopes, o governo que integrava, e o primeiro-ministro que o dirigia, estavam completamente a par de quem havia furtado variado armamento dos paióis de Tancos e, pior ainda, ajudou a montar o cenário de uma recuperação que foi apresentada à opinião pública como uma vitória da excelência investigatória e do empenho de ministro, ministério e governo.
O crime, no entanto, inicia-se muito mais a montante. Com o criminoso desleixo, por parte do governo, em assegurar a inviolabilidade de infraestruturas de defesa tão críticas como são os paióis militares. Foram anos de desinvestimento e abandono que facilitaram um crime que constituiu um autêntico passeio para os criminosos que o decidiram executar e para os criminosos que o decidiram encobrir.
Mas, não se iludam! Costa já veio dar o tom de como este cenário de justiça está a ser montado para que o desfecho da peça de teatro montada em torno do roubo de Tancos, venha a ser o da absolvição, pelo menos, do governo e do ex-ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes.
Só assim se podem interpretar as suas recentes declarações, a mostrar-se surpreendido pelo facto de, até agora, se ter privilegiado a condenação de quem resolveu o crime, isto é, terá criado as condições para o resolver em vez de se centrar nos responsáveis pelo planeamento e execução do mesmo.
Quando, em Outubro de 2017, o camarada Arnaldo Matos, para além da exigência de demissão de Azeredo Lopes que já fizera anteriormente,  exigiu também, através da sua conta do Tweeter, a demissão de António Costa, era claro que, nem o presidente da República, nem os chamados partidos da oposição parlamentar, queriam ver resolvido o crime.
E, tal veio a confirmar-se, precisamente, durante as campanhas eleitorais que se desenrolaram em 2019 – europeias e legislativas – durante as quais os chamados partidos da oposição parlamentar, para além de se negarem a exigir a demissão dos responsáveis pelo encobrimento do crime de Tancos, só o mencionaram para poderem retirar proveitos eleitorais.
Passadas as eleições, o próprio anúncio de que Azeredo Lopes iria ser levado a julgamento não mereceu qualquer referência especial por parte daqueles que, aparentemente, se abespinhavam contra ele e o alegado acto criminoso que praticara, durante os já referidos processos eleitorais.
Quanto a nós, não é só Azeredo Lopes que se deve sentar no banco dos réus e ser condenado pelo encobrimento criminoso do roubo de Tancos e de todo o processo que levou à teatral recuperação do material roubado – ainda hoje, não se sabe ao certo que material foi furtado dos paióis de Tancos e qual a quantidade e características do material recuperado.
No banco de réus deve sentar-se Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, pois não é de todo crível que, quer um, quer outro, não tivessem conhecimento de toda a trapalhada que levou à recuperação milagrosa do armamento roubado e à subsequente prisão do Director da Polícia Judiciária Militar. Não é de todo crível que, quer um, quer o outro, nada tenham a ver com a campanha de silenciamento que se seguiu para encobrir o sistema político dominante que tentou, de imediato, silenciar a “comunicação social” que domina para abafar o assunto.

O povo português exige mais do que explicações. Exige que a justiça não deixe pedra sobre pedra sobre o que há a esclarecer quer sobre a trama, quer sobre quem são os responsáveis políticos, militares e outros pelo encobrimento e manipulação deste acto criminoso. Assim como exige penas exemplares para os seus autores.

Retirado de: http://www.lutapopularonline.org/index.php/pais/104-politica-geral/2746-tancos-crime-e-castigo










segunda-feira, 29 de junho de 2020

As novas tecnologias e a incidência sobre a luta de classes



            
« Está confirmado : a lei da ‘urgência coronavirus’ vai afectar os direitos sobre as férias, as 35 horas...e sem data limite”, intitulava a revista Marianne de 22 de Março de 2020  

As tentativas de aumento do tempo de trabalho em França (o mesmo se passa em Portugal – Nota do Tradutor)

Agora, o governo Macron / Edouard quer desconfinar o horário de trabalho. É sob o conselho do Instituto Montaigne (ver link - l’institut Montaigne) que a macronia ataca directamente o tempo de trabalho. e as férias e feriados RTT (lei que prevê a Redução do Tempo de Trabalho – Nota do tradutor). Aqui estão as várias propostas deste instituto:
"Oferecer às empresas a possibilidade de concluir acordos que autorizem o pagamento de horas e dias adicionais trabalhados de maneira diferida, integrando-os em esquemas de participação, de bónus ou de poupança salarial. "

“É necessário, obviamente, reservar um tratamento especial  aos sectores tiverem sido directamente expostos à gestão sanitária da crise do Covid-19, um assunto que vai muito para além da questão do tempo de trabalho. Partindo deste princípio, propomos diversas modificações da regulamentação do tempo de trabalho na função pública, em particular a extensão do número de agentes remunerados diariamente ou ainda a supressão, a título provisório, de dez dias de RTT. "

"Aumentos direccionados do tempo de trabalho são, portanto, propostos na função pública sobre a duração e a organização do tempo de trabalho, em particular no sistema de Educação nacional para compensar as semanas de atraso escolar. "

"Aumentar as categorias elegíveis para pacotes diurnos na função pública
O desenvolvimento do tele-trabalho no serviço público mostra, assim como no sector privado, os limites da definição do tempo de trabalho calculado numa base horária e semanal. As administrações ganhariam em eficiência e versatilidade. "

Este é o programa para os próximos dias, da macronia, apesar de ter sido feito um pequeno recuo táctico.


O coronavirus e a promoção do tele-trabalho

O tele-trabalho é uma actividade profissional realizada no todo ou em parte distante dos locais do empregador. Existem diferentes formas de tele-trabalho: em casa, fora de casa (por exemplo, num tele-centro, escritório satélite, espaços compartilhados (coworking) ou em movimento (no autocarro, no eléctrico, no metro, no avião, etc.).

"Enquanto a taxa de tele-trabalhadores sobe para 18% em média na Europa e sobe para 30% nos países escandinavos, a França faz figura de má aluna, com apenas 9% dos tele-trabalhadores. Esses números apenas reforçam a observação feita no último relatório do Institut Montaigne (O desafio digital - como fortalecer a competitividade da França): a França está a perder espaço no domínio digital e acumulando um atraso que corre o risco de se tornar cada vez mais difícil de recuperar o atraso. "Fontes do instituto montaigne.

Os travões ao desenvolvimento do tele-trabalho

"Segundo a Greenworking (empresa responsável pelo estudo em questão)", o gerente é o primeiro obstáculo ao desenvolvimento do tele-trabalho. Esse conceito, que repousa em princípios de flexibilidade e confiança entre funcionário e empregador, está a lutar para encontrar o seu lugar num sistema organizacional que ainda é altamente hierarquizado. Os empregadores podem, por exemplo, temer perder o controle sobre o trabalho dos seus funcionários. Além disso, o custo do equipamento (computador, conexão à Internet) e a obrigação de pagar uma indemnização ao empregado (2) constituem obstáculos adicionais à implementação desse modo de trabalho. »Fontes do  instituto montaigne.

Esta passagem é reveladora, de como poderíamos nos fazer passar por pequenos patrões depois de Maio de 68, o controle tecnológico remoto torna possível passar sem gerentes, mas também marginalizar o indivíduo no trabalho, arrastando-o para um estatuto fora do trabalho renumerado. (ver da lei el khomri ao relatório badinter via ordens macron sobre a lei do tele-trabalho )

Esta precarização da força de trabalho mercadoria na forma de um estatuto fora do trabalho remunerado nem sequer é ocultada. “Em todo o mundo, a flexibilidade, a adaptabilidade, mas também o modelo de negócios da economia digital, baseiam-se na multiplicação de emprego não assalariado ". Transformação digital e vida profissional, Bruno Mettling.


Os conselheiros do Instituto Montaigne prosseguem :

"Devido a esses diferentes freios, a França não está a explorar seu potencial digital o suficiente. No entanto, o tele-trabalho teria o seu lugar no programa "Competitividade das PME na economia digital" recomendado pelo relatório do Institut Montaigne. De facto, o tele-trabalho permite ganhar competitividade, reduzindo a duração e os custos de transporte para os funcionários (e, portanto, potencialmente a pressão). Além disso, o tele-trabalho permite que a empresa economize no aluguer de escritórios. Ganha o funcionário, ganha a empresa e até o meio ambiente ganha porque uma redução no transporte rima com uma diminuição nas emissões de gases de efeito estufa! Como Éric Besson ressalta, "o tele-trabalho traz benefícios concretos no quotidiano dos trabalhadores, comunidades e empresas (3)". Por fim, o tele-trabalho envolve o funcionário de uma maneira diferente, oferecendo-lhe mais responsabilidades (gestão do tempo de trabalho), além da possibilidade de modificar os seus horários ". Sobre esse assunto, consulte o nosso artigo COMO PASSAMOS DE FUNCIONÁRIO PARA CONTRATANTE: O EXEMPLO DOS CORRETORES                                                            (ver link - https://les7duquebec.net/archives/232796)
A lei sobre o teletrabalho

Esta lei não cai do céu, mesmo que as novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) e os sistemas de geo-localização por satélites não lhe sejam estranhas. Já fazia alguns anos que a vida privada dos executivos de negócios havia sido comprometida pelo uso do laptop sobre o qual, dia e noite, teclavam durante os transportes. Executivos que se tornaram autónomos, não tinham cronograma. Com as NTIC, a empresa começará a entrar na esfera privada dos indivíduos, primeiro com o telemóvel, que desempenhará o papel de alerta a qualquer momento e em qualquer lugar, transformando o indivíduo em permanente disponibilidade. O telemóvel foi então substituído pelo laptop, depois pelo tablet e actualmente por uma panóplia de smartphones. Como os carcereiros e a sua bracelete, os usuários das NICTs colocaram a a si próprios a corda na pata que os rastreará permanentemente; o chip RFDI vigia como uma estrela a sua localização geográfica. Então, os nossos dirigentes descobriram que era necessário gerir o "trabalho nómada", porque tudo se combinava para tornar o tele-trabalho o novo padrão de vida profissional do cidadão atomizado. Já que os acordos da empresa haviam previsto que as emendas ao contrato de trabalho pudessem facilitar o tele-trabalho, estávamos na mesma trajectória que introduziu as horas móveis ou flexíveis nas empresas. Mas, aos poucos, parecia não ser mais adequado às autoridades, agora era necessária uma lei para enquadrar o potencial de 64% (10) dos funcionários favoráveis ​​ao tele-trabalho (trabalhar em casa) e fazer do tele-trabalho uma grande causa nacional, com os prós e os contras com as quais a comunicação social sabe tão bem lidar, os prós contra o assalariado  e a ecologia essa nova virgem santa dos tempos modernos  que deveria avançar, o mínimo de tempo gasto nos transportes, com números a apoiar , os custos da assistência a amas, a educação dos filhos…
Permanecemos muito discretos sobre o possível trabalho infantil. Para a empresa, é tudo lucro, como vimos na situação dos corretores de imprensa, mas não só. Segundo a consultoria RH Kronos, o tele-trabalho reduziria o absentismo em 5,5 dias por licença médica por ano (11). Para a consultoria Greenworking (12), a produtividade dos tele-trabalhadores seria 22% superior à dos trabalhadores sedentários nas empresas; e seus pontos fortes não param por aí. Trabalhar remotamente também economiza espaço no escritório (e, portanto, reduz o aluguer), ou até reduz a pegada ecológica da empresa. Também ajuda a motivar a implantação de novas ferramentas (mensagens instantâneas, equipamentos de conferência na web, modernização do sistema de informações etc.) e, portanto, novas formas de trabalhar para todos, como tornar-se um empreiteiro, um empresário independente. O tele-trabalho não cria mais um custo adicional para o empregador!

De facto, a empresa não é mais obrigada a assumir todos os custos decorrentes directamente do exercício do tele-trabalho (hardware, software, assinaturas, comunicações, electricidade, etc.). As disposições para cobrir esses custos podem, no entanto, estar previstas na convenção colectiva ou na Carta que enquadra o tele-trabalho. Os sindicatos, e essa é a sua função, devem acompanhar as mudanças nas empresas para o melhor e para o pior. Ei-los agora confrontados com o tele-trabalho a fazer sair o direito do trabalho da empresa, o que os fará mudar para um "direito da pessoa" no qual deverão afundar-se ou fazer-se afundar. Não se deve esquecer que a Lei do Trabalho adoptada em 8 de Agosto de 2016 previa o encontro com sindicatos tendo por objectivo o tele-trabalho e, no final das negociações, a publicação de um guia que poderia servir de referência para as negociações de acordos da empresa.

Segundo o instituto Montaigne

“O sector privado experimenta uma explosão no tele-trabalho que dura há três anos (cerca de vinte acordos foram assinados em grandes empresas, tais como a Michelin ou a Axa), e uma experiência está em andamento no Ministério das Finanças desde Dezembro de 2010. No entanto, Éric Besson indica que isso é feito apenas um a três dias por semana, a fim de preservar a integração do agente na comunidade profissional. Portanto, não há dúvida de que a França tem uma carta para jogar nesta área. Em nome da competitividade, mas também do bem-estar do assalariado. "

Referências :

(1) Charles Guay, Télétravail : Besson veut mobiliser les entreprises, Les Echos, 20 juillet 2011.
(2) Arrêt de la Cour de Cassation du 7 avril 2010.
(3) Source : www.rtl.fr

Para saber mais :
Le défi numérique – comment renforcer la compétitivité de la France (O desafio digital – como reforçar a competitividade da França – Nota do Tradutor)

Carga de trabalho e pacote de dias
Se na origem o pacote de dias permitia que certos executivos autónomos se livrassem das obrigações relacionadas com as horas de trabalho diárias e semanais, o dia seguinte ao coronavírus oferece ao poder a oportunidade de procurar generalizar o pacote de dias para todos os assalariados. Como acabamos de ver, fala-se em estendê-lo a todo o serviço público. As consequências são perfeitamente descritas por G. Filoche, ex-inspector de trabalho.
O que é o pacote de dias? Gérard Filoche explica-o. O que é o pacote de dias? Uma invenção intolerável (e que muitos de nós denunciámos na época) de Martine Aubry, que permitia aos executivos "autónomos" derrogar todo e qualquer cálculo diário, para regressar a um cálculo anual. Por causa do pacote de dias não tinham mais um limite diário (o tempo máximo de trabalho era de 10 horas) ou semanal (a duração máxima de ordem pública era de 48 horas). Resta apenas a restrição de 11 horas de descanso diário (introduzido no Código em 1999 e confirmado por directiva europeia, mas cuidado com o tempo de viagem que faz parte dessas 11 horas). O pacote dia pode, portanto, levar os "executivos" a trabalhar 13 horas por dia (24 horas - 11 horas de descanso diário). Isto durante 6 dias consecutivos (um descanso após 6 dias permanece como ordem pública, portanto, obrigatório, mas, sabendo que esses 6 dias são contados por semana, isso significa 12 dias de trabalho consecutivo e depois dois dias de descanso). Sendo o assalariado subordinado, apenas o empregador é o dono dos seus  horários. Se calcularmos em absoluto, poderão ser pressionados para trabalhar 2380 h no ano em vez de 1607 h, duração legal actual (aqui incluída a segunda-feira de Páscoa) e, como não contamos mais as horas, é de um preço fixo, não há horas extras deduzidas, aumentadas.

É certo que existem condições restritivas na teoria: o uso do pacote dia numa empresa deve enquadrar-se  num contrato assinado com um sindicato; portanto, aplica-se apenas a executivos ”que não podem pré-determinar o seu horário”. De facto, tal nem sequer devia existir, porque podemos quase "predeterminar" o horário de qualquer funcionário (sabemos a que horas se abre e se fecha um laptop, computador, se assina um contrato etc.), mas o os patrões fingem dizer que os executivos são "autónomos"! Os recursos existem mas são difíceis: se for estabelecido que o "pacote dia" é usado para anular os direitos do funcionário, para fazer horas extras excessivas, o empregador pode ser forçado a recalcular e aumentar as horas adicionais acima de 1607 horas. Mas como chegar a essa contagem com um "pacote"? Quais os instrumentos de controle? É necessário fazer um processo. Mas quem tem os meios para fazê-lo ... sem ser demitido ou mal visto? De facto, o funcionário executivo num pacote diário é deixado à arbitrariedade em matéria de horários.

Esse "pacote dia" colocaria em causa a "jornada das 10 horas" (conquistada no início do século XX) e até colocaria em causa a primeira legislação em matéria de duração do trabalho que data desde Philippe Le Bel que havia proibido aos senhores feudais fazer os camponeses trabalhar antes do amanhecer e depois do pôr do sol.

Desde 2002, Fillon, Larcher e Ump não cessam de estender  o pacote dia de Martine Aubry: embora estivesse limitado aos chamados quadros ditos "autónomos", ele era estendido a todos os quadros, mesmo aqueles cuja horário era calculado e pré-determinado há muito tempo ... Depois, foi estendido pelo Sr. Fillon a "funcionários itinerantes", o que é muito: os vendedores, os RVPs, os agentes de manutenção (informática, electrodomésticos, etc.), os distribuidores, os homens das mudanças, etc.

E eis que um deputado fundamentalista liberal conseguiu, no meio do verão, de uma emenda subreptícia, na Assembléia Nacional, com a aprovação do seu grupo Ump, do Sr. Dutreil e do governo, remover a palavra "itinerante" depois da palavra assalariado: portanto, o pacote dia pode agora ser aplicado a TODOS os assalariados.
O que constitui um recuo considerável em matéria de duração do trabalho, pois pode fazer-nos regressar a meados do século 19, quando os trabalhadores lutavam pela jornada das 12 horas, depois das 10 horas (início do século 20) e depois das 8h (Frente Popular).
Gérard Filoche, Inspector do Trabalho, por D&S www.democratie-socialisme.org
As novas tecnologias e a sua incidência sobre a luta de classes

Sabemos, por experiência e a burguesia também, que as infraestruturas e a disposição dos assalariados nos locais de trabalho devem evitar que contactos afectivos e reivindicativos se criem; na verdade, eles são forçados a concentrar o pessoal enquanto procuram isolá-lo. Existem muitos métodos, desde o trabalho no local/plataforma até mudanças constantes do sector terciário ao tele-trabalho. Para o sector industrial, a subcontratação é o principal aspecto dessa divisão, com a contratação de estrangeiros que não falam o mesmo idioma, o caso mais acabado deste novo tipo de exploração do indivíduo privado da sua classe é a Amazon.

Foi João Bernardo quem analisou cuidadosamente a diferença entre o sistema fordista e o toyotismo no seu texto "A questão social: classe operária ... ou trabalhadores fragmentados? Aqui estão alguns extractos:

"O sistema fordista consistia em reunir, nas mesmas instalações industriais, milhares de trabalhadores ou, nos mesmos escritórios, centenas de funcionários que faziam funcionar enormes conjuntos de máquinas, consumindo quantidades não menos colossais de matéria prima. No fordismo, o crescimento das economias de escala dependia da concentração física dos trabalhadores nas mesmas instalações. Só se pode entender a atitude dos sindicatos reformistas, os partidos burocratizados dos trabalhadores e o sindicalismo radical e, posteriormente, as grandes ondas de protestos autónomos nas décadas de 1960 e 1970, apenas se lembrarmos que milhares e milhares de trabalhadores se encontravam diariamente diariamente entre as paredes das mesmas instalações. "

O toyotismo

Falando da luta de classes, João prosseguiu:
"O toyotismo encontrou uma maneira de reduzir, ou mesmo evitar, esse considerável risco político. A electrónica permite que os administradores da empresa centralizem a colecta de informações e as tomadas de decisão, independentemente de qualquer contacto físico com os trabalhadores e de qualquer relacionamento físico entre os trabalhadores. Os diferentes processos de trabalho específicos são integrados em grandes conjuntos, mesmo que sejam realizados isoladamente e, às vezes, possam estar separados por vários milhares de quilómetros. Assim, as economias sociais de escala aumentam sem a necessidade de aumentá-las no plano material.

Além disso, a tecnologia electrónica conseguiu realizar um feito sem precedentes na história da humanidade: a fusão dos processos de vigilância e trabalho. Até agora, os trabalhadores tinham que ser monitorizados por agentes especializados, que não só não podiam ser abusados, mas cujos salários representavam uma despesa considerável para os empresários. Para ser tanto pouco eficaz como não causar um crescimento inaceitável dos custos, esse sistema de vigilância exigia que todos os trabalhadores fossem todos concentrados nas mesmas instalações. "

Seguidamente João Bernardo enumera com grande lucidez oito maneiras de fragmentar a classe operária, retivemos o ponto 7, que fala sobre franquias e transferências. “7) A fragmentação da força de trabalho resultante da subcontratação e do sistema de franquias assume proporções ainda maiores no sistema de“ portage ” (transferências – Nota do Tradutor). Esse termo (em brasileiro, a "terceirização"), designa o processo pelo qual uma empresa transforma alguns de seus funcionários em profissionais formalmente independentes e os recontrata pagando os seus serviços. Na prática, o trabalhador "levado" encontra-se totalmente dependente da empresa para a qual vende a sua actividade, mas sem beneficiar das garantias que possuía anteriormente como assalariado. A transformação da força de trabalho em "transferência" (“portage”), que tomou proporções massivas em certos sectores profissionais, leva ao isolamento completo destes trabalhadores. "

A digitalização e o novo trabalho à peça.

Deliveroo : le retour du travail à la tâche – RTL.fr (ver link)
A dita crise mundial do Coronavírus mais não fez do que implantar pelo confinamento essas tecnologias de isolamento e do controlo de vigilância "securitária" para o capital. O traçado e os sistemas de reconhecimento facial vêm complementar esta instalação “de um fascismo sem bota. "A expressão é de Edouard Snowden (ver link - Edouard Snowden.). Como acabamos de ver, o tele-trabalho contribuirá para o isolamento e o trabalho de “zero hora”, para o trabalho do “consumidor”, para as consultas médicas por vídeo ou telefone. Ao retorno ao trabalho à peça e às micro-tarefas. Mas a digitalização cria empregos, empregos como por exemplo os “micro trabalhadores” do digital. Eles executam pequenas tarefas digitais e numéricas: classificando fotos, analisando imagens para algoritmos, traduzindo um texto pequeno ... Pagas ao clique ou à tarefa, elas são as mãozinhas de uma economia digital em plena expansão. Entre a China, a Tailândia, a Nigéria e até a Malásia, estima-se que os operários da economia digital sejam perto de 90 milhões em todo o mundo (ver link - sont près de 90 millions dans le monde).

Esses micro tarefeiros são um proletariado precário em plena expansão.
O desenvolvimento do tele-trabalho e todo o digital completarão essa quebra / fragmentação de indivíduos, conforme planeado pela Anact em 2013 para os anos vindouros:
Segundo Hervé Lanouzière, director geral da Anact, em 2053, os locais de produção foram "atomizados" e "quando as pessoas estão reunidas no mesmo local, é raro que seja para o fazer o trabalho delas".
Para Philippe Durance, pesquisador do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (Cnam) "o desaparecimento do local de trabalho (...) afecta quase todas as categorias profissionais". O trabalho é feito em casa, nos espaços de coworking, nos transportes, nos locais de restauração e, como recurso final, no escritório.
Já estamos a observar esse movimento, sob o controle de MTurk e CrowdFlower, duas das principais plataformas que estabelecem as relações entre os provedores de tarefas e aqueles que as vão executar em todo o mundo. E menos ainda as "explorações de cliques" (“fermes à clics” – Nota do Tradutor). Entre o web café e o espaço aberto lotado, homens e mulheres estão colados aos seus monitores, encarregados de "gostar" de páginas do Facebook ou Twitter, escrevendo óptimas críticas sobre os restaurantes que eles jamais viram... tudo por alguns cêntimos, sem protecção social.
De uma crise para outra
A saída da chamada crise do coronavírus é apenas uma maneira de acentuar a precariedade, uma maneira de experimentar à escala global as novas tecnologias integradas, doo sistema securitário mais sofisticado sobre os indivíduos, rastreamento facial. , inteligência artificial, algoritmos ... Essas tecnologias dos GAFA americano e do Batx chinês já estão a operar e não deixarão de causar revoltas e insurreições. Em França, no 14 de Junho, E. Macron soou a hora da retoma do trabalho porque movimentos de greve já se preparam, onde estão em acção contra os despedimentos, recentemente, um colector de lixo de 46 anos matou-se após o seu despedimento, os assalariados da refinaria de açúcar Toury foram despedidos depois de terem produzido gel hidroalcoólico. Melhor ainda, a administração da Derichebour Aero acaba de assinar com o sindicato FO um "Acordo de Desempenho Colectivo", a solidariedade que exige Macron, aceitar os cortes salariais para salvar empregos, os assalariados conhecem bem esse tipo de acordo por terem feito a triste experiência na indústria automóvel e siderúrgica. Lembrar-se  da GMS à Souterraine dos 700 trabalhadores da década de 1990, não restam senão 277 hoje, que lutam para manter o seu trabalho na fábrica.

Lutas recentes vieram a significar, a revolta do precariado, trata-se da empresa FRICHTI (ver link) e dos seus distribuidores não documentados "é a primeira vez que distribuidores indocumentados se organizam colectivamente". Marilyne Poulain, encarregada dos trabalhadores indocumentados da CGT.
(Continua)


G.Bad le 17 juin 2020





Transportes públicos urbanos: uma política absolutamente criminosa!



 A semana terminou com o anúncio de que o governo havia decidido tornar operacional 90% de toda a frota de transporte público e privado convencionado com o Estado. Isto num contexto em que, devido a uma maior procura dos transportes públicos, antes da crise pandémica já se fazia sentir, para além dos efeitos de um depauperado serviço público de transportes, um manifesto desajustamento da oferta à procura.

Se não é criminoso deixar que apenas 40% da oferta de transporte público funcione durante as 3 primeiras semanas de “desconfinamento", então o que é isto?  Criminoso! Sobretudo quando fizeram ouvidos de mercador às críticas de que seria impossível travar uma pandemia com transportes públicos a abarrotar de operários e trabalhadores que, após mais de 3 meses de confinamento policial mortífero, regressavam aos seus locais de trabalho para assegurar a venda da única mercadoria que possuem – a sua força de trabalho – para poder sustentar as suas famílias.

 António Costa e as meninas histéricas da Direcção Geral da Saúde – Graça Freitas – e do Ministério da Saúde – Marta Temido -, levaram a sabujice política que os tem caracterizado ao cúmulo da indecência. Para escamotear a decisão de “poupar” nos transportes,  disponibilizando apenas 40% da frota, elegeram os jovens como sendo os responsáveis pelo novo “surto pandémico” que se regista actualmente na área de Lisboa e Vale do Tejo.

Apesar de ter tido algum eco, principalmente junto de uma parte da população mais vulnerável à mentira e à manipulação, rapidamente a mentira, que tem perna curta, ficou exposta através de centenas de fotos e vídeos demonstrativos de como os operários e os trabalhadores eram transportados que nem “sardinhas em lata”, nas suas deslocações para o local de trabalho e respectivo regresso a casa.

Não basta â burguesia explorá-los até à medula, humilhá-los, forçá-los a viver em bairros da periferia das grandes cidades – como é o caso de Lisboa -, na maioria dos casos em situação de completa insalubridade e desconforto, ainda lhes impõem transportes sem quaisquer condições de segurança e conforto, com horários e regularidade de carreiras absolutamente desajustados, criminosamente desajustados, no contexto da crise pandémica que atravessamos.


Também, o que esperar de uma besta inculta como António Costa, que ainda ontem, no programa do humorista Ricardo Araújo Pereira, afirmou, sem hesitação ou desassombro, que a vacina assegura a imunidade contra o vírus, enquanto os antibióticos os ... matam!!! Para que servem, afinal, as reuniões com os especialistas no INFARMED?

Se não servem para “iluminar” o cérebro amorfo de Costa, só podem servir para, lançando uma autêntica barragem de números indecifráveis para a maioria dos operários e trabalhadores, escamotearem o que está em causa e manipularem, a seu belo prazer, consciências sobre as políticas absolutamente criminosas que este governo – e órgãos que tutela – têm vindo a impor, seja sobre o sector da saúde, seja sobre o sector dos transportes, seja sobre o sector da habitação, ou qualquer outro sector onde a resposta aos interesses de quem trabalha é constantemente postergada.



Retirado de: http://www.lutapopularonline.org/index.php/pais/104-politica-geral/2745-transportes-publicos-urbanos-uma-politica-absolutamente-criminosa







domingo, 28 de junho de 2020

O fim da guerra tal como a conhecemos?




Por Tom Engelhardt  et  Danny Sjursen.
                                         
Como é estranho. Os Estados Unidos batem-se na Somália de forma intermitente desde o início dos anos 90. (Quem, de uma certa idade, não se lembra do fiasco  Black Hawk Down”?) Quase 30 anos depois, quando o O Secretário-Geral, apoiado por dezenas de países, sensatamente pediu um cessar-fogo mundial (ver link -  appelé à un cessez-le-feu mondial) para que a humanidade possa concentrar-se na "verdadeira luta das nossas vidas", colocando o Covid-19 sob controle , os Estados Unidos ainda estão em guerra lá. À medida que os navios da Marinha dos EUA se transformam em zonas de pandemia (ver link - en zones de pandémie) e o homem da Casa Branca denuncia repetidamente as "guerras sem fim ridículas" (ver link -« guerres sans fin ridicules » ) -  do país, a guerra do Pentágono na Somália contra um grupo terrorista insurgente al-Shabaab de facto intensifica-se. Sem brincadeiras.

Obviamente, se você não prestar atenção senão aos grandes media, cheios de poucas notícias além dos coronavirais (e ainda mais virais sobre o nosso presidente), você não o saberia. Talvez você não soubesse de todo que as forças armadas dos Estados Unidos estavam envolvidas na Somália. Deve-se ler o recente artigo de investigação (ver link - article d’investigation) de Nick Turse, editor-chefe da TomDispatch, no The Intercept, para descobrir que os ataques aéreos dos EUA naquele país aumentaram acentuadamente nos últimos tempos.

Durante os anos de Obama, de 2009 a 2017, os Estados Unidos realizaram um total de 36 desses ataques na Somália. Segundo o Comando dos Estados Unidos para a África, no início de Abril de 2020, apenas quatro meses após o início deste ano devastador, 39 desses ataques já haviam sido lançados, o que garante essencialmente que o número anual de destruição será superior ao recorde de 63 ataques levados a cabo no ano passado. E não se esqueça que, neste mesmo momento, o Covid-19 está a começar a semear a morte (ver link - à semer la mort) na capital do país, Mogadíscio.

E isso, como o sublinha hoje Danny Sjursen, major do Exército dos EUA na reforma  e regular do TomDispatch (ver link - habitué de TomDispatch),  é apenas a ponta do iceberg de guerras sem fim que os EUA conheceram no decurso  deste século. O facto de estarem agora a transformar-se em guerras pandémicas parece ter pouca importância para Washington. É nesse espírito que Sjursen, cujo novo livro, Patriotic Dissent: America in the Age of Endless War, que será publicado este outono, investiga o futuro da guerra americana num mundo Covid-19. Esperem.
Tom engelhardt

* * * *

O advento de uma versão socialmente distante da guerra

Covid-19, uma tragédia humana mundial em curso, poderia ter pelo menos um ponto positivo. Ela levou milhões de pessoas a questionar as políticas mais prejudiciais da América, dentro e fora do país.

No que diz respeito à política de guerra de Washington no exterior, houve especulações (ver link - des spéculations) segundo as quais o coronavírus poderia acabar com esses conflitos, quanto mais não seja para provar que ele é um artesão involuntário da paz- e por boas razões, já que um Pentágono em busca de dinheiro se revela impotente (ver link -  s’est avéré impuissant) para combater o vírus. Neste meio tempo, tornou-se cada vez mais evidente que se uma fracção dos gastos em “defesa” (sic) tivesse sido investida em agências de controle de doenças cronicamente sub-financiadas (ver link -  sous-financées) , a resposta deste país à crise do coronavírus poderia ter sido muito melhor.

Curiosamente, no entanto, apesar das queixas periódicas do presidente Trump sobre as "intermináveis ​​guerras ridículas" dos EUA, o seu governo demonstrou notável relutância em aceitar (ver link - peu disposée à accepter) até uma modesta retirada das ambições imperiais dos EUA. Em alguns teatros de operações - Iraque, Irão, Venezuela e Somália (ver links -  IrakIranVenezuela et Somalie) em particular - Washington até intensificou o seu militarismo (ver link - intensifié son militarisme) numa onda de oportunismo macabro, em grande parte sob o radar da pandemia.
Mesmo assim, é óbvio que chegou a hora de perguntar se a “guerra ao terror” travada pelos Estados Unidos durante quase vinte anos (o que seria melhor considerar como uma série de guerras de terror) poderia realmente terminar. Prever é um assunto delicado. No entanto, o lançamento do Covid-19 ofereceu uma rara oportunidade de levantar questões, questionar executivos e examinar criticamente o que "terminar" a guerra poderia significar para este país.

De certo modo, as nossas guerras pós-11 de Setembro estão a diminuir gradualmente há algum tempo. Embora o número total de tropas dos EUA enviadas para o Médio Oriente tenha realmente aumentado (ver link -  dans les années Trump) nos anos Trump, esses números são insignificantes em comparação com o envolvimento dos EUA ( ver link - par rapport à l’engagement américain)  no auge das guerras no Iraque e no Afeganistão. Nos últimos anos, o número de soldados norte-americanos mortos no exterior caiu para níveis incrivelmente baixos para aqueles de entre nós entraram nas forças armadas durante os ataques de 11 de Setembro.

Dito isto, nos últimos anos, mesmo as guerras inúteis e impossíveis de vencer prolongaram-se de forma  extraordinária. Para se convencer, basta olhar para o eterno falcão da guerra, a senadora Lindsey Graham, da Carolina do Sul. Dado o insucesso (ver link -  le manque de succès) das várias campanhas realizadas pelo Comando Americano para a África, ou AFRICOM, neste continente e a vontade expressa (ver link - la volonté affichée)  do Pentágono em mudar de novo na competição das grandes potências com a China e a Rússia, pouco antes de a pandemia atingir as nossas costas, o secretário de Defesa Mark Esper anunciou (ver link -  a annoncé) planos de redução modesta das tropas em certas regiões de África. Consternado com restrições menores, diz-se que Graham, à cabeça de um grupo de legisladores bipartidários, confrontou Esper (ver link -  aurait confronté Esper ) e ameaçou tornar a sua vida um "inferno" se o Secretário de Estado reduzisse as forças americanas no local.

Menos de dois meses depois, o AFRICOM declarou uma emergência (ver link - a déclaré une urgence ) de saúde pública na maior base africana do país, Djibuti, num contexto onde se temia   que mesmo as instalações americanas muito menores e espartanas deste continente não dispunham do equipamento médico necessário para combater a propagação do vírus. Resta saber se a pandemia facilita as reduções previstas por Esper. (Um comunicado de imprensa – ver link  communiqué de presse  - de meados de Abril da AFRICOM, que reafirma que "a parceria de comando continua durante o Covid-19", não é um bom presságio para essa transformação).

Entretanto, a doença teve certamente algum efeito. Assim como a quarentena e o distanciamento social transformaram a vida e o emprego das pessoas nos Estados Unidos, as operações de guerra de Washington sem dúvida terão que se adaptar também. No mínimo, espera-se que o Pentágono realize guerras (em grande parte ocultas da opinião pública) que exigem que cada vez menos tropas lutem lado a lado com os aliados e menos ainda que morram fazendo-o. Espera-se que Washington dê um mandato e que o Pentágono pratique aquilo que poderia ser visto cada vez mais como uma guerra de distanciamento social.

Os soldados operarão em equipas cada vez mais reduzidas. Tal como os líderes seniores nos aconselham constantemente (ver link - nous conseillaient), aos nossos oficiais subalternos, nos maus velhos tempos, "colocavam um rosto iraquiano entre você e o problema", os soldados de hoje e de amanhã farão o possível para colocar drones ou vidas por procuração (menos preciosas) entre eles e os inimigos de todos os tipos. Enquanto isso, a enorme diferença já existente entre o público americano e as guerras travadas em seu nome só aumentará. O que pode emergir desses anos é uma versão da guerra tão irreconhecível que, embora seja sempre interminável, não pode mais ser considerada uma guerra no sentido clássico.

Para entender como chegamos a uma versão socialmente distante da guerra, precisamos voltar ao início deste século, anos antes de uma pandemia como o Covid-19 estar na tela de qualquer radar.

As guerras americanas não têm fim, elas evoluem


Quando, jovem tenente do exército de terra, depois capitão,  aderi ao que designávamos então por "sursauts" ( surpresa/sobressalto – Nota do tradutor) no Iraque em 2006 e no Afeganistão em 2011, os soldados de infantaria convencionais como eu eram os principais actores na zona. A doutrina da contra-insurgência, ou COIN, reinava então (ver link -régnait alors)  entre os líderes do Pentágono. A astúcia, segundo os principais comandantes, consistia em inundar a zona de guerra com brigadas de infantaria, garantindo o "centro de gravidade" (ver link -  « centre de gravité ») do conflito: os habitantes locais. Nos bastidores, as unidades de operações especiais já estavam a assumir papéis cada vez mais importantes. No entanto, havia muitas "botas no terreno" (ver link - beaucoup de « bottes sur le terrain ») e baixas relativamente elevadas (ver link -  pertes relativement élevées ) em unidades convencionais como a minha.

Os tempos mudaram. Invasões em larga escala e ocupações de longo prazo, bem como o COIN como remédio (ver link -  comme remède) para a guerra contra o terror, há muito caíram em desuso. Durante o segundo mandato de Barack Obama, essas campanhas impopulares e dispendiosas foram abandonadas. No entanto, mais do que repensar a eficácia do intervencionismo imperial, Washington  contentou-se em substituir novos métodos, fazendo-os passar (ver link - les faisant passer) pela última estratégia de sucesso.

No momento em que Donald Trump proferiu o seu discurso de posse sobre a "carnificina americana", o fardo da guerra de Washington havia-se invertido. Quando servi no Iraque e no Afeganistão, cerca de metade da quarentena de brigadas (ver link -  quarantaine de brigades) de combate do exército eram enviadas (ver link - était déployée)  para esses dois teatros regionais em qualquer momento. As restantes estavam treinavam com vista às próximas rotações e já estavam no "plano de execução" (ver link - carte de déploiement ), onde o logótipo de cada unidade indicava a sua futura implantação prevista. É a vida sobre o tapete rolante (ver link - le tapis roulant) da Guerra Americana que uma geração de soldados como eu viveu. Em Janeiro de 2017, no entanto, o número de brigadas convencionais implantadas na guerra contra o terrorismo contavam-se pelos dedos de uma mão.

Por exemplo, a última série de destacamentos do exército, anunciada em Abril passado (ver link -annoncée en avril dernier) , incluía apenas seis brigadas. Duas delas eram unidades aéreas e, entre as forças terrestres, uma dirigia-se para a Europa, e uma outra para o Kuwait. Noutras palavras, apenas duas brigadas de combate em terra foram planeadas para o Iraque, a Síria ou o Afeganistão e uma delas era uma Brigada de Assistência às Forças de Segurança (ver link - Brigade d’assistance aux forces de sécurité) reconstituída - essencialmente uma equipagem reduzida de oficiais e sub-oficiais destinados a formar e a aconselhar as tropas locais. Enquanto isso, as forças de operações especiais do Pentágono, que tinham então ultrapassado os 70.000 (ver link - dépassé les 70 000) , um número tão importante (ver link -  si important)  que podemos questionar-nos (ver link -  se demander) se elas ainda são "especiais". Os comandos americanos suportam hoje o fardo (ver link -  le fardeau) dos desdobramentos de guerra eterna e (modestas)baixas.

Um sistema de guerra a dois níveis

Quando o vírus atacou, o Pentágono desenvolvia há muito tempo uma máquina militar de dupla finalidade, com dois papéis separados e amplamente distintos. Os comandos - com a ajuda de drones (ver link - de drones), paramilitares (ver link - paramilitaires) da CIA, mandatários locais e das empresas de segurança privada (ver link - entreprises de sécurité privées) - continuaram a travar a guerra contra o terror. Eles eram geralmente responsáveis ​​por administrar a parte mais mortal da guerra americana, por lançar ataques aéreos, enquanto treinavam, aconselhavam e, às vezes, até dirigiam forças locais frequentemente violentas (ver link - souvent violentes).

As brigadas convencionais de serviço activo - reduzidas para 32 (ver link - réduites à 32)  - viram-lhes confiada uma tarefa muito diferente: preparar-se para uma futura guerra fria revisitada (ver link -  guerre froide remaniée) com a Rússia e, cada vez mais, a China. Esse esquadrão - infantaria, brigadas blindadas e esquadrões de porta-aviões da marinha - tinha a suposta "nova" missão vital de controlar, conter ou desafiar Moscovo na Europa de leste e Pequim no mar da China meridional. Os altos Generais e os almirantes seniores estavam à vontade ( ver link - étaient à l’aise) com essas tarefas do estilo Guerra Fria (a maioria delas designada nos meados da década de 1980). No entanto, vistas da Rússia ou da China, essas missões pareciam cada vez mais provocativas, à medida que mais e mais soldados, tanques e navios de guerra americanos eram regularmente destacadas nas antigas repúblicas soviéticas (ver link -  anciennes républiques soviétiques) ou, no caso da marinha, nas águas do Pacífico ocidental adjacentes à China, tornando o risco de uma escalada acidental ainda mais concebível (ver link -  encore plus concevable).

Durante esse tempo, esses operadores especiais da sombra dirigiam as guerras mortais e outros conflitos em curso, que, embora recebessem pouca atenção neste país, pareciam claramente contraproducentes (ver link - contre-productifs), para não dizer impossíveis de ganhar. Para o Pentágono e os beneficiários do complexo militar-industrial, entretanto,tais conflitos intermináveis, assim como uma nova concentração de poderes, tornaram-se a galinha dos ovos de ouro ovo de ouro, um modus operandi de dois níveis para um financiamento da guerra sem fim. Então veio o coronavírus.

Sangue- Frio

De certa forma, a guerra americana será, no futuro, mais e mais frequentemente travada a sangue frio. À medida que o Covid-19 se espalha viralmente pelo ar, a doença da guerra sem fim continua a ser transmitida pelo sangue (mesmo que o sangue americano esteja cada vez menos presente), o que significa que o combate do tipo distanciamento social do futuro pode tornar-se ainda mais abstracto.

Além disso, os guerreiros pós-pandemia favoritos deste futuro podem não ser soldados em uniforme, especiais ou não, ou necessariamente americanos - nalguns casos (pensem nos drones e futuras armas robóticas) humanos. Os combates americanos já estão cada vez mais privatizados. Muito recentemente, Erik Prince, ex-CEO da empresa militar privada Blackwater, um influente aliado (ver link -allié influent )  de Trump e irmão da secretária de educação Betsy DeVos, apresentou (ver link - a présenté ) ao presidente um plano absurdo de privatizar toda a guerra no Afeganistão. .

Donald Trump declinou a oferta, mas o facto de ela ter sido mesmo considerada num nível tão alto sugere que o papel de empresários privados e soldados da fortuna nas futuras guerras americanas pode continuar. Nesse sentido, o recente fiasco (ver link -  récent fiasco) de uma operação armada liderada por ex-boinas verdes que se tornaram mercenários e que têm como alvo o governo venezuelano de Nicolás Maduro pode ser tanto um presságio do futuro (ver link - présage de l’avenir) quanto uma farsa.

Quando membros dos serviços americanos em uniforme são considerados necessários, a tendência para utilizar apenas um punhado para fazer funcionar uma máquina de guerra cada vez mais por procuração irá provavelmente acelerar. Essas equipas cumprirão bem as directrizes de saúde pública, limitando as ajuntamentos a 10 pessoas. Por exemplo, estações de controle (ver link -  stations de contrôle) no solo de drones, essencialmente reboques móveis, requerem apenas dois operadores. Da mesma forma, o último ramo da guerra cibernética do exército (formado em 2015) pode não ser composto por hackers, tal como imaginado (ver link - tels qu’imaginés) por Donald Trump ("um tipo sentado na cama que pesa 200 kg"), mas eles também trabalharão em pequenas equipas no exterior e a longas distâncias. As forças especiais do exército (ver link - forces spéciales de l’armée), compostas por 12 boinas verdes cada, levarão mais longe essas directrizes, o que pode revelar-se uma nova versão americana da guerra pós-pandemica.

O mais inquietante é que os métodos americanos de guerra de distanciamento social, sem dúvida, funcionarão razoavelmente bem sem que os grupos terroristas sofram mais do que nas versões anteriores da guerra eterna, nem que os conflitos etno-religiosos locais sejam resolvidos ou a vida de africanos ou árabes melhorada. Como os seus predecessores, as futuras guerras americanas conduzidas com sangue-frio fracassarão, mas com eficácia, do ponto de vista do complexo industrial militar, de maneira lucrativa.

Eis, claro está, o paradoxo profundo e trágico de tudo isso. Como o coronavírus nos deveria ter lembrado, as verdadeiras ameaças existenciais (ver link -  menaces existentielles) para os Estados Unidos (e à humanidade) - pandemias, um possível Armagedão nuclear e mudança climática - serão insensíveis às ferramentas militares usuais de Washington. Não importa quantos navios de guerra, brigadas de infantaria e blindados ou equipas de comando, nenhum deles terá qualquer hipótese contra vírus mortais, aumento do nível do mar ou as precipitações nucleares. Assim, a profusão de tanques, porta-aviões (eles próprios caldos de cultura – ver link -bouillons de culture - para qualquer vírus) e as toneladas de dinheiro do Pentágono (que são extremamente carentes noutros lugares) serão, no futuro, os monumentos de uma era de ilusões americanas.
Um sistema racional (ou moral) com uma aparência de controle legislativo ou participação genuína dos cidadãos poderia responder a essas realidades gritantes repensando o paradigma de segurança nacional e encerrando o estado de guerra. Infelizmente, se o passado imperial da América é um precedente, o que nos espera é a continuação da guerra imperial do século XXI até o fim dos tempos.

Guerra post-pandémica

No entanto, o Covid-19 poderia significar o fim da guerra americana, tal como ela é imaginada classicamente. As futuras batalhas, mesmo se amplamente dirigidas a partir de Washington, podem ser apenas vagamente "americanas". Poucos cidadãos em uniforme poderiam participar, muito menos morrer.

Durante a longa fase final das guerras que realmente nunca terminam, as baixas militares americanas certamente continuarão a ocorrer em situações ocasionais - geralmente em locais remotos onde poucos americanos percebem que o seu país está a bater-se (como aconteceu com aqueles quatro soldados americanos mortos numa emboscada no Níger em 2018 e o soldado do exército e dois contratados particulares mortos no Quénia – ver link - Kenya - no início deste ano). Tais baixas americanas minúsculas, na verdade, darão a Washington mais liberdade para intensificar discretamente os seus ataques com drones, o seu poder aéreo, as suas incursões e assassinatos, como aconteceu na Somália (ver link - Somalie), com supostamente sempre menos vigilância ou atenção por parte do público. Como no Corno de África nos últimos tempos, o Pentágono nem precisa de se preocupar em justificar (ver link -  même pas besoin de se donner la peine) a escalada das suas guerras. O que suscita uma espécie de enigma "se uma árvore tomba na floresta e não está lá ninguém ...": se os Estados Unidos matam morenos em todo o mundo, mas ninguém se apercebe disso, o país ainda está em guerra?

No futuro, os decisores políticos e o público poderão tratar a guerra com o mesmo grau de legitimidade e abstracção que uma encomenda feita à Amazon (especialmente numa pandemia): Clique num botão, aguarde a entrega de um pacote a toda a velocidade e não pense no que esse clique provocou nem no sacrifício que requereu para o acto.

Somente em tempos de guerra, pelo menos uma coisa permanece constante: muitas pessoas fazem-se matar. O povo americano pode deixar as suas guerras para "voluntários" profissionais não representativos (ver link - non représentatifs), liderados por uma presidência imperial incontrolável (ver link - présidence impériale incontrôlée) que os subcontrata cada vez mais em máquinas, mercenários e milícias locais. Uma coisa é garantida, no entanto: algumas pobres almas encontrar-se-ão sob as bombas e de frente para os canos das armas.

Nas batalhas contemporâneas, já é excepcionalmente raro um
americano de uniforme se encontrar nessa situação. Estamos a meio de 2020 e apenas oito soldados americanos foram mortos por fogo hostil no Iraque e no Afeganistão juntos. No entanto, vários milhares de pessoas continuam a morrer lá. Ninguém quer que as tropas americanas morram, mas há algo obsceno - e moralmente preocupante - na enorme disparidade de vítimas implícitas no desenvolvimento do modo de guerra americano do século XXI, aquele que,  num mundo Covid-19 está cada vez mais a ser combatido de uma maneira socialmente distante. Levados a um extremo inimaginável, os americanos terão que se preparar para um futuro em que o seu governo matará e destruirá em todo o mundo sem que um único membro das forças armadas morra em acção. Noutras palavras, após a pandemia, falar em "acabar" com as guerras eternas do país não passaria de um exercício semântico.

Danny Sjursen

Danny Sjursen é um oficial aposentado do Exército dos Estados Unidos e editor associado do Antiwar.com. O seu trabalho foi publicado no NY Times, LA Times, The Nation, Huff Post, The Hill, Salon, Popular Resistance e Tom Dispatch, entre outras publicações. Ele serviu em unidades de reconhecimento no Iraque e no Afeganistão e depois ensinou história à sua alma mater, West Point. Ele é autor de um livro de memórias e de uma análise crítica da guerra no Iraque, Ghostriders of Baghdad:  Soldiers, Civilians, and the Myth of the Surge (Soldados, civis e o mito do surto – Nota do Tradutor). O seu próximo livro, Patriotic Dissent : America in the Age of Endless War já está disponível para pré-venda.

Traduction « guerres ? quelles guerres ? » par VD pour le Grand Soir avec probablement toutes les fautes et coquilles habituelles