Os 80 anos do
desembarque na Provença, uma distorção infiel à história
A REDACÇÃO, 10 DE JUNHO
DE 2025
EM Décryptage, France
Por Gilles Manceron, historiador, especialista em
história colonial da França. Com a gentil autorização da revista Golias. https://www.golias-editions.fr/
Nota da redacção
de https://www.madaniya.info/
Se a narrativa do desembarque aliado de 6 de Junho de
1944 não é contestada – uma operação ocidental para libertar a Europa Ocidental
do jugo nazi –, o mesmo não se pode dizer do desembarque no sul de França, onde
o presidente Emmanuel Macron, em Agosto de 2024, procurou valorizar a
contribuição das tropas coloniais da África negra, em detrimento dos artilheiros
argelinos, cuja contribuição foi decisiva para a libertação de Marselha, apesar
de terem sofrido 56% das baixas deste corpo expedicionário.
Fim da nota.
Retrospectiva sobre a mistificação de
Emmanuel Macron
Artigo publicado na revista Golias hebdo N.º 828, de
22 a 28 de Agosto de 2024.
Aquando da
comemoração oficial dos 80 anos do desembarque na Provença, organizada por
Emmanuel Macron na necrópole de Boulouris-sur-mer, em Saint-Raphaël, o único
chefe de Estado estrangeiro presente foi o camaronês Paul Biya, e todos os
discursos e comentários sobre os soldados que participaram nesse desembarque
referiram-se essencialmente aos africanos subsaarianos. Na realidade, os
originários da África negra estavam praticamente ausentes deste episódio
histórico, assim como outros que também foram mencionados, como os antilhanos
ou os combatentes do Pacífico. A maioria dos soldados deste desembarque era
proveniente do Magrebe, principalmente da Argélia.
No entanto,
em 15 de Agosto, notou-se a ausência de qualquer representante da Argélia.
Emmanuel Macron, ao distorcer os factos históricos, preferiu evitar prestar uma
verdadeira homenagem aos numerosos combatentes argelinos desse desembarque na
Provença, mesmo que estes tenham sofrido 56% das baixas desse corpo
expedicionário 1.
O
historiador Jacques Frémeaux estima em 350 000 homens o exército que
desembarcou nas praias do Var, e entre 200 000 e 250 000 o número de soldados
originários dos três países do Magrebe recrutados entre 1943 e 1945 pelo
exército francês, dos quais 120 000 a 150 000 eram provenientes apenas da
Argélia 2.
Estas tropas
foram inicialmente mobilizadas para libertar a Córsega, onde sofreram 4000
mortos e 15 600 feridos, e depois combateram na Sicília e no sul da Itália, no
seio de um corpo expedicionário francês equipado pelos Estados Unidos que
contava com cerca de 60 000 homens, a maioria dos quais eram indígenas
coloniais, provenientes na sua maioria da Argélia.
Os arquivos
do exército fazem uma distinção rigorosa entre os militares franceses e os
«muçulmanos norte-africanos».
É daí que
vem a expressão «franceses de origem europeia (FSE)», usada na época pelo
exército colonial e que ainda hoje é usada pela extrema direita, sendo que a
outra categoria usada pelo exército era a dos «franceses de origem norte-africana
(FSNA)». Os seus salários eram diferentes: em 1944, as indemnizações para um
chefe de família sem filhos eram de 750 F para um europeu e 240 F para um
indígena 3.
Foi da
Itália que, como retrata oportunamente o belo filme Indigènes, de Rachid
Bouchareb (2006), esses soldados foram enviados para o desembarque no Var.
Chegados à Toscana, as tropas voltaram em Julho de 1944, regressaram a Nápoles
e embarcaram em Agosto para a Provença.
Não podemos
deixar de constatar a distorção histórica operada por Emmanuel Macron nesta
comemoração, uma vez que a ausência de qualquer representante da Argélia foi
acompanhada por uma forte presença de convidados da África Subsaariana, o que
não estava de forma alguma em conformidade com o evento comemorado. O
presidente da República estava visivelmente envolvido no seu recente apoio, em
desrespeito às resoluções das Nações Unidas e às posições anteriores da França,
às reivindicações do Reino de Marrocos sobre o Saara Ocidental e às
consequências que isso tem nas relações franco-argelinas. Assim, Emmanuel
Macron só encontrou como chefe de Estado africano que aceitou intervir neste
contexto o presidente camaronês Paul Biya, que é considerado um sobrevivente de
um sistema da Françafrique fortemente questionado por outros Estados do antigo
«pré-carré» da França neste continente, como o Mali, Burkina Faso, Níger e
também o Senegal.
Porquê
estudantes do ensino secundário de Thiaroye?
Entre os
convidados desta comemoração, foram anunciados também alunos do ensino
secundário vindos de Thiaroye, nos arredores de Dakar. Eles não tiveram a
palavra e nenhuma explicação foi dada sobre o motivo da sua presença. No
entanto, o massacre de um número indeterminado de soldados chamados
«senegaleses», ou seja, provenientes de toda a África Ocidental e Equatorial
Francesa, que chegaram a França na véspera da Segunda Guerra Mundial e que se
viram prisioneiros dos alemães em campos de prisioneiros instalados por eles em
solo francês e guardados por franceses, os Frontstalag, quando o seu regresso
lhes foi imposto no Outono de 1944 e eles exigiram o pagamento dos seus
salários, viveram, em 1 de Dezembro de 1944, um episódio dramático e mortífero,
ocultado pelas autoridades francesas até hoje.
Um episódio
ainda mais embaraçoso por ser emblemático da injustiça e da barbárie colonial.
Atribui-se a
Emmanuel Macron a intenção de fazer, neste ano do 80.º aniversário deste
massacre, ou mesmo antes, na sequência desta comemoração do desembarque na
Provença, uma declaração no sentido de um reconhecimento oficial.
Seja como
for, o pedido de verdade está em marcha por parte dos descendentes dos povos
colonizados e é papel dos historiadores fazer com que ele seja satisfeito. O
nosso país não escapará a isso.
É impossível evocar o
destino dos soldados coloniais sem reflectir sobre a colonização.
Muitos ex-soldados coloniais tornaram-se posteriormente combatentes pela
independência dos seus países. Seja na geração de Messali Hadj ou entre os
fundadores da FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina). Conhece-se o caso
do sargento Ahmed Ben Bella, que combateu com o Exército Africano até Monte
Cassino e participou no desembarque da Provença, que se tornaria o primeiro
presidente da República Argelina; outros são menos conhecidos, como Mostefa Ben
Boulaïd e Krim Belkacem, que também começaram a sua carreira militar no
exército francês.
É toda a história da França que deve ser assumida. Foi a junção, em Setembro
de 1944, de unidades vindas do desembarque na Provença, que contribuíram para a
libertação de Toulon e Marselha, com outras provenientes do desembarque na
Normandia, que permitiu a libertação de todo o território. No entanto, entre Novembro
de 1944 e a rendição alemã em Maio de 1945, os exércitos que libertaram a
França a partir do Mediterrâneo foram objecto de uma «branqueamento» através da
desmobilização e substituição dos soldados indígenas. E os artilheiros
argelinos que regressavam à região de Sétif, de onde eram originários, descobriram
no dia seguinte ao 8 de Maio de 1945 que as suas famílias tinham sido assassinadas
com o consentimento das autoridades do país que eles tinham ajudado a libertar.
O drama de Thiaroye demonstra que a sociedade francesa
ainda tem dificuldade em abordar essa história. A questão colonial dividiu a
França livre, assim como os responsáveis pela Resistência interna ou pelo
exército francês. A memória da participação dos soldados coloniais na
libertação da França rapidamente se tornou um assunto embaraçoso. Era difícil
reconhecer o estatuto de libertadores àqueles que continuavam a ser considerados
indígenas nas colónias.
É livrando-se desse constrangimento e dessas
contradições, assumindo plenamente o ideal de uma República anti-racista e
descolonializada e de uma laicidade não falsificada, conformando-se às
aspirações dos constituintes mais lúcidos de 1793, mas que apenas abriram
caminhos cujo desfecho desconheciam, que a França poderá escapar disso.
Gilles
Manceron (fonte: https://entreleslignesentrelesmots.wordpress.com/2024/08/18/les-80-ans-du-debarquement-de-provence-une-distorsion-infidele-a-lhistoire/)
1.
Jacques Frémeaux, «A participação dos contingentes ultramarinos nas
operações militares (1943-1944)», em Les armées françaises pendant la Seconde
Guerre mondiale, Instituto de História dos Conflitos Contemporâneos, 1986, p.
355-363.
2. Estado
das perdas, 1ª DMI, 1º gabinete, processo 4, SHD 11 P7 e CHETOM (Fréjus), 15 H
153, processos 1, 3 e 4. Citado pelo historiador Grégoire Georges-Picot,
co-comissário da exposição «Os nossos libertadores – Toulon 1944», Museu de
Arte de Toulon, 2003.
3.
Belkacem Recham, Os muçulmanos argelinos no exército francês
(1919-1945), l’Harmattan, 1996, p. 255
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Fonte: Les 80 ans du débarquement de Provence, une distorsion infidèle à l'histoire - Madaniya
Este artigo foi traduzido para
Língua Portuguesa por Luis Júdice
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