sábado, 2 de agosto de 2025

Os 80 anos do desembarque na Provença, uma distorção infiel à história

 


Os 80 anos do desembarque na Provença, uma distorção infiel à história

A REDACÇÃO, 10 DE JUNHO DE 2025 

EM  DécryptageFrance

Por Gilles Manceron, historiador, especialista em história colonial da França. Com a gentil autorização da revista Golias. https://www.golias-editions.fr/  

Nota da redacção de https://www.madaniya.info/

Se a narrativa do desembarque aliado de 6 de Junho de 1944 não é contestada – uma operação ocidental para libertar a Europa Ocidental do jugo nazi –, o mesmo não se pode dizer do desembarque no sul de França, onde o presidente Emmanuel Macron, em Agosto de 2024, procurou valorizar a contribuição das tropas coloniais da África negra, em detrimento dos artilheiros argelinos, cuja contribuição foi decisiva para a libertação de Marselha, apesar de terem sofrido 56% das baixas deste corpo expedicionário.

 

Fim da nota.


Retrospectiva sobre a mistificação de Emmanuel Macron

 

Artigo publicado na revista Golias hebdo N.º 828, de 22 a 28 de Agosto de 2024.

Aquando da comemoração oficial dos 80 anos do desembarque na Provença, organizada por Emmanuel Macron na necrópole de Boulouris-sur-mer, em Saint-Raphaël, o único chefe de Estado estrangeiro presente foi o camaronês Paul Biya, e todos os discursos e comentários sobre os soldados que participaram nesse desembarque referiram-se essencialmente aos africanos subsaarianos. Na realidade, os originários da África negra estavam praticamente ausentes deste episódio histórico, assim como outros que também foram mencionados, como os antilhanos ou os combatentes do Pacífico. A maioria dos soldados deste desembarque era proveniente do Magrebe, principalmente da Argélia.

No entanto, em 15 de Agosto, notou-se a ausência de qualquer representante da Argélia. Emmanuel Macron, ao distorcer os factos históricos, preferiu evitar prestar uma verdadeira homenagem aos numerosos combatentes argelinos desse desembarque na Provença, mesmo que estes tenham sofrido 56% das baixas desse corpo expedicionário 1.

O historiador Jacques Frémeaux estima em 350 000 homens o exército que desembarcou nas praias do Var, e entre 200 000 e 250 000 o número de soldados originários dos três países do Magrebe recrutados entre 1943 e 1945 pelo exército francês, dos quais 120 000 a 150 000 eram provenientes apenas da Argélia 2.

Estas tropas foram inicialmente mobilizadas para libertar a Córsega, onde sofreram 4000 mortos e 15 600 feridos, e depois combateram na Sicília e no sul da Itália, no seio de um corpo expedicionário francês equipado pelos Estados Unidos que contava com cerca de 60 000 homens, a maioria dos quais eram indígenas coloniais, provenientes na sua maioria da Argélia.

Os arquivos do exército fazem uma distinção rigorosa entre os militares franceses e os «muçulmanos norte-africanos».

É daí que vem a expressão «franceses de origem europeia (FSE)», usada na época pelo exército colonial e que ainda hoje é usada pela extrema direita, sendo que a outra categoria usada pelo exército era a dos «franceses de origem norte-africana (FSNA)». Os seus salários eram diferentes: em 1944, as indemnizações para um chefe de família sem filhos eram de 750 F para um europeu e 240 F para um indígena 3.

Foi da Itália que, como retrata oportunamente o belo filme Indigènes, de Rachid Bouchareb (2006), esses soldados foram enviados para o desembarque no Var. Chegados à Toscana, as tropas voltaram em Julho de 1944, regressaram a Nápoles e embarcaram em Agosto para a Provença.

Não podemos deixar de constatar a distorção histórica operada por Emmanuel Macron nesta comemoração, uma vez que a ausência de qualquer representante da Argélia foi acompanhada por uma forte presença de convidados da África Subsaariana, o que não estava de forma alguma em conformidade com o evento comemorado. O presidente da República estava visivelmente envolvido no seu recente apoio, em desrespeito às resoluções das Nações Unidas e às posições anteriores da França, às reivindicações do Reino de Marrocos sobre o Saara Ocidental e às consequências que isso tem nas relações franco-argelinas. Assim, Emmanuel Macron só encontrou como chefe de Estado africano que aceitou intervir neste contexto o presidente camaronês Paul Biya, que é considerado um sobrevivente de um sistema da Françafrique fortemente questionado por outros Estados do antigo «pré-carré» da França neste continente, como o Mali, Burkina Faso, Níger e também o Senegal.

Porquê estudantes do ensino secundário de Thiaroye?

Entre os convidados desta comemoração, foram anunciados também alunos do ensino secundário vindos de Thiaroye, nos arredores de Dakar. Eles não tiveram a palavra e nenhuma explicação foi dada sobre o motivo da sua presença. No entanto, o massacre de um número indeterminado de soldados chamados «senegaleses», ou seja, provenientes de toda a África Ocidental e Equatorial Francesa, que chegaram a França na véspera da Segunda Guerra Mundial e que se viram prisioneiros dos alemães em campos de prisioneiros instalados por eles em solo francês e guardados por franceses, os Frontstalag, quando o seu regresso lhes foi imposto no Outono de 1944 e eles exigiram o pagamento dos seus salários, viveram, em 1 de Dezembro de 1944, um episódio dramático e mortífero, ocultado pelas autoridades francesas até hoje.

Um episódio ainda mais embaraçoso por ser emblemático da injustiça e da barbárie colonial.

Atribui-se a Emmanuel Macron a intenção de fazer, neste ano do 80.º aniversário deste massacre, ou mesmo antes, na sequência desta comemoração do desembarque na Provença, uma declaração no sentido de um reconhecimento oficial.

Seja como for, o pedido de verdade está em marcha por parte dos descendentes dos povos colonizados e é papel dos historiadores fazer com que ele seja satisfeito. O nosso país não escapará a isso.

É impossível evocar o destino dos soldados coloniais sem reflectir sobre a colonização.

Muitos ex-soldados coloniais tornaram-se posteriormente combatentes pela independência dos seus países. Seja na geração de Messali Hadj ou entre os fundadores da FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina). Conhece-se o caso do sargento Ahmed Ben Bella, que combateu com o Exército Africano até Monte Cassino e participou no desembarque da Provença, que se tornaria o primeiro presidente da República Argelina; outros são menos conhecidos, como Mostefa Ben Boulaïd e Krim Belkacem, que também começaram a sua carreira militar no exército francês.

É toda a história da França que deve ser assumida. Foi a junção, em Setembro de 1944, de unidades vindas do desembarque na Provença, que contribuíram para a libertação de Toulon e Marselha, com outras provenientes do desembarque na Normandia, que permitiu a libertação de todo o território. No entanto, entre Novembro de 1944 e a rendição alemã em Maio de 1945, os exércitos que libertaram a França a partir do Mediterrâneo foram objecto de uma «branqueamento» através da desmobilização e substituição dos soldados indígenas. E os artilheiros argelinos que regressavam à região de Sétif, de onde eram originários, descobriram no dia seguinte ao 8 de Maio de 1945 que as suas famílias tinham sido assassinadas com o consentimento das autoridades do país que eles tinham ajudado a libertar.

O drama de Thiaroye demonstra que a sociedade francesa ainda tem dificuldade em abordar essa história. A questão colonial dividiu a França livre, assim como os responsáveis pela Resistência interna ou pelo exército francês. A memória da participação dos soldados coloniais na libertação da França rapidamente se tornou um assunto embaraçoso. Era difícil reconhecer o estatuto de libertadores àqueles que continuavam a ser considerados indígenas nas colónias.

É livrando-se desse constrangimento e dessas contradições, assumindo plenamente o ideal de uma República anti-racista e descolonializada e de uma laicidade não falsificada, conformando-se às aspirações dos constituintes mais lúcidos de 1793, mas que apenas abriram caminhos cujo desfecho desconheciam, que a França poderá escapar disso.

Gilles Manceron (fonte: https://entreleslignesentrelesmots.wordpress.com/2024/08/18/les-80-ans-du-debarquement-de-provence-une-distorsion-infidele-a-lhistoire/)

1.    Jacques Frémeaux, «A participação dos contingentes ultramarinos nas operações militares (1943-1944)», em Les armées françaises pendant la Seconde Guerre mondiale, Instituto de História dos Conflitos Contemporâneos, 1986, p. 355-363.

2.        Estado das perdas, 1ª DMI, 1º gabinete, processo 4, SHD 11 P7 e CHETOM (Fréjus), 15 H 153, processos 1, 3 e 4. Citado pelo historiador Grégoire Georges-Picot, co-comissário da exposição «Os nossos libertadores – Toulon 1944», Museu de Arte de Toulon, 2003.

3.    Belkacem Recham, Os muçulmanos argelinos no exército francês (1919-1945), l’Harmattan, 1996, p. 255

 

A Redacção

Madaniya - Cívica e cidadã. Madaniya orgulha-se da responsabilidade de acolher na sua redacção opositores democráticos no exílio, investigadores, escritores, filósofos provenientes de África, dos países do Golfo, do Médio Oriente e da América Latina, cuja contribuição será feita, para aqueles que assim o desejarem, sob o selo do anonimato, através de pseudónimos.

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Fonte: Les 80 ans du débarquement de Provence, une distorsion infidèle à l'histoire - Madaniya

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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