Será que os meios de comunicação ocidentais estão a favorecer a China? Um realinhamento de alianças?
6 de Novembro de 2025 Robert Bibeau
Por Arnaud Bertrand – 25 de Outubro
de 2025 – Fonte: Blog de l’auteur
Algo notável está a acontecer: pouco a pouco, a media ocidental parece estar a abandonar os seus infames vieses editoriais sobre a " China maligna ".
Essa observação não se
baseia em mera intuição; temos dados empíricos que a comprovam. Um analista
chinês conduziu
recentemente um estudo comparando a cobertura da China
nos principais veículos de comunicação ocidentais entre 2019 e 2025: em 2019,
quase 70% dos artigos sobre a economia, a tecnologia ou o meio ambiente da
China tinham um tom negativo, mas, em 2025, a proporção de artigos negativos
caiu para cerca de 40%, com aumentos significativos na cobertura neutra e
positiva.
Até mesmo a revista The Economist, famosa pela manchete «Bad China», que prevê, de forma engraçada, o colapso da China
quase todos os anos nas últimas três décadas, intitulou a sua última
edição de " Porque é que a China está a vencer a guerra comercial ",
explicando no artigo que acompanha a matéria que a China está
" no topo " e a
mudar o mundo. Uma reviravolta narrativa incrível para qualquer pessoa
familiarizada com a sua linha editorial.
O mesmo acontece com a BBC ,
um meio de comunicação infame por usar um filtro cinza " sombrio " nas fotos
da China que transmite para lhes dar uma aparência mais distópica.
Recentemente, a própria BBC publicou um vídeo na sua conta em chinês, a X, mostrando a paisagem
invernal de Xinjiang, descrevendo-a como " linda "
e " como um mundo branco prateado " —
um contraste gritante com a sua representação negativa anterior da região. Como
outro exemplo, eles lançaram recentemente um vídeo de sete minutos intitulado " DeepSeek, TikTok, Temu: Como a China está a assumir a liderança em
tecnologia ",
elogiando o rápido desenvolvimento tecnológico da China.
Porque é que isso está a acontecer? É uma
anomalia temporária ou estamos a testemunhar uma tendência de longo prazo? Eu
diria que o que impulsiona essa mudança é simples: a lógica estrutural da
multipolaridade. E ela não vai desaparecer.
A multipolaridade cria pressão estrutural.
Como muitos leitores já sabem, morei na
China entre 2015 e 2023 e ficou imediatamente claro para mim que o abismo entre
a narrativa ocidental e a realidade observável era impressionante.
A media ocidental retratava a China como
um regime distópico, um anacronismo totalitário que não havia recebido o
memorando sobre o fim da história e que inevitavelmente entraria em colapso ou
se liberalizaria. A maneira como os políticos ocidentais aparentemente agiam em
relação à China — e isso permanece surpreendentemente verdadeiro até hoje — era
permeada por um moralismo performático e condescendente que satisfazia o
público interno, ao mesmo tempo que desagradava Pequim, sem ter qualquer efeito
sobre a mudança material de poder em curso.
Pior ainda, perpetua uma mitologia
ilusória que impede o Ocidente de entender a profunda mudança em curso, à sua
própria custa. Um ponto que frequentemente levanto — porque acredito
profundamente ser verdade — é que a propaganda anti-chinesa, de muitas
maneiras, na verdade beneficia a China, construindo uma China fictícia na mente
ocidental tão distante da China real que os formuladores de políticas não
conseguem formular respostas eficazes — eles ficam aprisionados numa caricatura
enquanto o país real obtém uma vantagem irreversível no âmbito material.
De facto, a realidade que vivenciei no
terreno não poderia ter sido mais diferente do que aquela que eu lia na media no
meu país: a China que vi estava a passar por um verdadeiro renascimento, um
país a avançar a um ritmo impressionante, ultrapassando gradualmente o Ocidente
em áreas cruciais. A assimetria de conhecimento foi o que mais me impressionou:
eu encontrava constantemente profissionais
chineses que haviam estudado em Oxford, Stanford ou Sciences Po, que falavam
inglês ou francês fluentemente e que tinham um profundo conhecimento do
Ocidente. Mas, durante longas viagens pela China, mesmo em grandes cidades, eu
passava semanas sem ver outro ocidental. Eles haviam investido em entender-nos.
Nós não os considerávamos dignos de compreensão.
Uma condescendência estarrecedora. Um país
de 1,4 milhar de milhão de pessoas, com uma classe média de cem milhões a desfrutar
de um padrão de vida comparável, ou às vezes até superior, ao da Europa, e
ainda assim o nosso discurso permanece preso a um orientalismo digno do século
XIX, como se ainda estivéssemos a categorizar tribos exóticas que precisam de
tutela ocidental. Cheguei à China acreditando que os seus cidadãos eram
doutrinados pela propaganda estatal. Parti certo de que éramos muito mais
espertos em relação à propaganda, o nosso pensamento supremacista e
condescendente a isolar-nos da realidade. Cometemos um erro crucial: pensamos
que os nossos próprios pronunciamentos morais constituíam análise estratégica.
Tudo isso é relativamente inofensivo num
mundo onde a diferença de poder é tal que não precisa realmente entender os
outros; não precisa entender os pensamentos ou preocupações de alguém se puder
simplesmente dobrá-los à sua vontade. Mas num mundo multipolar, cuja própria
definição é a de múltiplos polos de poder que não podem submeter-se uns aos
outros, a equação muda radicalmente; os mal-entendidos deixam de ser
inofensivos e tornam-se suicidas.
As acções do governo Biden contra a China
são um exemplo muito concreto disso. Recentemente, chamou-me a
atenção uma publicação de Rush Doshi (foto
abaixo), que actuou no governo Biden como Director Adjunto Sénior do Conselho
de Segurança Nacional (CSN) da Casa Branca para a China e Taiwan e, como tal,
foi um dos principais arquitectos de muitas das políticas de Biden em relação à
China, incluindo os infames controlos de exportação de semi-condutores
avançados.
Postagem de Rush Doshi
no X em 25 de Outubro de 2025
Neste post, Doshi refere-se àqueles que
criticaram os controlos de exportação dos EUA que ele projectou como
" robôs RPC ". Isso é
característico da arrogância e do desprezo que o governo Biden tinha pela
perspectiva da China (e, incidentalmente, da Rússia) e causou imenso prejuízo
aos Estados Unidos. Quando se tem tão pouco respeito pelo oponente a ponto de
descartar as suas preocupações e comentários sumariamente como se fossem de
" robôs " sem cérebro, não se
deve surpreender quando as políticas se voltam contra eles de forma
catastrófica. Os controlos de exportação de semi-condutores são um exemplo
perfeito: é claro que a China teria grandes preocupações com eles, é claro que
os veria como uma tentativa de sufocar o seu desenvolvimento e, é claro, faria
tudo o que pudesse para impedi-los (o que fez com sucesso, à custa dos
EUA: a Nvidia caiu de 95% de
participação no mercado chinês para 0%). Mas, como os formuladores de políticas
americanas como Doshi vivem numa bolha onde qualquer preocupação chinesa é
inútil, já que são apenas " robôs " estúpidos
que agem por conta própria, eles ignoraram tudo isso.
Sempre achei extremamente instrutivo ler
textos antigos de missionários jesuítas na China, como Matteo Ricci, pois eles
oferecem uma visão fascinante de como costumávamos interagir entre civilizações
antes que a diferença de poder se tornasse tal que o entendimento mútuo se
tornasse opcional.
Os jesuítas chegaram a uma China mais
rica, mais populosa e tecnologicamente comparável à Europa. Este mundo, para
todos os efeitos práticos, era multipolar e, na ausência de um desequilíbrio de
poder esmagador, tínhamos que interagir com outros " polos "
em termos de relativa igualdade, o que levava a uma genuína troca intelectual.
Os missionários aprenderam chinês, estudaram os clássicos confucionistas e
adaptaram a teologia católica aos contextos locais — não por um
multiculturalismo iluminado, mas por necessidade. Eles entenderam o que nós
esquecemos: que quando não se pode impor a sua própria estrutura, precisamos
aprender a operar dentro da estrutura de outra pessoa.
Essa é a lógica que retorna às relações
internacionais: um mundo onde o Ocidente não possui mais o poder avassalador
para impor as suas preferências, forçando um retorno às antigas artes
diplomáticas de acomodação, tradução e negociação baseadas em interesses, e não
em valores.
Acredito que, fundamentalmente, essa é a
principal dinâmica estrutural subjacente à mudança gradual de tom na media
ocidental em relação à China: à medida que a multipolaridade se torna inegável,
até mesmo os veículos de comunicação mais ideologicamente comprometidos
precisam, a contragosto, adaptar a sua cobertura para se manterem ancorados na
realidade. Não por uma iluminação repentina, mas por necessidade — a mesma
necessidade que levou os missionários jesuítas a aprenderem mandarim.
Há também o facto, é claro, de que as
instituições de media, com todos os seus vieses, dependem, em última análise,
da sua credibilidade. Quando os seus leitores podem ver em primeira mão os
avanços da China em IA, redes ferroviárias de alta velocidade e domínio em
energia verde — através de viagens, do TikTok, dos produtos que compram — a
cobertura negativa implacável auto-destrói-se. A confiança na media ocidental
já está no seu nível mais baixo, e as suas manchetes sobre a China com a frase
agora viral "...mas a que custo? " —
sistematicamente acrescentada a qualquer desenvolvimento positivo — tornaram-se
tão previsíveis que viraram piada recorrente na internet. A auto-depreciação
não é exactamente uma estratégia editorial sustentável se se quiser sobreviver
como empresa de media.
O fim do financiamento americano
Outro factor que não deve ser ignorado é o
desmantelamento, pelo governo Trump, de grandes porções do aparelho de soft power dos
EUA , incluindo a USAID. A agência financiava o treino e o apoio a 6.200 jornalistas em 707 organizações de notícias , destinando
centenas de milhões de dólares especificamente para esse fim. Da noite para o
dia, esse financiamento desapareceu. Isso certamente terá algum impacto. A
organização Repórteres Sem Fronteiras chegou a afirmar que essa
decisão " mergulha o jornalismo no caos mundial ".
É claro que sei que a maioria dos veículos
de comunicação que recebem financiamento da USAID ou de outras fontes
americanas de " soft power " não
acatam ordens editoriais directas (embora existam alguns tipos de financiamento americano em que
isso acontece literalmente), mas é dolorosamente óbvio que as estruturas de
financiamento naturalmente incentivavam certos tipos de cobertura: dada a
rivalidade entre EUA e China, havia fortes incentivos para limitar qualquer
cobertura positiva da China se se quisesse renovar o seu financiamento
americano.
Em todo o caso, a questão não é se era
justificado ou mera propaganda — o facto é que existiu, foi substancial e agora
acabou. E quando a estrutura de incentivos que recompensava certos tipos de
reportagem sobre a China entra em colapso, faz sentido que as manchetes dos
jornais mudem de acordo, de modo que vemos a media ocidental a tornar-se um
pouco mais “ amigável ” à China
justamente no momento em que a sua maior fonte de financiamento para
reportagens dissidentes desaparece. Correlação não implica causalidade, mas vale
a pena notar que as correlações se alinham precisamente neste caso.
O efeito "SDT"
Um último factor, mas não menos
importante, que não deve ser ignorado é a chamada " síndrome de transtorno de Trump ", que – sejamos realistas –
existe na grande media, especialmente na media liberal.
É difícil quantificar ou precisar, mas é
razoável supor que isso deva desempenhar um papel na forma como a media
ocidental repensa a sua hierarquia de " ameaças ":
se Trump é visto como a ameaça mais poderosa aos valores liberais, isso
necessariamente recalibra a percepção de outros actores. A China começa a
parecer muito mais razoável e menos ameaçadora em comparação. O inimigo do meu
inimigo torna-se, se não exactamente um amigo, pelo menos merecedor de uma
cobertura mais benevolente.
Isso deveria ser ainda mais verdadeiro,
visto que a China está, na verdade, muito mais alinhada com certas prioridades
liberais tradicionais do que Trump. Quando Trump retirou os EUA do Acordo de
Paris sobre o Clima, a China permaneceu e posicionou-se como líder climática.
Quando Trump cortou o financiamento da OMS, a China aumentou o seu apoio.
Quando Trump impôs tarifas caóticas e ameaçou os seus aliados com guerras
comerciais, a China discursou em Davos defendendo o livre comércio e o multi-lateralismo.
Isso cria uma dissonância cognitiva bastante cómica para a media liberal e, em
algum momento, algo precisa ceder: não se pode argumentar simultaneamente que
Trump representa o caos e o declínio da civilização enquanto se retrata a China
— que se opõe a muitas das suas medidas mais desestabilizadoras — como uma
ameaça igualmente apocalíptica. O raciocínio não se sustenta.
Isso sem dúvida desempenha um papel, em
certa medida, quando a cobertura da China se torna menos urgente em termos
existenciais, mais disposta a reconhecer nuances e mais contextualizada nas
suas críticas.
Será esta uma tendência a longo prazo?
Então, aonde é que tudo isso nos leva? Dos
três factores que descrevi, um é temporário e dois são estruturais – o que lhe
diz tudo o que precisa saber para determinar se essa mudança será duradoura.
A síndrome de transtorno de Trump vai
diminuir, ainda que apenas porque o homem tem 79 anos e deixará o cargo de uma
forma ou de outra, mas e os outros dois factores? Esses não vão mudar. A
realidade multipolar que exige entendimento mútuo é irreversível — a ascensão
da China é um facto consumado, não uma flutuação temporária. E o
desmantelamento do aparelho de soft power americano, embora teoricamente
reversível, não mostra sinais de reconstrução: reflecte um profundo esgotamento
da liderança mundial americana e os custos que a acompanham. Uma futura
administração poderia reverter essa tendência? Teoricamente. Mas a economia
política que sustentou o soft power americano durante décadas mudou
fundamentalmente. Esse mundo não vai voltar.
Na verdade, a mudança que estamos a testemunhar
provavelmente aprofundar-se-á em vez de se reverter. O custo de não compreender
a China — ao descartar as suas preocupações com o “robô RPC”
e recorrer a caricaturas — tornou-se proibitivo. O Ocidente está a reaprender o
que os seus missionários jesuítas costumavam entender: quando não pode impor a sua
estrutura, precisa aprender a operar dentro da de outra pessoa. Não por virtude,
mas por necessidade. E a necessidade, ao contrário dos ventos políticos, não
muda de direcção.
Arnaud Bertrand
Traduzido por Wayan, revisto por Hervé,
para o The Saker Francophone. Sobre: A media ocidental está a tornar-se mais favorável à
China? | The Saker Francophone
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice

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