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YSENGRIMUS — A moeda emana historicamente da troca.
Quando Mohamed transportou uma caravana para Khadîdja na Síria romana, ele foi
pago, pelo seu trabalho metódico e subtil, em camelos. Durante muito tempo, os
povos nórdicos pagaram por certos bens e serviços em peles de castores ou
esquilos. No México, desde os primeiros conquistadores, as pessoas pagavam em
grãos de cacau. Camelos, peles de animais, cacau permanecem bens altamente
susceptíveis ao desgaste, a serem recuperados em termos de valor em uso, sem
circulação adicional como objecto de troca. Em tais situações de monetarização de
tendências, permanecemos basicamente no nível de troca pontual. Mohamed não
trocará os camelos recebidos por pagamento. Ele os usará na sequência do seu
trabalho de condutor de caravanas.
Queríamos que a escassez de uma mercadoria fundasse a génese
da sua monetarização. Para evitar que essa análise se limitasse ao ouro e à
prata, invocámos as especiarias. Sal, pimenta e diversas especiarias há muito
são usadas como moeda. Queríamos explicar esse facto pela sua escassez no
mercado, por outro lado muito real (especialmente no caso da pimenta e das especiarias,
muitas vezes vindas de longe e adquiridas com muito esforço). Ora existe nesta
explicação da monetarização das especiarias pela sua raridade uma grande parte de
anacronismo. A sensibilidade moderna apercebe o sal, a pimenta e as especiarias
como um condimento, uma espécie de
produto culinário de luxo, portanto, pouco útil e pouco presente socialmente
(como o seriam as jóias de prata e ouro). Portanto, o que deve ser entendido
claramente e que não seja esquecida nos dias de hoje é que, no passado, sal,
pimenta e especiarias não eram um condimento, mas um tempero, ou seja, literalmente, o que permitiu que a carne atravessar as estações. Na ausência de
frigoríferos e congeladores, a única maneira de fazer as carnes durarem era
tratá-las, cuidadosa e metodicamente, com especiarias ou sal.
Isso permitiu-lhes permanecer comestíveis conservando-as ou
secando-as adequadamente. Se nos acostumámos, etno-culturalmente, a carnes
salgadas, apimentadas e temperadas, é porque, durante séculos, foi assim que
preservámos esse tipo de alimento. Assim, uma família comum precisava de uma
boa quantidade de sal, pimenta ou temperos para que os seus alimentos de carne
não apodrecessem e se perdessem. Havia, pois, uma questão importante de sobrevida útil que fazia da corrida às especiarias uma questão tão obstinada. Os salários
de sal eram tão vitais para o empregado quanto os camelos para Mohamed. Ainda
estávamos fundamentalmente numa dinâmica de troca de valores de uso. A
ideologia contemporânea das especiarias como condimento e produto de luxo
enfraqueceu um pouco a compreensão desse facto histórico. Não foi a escassez
deles que monetizou os temperos, mas o facto de atenderem a uma necessidade
importante.
Vamos então ao ouro. Muito se tem evocado as suas
características supostamente irracionais para explicar a sua monetarização. O
ouro é raro, o ouro brilha ao sol, o ouro é um sinal ostentativo de riqueza na
forma de jóias, adornos e decorações. De certa forma, tratamos, mais ou menos,
o ouro como pérolas. Quando Cleópatra dissolve pérolas no vinagre e as bebe,
ela manifesta absoluta ostentação opulenta. Ela apropria-se de um objecto raro,
inútil, caro e precioso, sem outra função senão a de adorno, e ingere-o,
atribuindo-lhe um valor de uso trivial, fictício e parasita como expressão e
demonstração mais explícita e mais conspícua da sua opulente arrogância. Essa é
realmente a função político-histórica das pérolas (mas não os diamantes, eh,
que, duros e abrasivos, são usados na indústria). Então, não vamos confundir
tudo e perguntemos-nos: e o que é feito do ouro?
Queríamos que o ouro fosse um metal inútil, muito macio. Ao
contrário dos metais naturais (ferro) ou ligas (bronze), seria difícil usar no
fabrico de armas e ferramentas. Esse desenvolvimento deve ser cuidadosamente
avaliado. A relativa suavidade do ouro é um defeito se for para fazer um sabre
ou uma pá, mas torna-se uma qualidade quando é para fazer uma agulha ou um
dedal. Pequenas ferramentas, instrumentos delicados, garfos, pinças, chávenas,
copos, talheres (argenterie – NdT), etc. requerem um metal um pouco mais macio para
poder ser modelado com toda a precisão necessária. Isto naturalmente postula um
tipo de civilização de classes que é mais subtil, mais refinada, mais
aperfeiçoada, mais orientada para certos detalhes domésticos particulares.
Entre os mongóis, uma vara de madeira era mais preciosa do que um fio de ouro.
A madeira, extremamente rara nos países das estepes, foi usada para apoiar a
estrutura portátil dos yurts. O ouro
não era muito usado, já que os mongóis, nómadas e guerreiros, procuravam
sobretudo metais para fabricar armas e ferramentas, e se adornavam
principalmente com peles ... as estepes geladas assim o obrigam. Os primeiros
mongóis não guardavam o ouro dos saques. Em vez disso, trocavam-no com povos
que eram mais pretensiosos (gesteux)
do que eles, por
mercadorias que lhes eram mais úteis, sem pôr em risco a sua riqueza ou o seu
poder como futuros conquistadores do mundo.
A suavidade (muito relativa) e a maleabilidade do ouro não
são o seu defeito, mas a sua qualidade inerente. Quando se tratava de
constituir numerário, tivemos que optar por um objecto indestrutível (excluiu-se
o sal e os grãos de cacau), mas intimamente maleável à partida. A ourivesaria (orfèvrerie) havia
transformado o ouro em algo mais leve que a pedra, mais sólido que o vidro e
mais flexível que o bronze ou o ferro. Uma pequena rodela de ouro é forte o
suficiente para não se dissolver, mas à partida o suficiente maleável para
escrever ou gravar uma face em miniatura nela. Vidro, bronze e ferro não se
prestam tanto a isso. Não nos lembramos o suficiente que, desde Nabucodonosor
aos Luíses e Napoleões, não esquecendo os Péricles, os Césares e os Meroveas,
as autoridades políticas sempre exploraram o dinheiro como timbre de
propaganda. Deste ponto de vista, que ninguém se iluda, a moeda de ouro é como
uma faixa de pista de hóquei no gelo ou
uma carroçaria de um carro de corridas. Pincelamo-la até à éfige de uma taça com
a imagem de um grupo de figuras maléficas que se relacionam entre si, perfeitamente parasitárias e independentes da
sua função desportiva... ou comercial.
A antiga estabilidade do dinheiro metálico sintetiza-se,
portanto, de forma simples e ridícula num conjunto claramente detectável de
considerações práticas: sólido o suficiente para durar, inerte o suficiente
para não retornar rapidamente ao seu valor de uso (não comestível, por exemplo),
macio enquanto outros metais o ultrapassem para forjar as grandes ferramentas, suficientemente
maleável para o poderem cobrir com inscrições finas e detalhadas,
razoavelmente discerníveis e reconhecíveis. Não há nada de mágico, sagrado ou
atávico nisso. Tanto pelas características qualitativas do ouro. Quanto à
dimensão quantitativa crucial dos metais preciosos como medidas de valor, Marx falou-nos
sobre isso muito melhor do que ninguém.
Como o próprio tempo
de trabalho geral não admite senão diferenças quantitativas, é necessário que o
objecto, que deve ser considerado como sua encarnação específica, seja capaz de
representar diferenças puramente quantitativas, o que supõe a identidade, a uniformidade
da qualidade. Essa é a primeira condição para que uma mercadoria cumpra a
função de medir valor. Se, por exemplo, eu avaliar todos os produtos em bois,
peles, cereais etc., devo, de facto, medir na carne média ideal, na pele média
ideal, uma vez que existem diferenças qualitativas de carne bovina para carne
bovina, de cereais para cereais, de pele para pele. O ouro e a prata, pelo
contrário, sendo corpos simples, são sempre idênticos a si mesmos, e
quantidades iguais desses metais representam valores de igual magnitude. A outra
condição a ser cumprida pelas mercadorias destinadas a servir como um equivalente
geral, uma condição que decorre directamente da função de representar
diferenças puramente quantitativas, é que se pode dividi-lo em quantas fracções
se deseja e que essas fracções podem ser reunidas novamente para que o dinheiro
de conta também possa ser representado de forma tangível. O ouro e a prata
possuem essas qualidades ao mais alto nível.
(Karl Marx, O Capital)
A especialização das peças de ouro em moeda repousa tanto num
conglomerado de condições que são práticas e não substancialmente inerentes ao
elemento químico Ouro (Au) que a
substituição do dinheiro metálico pelo papel moeda foi historicamente
realizada, sem sobressalto transaccional particular. O factor quantitativo
(tanto em termos de divisão fraccionaria fina quanto de amplificação faraónica
das quantidades) prima cada vez mais profundamente, à medida que o dinheiro é
hiper-especializado, na sua função de meio de troca. Tanto é que até o
papel-moeda está a ser destruído pela roda da história. E, o mais importante,
um Luis de ouro hoje não tem qualquer valor monetário. É um objecto grande e
curioso para antiquários, que costuma ser mais caro como artefacto histórico do
que como uma pequena massa de ouro.
O velho fascínio irracional pelo ouro, perpetuado entre os nossos
contemporâneos, é menos anterior à sua antiga monetarização do que posterior a
esta. O ouro é uma matéria comum como tantas outras. Ela permite-nos fazer
coisas bonitas que são caras, mas é muito importante entender que as medalhas
de ouro olímpicas, os registos de ouro dos cantores pop e o número dourado
matemático nunca são mais do que variações metafóricas sobre uma das
resultantes históricas da conjuntura do desenvolvimento do ouro como simples
objecto cultural e técnico. É por isso que gostaria de dizer a todos os países
que têm reservas de ouro e a todos as excentricidades que enxameiam e se lançam
para o ouro como, por assim dizer, o chamado porto seguro: Séraphin Poudrier (Séraphin Poudrier – personagem popularizado pelo romance de Claude-Henri Grignon, “Um homem e o seu pecado”, publicado em 1933 – NdT), saia deste corpo.
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