sexta-feira, 29 de maio de 2020

A propósito do que monetariza o ouro





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YSENGRIMUSA moeda emana historicamente da troca. Quando Mohamed transportou uma caravana para Khadîdja na Síria romana, ele foi pago, pelo seu trabalho metódico e subtil, em camelos. Durante muito tempo, os povos nórdicos pagaram por certos bens e serviços em peles de castores ou esquilos. No México, desde os primeiros conquistadores, as pessoas pagavam em grãos de cacau. Camelos, peles de animais, cacau permanecem bens altamente susceptíveis ao desgaste, a serem recuperados em termos de valor em uso, sem circulação adicional como objecto de troca. Em tais situações de monetarização de tendências, permanecemos basicamente no nível de troca pontual. Mohamed não trocará os camelos recebidos por pagamento. Ele os usará na sequência do seu trabalho de condutor de caravanas.

Queríamos que a escassez de uma mercadoria fundasse a génese da sua monetarização. Para evitar que essa análise se limitasse ao ouro e à prata, invocámos as especiarias. Sal, pimenta e diversas especiarias há muito são usadas como moeda. Queríamos explicar esse facto pela sua escassez no mercado, por outro lado muito real (especialmente no caso da pimenta e das especiarias, muitas vezes vindas de longe e adquiridas com muito esforço). Ora existe nesta explicação da monetarização das especiarias pela sua raridade uma grande parte de anacronismo. A sensibilidade moderna apercebe o sal, a pimenta e as especiarias como um condimento, uma espécie de produto culinário de luxo, portanto, pouco útil e pouco presente socialmente (como o seriam as jóias de prata e ouro). Portanto, o que deve ser entendido claramente e que não seja esquecida nos dias de hoje é que, no passado, sal, pimenta e especiarias não eram um condimento, mas um tempero, ou seja, literalmente, o que permitiu que a carne atravessar as estações. Na ausência de frigoríferos e congeladores, a única maneira de fazer as carnes durarem era tratá-las, cuidadosa e metodicamente, com especiarias ou sal.

Isso permitiu-lhes  permanecer comestíveis conservando-as ou secando-as adequadamente. Se nos acostumámos, etno-culturalmente, a carnes salgadas, apimentadas e temperadas, é porque, durante séculos, foi assim que preservámos esse tipo de alimento. Assim, uma família comum precisava de uma boa quantidade de sal, pimenta ou temperos para que os seus alimentos de carne não apodrecessem e se perdessem. Havia, pois,  uma questão importante de sobrevida útil que fazia da corrida às especiarias uma questão tão obstinada. Os salários de sal eram tão vitais para o empregado quanto os camelos para Mohamed. Ainda estávamos fundamentalmente numa dinâmica de troca de valores de uso. A ideologia contemporânea das especiarias como condimento e produto de luxo enfraqueceu um pouco a compreensão desse facto histórico. Não foi a escassez deles que monetizou os temperos, mas o facto de atenderem a uma necessidade importante.

Vamos então ao ouro. Muito se tem evocado as suas características supostamente irracionais para explicar a sua monetarização. O ouro é raro, o ouro brilha ao sol, o ouro é um sinal ostentativo de riqueza na forma de jóias, adornos e decorações. De certa forma, tratamos, mais ou menos, o ouro como pérolas. Quando Cleópatra dissolve pérolas no vinagre e as bebe, ela manifesta absoluta ostentação opulenta. Ela apropria-se de um objecto raro, inútil, caro e precioso, sem outra função senão a de adorno, e ingere-o, atribuindo-lhe um valor de uso trivial, fictício e parasita como expressão e demonstração mais explícita e mais conspícua da sua opulente arrogância. Essa é realmente a função político-histórica das pérolas (mas não os diamantes, eh, que, duros e abrasivos, são usados ​​na indústria). Então, não vamos confundir tudo e perguntemos-nos: e o que é feito do ouro?

Queríamos que o ouro fosse um metal inútil, muito macio. Ao contrário dos metais naturais (ferro) ou ligas (bronze), seria difícil usar no fabrico de armas e ferramentas. Esse desenvolvimento deve ser cuidadosamente avaliado. A relativa suavidade do ouro é um defeito se for para fazer um sabre ou uma pá, mas torna-se uma qualidade quando é para fazer uma agulha ou um dedal. Pequenas ferramentas, instrumentos delicados, garfos, pinças, chávenas, copos, talheres (argenterie – NdT), etc. requerem um metal um pouco mais macio para poder ser modelado com toda a precisão necessária. Isto naturalmente postula um tipo de civilização de classes que é mais subtil, mais refinada, mais aperfeiçoada, mais orientada para certos detalhes domésticos particulares. Entre os mongóis, uma vara de madeira era mais preciosa do que um fio de ouro. A madeira, extremamente rara nos países das estepes, foi usada para apoiar a estrutura portátil dos yurts. O ouro não era muito usado, já que os mongóis, nómadas e guerreiros, procuravam sobretudo metais para fabricar armas e ferramentas, e se adornavam principalmente com peles ... as estepes geladas assim o obrigam. Os primeiros mongóis não guardavam o ouro dos saques. Em vez disso, trocavam-no com povos que eram mais pretensiosos (gesteux) do que eles,  por mercadorias que lhes eram mais úteis, sem pôr em risco a sua riqueza ou o seu poder como futuros conquistadores do mundo.

A suavidade (muito relativa) e a maleabilidade do ouro não são o seu defeito, mas a sua qualidade inerente. Quando se tratava de constituir numerário, tivemos que optar por um objecto indestrutível (excluiu-se o sal e os grãos de cacau), mas intimamente maleável à partida. A ourivesaria (orfèvrerie) havia transformado o ouro em algo mais leve que a pedra, mais sólido que o vidro e mais flexível que o bronze ou o ferro. Uma pequena rodela de ouro é forte o suficiente para não se dissolver, mas à partida o suficiente maleável para escrever ou gravar uma face em miniatura nela. Vidro, bronze e ferro não se prestam tanto a isso. Não nos lembramos o suficiente que, desde Nabucodonosor aos Luíses e Napoleões, não esquecendo os Péricles, os Césares e os Meroveas, as autoridades políticas sempre exploraram o dinheiro como timbre de propaganda. Deste ponto de vista, que ninguém se iluda, a moeda de ouro é como uma faixa de pista de hóquei  no gelo ou uma carroçaria de um carro de corridas. Pincelamo-la até à éfige de uma taça com a imagem de um grupo de figuras maléficas que se relacionam entre si, perfeitamente parasitárias e independentes da sua função desportiva... ou comercial.

A antiga estabilidade do dinheiro metálico sintetiza-se, portanto, de forma simples e ridícula num conjunto claramente detectável de considerações práticas: sólido o suficiente para durar, inerte o suficiente para não retornar rapidamente ao seu valor de uso (não comestível, por exemplo), macio enquanto outros metais o ultrapassem para forjar as grandes ferramentas, suficientemente maleável ​​ para o poderem cobrir com inscrições finas e detalhadas, razoavelmente discerníveis e reconhecíveis. Não há nada de mágico, sagrado ou atávico nisso. Tanto pelas características qualitativas do ouro. Quanto à dimensão quantitativa crucial dos metais preciosos como medidas de valor, Marx falou-nos sobre isso muito melhor do que ninguém.

Como o próprio tempo de trabalho geral não admite senão diferenças quantitativas, é necessário que o objecto, que deve ser considerado como sua encarnação específica, seja capaz de representar diferenças puramente quantitativas, o que supõe a identidade, a uniformidade da qualidade. Essa é a primeira condição para que uma mercadoria cumpra a função de medir valor. Se, por exemplo, eu avaliar todos os produtos em bois, peles, cereais etc., devo, de facto, medir na carne média ideal, na pele média ideal, uma vez que existem diferenças qualitativas de carne bovina para carne bovina, de cereais para cereais, de pele para pele. O ouro e a prata, pelo contrário, sendo corpos simples, são sempre idênticos a si mesmos, e quantidades iguais desses metais representam valores de igual magnitude. A outra condição a ser cumprida pelas mercadorias destinadas a servir como um equivalente geral, uma condição que decorre directamente da função de representar diferenças puramente quantitativas, é que se pode dividi-lo em quantas fracções se deseja e que essas fracções podem ser reunidas novamente para que o dinheiro de conta também possa ser representado de forma tangível. O ouro e a prata possuem essas qualidades ao mais alto nível.
(Karl Marx, O Capital)

A especialização das peças de ouro em moeda repousa tanto num conglomerado de condições que são práticas e não substancialmente inerentes ao elemento químico Ouro (Au) que a substituição do dinheiro metálico pelo papel moeda foi historicamente realizada, sem sobressalto transaccional particular. O factor quantitativo (tanto em termos de divisão fraccionaria fina quanto de amplificação faraónica das quantidades) prima cada vez mais profundamente, à medida que o dinheiro é hiper-especializado, na sua função de meio de troca. Tanto é que até o papel-moeda está a ser destruído pela roda da história. E, o mais importante, um Luis de ouro hoje não tem qualquer valor monetário. É um objecto grande e curioso para antiquários, que costuma ser mais caro como artefacto histórico do que como uma pequena massa de ouro.

O velho fascínio irracional pelo ouro, perpetuado entre os nossos
contemporâneos, é menos anterior à sua antiga monetarização do que posterior a esta. O ouro é uma matéria comum como tantas outras. Ela permite-nos fazer coisas bonitas que são caras, mas é muito importante entender que as medalhas de ouro olímpicas, os registos de ouro dos cantores pop e o número dourado matemático nunca são mais do que variações metafóricas sobre uma das resultantes históricas da conjuntura do desenvolvimento do ouro como simples objecto cultural e técnico. É por isso que gostaria de dizer a todos os países que têm reservas de ouro e a todos as excentricidades que enxameiam e se lançam para o ouro como, por assim dizer,  o chamado porto seguro: Séraphin Poudrier (Séraphin Poudrierpersonagem popularizado pelo romance de Claude-Henri Grignon, “Um homem e o seu pecado”, publicado em 1933 – NdT), saia deste corpo.




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