terça-feira, 5 de maio de 2020

Do reino do terror viral ao reino pelo terror governamental



 Por Khider Mesloub.

A pandemia de coronavírus trouxe para a boca de cena o terror da morte. O reinado da morte. Mas também a morte do reino. Hoje, a sociedade está aterrorizada. Graças à toda poderosa comunicação social, o terror foi instigado em todos os países, lares e corações. O terror da morte invadiu todos os cantos da vida. O terror governa a existência. Entramos na era do terror. Terror do estado, da polícia. O terror do desemprego, da escassez, da miséria. O terror do vírus. O terror da morte invadiu o mundo inteiro.

Nesta sociedade individualista, cada pessoa era vista como um obstáculo ao florescimento da liberdade de todos, uma ameaça ao desenvolvimento desenfreado dos desejos egoístas e egoísticos de todos. O espírito de cooperação colectiva já havia sido pulverizado há muito tempo pelo capitalismo concorrencial. Hoje, com a crise sanitária de Covid-19, tudo acontece como se o capitalismo estivesse em putrefacção, presa de protestos sociais colectivos, confrontado com o retorno do espírito de fraternidade expresso nos recentes movimentos de luta maciça realizados por indivíduos em busca dos ideais comunitários e federativos universais, a precisar desta pandemia para perpetuar o reinado do seu sistema individualista. O reino de cada qual por si mesmo. O reinado de cada qual  em sua casa. Longe das agitações políticas e sociais cultivadas com paixão nestes últimos anos por uma humilde humanidade oprimida regenerada, sublevada contra um sistema sanguinário e degenerado.

Contra toda a onda de solidariedade e o espírito colectivo de luta, nestes últimos anos em plena fermentação, não há nada melhor do que a política de disseminação do terror para quebrar essa dinâmica cooperativa mundial revolucionária. De Argel a Paris, de Beirute a Hong Kong, o espaço público nunca havia sido ocupado concomitantemente com tanto zelo revolucionário, determinação enérgica por transformação social, resolução de convulsão política, vontade popular de emancipação humana. Nunca a morte do reinado dos poderosos foi expressa com tanta exaltação popular. Os poderosos nunca viram a morte do seu poder com tanto terror. Mas, graças ao aparecimento do coronavírus, os governantes decidiram  vingar-se. Defender a sua ordem estabelecida, os seus interesses, os seus privilégios, mesmo por meio do terror. A disseminação do coronavírus, ilustrada pela sua falta de reacção antecipada e a sua incúria de gestão sanitária. A acreditar que a propagação da epidemia soluciona os seus negócios, serve os seus interesses.

Em período de fim de reinado das classes dominantes, como o que vive actualmente a burguesia presa do colapso do seu sistema económico, o terror é um complemento essencial para perpetuar o seu domínio vacilante. E a aparição do coronavírus é a oportunidade inesperada de estimular esse movimento generalizado de terror, o início da transição para o totalitarismo estatal.

Hoje, graças à pandemia, estamos a testemunhar a transformação da democracia liberal em "tirania sanitária", com o objectivo de construir o estado capitalista totalitário apresentado, neste contexto de crise e de terror, como o salvador supremo.

A guerra sempre foi uma fonte de terror. Não é inocente que a luta contra o novo "abençoado" vírus tenha sido colocada sob os auspícios da guerra por todos os estados. Simbolicamente, esse coronavírus incorpora, para as classes dominantes, o seu eterno inimigo mortal: o proletariado viral e letal, positivamente contaminado pela rebelião contagiosa. Isso explica a retórica de guerra proferida no anúncio da disseminação do coronavírus, resumida nesta sentença martelada por todos os chefes de Estado:

"Nós estamos em guerra". Contra o amigo deles, o coronavírus, ou o inimigo, o proletariado? Ora, contra um vírus, lutamos pacificamente, de maneira organizada e disciplinada, com as armas da ciência e da medicina, além de equipamentos sanitários, hoje em falta em todo o lado. Não com as armas do terror propagadas mecanicamente contra o povo, com a intenção de paralisar a sua vontade de autodefesa. O uso pelos governantes  de uma linguagem bélica serve para compensar a ausência de meios médicos. Ou melhor, aterrorizar as pessoas para lhe retirar qualquer veleidade de auto-organização. Para recuperar o controle das instituições estatais duramente contestadas pelo povo nos últimos anos. Para se assegurar com custos baixos de uma cura de rejuvenescimento político, redourar  o seu brasão moral denegrido. E, consequentemente, fortalecer o seu poder, re-mobilizar o povo numa união nacional propícia à restauração da paz social e à perpetuação do poder dos poderosos.

Além disso, a guerra nunca foi a expressão de uma fraternidade, mas o símbolo da violência. Ela nunca foi um fermento de solidariedade internacional, mas o vector de barbárie universal, do qual vemos os primeiros sinais neste mundo assolado por tensões nacionalistas. Toda essa retórica belicosa dos governantes trai o seu verdadeiro motivo. Os governantes não estão em guerra com o vírus. A prova: todos os estados são incapazes de alinhar, num espírito de solidariedade internacional, munições médicas e exércitos médicos para lutar contra o coronavírus. Esses instrumentos de saúde que eles desmontaram e sacrificaram em nome da austeridade orçamental. A guerra, hoje, fazem-na apenas contra as suas populações, que confinaram como vítimas da peste. Na verdade, nestes tempos difíceis, as classes dominantes estão numa guerra profiláctica contra os povos, estes últimos anos também "infectados" com o vírus da rebelião, segundo os poderosos. Como prova, desde o surgimento da pandemia , surfando habilmente sobre a emoção e o espanto despertados pelo terror da morte emboscada por detrás de cada possível portador do coronavírus, os governos não pararam de impor medidas repressivas, decretadas ao abrigo da gestão sanitária. Os governantes parecem não aplicar as restrições inerentes à contenção: eles trabalham no duro para retirar os nossos direitos, guilhotinar as nossas condições sociais, antes de sacrificar as nossas vidas na próxima iminente conflagração militar mundial, para impor a sua nova ( des) ordem mundial pelo terror.

Essa "aterrorização democrática" é a última forma de dominação de classe. A democracia não é uma abstracção moral, mas um modo de regular o capitalismo. Hoje, ele prova isso pela metamorfose do seu paradigma de regulação social e política. As leis de emergência são amplamente adoptadas sob o pretexto de combater o coronavírus. O endurecimento do arsenal jurídico é acompanhado por um aumento da repressão policial da população, que por ser infantilizada, é criminalizada. Estamos a testemunhar o fortalecimento autoritário da sociedade, parte de uma estratégia de controle social totalitário, sob o disfarce da gestão sanitária.

Mas estas medidas repressivas e estas leis anti-sociais, longe de se revelar "antidemocráticas", participam pelo contrário no bom funcionamento da democracia capitalista, baseada na exploração do trabalho e na representação parlamentar. Eles fazem parte de uma lógica repressiva global. Como prova: todas essas medidas repressivas e anti-sociais são votadas democraticamente por representantes eleitos pelos "cidadãos". A democracia ditatorial é a última forma séria de dominação política, operada na fase final do capitalismo num estado de apoplexia produtiva.

A amplificação da repressão não releva do fascismo, mas mais prosaicamente do exercício normalizado da democracia. A perpetuação de uma classe de exploradores e representantes políticos induz "naturalmente" a repressão das classes populares e as agitações sociais. O totalitarismo actual faz parte da lógica democrática burguesa. Não existe um estado com rosto humano e o estado de direito é uma farsa. O objectivo de todo o poder não é proteger as liberdades, o povo, mas trabalhar, mesmo com terror, para mantê-lo e perpetuá-lo.

Além disso, o "terror pelo vírus", destilado no corpo da sociedade e na cabeça da população, faz parte do programa da teoria do caos desenvolvida nos laboratórios dos Estados em guerra contra as classes dominadas. Diante da propagação do terror da morte, histericamente disseminada pela comunicação social às ordens, a única vacina capaz de apaziguar o medo das pessoas atordoadas e feridas, susceptível de oferecer socorro e protecção, deve ser fornecida pelo Estado providencial, proclamam em uníssono os clérigos do sistema. Depois de uma fase de desestabilização do estado, graças ao clima de Apocalipse complacentemente alimentado pelas classes dominantes, estamos a testemunhar hoje a deificação do estado, a sacralização deste salvador supremo, último bastião dos poderosos . Os povos ficarão eternamente em dívida com o Estado protector personificado pelas classes dominantes, os eternos detentores do poder. Os poderosos parecem ter sucesso na sua missão: prender as populações assustadas e atordoadas à carruagem do estado dos ricos, esse bom samaritano que ama o "seu" povo como o seu cofre-forte e o sustenta como a corda suporta o enforcado.

Mas hoje, após o espanto, propício à submissão aos poderosos, deve chegar o momento da reflexão para entender esse fenómeno de governança pelo terror, que permite aos estados reduzir as liberdades individuais e fortalecer a repressão dos movimentos sociais, sob o pretexto da luta contra o Covid-19.



Mesloub Khider


 





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