quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Balão de Ensaio de Pepe Escobar – A China prepara-se para a escalada da guerra imperial




Por Pepe Escobar.
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Comecemos pela história de uma Cimeira que estranhamente desapareceu.
A cada mês de Agosto, a direcção do Partido Comunista da China (PCC) converge para a cidade de Beidaihe, uma estação balnear à beira-mar a cerca de duas horas de Pequim, para discutir políticas sérias que depois se fundem em estratégias de planeamento a serem aprovadas aquando da sessão plenária do Comité Central do PCC, em Outubro.

O ritual Beidaihe foi estabelecido por nada mais, nada menos, do que o grande timoneiro Mao, que amava a cidade onde, não por acaso, o imperador Qin, o unificador da China no século III aC. AD, possuía um palácio.

Com 2020 a ser, até agora, um ano notório para viver perigosamente, não é surpreendente que no final de contas o encontro de Beidaihe não tenha lugar. Ainda assim, a invisibilidade de Beidaihe não significa que tal não aconteceu.

Acto 1, o facto de o primeiro-ministro Li Keqiang ter simplesmente desaparecido da vista do público durante quase duas semanas - depois que o presidente Xi presidiu a uma reunião crucial  (ver link – réunion cruciale) do Politburo no final de Julho, onde o que era apresentada era nada menos do que a estratégia de desenvolvimento da China para os próximos quinze anos.

Li Keqiang ressurgiu presidindo a uma sessão especial do todo-poderoso Conselho de Estado, assim como o principal ideólogo do PCC, Wang Huning - que por acaso é o número 5 do Politburo - se apresentou como convidado especial numa reunião da All China Youth Federation.

O que é ainda mais intrigante é que ao lado de Wang estava Ding Xuexiang, nenhum outro senão o chefe de gabinete do presidente Xi, assim como três outros membros do Politburo.

Neste jogo de sombras "vê-se ... não se vê ...", o facto de que todos eles apareceram juntos após uma ausência de quase duas semanas levou observadores chineses astutos a concluir que Beidaihe realmente aconteceu. Mesmo que nenhum sinal visível de acção política à beira-mar tenha sido detectado. A versão semi-oficial é que nenhuma reunião ocorreu em Beidaihe por causa da Covid-19.

No entanto, é o Acto 2 da peça que pode resolver a questão de uma vez para sempre. A agora famosa reunião do Politburo no final de Julho, presidida por Xi, na verdade selou a sessão plenária do Comité Central em Outubro. Tradução: os contornos do próximo roteiro estratégico já haviam sido aprovados por consenso. Não houve necessidade de se retirar para Beidaihe para mais amplas discussões.

Balões de ensaio ou política oficial ?

A trama complica-se quando tomamos em consideração uma série de balões de ensaio que começaram a flutuar alguns dias atrás em alguns meios de comunicação chineses.
Eis alguns dos pontos chave.

1.      Na frente da guerra comercial, Pequim não fechará empresas americanas que já operam na China. Mas as empresas que desejam entrar no mercado da finança, das tecnologias da informação, dos cuidados de saúde e da educação não serão aprovadas.

2.      Pequim não se livrará de toda a sua massa esmagadora de títulos do Tesouro americano de uma vez, mas - como já está a acontecer - o desinvestimento acelerará. No ano passado, foi de 100 biliões de dólares. No final de 2020, isso poderá chegar a 300 biliões de dólares.

3.       A internacionalização do yuan, igualmente previsível, será acelerada. Isso incluirá a configuração dos parâmetros finais para a compensação dos dólares americanos através do sistema chinês CHIPS – que prevê a possibilidade explosiva de que Pequim seja cortada do SWIFT pelo governo Trump ou por quem quer que esteja no poder na Casa Branca após Janeiro de 2021.

4.       No que é amplamente interpretado em toda a China como a frente da "guerra para todos os azimutes", principalmente a guerra híbrida, o PLA - Exército de Libertação do Povo - foi colocado em alerta de nível 3 - e todos os feriados foram cancelados para o que resta de 2020. Haverá uma campanha concertada para aumentar os gastos gerais de defesa para 4% do PIB e acelerar o desenvolvimento de armas nucleares. Os detalhes certamente surgirão na reunião do Comité Central de Outubro.

5.       A ênfase é colocada globalmente no princípio muito chinês da auto-suficiência e na construção do que pode ser definido como um sistema económico nacional de “dupla via”: a consolidação do projecto de integração da Eurásia em paralelo com um mecanismo global de regulação em em yuans.

Este esquema implica o que foi descrito assim:

… Abandonar firmemente todas as ilusões sobre os Estados Unidos e levar a cabo uma mobilização de guerra com o nosso povo faz parte integrante dessa dinâmica. Vamos promover vigorosamente a guerra para resistir à agressão americana (...) Usaremos uma mentalidade guerreira para dirigir a economia nacional (...) Preparem-se para a ruptura total das relações com os Estados Unidos.

Não se sabe até hoje se estes são apenas balões de ensaio difundidos na opinião pública chinesa ou decisões tomadas durante a Beidaihe "invisível". Assim, todos os olhares estarão voltados para o tipo de linguagem com que essa configuração alarmante virá revestida quando o Comité Central apresentar o seu planeamento estratégico em Outubro. Significativamente, isso acontecerá apenas algumas semanas antes das eleições nos Estados Unidos.

Tudo é uma questão de continuidade

Tudo o que foi dito acima reflecte um debate recente em Amesterdão sobre o que constitui a "ameaça" chinesa para o Ocidente. Aqui estão os pontos importantes:

1.       A China reforça constantemente o seu modelo económico híbrido - o que é uma raridade absoluta, à escala mundial: nem totalmente público, nem economia de mercado.

2.       O nível de patriotismo é impressionante: quando os chineses enfrentam um inimigo estrangeiro, 1,4 bilião de pessoas agem como um só homem.

3.       Os mecanismos nacionais têm uma força enorme: absolutamente nada impede o uso total dos recursos financeiros, materiais e humanos da China, uma vez que uma política é definida.
4.       A China estabeleceu a cadeia industrial de aprovisionamentos mais abrangente do planeta, sem interferência estrangeira se necessário - bem, quase, a questão dos semicondutores ainda precisa ser resolvida pela Huawei.

A China planeia não apenas em anos, mas em décadas. Os planos quinquenais são complementados por planos decenais e, como demonstrou a reunião presidida por Xi, planos para quinze anos. A Belt and Road Initiative (BRI) (as Rotas da Seda) é na verdade um plano para quase quarenta anos, projectado em 2013 para terminar em 2049.

Continuidade é o nome do jogo - quando consideramos que os Cinco Princípios (ver link - cinq principes) da Coexistência Pacífica (ver link - coexistence pacifique), desenvolvidos pela primeira vez em 1949 e depois estendidos por Zhou Enlai na Conferência de Bandung em 1955, estão gravados em pedra como as directrizes da Política externa da China.

O colectivo Qiao (ver link - collectif) , um grupo independente que estende o papel do qiao - "ponte" - ao estrategicamente importante huaqiao - "diáspora chinesa" - é relevante ao descobrir que Pequim nunca proclamou um modelo chinês como solução para os problemas mundiais. O que eles anunciam são soluções chinesas para as condições chinesas específicas.

Também é enfatizado que o materialismo histórico é incompatível com a democracia capitalista liberal impondo austeridade e mudança de regime aos sistemas nacionais, forçando-os a modelos preconcebidos.

Tal regressa sempre ao cerne da política externa do PCC: cada nação deve traçar uma via adaptada às suas condições nacionais.

E isso revela todos os contornos do que pode ser razoavelmente descrito como uma meritocracia centralizada com características confucionistas e socialistas: um paradigma de civilização diferente que a "nação indispensável" ainda se recusa a aceitar e certamente não abolirá ao praticar a guerra híbrida.

Pepe Escobar
Traduzido por jj, relido por Hervé para o Saker Francophone






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