quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Guerra sino-americana depois da eclosão da COVID-19: uma guerra multidimensional

 


30 de Setembro de 2020 Robert Bibeau  

Por Joseph H. Chung e Cheolki Yoon  Em  Mondialisation.ca


A rivalidade sino-americana intensificou-se desde a chegada de Trump à Casa Branca. Washington deu a impressão de que os Estados Unidos tinham vantagem sobre a China, com a possibilidade de travar esta última. A crise sanitária global pode, no entanto, constituir uma viragem no  jogo. Há razões para acreditar que o mundo da era pós-COVID-19 permitirá que a China afirme ainda mais a sua vantagem.


Graham Allison apresentou, no seu livro Towards War: America and China in Thucydides's Trap? (2017), a armadilha evocada por Tucídides, historiador da Grécia antiga, ao traçar a dinâmica do conflito entre Atenas, uma potência emergente, e Esparta, uma potência existente, no final do século V aC. Allison identifica 16 exemplos de tal rivalidade na história mundial, 12 dos quais terminaram em guerra quente.

Allison considera que o conflito sino-americano de facto corresponde à armadilha de Tucídides e pode terminar em guerra. Verdade seja dita, esses dois gigantes já estão envolvidos numa guerra desde que Xi Jinping assumiu o poder em 2012. Os principais oficiais militares da China até imaginaram mesmo uma guerra "sem restrições", uma guerra que inclui o conflito armado, a guerra político-económica, a guerra ideológica e cultural e até a guerra biológica e a guerra cibernética. (1)

Em seguida, propomos discutir os seguintes aspectos do conflito sino-americano: a rivalidade económica, a guerra comercial, a rivalidade em torno da confiança internacional, a guerra ideológica e a competição pela formação de alianças.

1. A Guerra económica

No que concerne a guerra económica, a China provavelmente vencerá. Há várias razões para isso. Em primeiro lugar, a pandemia está longe de terminar nos Estados Unidos, enquanto na China o fim da pandemia foi oficialmente anunciado em 9 de Setembro e o sistema de produção de bens e serviços começou a funcionar desde o mês de Maio. Isso reflecte-se na alta taxa de crescimento do PIB chinês. De facto, em 2020, o PIB americano diminuirá 6% contra um crescimento de 1,2% do PIB chinês. (2)

Em relação ao crescimento do PIB para 2021, o FMI projecta um crescimento de 9% para a China contra 4,7% para os Estados Unidos. Quanto à perspectiva de crescimento económico de longo prazo, os Estados Unidos também parecem estar a perder. A taxa de desemprego já é de 10% nos Estados Unidos, contra 5% na China. O que é ainda mais preocupante é a previsão segundo a qual um terço das PMEs americanas fechou as portas. (3) Isto é tanto mais grave quanto a economia americana depende principalmente do mercado interno, dominado por PMEs que representam 66 % de empregos. Deve-se notar que nos Estados Unidos os gastos do consumidor representam 70% do PIB, em comparação com 57% no Canadá. Não nos esqueçamos de que os gastos do consumidor são determinados principalmente pela saúde das pequenas e médias empresas, que serão dizimadas se a pandemia continuar nos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, a pandemia agravará ainda mais a desigualdade de rendimentos, o que terá por efeito tornar mais difícil esperar ter um crescimento sustentável a longo prazo. Se os Estados Unidos são um dos países mais ricos do mundo – o que é  paradoxal – fazem parte dos países que sofrem com a desigualdade de rendimentos mais severa entre os países desenvolvidos.

Além disso, o crescimento potencial da economia do país do Tio Sam é estimado em apenas 1,5% em comparação com 6% para a China. (4) O crescimento potencial da economia é determinado pela disponibilidade de recursos naturais, crescimento da população e da força de trabalho e desenvolvimento tecnológico. Quando a economia atinge um nível muito alto, é normal que o ritmo de crescimento desacelere, o que aconteceu no país do Tio Sam. Note-se que o PIB per capita nos Estados Unidos chegou a 63 mil dólares.

Por outro lado, a economia chinesa ainda tem um grande potencial de crescimento: o PIB per capita ainda não atingiu os 12.000 dólares; a população é relativamente jovem; há lugar para fazer avançar tecnologias de ponta; o mercado interno é imenso.

É bem possível que a política chinesa que visa recuperar o atraso com a economia dos EUA continue após a crise sanitária e, com toda a probabilidade, tenha sucesso.

2. A guerra comercial

A guerra comercial sino-americana não mudará significativamente o resultado final da rivalidade entre os dois gigantes; A China tem a melhor hipótese de sair vencedora. A estratégia de Trump envolve todas as três abordagens. A primeira diz respeito à imposição de tarifas sobre produtos comercializados. O valor das mercadorias chinesas exportadas para os Estados Unidos que estão sujeitas à imposição de tarifas é de 360 biliões de dólares, enquanto o das mercadorias americanas exportadas para a China que deve pagar tarifas é de 110 biliões de dólares. É assim que as tarifas de Trump são muito mais severas do que as de Xi Jinping. Apesar disso, a balança comercial de bens dos EUA é deficitária em 345 biliões de dólares em 2019 e 164 biliões de dólares no período de Janeiro a Julho de 2020.

O fenómeno do défice dos EUA no comércio de mercadorias com a China não pressiona tanto as exportações de produtos das empresas chinesas. Note-se que as tarifas impostas por Trump sobre mercadorias procedentes da China também significam as tarifas impostas indirectamente sobre as mercadorias americanas, visto que são, em muitos casos, mercadorias produzidas por empresas americanas que se encontram na China. Trump deve saber disso. Portanto, é razoável supor que a guerra comercial não seja a principal arma da guerra sino-americana final.

Existem outras dimensões da guerra comercial que se intensificarão. Inicialmente, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos ordenou às empresas americanas que não vendessem às firmas chinesas de alta tecnologia, como TikTok, Tencent e Huawei, informações ou materiais que possam ser usados ​​para a tecnologia 5G ou inteligência artificial. Além disso, o Departamento de Justiça e o FBI podem punir ladrões chineses de tecnologias estratégicas. No entanto, o impacto real dessas medidas no desenvolvimento de tecnologias de próxima geração na China será restrito, pois a China já possui os recursos necessários para o desenvolvimento dessas tecnologias.

No longo prazo, o que importa para o desenvolvimento do comércio de mercadorias é o crescimento das economias dos países clientes. Para os Estados Unidos, o México, o Canadá e os países europeus são os principais clientes, enquanto os países asiáticos o são para a China. Quanto ao crescimento das economias, a previsão é muito mais optimista para os países asiáticos do que para os principais clientes dos Estados Unidos. Por exemplo, a taxa de crescimento do PIB em 2021 será de apenas 5,4% para os países desenvolvidos em comparação com 7,4% para os países asiáticos recentemente industrializados.

A guerra comercial continuará após a crise COVID-19. Parece que os Estados Unidos arcarão mais com o custo desta guerra. A China pode facilmente substituir o comércio perdido com os Estados Unidos por um aumento no comércio com outros países clientes, especialmente os países asiáticos.

3. A rivalidade em torno da confiança internacional

A liderança no cenário internacional depende da confiança por parte dos outros países, que cada um dos dois países rivais mereça. Mesmo antes da actual crise sanitária, os Estados Unidos haviam perdido a confiança do mundo. Primeiro, a política de mudança de regime perturbou muitos países ao redor do mundo, especialmente no Médio Oriente e em África. Além disso, as políticas de ajuste estrutural do FMI e do Banco Mundial obrigaram os países endividados a adoptar políticas extremamente severas, que têm o efeito de prejudicar as influências americanas.

Além disso, os Estados Unidos estão a perder o respeito e a confiança do mundo por causa das situações internas que parecem terríveis: discriminação racial, violência diária, desigualdade de rendimentos, falta de um sistema público de saúde, violação dos direitos humanos e, o mais importante, a falta de uma aparente vontade política por parte do governo para remediar essas situações.

O que é ainda pior é o fraco desempenho de Washington na gestão da crise do COVID-19. Neste momento, o número de casos de contaminação ainda está a aumentar exponencialmente; não vemos mesmo o fim da primeira vaga do vírus. Em vez de intervir no seu próprio país para conter a propagação da pandemia, Washington continua a culpar outros pela crise sem controlo, como a China, a OMS e as medias.

Os Estados Unidos sempre reivindicaram ser o país modelo e o líder global, quando o que fizeram no passado e agora não merece o respeito e a confiança do mundo.

Por contrário, a imagem da China foi melhorada graças aos esforços diplomáticos. Entre outras coisas, o modelo de ajuda económica ao exterior é caracterizado pela relativa ausência de condições de oferta. A China investiu uma grande quantia em África na construção de infraestrutura crítica para a industrialização e urbanização da África, de que esses países estão à procura. A China importa produtos de países em desenvolvimento em condições favoráveis ​​aos países exportadores. A China não mostrou qualquer ambição de impor as suas ideologias ou mudar o regime de países estrangeiros.

A sua gestão da pandemia, relativamente bem-sucedida, corrobora ainda mais a imagem de que a China merece confiança. Declarou o fim da pandemia em 9 de Setembro, e as suas fábricas foram reabertas; a produção em massa está em andamento novamente. Melhor ainda, a China demonstrou notável generosidade; enviou máscaras, equipamentos médicos profissionais, enfermeiras e médicos para todo o mundo. Os Estados Unidos são um dos beneficiários dessa generosidade chinesa. Parece claro que a China merece mais o respeito e a confiança do mundo do que o país de Trump.

A perda de confiança à escala internacional de Washington continuará por muito tempo, mesmo depois do COVID-19. Por outro lado, é bem possível que a confiança da China possa ser reforçada, desde que a China desempenhe o papel de liderança mundial sem querer impor os seus valores.

4. A guerra ideológica

A guerra ideológica é um aspecto tão importante quanto a guerra económica. A guerra ideológica é o confronto entre a democracia inspirada na tradição judaico-cristã e o socialismo ao estilo chinês. Uma das diferenças mais significativas está na função evangélica e missionária.

Os líderes dos Estados Unidos parecem acreditar que a democracia americana é a única verdade e que deve governar o mundo, ou seja, os Estados Unidos encarregam-se de evangelizar o mundo com a versão americana da democracia. A China, por outro lado, não impõe o seu socialismo aos países estrangeiros. O socialismo chinês tem um carácter confucionista na medida em que o chefe de Estado, considerado o pai do país, deve cuidar do bem-estar do povo em troca de sua obediência. (sic)

É conveniente ver a tendência global da evolução da democracia.

De acordo com um estudo, o número de países onde a democracia se fortaleceu diminuiu de 83 em 2005 para 37 em 2019. Por outro lado, o número de países onde a democracia enfraqueceu aumentou de 52 para 64 no mesmo período. (5) Outro estudo fornece dados sobre a distribuição demográfica dos regimes: democracia plena (4,5%), falsa democracia (43,2%), regime híbrido (16,7%) e regime autoritário (35,6%). (6) Assim, parece que a democracia está a perder força.

As lutas ideológicas certamente continuarão após a crise sanitária. Muito provavelmente, seria difícil salvaguardar o apelo da democracia americana. É bem possível que o regime mais popular não seja a democracia e o socialismo nas suas formas actuais; o regime mais aceitável seria um regime híbrido especificado de acordo com as necessidades particulares do país. Uma coisa é certa: a ideologia dominante de Washington perseguida há décadas não será mais aceitável.

5. A competição para a formação de alianças

Um aspecto da rivalidade sino-americana é a corrida pela formação de alianças securitárias. Um dos meios que Washington destacou foi o de formar alianças securitárias para conter a China. A aliança mais forte e funcional criada por Washington é a trilateral Washington-Tóquio-Seul, monitorizando de perto e contendo a China. A instalação do THAAD (Terminal High Altitude Area Defense) na Coreia do Sul, a presença de várias dezenas de milhares de caças no Japão e na Coreia do Sul são meios eficazes para conter a expansão da China, pelo menos aos olhos de Washington.

Além disso, o Quad (Quadrilateral Security Dialogue), aliança securitária e financeira que reúne a Austrália, a Índia, o Japão e os Estados Unidos, tem a missão de criar redes de infraestrutura destinadas a competir com o projecto chinês OBOR (One Belt One Road – A Rota da Seda), embora seja difícil prever a sua eficácia. Claro, a OTAN é a aliança securitária mais importante de Washington, com a tarefa de conter a Rússia. Resta saber até que ponto isso pode contribuir para bloquear a China.

No Nordeste Asiático, vários projectos estão a ser implantados com o objectivo de construir e solidificar alianças regionais. Do lado chinês, é proposto um plano para estabelecer a conectividade do Leste Asiático. A Coreia do Sul lançou a sua nova Política do Norte, que visa integrar a economia coreana à economia da Eurásia. A Rússia está a intensificar a sua política de desenvolvimento para o Leste da Rússia. Nesse contexto, pretende-se estender a linha ferroviária Transiberiana, cobrindo também toda a península coreana.

Um projeto de super rede está em andamento, baseado na geração de energia eólica e solar do deserto de Gobi, na Mongólia, para fornecer electricidade a todos os países do Nordeste da Ásia. A tecnologia, Gobitec, desenvolvida na Coréia será aí aplicada. Não se pode excluir a possibilidade de que a Organização de Cooperação de Xangai e o projecto russo, bem como a política coreana, sejam integrados no OBOR chinês. A China dá-se assim a si própria uma ampla e sólida base de alianças, de carácter económico, político e securitário, que lhe pode permitir enfrentar as alianças de Washington.

Em suma, o domínio da América será, com toda a probabilidade, consideravelmente enfraquecido na rivalidade económica, no comércio internacional, na confiança internacional, no conflito ideológico e na aliança internacional. Portanto, é de se esperar que Washington abandone a ideia de impedir a China de afirmar a sua condição de líder mundial; que Washington aceite que nada é eterno e que a Pax Americana não pode durar infinitamente. Por fim, é de se esperar que os líderes em Washington aceitem a China como parceira na construção de um mundo saudável, seguro, próspero e justo para todos os países e povos.

 

Joseph H. Chung et Cheolki Yoon, OAE-CEIM, UQAM

 


Notas

1ustoday.com/story/news/world/2029/05/05/us-china-coronavirus-covid-19-donald-trump-xi-ping-tension/3068501011

2Alexander Chipman Koty (2020, 1er mai). Why China Could Lead the Global Economic Recovery ater COVID-19. China Briefing https://www.china-briefing.com/news/china-will-lead-global-economic-recovery-covid-19/

3Stephen Lendman (2020, 25 juillet). US Economic Collapse: The Worst in US History. Global Research https://www.globalresearch.ca/us-economic-collapse-the-worst-in-us-history/5719373

4Saloni Sardana (2020, 27 julliet). China’s Economy Looks Set for a Much-Vaunted V-Shaped Recovery, While the Rest of the World Lags Behind. Here’s Why. Markets Insider https://markets.businessinsider.com/news/stocks/china-economic-recovery-coronavirus-covid-19-vs-rest-world-2020-7-1029430925#

5Sarah Reucci (2020). Freedom in the World 2020. A Leaderless Struggle for Democracy https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2020/leaderless-struggle-democracy

6Democracy Index : https://en.wikipedia.org/wiki/Democracy_Index

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