sábado, 7 de março de 2020

O petrodólar – verdadeira razão do assassinato de Qassem Soleimani!





Por Federico Pieraccini.

Alguns dias após o assassinato do general Qasem Soleimani, novas informações importantes são reveladas num discurso do primeiro-ministro iraquiano. A história por detrás do assassinato de Soleimani parece ir muito além do que foi relatado até agora, envolvendo a aproximação entre a Arábia Saudita e o Irão, o avanço da China sobre a cena do Médio Oriente, bem como os perigos que pairam sobre o dólar como moeda de reserva mundial.

Num discurso no parlamento iraquiano, o primeiro-ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi revelou detalhes das suas interacções com Trump nas semanas que antecederam o assassinato de Soleimani. Ele tentou repetidamente explicar ao vivo na televisão como Washington o destratou e o intimidou, assim como a outros parlamentares iraquianos, a submeter-se à linha americana, ameaçando até recorrer a operações secretas  envolvendo tiros de atiradores de elite que visavam manifestantes e pessoal de segurança para piorar a situação, o que faz lembrar procedimentos semelhantes observados no Cairo em 2009, na Líbia em 2011 e Maidan (Ucrânia) em 2014. O objectivo de tal cinismo era mergulhar o Iraque no caos.

Eis a reconstituição da história:
"[O Presidente do Conselho de Representantes do Iraque] Halbousi participou na sessão parlamentar quando quase nenhum dos deputados sunitas o fez. Os americanos descobriram que Abdul-Mehdi planeava revelar segredos sensíveis durante a sessão e enviaram Halbousi para impedi-lo. Halbousi interrompeu Abdul-Mehdi no início do seu discurso e pediu para interromper a transmissão ao vivo da sessão. Depois disso, Halbousi, junto com outros membros, sentou-se ao lado de Abdul-Mehdi, falando abertamente com ele, mas sem que a troca de palavras fosse registada.
Eis o que foi discutido nessa sessão e que não foi transmitido: Abdul-Mehdi falou com raiva sobre a maneira como os americanos haviam devastado o país e que agora se recusava a realizar projectos de infraestrutura e da prometida rede eléctrica, exigindo em troca 50% das receitas do petróleo, o que Abdul-Mehdi recusou ”.
Aqui estão as palavras completas (complets - traduzidas) do discurso de Abdul-Mahdi no Parlamento:
"Foi por isso que visitei a China e assinei um importante acordo com eles para que eles realizem a reconstrução, no lugar dos Estados Unidos. Quando voltei, Trump ligou-me para pedir que eu rejeitasse esse acordo. Quando me recusei, ele ameaçou lançar enormes manifestações contra mim que poriam termo ao meu cargo de primeiro-ministro. Grandes manifestações contra mim se materializaram, e Trump chamou-me novamente para me ameaçar: se eu não atendesse aos seus pedidos, ele teria atiradores de elite dos fuzileiros navais empoleirados em prédios altos alvejando manifestantes e o pessoal de segurança a fim de exercer pressão sobre mim.
Recusei de novo e apresentei a minha demissão. Até à data, os americanos insistiram em que cancelássemos o nosso acordo com os chineses. Depois disso, quando o nosso ministro da Defesa declarou publicamente que um terceiro estava a alvejar os manifestantes e o pessoal de segurança (como Trump havia ameaçado fazer ), recebi uma nova ligação de Trump ameaçando matar-me e ao ministro da Defesa se continuássemos a falar publicamente sobre essa " parte terceira ".

Ninguém imaginava que a ameaça deveria ser aplicada ao general Soleimani, mas era difícil para o primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi revelar o pano de fundo que havia sido tecido durante várias semanas antes do ataque terrorista.
"Eu deveria ter-me encontrado com ele [Soleimani] no final da manhã, quando ele foi morto. Ele vinha entregar uma mensagem do Irão em resposta à mensagem que nós havíamos transmitido aos iranianos da parte dos sauditas ".
Podemos supor, a julgar pela reação (ver link aqui - réaction - Nota do editor)  da Arábia Saudita, que algum tipo de negociação estava a acontecer entre Teerão e Riad:
"A declaração do Reino ( Arábia Saudita – Nota do Tradutor) sobre os eventos no Iraque sublinha a opinião do Reino sobre a importância da desescalada para salvar os países da região e os seus povos dos riscos de toda e qualquer escalada".

Acima de tudo, a família real saudita ( ver link para la famille royale saoudienne – Nota do tradutor) queria que o público soubesse imediatamente que não havia sido informada da operação americana:
"O reino da Arábia Saudita não foi consultado sobre ataque americano. Tendo em conta a rápida evolução da situação, o Reino enfatiza a importância de se prevenir contra todos os actos susceptíveis de conduzir a uma escalada, que teria sérias consequências ".

E, para enfatizar a sua relutância quanto à guerra, Mohammad bin Salman enviou (ver link - envoyé – Nota do tradutor) uma delegação aos Estados Unidos. Liz Sly, chefe dos correios de Washington em Beirute, twittou: "A Arábia Saudita está a enviar uma delegação a Washington para pedir moderação ao Irão em nome dos países do Golfo Pérsico. A mensagem será: "Por favor, poupe-nos a dor de passar por outra guerra".
O que saltou à vista claramente é que o sucesso da operação contra Soleimani não se deveu à cuidadosa recolha de informações pelos Estados Unidos ou Israel. Todos sabiam que Soleimani estava a ir para Bagdade  numa jogada diplomática que reconhecia os esforços do Iraque para encontrar uma solução para a crise regional com a Arábia Saudita.
Pareceria que sauditas, iranianos e iraquianos estavam no caminho certo para evitar um conflito regional envolvendo Síria, Iraque e Iémene. A reacção de Riad ao ataque dos EUA não foi de alegria nem de celebração pública. O Catar, apesar de não concordar com Riad em muitos assuntos, também expressou imediatamente solidariedade a Teerão, convocando uma reunião de alto nível do governo com Mohammad Zarif Jarif, ministro das Relações Exteriores iraniano. Até a Turquia (ver link - Turquie – Nota do tradutor) e o Egipto (ver link - l’Égypte – Nota do tradutor), ao comentar o assassinato, usavam linguagem moderadora. Isso poderia reflectir o medo de serem o alvo de represálias do Irão. O Catar, país de onde o drone que matou Soleimani teria partido, fica à distância do arremesso de uma pedra do Irão, localizado do outro lado do Estreito de Ormuz. Os inimigos regionais de Teerão, Riad e Telavive, sabem que um conflito militar com o Irão significaria o fim da família real saudita. Quando as palavras do primeiro-ministro iraquiano estão ligadas aos acordos geopolíticos e energéticos da região, a imagem preocupante de uma América desesperada atacando um mundo que vira as costas a uma ordem mundial unipolar em favor do surgimento multipolar , sobre o qual escrevi há muito tempo (ver link - sur lequel j’ai longtemps écrit – Nota do tradutor), está a começar a surgir. Os Estados Unidos, que agora se consideram exportadores líquidos de energia após a revolução do óleo de xisto (sobre a qual nenhuma decisão final foi tomada), não precisariam mais de importar petróleo do Médio Oriente. No entanto, isso não significa que o petróleo agora possa ser negociado numa moeda diferente do dólar americano. 

 Essa posição privilegiada de detenção da moeda de reserva mundial garante igualmente que os Estados Unidos possam financiar facilmente a sua máquina de guerra, sendo grande parte do mundo forçada a comprar os seus títulos do tesouro, o que Washington é simplesmente capaz de fazer surgir do nada. Ameaçar esse arranjo confortável, é ameaçar o poder mundial dos Estados Unidos.
Apesar disso, a tendência geopolítica e económica está inexoravelmente a mover-se na direcção de uma ordem mundial multipolar, com a China a desempenhar um papel cada vez mais proeminente, principalmente no Médio Oriente e na América do Sul. .

Venezuela, Rússia, Irão, Iraque, Catar e Arábia Saudita possuem juntos a grande maioria das reservas mundiais de petróleo e gás. Os três primeiros têm laços estreitos com Pequim e estão muito presentes no campo multipolar, que China e Rússia desejam consolidar ainda mais para garantir o crescimento futuro do super-continente da Euroásia sem guerra ou conflito.
A Arábia Saudita, por outro lado, é pró-americana, mas pode, em última instância, gravitar em direcção ao campo sino-russo, tanto militarmente quanto em termos de energia. O mesmo processo continua com o Iraque e o Catar, graças aos muitos erros e / ou derrotas estratégicas de Washington na região, começando com o Iraque em 2003, a Líbia em 2011 e a Síria e o Iémene nos últimos anos.

O acordo entre o Iraque e a China é um excelente exemplo de como Pequim pretende usar a tróica Iraque-Irão-Síria para relançar o Médio Oriente e vinculá-lo à Iniciativa da Nova Rota da Seda chinesa.
Embora Doha e Riyadh sejam os primeiros a sofrer economicamente com esse acordo, o poder económico de Pequim é tal que, com sua abordagem ganhador-ganhador, há espaço para todos.
A Arábia Saudita fornece à China a maior parte do seu petróleo, e o Catar, juntamente com a Federação Russa, fornece à China a maior parte das suas necessidades de gás natural liquefeito, o que está de acordo com a visão de Xi Jinping para 2030 que visa reduzir significativamente as emissões poluentes.

Os Estados Unidos estão ausentes desta perspectiva, com pouca capacidade para influenciar os acontecimentos ou propor alternativas económicas atraentes.

Washington queria impedir qualquer integração da Euroásia desencadeando o caos e a destruição na região, e matar Soleimani serviu esse propósito. Os Estados Unidos não podem admitir a ideia de que o dólar perderá o seu estatuto como moeda de reserva mundial. Trump está a embarcar numa aposta desesperada que pode ter consequências desastrosas.
Na pior das hipóteses, a região poderia envolver-se numa guerra devastadora que implicasse vários países. As refinarias de petróleo poderiam ser destruídas em toda a região, um quarto do tráfico global de petróleo poderia ser bloqueado, os preços do petróleo disparam«riam em flecha (200 a 300 dólares por barril) e dezenas de países mergulhariam numa crise financeira mundial. A responsabilidade seria inteiramente atribuída a Trump, pondo termo às suas hipóteses de reeleição.

Para tentar manter todos na linha, Washington deve recorrer ao terrorismo, mentiras e ameaças imprecisas para espalhar indiscriminadamente a destruição entre os seus amigos e inimigos.

Trump foi claramente convencido por alguém de que os Estados Unidos podem prescindir do Médio Oriente, que podem prescindir de aliados na região e que ninguém jamais ousaria vender petróleo numa moeda diferente do dólar americano.

A morte de Soleimani resultou de uma convergência de interesses americanos e israelitas. Sem outros meios para impedir a integração da Euroásia, Washington só pode mergulhar a região no caos, visando países como Irão, Iraque e Síria, que estão no centro do projecto da Euroásia. Embora Israel nunca tenha tido a capacidade ou a audácia de realizar esse assassinato, a importância do lobby israelita para o sucesso eleitoral de Trump teria influenciado a sua decisão, especialmente porque estamos em pleno ano eleitoral.

Trump acreditava que o seu ataque poderia resolver todos os seus problemas, assustando os seus oponentes, ganhando o apoio dos seus eleitores (através da assimilação do assassinato de Soleimani ao de Osama bin Laden) e enviando um aviso aos países árabes sobre os perigos de aprofundar os seus laços com a China.

O assassinato de Soleimani revela o nervosismo frenético dos Estados Unidos contra a sua constante perda de influência na região. A tentativa iraquiana de mediar uma paz duradoura entre o Irão e a Arábia Saudita foi prejudicada pela determinação dos Estados Unidos e Israel de impedir a paz na região e fazer crescer o caos e a instabilidade.

Washington não alcançou o seu estatuto hegemónico através de uma preferência por diplomacia e diálogo pacífico, bem pelo contrário, e Trump não tem a intenção de se afastar dessa abordagem.






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