domingo, 16 de agosto de 2020

Assalariados e contratantes da « nova economia »




Por Gérard Bad
Mostrámos em vários artigos como reforma após reforma o capitalista se reestruturou isolando cada vez mais os trabalhadores, chegando a dar-lhes o chamado estatuto de direitos humanos que foi validado em França pela lei El Khomri (ver link -  loi El Khomri), conhecida como lei do trabalho.  Mostrámos como os diversos governos têm atacado o direito do trabalho, tanto sindical quanto convencional; até que as conquistas do Conselho Nacional de Resistência do CNR (Conseil National de la Résistance) fossem postas em causa.

A chamada crise do coronavírus, sem dúvida, terá sido um banco de ensaios mundial para passar a um estágio mais ditatorial na gestão das forças de trabalho ocupadas e desocupadas, conforme formulado na reunião de São Francisco de 1995 (1)
Mais do que nunca, o slogan “socialismo ou barbárie” vai prevalecer, porque o capital agora pode infiltrar-se na nossa pele para nos “proteger” e até regular as nossas vidas, a nossa vida privada, não nos vai deixar mais um segundo de liberdade. O que o site do PMO denuncia regularmente.

A lenta agonia dos Contratos de Duração Indeterminada CDI
Ao contrário do que se espalha há anos, o trabalho assalariado está longe de desaparecer, porque nesse caso o próprio capitalismo desapareceria. Na verdade, o desenvolvimento da maquinaria e dos NTCI significa que o trabalho morto continua a prevalecer sobre o trabalho vivo, deixando para trás não apenas um exército de desempregados, mas também de excedentes, aqueles de quem o capitalismo não mais precisa e que terá que se alimentar em vez de ser alimentado por eles.
No entanto, este movimento não é tão rápido como as declarações feitas pelos meios de comunicação e outros, tendo a proporção média de trabalhadores na União Europeia mudado pouco durante mais de quinze anos 86%  (2).
O que se produziu desde o compromisso fordista, foi a generalização da exploração flexível sob vários status ou sem status a qualquer momento e em qualquer lugar das forças de trabalho. O CDI, pilar de uma certa paz social, ainda está vivo, mas iniciou a sua precária transformação. Actualmente, cerca de 40% dos contratos permanentes não ultrapassam um ano. Cada vez mais as contratações são feitas no fio da navalha dos contratos a prazo fixo 87% contra 55% em 1982 (3).
Os jovens fortemente mobilizados contra a legislação trabalhista em 2016 tiveram consciência de que se encontravam presos no gargalo do trabalho precário e do trabalhador pobre, imposto por essa lei; nenhuma outra saída senão revoltar-se ou tornar-se um Tangui4, ou seja, voltar para a mãe e para o pai ou encontrar um colega de quarto. Os números são acusatórios, agora são apenas 45% que "beneficiam" de um CDI contra 77% na década de 1980 (5). A palavra benefício corresponde ao trabalho previsto no CDD para conseguir um CDI, um verdadeiro cheque-mate para obter o direito de ser explorado a tempo inteiro. Mas muitos são aqueles que lutam, sem um contrato permanente, para encontrar acomodação e obter um empréstimo bancário, eternos párias dos que não tem dinheiro, atirados para todos os lados, interditos bancários de profissão.

Com o CDI a não ser mais do que uma ilusão dos "dias do passado", a macronia abriu a caixa de Pandora da economia de plataforma autónoma, cujo concorrente mais próximo é o trabalho não declarado (chamado trabalho clandestino) (6) da economia informal dominante em África.
Pudemos demonstrar que o trabalhador autónomo se limita aos biscates ou ao que leva o nome de Uberização, quando não é directamente a miséria que explora a miséria. Do status de trabalhador autónomo (empreendedor) ao de pequeno proprietário de escravos (ver link - Du statut d’ auto-entrepreneur à celui de petit patron négrier).
O estatuto de auto-empreendedor para mascarar o nível de desemprego e o trabalho clandestino
O estatuto do auto-empreendedor ou micro-empreendedor impulsionou desde 2015 o número de trabalhadores autónomos (os não assalariados). Trata-se da lei de “modernização da economia” de 4 de Agosto de 2008 (7) que simplificou o acesso à criação de empresas, em especial as contribuições sociais e o imposto sobre o rendimento (8). Desde a sua criação, este novo estatuto regista um grande sucesso, em 2009 podíamos contar com 328.000 micro-empresários, em Junho de 2015 (fontes URSSAF) este número subiu para 600.000 e em Junho de 2019 para 1.565.000. Esta precária situação é revelada pelo facto de alguns dos micro-empresários não terem actividade, constata-se que, desde a criação do regime, mais de um terço não tem actividade (9).  Esta precariedade é confirmada pelo observatório do auto-empreendedor que estima que para 75% dos auto-empreendedores o rendimento estagna em 50% dos rendimentos familiares e que uma pesquisa realizada entre 1 e 5 de Abril de 2020 pelo instituto de pesquisas OpinionWay com uma amostra representativa de 'trabalhadores por conta própria “Confirma a situação crítica de um grande número de trabalhadores por conta própria e, portanto, a urgência desta mudança no sistema: 59% dos trabalhadores por conta própria questionados temem que a sua actividade não recupere após a crise. Pior ainda, 32% chegam a temer a liquidação judicial. "
Quem são pois estes trabalhadores independentes

Os independentes são: agricultores, artesãos, profissões liberais, comerciantes, aqueles que são free-lancers, principalmente do sector de TI. Os trabalhadores independentes estão sujeitos a um regime específico de protecção social, distinto do regime geral, o regime TNS dos trabalhadores independentes, não estão sujeitos às regras do Código do Trabalho. Podem optar por diferentes estatutos jurídicos: criar o seu próprio negócio, adoptar o estatuto de auto-empreendedor que acabámos de ver ou optar pela portagem salarial (que permitrealizar  missões remuneradas sob forma de honorários)
A portagem salarial
Eis um estatuto pouco conhecido. Criado em 1988, ele só será legalizado em 2008. O seu objectivo era o de utilizar os jovens aposentados da terceira idade, principalmente quadros, para missões específicas de consultoria. O seleccionado é obrigado a passar por uma sociedade de transição que assume a gestão administrativa destes trabalhadores autónomos mediante o pagamento de uma taxa de empresa, uma percentagem muitas vezes elevada sobre serviços facturados pelo usuário. Os cabeleireiros domiciliários (10) revoltaram-se contra o sistema de usuário e ainda preferem a condição de autónomo, ou seja, está tudo dito.
O desenvolvimento do trabalho a tempo parcial (não escolhido)
A lei quinquenal para o emprego (20 de Dezembro de 1993) será um primeiro passo na revolução do código do trabalho. Será o culminar de toda uma propaganda reformista na media, em particular do sindicato CFDT da época sobre a repartição do trabalho entre todos para reduzir o desemprego. Na verdade, este foi o primeiro golpe para o CDI, já que a lei quinquenal introduzirá o conceito de tempo anual e a autorização de contratação em tempo parcial anualizado. O CDI para trabalho intermitente será suprimido (os artigos L.212-4-8 a L212-4-11- do código de trabalho serão revogados).
Não era, portanto, o trabalho que se dividia, mas a precariedade, que inicialmente interessava às mulheres para tomarem conta das crianças, na medida em que podiam recuperar o trabalho a tempo integral. A partir deste momento vão surgir todos os casos de trabalho a tempo parcial de 80% a 60% a 40%… O machado vai cair rapidamente ao mesmo tempo que a lei sobre as 35 horas. A contratação a tempo parcial forçará o trabalhador a ter um emprego duplo para obter um salário integral, alguns contratos farão isso de forma permanente durante o ano de 1000 horas anuais até que ao designado contrato zero horas (11). Ver sobre este assunto - No Reino Unido, o contrato de "hora zero", grau zero de exploração do trabalho e Grã-Bretanha: O contrato de trabalho zero hora o que é? (ver links - Au Royaume-Uni, le contrat « zéro heure », degré zéro de l’exploitation du travail et Grande Bretagne: Le contrat de travail zéro heure c’ est quoi ?

Se em 1975 o trabalho a tempo parcial se limitava a cerca de 8% dos contratos permanentes (CDI’s) em 2018, este tipo de contrato chegava a 18,5% e vai gerar a pluri-actividade. A pluri-actividade clandestina já foi legalizada, o trabalho a tempo parcial obrigou os assalariados a procurar um ou mais empregos, tanto que de acordo com a (DARES) (12) eles eram 1,4 milhões em 2014. Quase 50% de trabalhadores pluri-activos declaram-se a tempo parcial.

A repartição do tempo de trabalho e a sua fragmentação é tal que, em Novembro de 2016, existiam 38 tipos diferentes de contratos de trabalho: contratos a termo fixo habituais, contratos a termo fixo seniores, contratos permanentes intermitentes, portagem salarial, grupos de empregadores, timeshare, empréstimos de pessoal, destacamento de assalariados ... (13)

As razões económicas e políticas para o esmagamento dos estatutos e do tempo de trabalho

Temos que remontar aos anos 80, quando se decidiu a nível mundial recorrer a uma desregulamentação total denominada "3D" (desregulamentação, desintermediação, descompartimentalização), ou seja, o regresso à livre concorrência. Os tenores do monetarismo começaram a sua cruzada no Chile, depois ganharam o mundo anglo-saxão e iriam associar, em 1979, a senhora Margaret Thatcher à boa causa. O sistema keynesiano que funcionou tão bem durante os gloriosos anos 30 estava para ser sacrificado, jovens economistas, formatados com base nas obras de Milton Friedman e Gary Becker, espalharam-se como uma praga nos conselhos económicos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, alguns terão acesso às instituições de Bretton Woods, ao FMI e ao Banco Mundial. Não demorará muito para eles convencerem muitos governos de que chegou a hora de tocar o alarme da economia regulada e quebrar todas as algemas antes de acabar como o capitalismo de estado da URSS. A sentença de morte para a economia administrada havia soado, a era da privatização tinha que conter a inflação e limpar os direitos adquiridos dos países ocidentais jogando com relocações. Podemos dizer que esses dois objectivos foram alcançados apesar das grandes greves. (14)

Mas a Sra. Thatcher havia acendido a pira na qual o monetarismo deveria assar. Ao aumentar as taxas de juros, a fim de preservar o valor do dinheiro, o monetarismo também restringiu o crédito (a emissão de moeda privada) e causou uma contracção da oferta de moeda, que acabou por explodir por falta de liquidez. A crise do subprime de 2008 vai fazer explodir a restrição monetária dos anos 2005-2007. O Fed é forçado a pôr a trabalhar a prancha de notas, o seu presidente Ben Bermanke será mesmo apelidado de "Helicóptero Ben", este último voando em auxílio dos mercados ao injectar maciçamente liquidez, na realidade capital fictício.

Então timidamente, eles voltaram à reabilitação do Estado providência para as finanças, começaram a flexibilizar a exploração contra as legislações, a livre concorrência cruza as fronteiras com a benevolente cumplicidade dos estados. Trabalhadores destacados para prestação de serviços, cientistas da computação indianos, motoristas de camião polacos, soldadores brasileiros estão sujeitos ao "controle" da Delegação Interministerial de Combate ao Trabalho Ilegal ( ver link - Délégation interministérielle à la lutte contre le travail illégal (DITI)) em França. O expurgo monetarista não conseguiu reduzir significativamente o custo do trabalho directo e indirecto (reformas previdenciárias). Os capitalistas (ultra-liberais ou pós-keynesianos) mais uma vez atacarão o assalariado enquanto status, opondo-lhe o contratante.

Contratantes e assalariados
A economia capitalista opera com base no trabalho útil, não apenas na exploração destinada a aumentar a extracção da mais-valia. Assalariados e contratantes (gestores de empresa) participam na criação de riqueza e tributação, desde há vários anos assistimos ao desenvolvimento de uma nova forma de gestão da empresa na extensão da sociedade por quotas ou SARL com o mínimo possível de assalariados. Com efeito, a empresa continua a ser responsável pelos actos profissionais dos seus assalariados, uma problemática que gostaria de resolver sem se tornar um simples intermediário entre fornecedores e candidatos. Consegue assim transferir a sua responsabilidade individual para o nível dos contratantes, limitando-se a sua actividade ao estabelecimento de contactos. Este é hoje o caso das plataformas da nova economia que passam por cima do código de trabalho, têm um capital constante baixo e nenhum ou poucos assalariados, mas muitos empreiteiros como o Uber que deu o nome de Uberização para este tipo de casamenteiro.

Este tipo de negócio não é uma novidade, poderia ter existido em virtude da separação entre a propriedade do capital separada da sua gestão gerada pela SA e a capacitação das finanças. O empresário Nike (15) também é um caso típico desse modo de gestão por empreiteiros interpostos. O que há de novo na chamada economia de plataforma é o salto qualitativo desse “novo capitalismo” que passa a oferecer e impor os seus serviços a todo o mundo graças à sua imponente arquitectura de comunicação da qual ela tem controle de uma ponta à outra. É capital constante noutro nível. Novas tecnologias estão a surgir em todos os lugares e o smartphone é o agente de inteligência em tempo real dessa nova economia em todos os níveis. Teremos que voltar com mais detalhes aos sectores que serão, por exemplo, desafiados pela Inteligência Artificial IA.
G.Bad

NOTAS
1- A conclusão do primeiro State Of The World Forum, realizado de 27 de Setembro a 1 de Outubro de 1995 no Fairmont Hotel em San Francisco. O objectivo do encontro era determinar o estado do mundo, sugerir objectivos desejáveis, propor princípios de actividade para os alcançar e estabelecer políticas globais para obter a sua implementação. Os quinhentos líderes políticos, líderes económicos e cientistas (incluindo Mikhail Gorbachev, George Bush Sénior, Margaret Thatcher, Václav Havel, Bill Gates, Ted Turner, etc.) chegaram à conclusão de que “no século a seguir (o século XXI – Nota do Tradutor), dois décimos da população activa seriam suficientes para manter a actividade da economia mundial ”(4). Surgiria então o problema de como governar 80% da população remanescente, supérflua na lógica liberal, sem empregos ou oportunidades de qualquer tipo, o que alimentaria uma frustração crescente.
2-Fonte : Eurostat.
3-Fonte : INSEE, Enquête Emploi.
4- O fenómeno Tanguy refere-se a um fenómeno social segundo o qual os jovens demoram a separar-se da casa da família. O nome vem do filme Tanguy, de Etienne Chatiliez, cujo personagem homónimo está preso a esse tipo de situação. Surge assim uma nova expressão para designar a faixa etária destes jovens: a geração Tanguy. O facto de ser mantido pelos pais quando se é capaz de atender às suas necessidades é muito desaprovado pelos recrutadores, que não hesitam em rejeitar automaticamente as candidaturas de pessoas neste caso (muitos recrutadores verificam se o candidato possui um endereço independente).
5-Fonte : DARES.
6- Essa expressão tem origem na Idade Média. Naquela época, o trabalho era regulamentado de tal forma que era proibido fazer os seus empregados trabalharem após o pôr do sol, para lhes dar um certo equilíbrio. Esse trabalho clandestino com pouca luz levou logicamente ao nome de "moonlighting" (trabalho no escuro – Nota do Tradutor).
7- lei n° 2008-776
8-  O micro-empreendedor fica assim: - Isento de IVA (o seu preço de venda não inclui o IVA); - Sujeito a uma vantajosa taxa de contribuições sociais correspondente ao regime micro-social, de 13,1% para a venda de bens e 22 , 7% para a prestação de serviços; graças a formalidades aligeiradas e a um método simplificado de cálculo e pagamento das contribuições para a segurança social e do imposto sobre o rendimento.

9- Fontes da Agência central dos organismos de segurança social (Acoss), reportadas pelo INSEE.
10- Lucia0506 escreveu:
Olá a todos, depois da minha estreia na Viadom só consegui ficar dois meses com eles. Eles são ladrões, aconselho a todos que não façam portagens salariais com eles. Publiquei a minha demissão esta manhã. E a partir da próxima semana lanço-me como cabeleireira autónoma para cabeleireiro ao domicílio e também técnica de unhas.
Siana escreveu:
Ah ! sim, com efeito um terço da tua receita, é interessante que faça volume. Eu, quando recebi o documento deles, achei tentador (carro, cartão de gasolina), então liguei e lá fiquei completamente desiludida (pagar pela publicidade, para obter o carro precisas de um volume de negócios “impraticável” e ele paga 33% da facturação do negócio em comparação com a beleza ao domicílio que representa 48% da facturação (falo na net para os 2) aí está! Fontes da internet.
11- O contrato zero hora (Zero-hour contract) é um tipo de contrato de trabalho. Desenvolveu-se na União Europeia, como no Reino Unido e em França (contrato de turno universitário ou contrato de "tarefa" para corretores domésticos, na edição, por exemplo). https://fr.wikipedia.org/wiki/Contrat_z%C3%A9ro_heure
12-Dares Analyses 2016-60 — Os pluri-activos : quais são os seus perfis e as suas durações de trabalho ?
13--fontes :Prism’emploi, l’organisation professionnelle des agences d’emploi, dans son Manifeste pour l’emploi de novembre 2016
14-Ver a este respeito a greve dos mineiros ingleses de 1985 GRANDE BRETAGNE-CAPITAL NATIONAL ET CAPITAL INTERNATIONAL LA GRÈVE DE 1984/1985

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