segunda-feira, 20 de abril de 2020

« O dinheiro caído do céu »





Por Alastair Crooke – Fonte : Strategic Culture



O regresso dos alquimistas ou a nova ortodoxia económica
                                                                                                                            
Enquanto os Estados Unidos e o Reino Unido, para travar as infecções por Covid-19, adoptam uma abordagem de guerra, com níveis intrusivos de intervenção na vida social, esses governos - como corolário do confinamento - propõem resgates maciços. À primeira vista, tal pode parecer razoável e apropriado. Mas esperem ... resgatar o quê, e quem?


Ora bem, os mercados financeiros como é óbvio, mas também ... praticamente tudo: a Boeing, a indústria americana de petróleo de xisto, as companhias aéreas, a indústria do turismo e - nos Estados Unidos - todos os cidadãos, enviando-lhes um cheque de 1.000 ou 2.000 dólares esta semana - ou, como se previu em Washington DC, talvez um por cada mês. Genial! É Natal!

Os mercados entraram em colapso: 500 biliões de dólares em “liquidez” por aqui; 1.500 biliões por lá, por ali, e ali. Uma sopa de letras alfabéticas de facilidades de empréstimos - muito em breve estarão a falar sobre "dinheiro real". Essa sopa de letrinhas mascara o tamanho colectivo da liquidez dos bancos. E o mesmo para os indivíduos? 210 milhões de adultos americanos multiplicados por 1.000 dólares, multiplicados por 12 ou 18 meses, representam uma quantidade impressionante de dinheiro - mais perto de 4 triliões de dólares, ou 18% do PIB dos EUA. Da mesma forma, o chanceler do tabuleiro britânico Rishi Sunak prometeu 330 biliões de libras, ou seja 15% do PIB, para apoiar a economia, além de uma moratória de três meses para pagamento de hipotecas e uma série de adiamentos. ele também prometeu fazer "tudo o que for preciso".

Então, como é que isso é possível? Como é que esse dinheiro está subitamente disponível – quando durante a crise de 2008 nos diziam repetidamente que a austeridade deveria ser a única resposta? Bem-vindo à "nova ortodoxia". De facto, não é novidade: a França tentou o mesmo no século 18 ao "imprimir" os Assignats (títulos do tesouro emitidos pelo Tesouro francês em 1789 e que se tornaram uma espécie de moeda corrente em 1791 – Nota do Tradutor). Chame-lhe "dinheiro caído do céu" ou "Teoria Monetária Moderna" (TMM). O princípio é que não há problema em imprimir dinheiro ... se os governos não têm outra alternativa. O ponto aqui é que "o dinheiro caído do céu", o dinheiro saído do nada, representa unidades monetárias vazias que não reflectem nenhum valor económico real em contrapartida. É uma enorme mudança de paradigma.

Esse é o legado de 2008. Foi acima de tudo uma crise bancária: a máquina de impressão parecia funcionar bastante bem aos olhos das elites. A principal razão pela qual esses "especialistas" pensaram que funcionou no início de 2008 é que os bancos centrais foram capazes de encher de novo as bolhas de activos financeiros. [De acordo com a equação: Enriquecimento das elites (opção de acções, dividendos, bónus) = Solução da crise - para eles - NdT]

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Em 2008, todos pensavam que a "impressão" de dinheiro seria temporária – o tempo necessário para de limpar os balanços dos bancos - e o Fed seria capaz de normalizar as taxas de juros e reduzir o seu balanço. Bem, ninguém vai acreditar nisso neste momento. Não, as dívidas disparam - e serão dívidas "para sempre".

Portanto, para os decisores políticos de hoje, tudo isso parece tão razoável, tão plausível: se o Fed inundar o sistema financeiro com dinheiro, as taxas de juros podem permanecer em zero para sempre. Do que é que você não gosta nessa proposta? É verdade que isso se encaixa na maneira como Trump fez a sua fortuna no sector imobiliário, construída na base de uma dívida com fracas taxas de juro e fáceis. Os governos podem agora emprestar durante cem anos sem juros, e os banqueiros podem emprestar como loucos furiosos, pois o Fed abandonou a exigência de que os bancos mantenham reservas para garantir empréstimos, de facto concedem mais facilmente crédito "impresso” aos privilegiados.

Melhor ainda, os governos podem simplesmente fazer aparecer dinheiro do nada rentabilizando as suas dívidas, transformando chumbo em ouro, como se de alquimistas se tratassem. Eles podem usar esses fundos para resgatar todas as empresas e cidadãos afectados pelo Covid-19 e tornarem-se heróis. Bem-vindo à nova "ortodoxia".

Qual é a alternativa? Bem ... aqui está o problema. A visão de mundo financeirizada e monetarista prosseguida de forma dogmática no decurso das últimas décadas não deixou na biblioteca dos feitiços senão uma receita: mais dinheiro, mais liquidez. Eles levaram o mundo a um beco sem saída monetarista. Eles continuarão a fazer a mesma coisa, liquidez e resgates repetidas vezes, esperando - como Einstein disse - obter um resultado diferente e melhor fazendo a mesma coisa novamente. Mas não vai funcionar. Não vai funcionar porque o problema não é a falta de liquidez. É que as empresas nada podem fazer - sob a ameaça de infecção. Faríamos melhor em entender as consequências dessa loucura. Só isso.

Desta vez, a receita de 2008 não funcionará. Os Estados Unidos vão ser duramente afectados. E os americanos estão apenas a despertar.

Esta nova ortodoxia nada tem de mais, não passa de uma "dança da chuva" para manter o sistema hiper-financeirizado ocidental à tona. A narrativa de uma "mobilização para a guerra" é uma tentativa de justificar as medidas autoritárias e o falso cataplasma do resgate: nunca houve "dinheiro grátis" durante as guerras.
Aquando da crise de 2008-2009, o público ficou perplexo: o mundo financeiro parecia demasiado misterioso para ser totalmente compreendido. Só mais tarde ficou claro que os bancos foram salvos "socializando" os seus erros e perdas. Ou seja, transferindo-os para o balanço público, que foi convidado a esperar que a austeridade, a redução dos sistemas de saúde, pensões e bem-estar em geral, pagassem todos esses resgates de 2008.

Desta vez, não são os bancos, mas as empresas e suas dívidas "podres", que as autoridades esperam manter em formol – tal como antes acontecera com os bancos. Simplificando, isso permitirá que empresas sobre-endividadas se endividem ainda mais  - esses empréstimos agora são garantidos pelo governo federal dos Estados Unidos – aliás o contribuinte -  o proletário pagante (Nota do Editor).

Mas, admitirá tão facilmente um público melhor informado que a Boeing merece um resgate de 60 biliões de dólares, enquanto todo o seu dinheiro - emprestado - foi gasto nos últimos anos para recomprar as suas próprias acções, aumentar artificialmente o preço, e pagar enormes dividendos aos accionistas e dirigentes? Pode-se argumentar que, se o dinheiro é fabricado a partir do nada, cortes de austeridade podem não ser necessários. Mas o dinheiro no tabuleiro da impressora dilui o poder de compra. Ou seja, são os 60% que no fim de contas pagarão o custo – uma vez mais. A nova austeridade será uma transferência de riqueza, oculta por trás da diluição do poder de compra dos povos.

Como observa (note) Schiff, a inflação monetária "não é apenas o pior dos casos, é o cenário mais provável ... as leis da economia aplicam-se aqui, exactamente como na República da Weimar na Alemanha em 1923, no Zimbábue ou na Venezuela. Se prosseguirmos a mesma política monetária e fiscal que eles, teremos o mesmo resultado monetário que eles, a hiperinflação ".

Tudo isso pode parecer um argumento um tanto sangrento para alguns, mas as implicações políticas e geopolíticas são enormes. Essa abordagem económica de tempo de guerra - por si só - não trará mudanças radicais no nosso mundo institucional neo-liberalizado, nem o reformará. Essa janela foi fechada após 2008. A realidade é que hoje, "tocar" no sistema poderia induzir uma deflação da dívida - uma perspectiva que realmente aterroriza o establishment - além de uma recessão iminente [já em curso? Nota do Editor] devido ao choque da oferta.

Estamos presos aos erros [isso é perdoar, cui bono?Nota do Editor) dos banqueiros centrais: não é de surpreender que as autoridades estejam a tentar criar uma atmosfera de guerra para dizer que o dinheiro "caído do céu" é aceitável, afinal "é a guerra". E eles ordenarão provavelmente em breve que os militares patrulhem as ruas ( isso faz-me lembrar a ocupação alemã do nosso país, Nota do Editor). Dizer o que aqui está escrito será em breve considerado como "propaganda inimiga".

Uma economia arregimentada de tempo de guerra não terá tanto o efeito de colocar a sociedade, ou a economia, num novo caminho, mas mais colocá-la nos seus antigos trilhos. Alguém acreditará que nesta nova era da economia dirigida, o governo não canalizará (canalisera) os resgates e linhas de crédito para as elites políticas e seus aliados?

 No entanto, tal como após os sacrifícios de duas guerras mundiais, o espírito do "New Deal" reapareceu entre o povo. Foi o mesmo, no início de 2008: houve apelos à reforma de um sistema que enriqueceu os 1% mais ricos [RIP: lembrança emocionada para o Tea Party † 2009, Nota do Tradutor]; mas, em vez disso, conquistamos austeridade e um retorno aos negócios como de costume. A política foi deliberadamente projectada para apoiar o antigo sistema e fazê-lo funcionar como antes. Reforma recusada ... (porque impossível, o sistema capitalista é feito desta forma, Nota do Editor).


Hoje, as pessoas concentram-se plenamente na gestão das suas vidas sob a ameaça do vírus, mas o pêndulo político oscila significativamente - política por assim dizer populista (mas verdadeiramente popular, Nota do Tradutor) - contra o que é amplamente apreendido como um  " sistema fraudulento” política e economicamente.

A questão é então, e em primeiro lugar, saber se as manobras monetárias americanas serão bem-sucedidas? Serão capazes de salvar o sistema financeiro "como ele era"? Bem, considere o apelo para o "dinheiro caído do céu": o termo refere-se ao dinheiro dado directamente aos indivíduos como se esse dinheiro caísse do céu ou para todos. Mas Schiff ressalta (souligne) que quando Milton Friedman, o pai da economia monetarista, inventou o termo,fê-lo a brincar:


E, em segundo lugar, provocará essa abordagem - que não
funcionará de qualquer maneira enquanto os mercados continuam a implodir - uma oposição mais concertada ao excesso e à desigualdade financeira, sob todas as formas? A procura por reforma do sistema neoliberal  tornar-se-á imparável? Talvez o "espírito comunitário" que faz as pessoas sofrerem em conjunto, face ao vírus, não seja assim tão tolerante para os dirigentes que não tomaram as medidas apropriadas para impedir a propagação da infecção em tempo oportuno?

Aqui, é a "guerra" contra o Covid-19, mais do que a outra "guerra" para salvar a economia, que desempenhará um papel fundamental na definição do futuro geopolítico. Muitas pessoas comentaram já o sentimento nacional comum gerado pelo coronavírus. Aqui em Itália, as pessoas sentem-se muito mais ligadas pela empatia - como se estivessem a combater contra um inimigo comum - o que realmente fazem. Todos nós simpatizamos com o povo da Lombardia e Bergamo. E os italianos também sabem que estão sozinhos.

Esse sentimento de uma Europa salva pelo princípio de cada um por si é palpável e não se limita àqueles que se encontram dentro da UE, como quando o Presidente sérvio, reagindo amargamente à notícia de que a UE havia imposto uma interdição de exportar equipamentos tais como máscaras e roupa para proteger os trabalhadores médicos, declarou: "Não existe solidariedade internacional. A solidariedade europeia também não existe ", um discurso a que a maioria dos italianos teria respondido" bravo, bem dito! ". A única ajuda para a Itália veio (venue) da China.

É o regresso do Estado-nação. O Covid-19 mudará o curso da política italiana e determinará – de maneira  significativa - o futuro da UE. Sejamos claros: os Estados Unidos e o Reino Unido não podem oferecer fluxos de caixa e resgates, senão porque "fabricam" dinheiro. Eles controlam a sua própria massa monetária, os seus défices e, numa medida bem menor, têm uma certa influência sobre as taxas de juro. Não é o caso dos Estados da UE. E os argumentos sobre o egoísmo financeiro desta  a propósito da crise do Covid-19 vão "arrasar" as instituições e a unidade da UE - talvez até ao ponto de ruptura.
E essa atitude mais geral do salve-se quem puder  e falta de empatia não é provavelmente sentida em parte nenhuma tão  profundamente como na China. Ainda mais do que em Itália. A China tem sido menosprezada, especialmente nos Estados Unidos, de tal maneira que muitos chineses têm sentido alguns resquícios de racismo. Pepe Escobar escreveu:

A Europa e a América serão confrontadas com um eixo sino-russo muito diferente no rescaldo do coronavírus. Tiraram as luvas. E a Europa será a primeira a sentir o efeito: mais tergiversações com o euro. Ou seja, mais simulações do tipo "um pé dentro, um pé fora" nas relações com a China – sobre a Huawei e o 5G, para citar apenas um exemplo.

A Rússia e a China percebem muito bem: "o dinheiro caído do céu" e um resgate sem precedentes pela impressão de dinheiro, isso altera as regras do jogo. Por enquanto, o dólar dos EUA dispara em alta devido à procura dos Estados que vêem a sua própria moeda afundar-se, mas pediram emprestado em dólares - e que vêem esses empréstimos em dólares ficar escandalosamente mais caros, dia após dia.

Mas os bancos centrais do G7 deverão por fim combater o monstro da inflação que será desencadeado pelas suas  experiências alquimistas. A confiança no dólar diminuirá à medida que mais e mais dólares "caírem do céu". As taxas de juros aumentarão e a dívida podre do Oeste tornar-se-á tóxica e insustentável com taxas mais altas.

Numa palavra, o mundo verá os Estados Unidos como muito menos poderosos e competentes do que as aparências o levaram a acreditar. As suas lacunas verão a luz do dia.

Será que é chegado o tempo para uma reestruturação monetária mundial, enquanto o dólar está a perder o seu brilho? O presidente Putin deve estar a cogitar neste momento ...

Alastair Crooke




Traduzido por jj, relido por Kira, para o Saker Francophone
  1. Em macroeconomia, a noção de choque da oferta (ou choque de oferta) é utilizado para designar uma variação importante e imprevista das condições de produção que afectam os produtores. Ela modifica os custos de produção dos bens e serviços e pode traduzir-se por uma variação dos preços solicitados pelas empresas. Fala-se, também, de choque de preçosSource









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