Por Alastair Crooke – Fonte : Strategic Culture
O regresso dos
alquimistas ou a nova ortodoxia económica
Enquanto os Estados Unidos e o Reino Unido, para travar as infecções por Covid-19, adoptam uma abordagem de guerra, com níveis intrusivos de intervenção na vida social, esses governos - como corolário do confinamento - propõem resgates maciços. À primeira vista, tal pode parecer razoável e apropriado. Mas esperem ... resgatar o quê, e quem?
Ora bem, os mercados financeiros como é óbvio, mas também ... praticamente tudo: a Boeing, a indústria americana de petróleo de xisto, as companhias aéreas, a indústria do turismo e - nos Estados Unidos - todos os cidadãos, enviando-lhes um cheque de 1.000 ou 2.000 dólares esta semana - ou, como se previu em Washington DC, talvez um por cada mês. Genial! É Natal!
Os mercados entraram em colapso: 500 biliões de dólares em “liquidez” por aqui; 1.500 biliões por lá, por ali, e ali. Uma sopa de letras alfabéticas de facilidades de empréstimos - muito em breve estarão a falar sobre "dinheiro real". Essa sopa de letrinhas mascara o tamanho colectivo da liquidez dos bancos. E o mesmo para os indivíduos? 210 milhões de adultos americanos multiplicados por 1.000 dólares, multiplicados por 12 ou 18 meses, representam uma quantidade impressionante de dinheiro - mais perto de 4 triliões de dólares, ou 18% do PIB dos EUA. Da mesma forma, o chanceler do tabuleiro britânico Rishi Sunak prometeu 330 biliões de libras, ou seja 15% do PIB, para apoiar a economia, além de uma moratória de três meses para pagamento de hipotecas e uma série de adiamentos. ele também prometeu fazer "tudo o que for preciso".
Então, como é que isso
é possível? Como é que esse dinheiro está subitamente disponível – quando
durante a crise de 2008 nos diziam repetidamente que a austeridade deveria ser
a única resposta? Bem-vindo à "nova
ortodoxia". De facto, não é novidade: a França tentou o mesmo no século
18 ao "imprimir" os Assignats (títulos do tesouro emitidos
pelo Tesouro francês em 1789 e que se tornaram uma espécie de moeda corrente em
1791 – Nota do Tradutor). Chame-lhe "dinheiro caído do céu" ou
"Teoria Monetária Moderna"
(TMM). O princípio é que não há problema em imprimir dinheiro ... se os
governos não têm outra alternativa. O ponto aqui é que "o
dinheiro caído do céu", o dinheiro saído do nada, representa unidades
monetárias vazias que não reflectem nenhum valor económico real em contrapartida.
É uma enorme mudança de paradigma.
Esse é o legado de 2008. Foi acima de tudo uma crise
bancária: a máquina de impressão parecia funcionar bastante bem aos olhos das elites. A principal razão
pela qual esses "especialistas"
pensaram que funcionou no início de 2008 é que os bancos centrais foram capazes
de encher de novo as bolhas de activos
financeiros. [De acordo com a
equação: Enriquecimento das elites (opção de acções, dividendos, bónus) =
Solução da crise - para eles - NdT]
.
Em 2008, todos pensavam que a "impressão"
de dinheiro seria temporária – o tempo necessário para de limpar os balanços dos bancos - e o Fed seria capaz de normalizar
as taxas de juros e reduzir o seu balanço. Bem, ninguém vai acreditar nisso
neste momento. Não, as dívidas disparam - e serão dívidas "para sempre".
Portanto, para os decisores políticos de hoje, tudo isso
parece tão razoável, tão plausível: se o Fed inundar o sistema financeiro com
dinheiro, as taxas de juros podem permanecer em zero para sempre. Do que é que você não gosta nessa proposta? É verdade
que isso se encaixa na maneira como Trump fez a sua fortuna no sector
imobiliário, construída na base de uma dívida com fracas taxas de juro e fáceis.
Os governos podem agora emprestar durante cem anos sem juros, e os banqueiros
podem emprestar como loucos furiosos, pois o
Fed abandonou a exigência de que os bancos mantenham reservas para garantir
empréstimos, de facto concedem mais facilmente crédito "impresso” aos privilegiados.

Qual é a alternativa? Bem ... aqui está o problema. A visão
de mundo financeirizada e monetarista prosseguida de forma dogmática no decurso
das últimas décadas não deixou na biblioteca dos feitiços senão uma receita:
mais dinheiro, mais liquidez. Eles levaram o mundo a um beco sem saída
monetarista. Eles continuarão a fazer a mesma coisa, liquidez e resgates
repetidas vezes, esperando - como Einstein disse - obter um resultado diferente
e melhor fazendo a mesma coisa novamente. Mas não vai funcionar. Não vai
funcionar porque o problema não é a falta de liquidez. É que as empresas nada podem fazer - sob a ameaça de infecção. Faríamos
melhor em entender as consequências dessa loucura. Só isso.
Desta vez, a receita de 2008 não funcionará. Os
Estados Unidos vão ser duramente afectados. E os americanos estão apenas a despertar.
Esta nova ortodoxia nada tem de mais, não passa de uma "dança da chuva" para manter o sistema hiper-financeirizado ocidental à tona. A narrativa de uma "mobilização para a guerra" é uma tentativa de justificar as medidas autoritárias e o falso cataplasma do resgate: nunca houve "dinheiro grátis" durante as guerras.
Aquando da crise de 2008-2009, o público ficou perplexo: o
mundo financeiro parecia demasiado misterioso para ser totalmente compreendido. Só
mais tarde ficou claro que os bancos foram salvos "socializando" os seus erros e perdas. Ou seja, transferindo-os
para o balanço público, que foi convidado a esperar que a austeridade, a
redução dos sistemas de saúde, pensões e bem-estar em geral, pagassem todos
esses resgates de 2008.
Desta vez, não são os bancos, mas as empresas e suas dívidas
"podres", que as
autoridades esperam manter em formol – tal como antes acontecera com os bancos.
Simplificando, isso permitirá que empresas sobre-endividadas se endividem ainda
mais - esses empréstimos agora são
garantidos pelo governo federal dos Estados Unidos – aliás o contribuinte
- o proletário pagante (Nota do Editor).

Como observa (note) Schiff, a inflação
monetária "não é apenas o pior dos
casos, é o cenário mais provável ... as leis da economia aplicam-se aqui,
exactamente como na República da Weimar na Alemanha em 1923, no Zimbábue ou na
Venezuela. Se prosseguirmos a mesma política monetária e fiscal que eles,
teremos o mesmo resultado monetário que eles, a hiperinflação ".
Tudo isso pode parecer um argumento um tanto sangrento para
alguns, mas as implicações políticas e geopolíticas são enormes. Essa abordagem
económica de tempo de guerra - por si só - não trará mudanças radicais no nosso
mundo institucional neo-liberalizado, nem o reformará. Essa janela foi fechada
após 2008. A realidade é que hoje, "tocar" no sistema poderia induzir
uma deflação da dívida - uma
perspectiva que realmente aterroriza o establishment
- além de uma recessão iminente [já em
curso? Nota do Editor] devido ao choque da oferta.
Estamos presos aos erros [isso é perdoar, cui bono?Nota do Editor) dos banqueiros centrais: não é de surpreender que as autoridades estejam a tentar criar uma atmosfera de guerra para dizer que o dinheiro "caído do céu" é aceitável, afinal "é a guerra". E eles ordenarão provavelmente em breve que os militares patrulhem as ruas ( isso faz-me lembrar a ocupação alemã do nosso país, Nota do Editor). Dizer o que aqui está escrito será em breve considerado como "propaganda inimiga".
Uma economia arregimentada de tempo de guerra não terá tanto
o efeito de colocar a sociedade, ou a economia, num novo caminho, mas mais
colocá-la nos seus antigos trilhos. Alguém
acreditará que nesta nova era da economia dirigida, o governo não canalizará (canalisera) os resgates e linhas de crédito para as
elites políticas e seus aliados?
No entanto, tal como após os sacrifícios de duas
guerras mundiais, o espírito do "New
Deal" reapareceu entre o povo. Foi o mesmo, no início de 2008: houve
apelos à reforma de um sistema que enriqueceu os 1% mais ricos [RIP: lembrança emocionada para o Tea Party †
2009, Nota do Tradutor]; mas, em vez disso, conquistamos austeridade e um
retorno aos negócios como de costume. A
política foi deliberadamente projectada para apoiar o antigo sistema e fazê-lo
funcionar como antes. Reforma recusada ... (porque impossível, o sistema
capitalista é feito desta forma, Nota do Editor).
Hoje, as pessoas concentram-se plenamente na gestão das suas
vidas sob a ameaça do vírus, mas o pêndulo político oscila significativamente -
política por assim dizer populista (mas
verdadeiramente popular, Nota do Tradutor) - contra o que é amplamente
apreendido como um " sistema fraudulento” política e
economicamente.
A questão é então, e em primeiro lugar, saber se as manobras
monetárias americanas serão bem-sucedidas? Serão capazes de salvar o sistema
financeiro "como ele era"?
Bem, considere o apelo para o "dinheiro caído do céu": o termo refere-se
ao dinheiro dado directamente aos indivíduos como se esse dinheiro caísse do
céu ou para todos. Mas Schiff ressalta (souligne) que quando Milton
Friedman, o pai da economia
monetarista, inventou o termo,fê-lo a brincar:
E, em segundo lugar, provocará essa abordagem - que não
funcionará de qualquer maneira enquanto os mercados continuam a implodir - uma
oposição mais concertada ao excesso e à desigualdade financeira, sob todas as
formas? A procura por reforma do sistema neoliberal tornar-se-á imparável? Talvez o "espírito comunitário" que faz as
pessoas sofrerem em conjunto, face ao vírus, não seja assim tão tolerante para
os dirigentes que não tomaram as medidas apropriadas para impedir a propagação
da infecção em tempo oportuno?
Aqui, é a "guerra"
contra o Covid-19, mais do que a outra "guerra" para salvar a economia, que desempenhará um papel
fundamental na definição do futuro geopolítico. Muitas pessoas comentaram já o sentimento nacional comum gerado pelo
coronavírus. Aqui em Itália, as pessoas sentem-se muito mais ligadas pela
empatia - como se estivessem a combater contra um inimigo comum - o que
realmente fazem. Todos nós simpatizamos com o povo da Lombardia e Bergamo. E os
italianos também sabem que estão sozinhos.
Esse sentimento de uma Europa salva pelo princípio de cada um por si é palpável e não se limita àqueles que se encontram dentro da UE, como quando o Presidente sérvio, reagindo amargamente à notícia de que a UE havia imposto uma interdição de exportar equipamentos tais como máscaras e roupa para proteger os trabalhadores médicos, declarou: "Não existe solidariedade internacional. A solidariedade europeia também não existe ", um discurso a que a maioria dos italianos teria respondido" bravo, bem dito! ". A única ajuda para a Itália veio (venue) da China.
É o regresso do
Estado-nação. O Covid-19 mudará o curso da política italiana e determinará –
de maneira significativa - o futuro da
UE. Sejamos claros: os Estados Unidos e o Reino Unido não podem oferecer fluxos
de caixa e resgates, senão porque "fabricam"
dinheiro. Eles controlam a sua própria massa monetária, os seus défices e, numa
medida bem menor, têm uma certa influência sobre as taxas de juro. Não é o caso
dos Estados da UE. E os argumentos sobre o egoísmo financeiro desta a propósito da crise do Covid-19 vão "arrasar" as instituições e a
unidade da UE - talvez até ao ponto de ruptura.
E essa atitude mais geral do salve-se quem puder e falta
de empatia não é provavelmente sentida em parte nenhuma tão profundamente como na China. Ainda mais do que
em Itália. A China tem sido menosprezada, especialmente nos Estados Unidos, de
tal maneira que muitos chineses têm sentido alguns resquícios de racismo. Pepe
Escobar escreveu:
A Europa e a América serão confrontadas com um eixo
sino-russo muito diferente no rescaldo do coronavírus. Tiraram as luvas. E a
Europa será a primeira a sentir o efeito: mais tergiversações com o euro. Ou
seja, mais simulações do tipo "um pé
dentro, um pé fora" nas relações com a China – sobre a Huawei e o 5G,
para citar apenas um exemplo.
A Rússia e a China percebem muito bem: "o dinheiro caído do céu" e um resgate sem precedentes pela impressão de dinheiro, isso altera as regras do jogo. Por enquanto, o dólar dos EUA dispara em alta devido à procura dos Estados que vêem a sua própria moeda afundar-se, mas pediram emprestado em dólares - e que vêem esses empréstimos em dólares ficar escandalosamente mais caros, dia após dia.
Mas os bancos centrais do G7 deverão por fim combater o monstro da inflação que será desencadeado pelas suas experiências alquimistas. A confiança no dólar diminuirá à medida que mais e mais dólares "caírem do céu". As taxas de juros aumentarão e a dívida podre do Oeste tornar-se-á tóxica e insustentável com taxas mais altas.
Numa palavra, o mundo verá os Estados Unidos como muito
menos poderosos e competentes do que as aparências o levaram a acreditar. As
suas lacunas verão a luz do dia.
Será que é chegado o tempo para uma reestruturação monetária
mundial, enquanto o dólar está a perder o seu brilho? O presidente Putin deve estar
a cogitar neste momento ...
Alastair Crooke
- Em macroeconomia, a noção de choque
da oferta (ou choque de
oferta) é utilizado para designar uma variação importante e imprevista das condições de produção que
afectam os produtores. Ela
modifica os custos de produção dos bens e serviços e pode traduzir-se por
uma variação dos preços solicitados pelas empresas. Fala-se,
também, de choque de preços. Source ↩

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