quarta-feira, 1 de abril de 2020

Covid-19 – crise sanitária – ecológica – económica – mundial






por Robert Bibeau





A sociedade – a natureza – o coronavirus

A esfera "natural-ambiental-ecológica" já está incluída num sistema capitalista totalmente mundializado, conseguindo mudar as condições climáticas básicas e devastando todos os ecossistemas pré-capitalistas (feudais, escravos, primitivos) que não funcionam mais como antes. Esse é um factor causal, uma vez que todos esses processos de devastação ecológica reduzem "o tipo de complexidade ambiental em que a floresta rompe as cadeias de transmissão". Na realidade, é errado considerar essas regiões "selvagens-naturais" como uma "periferia" do modo de produção capitalista. O capitalismo já está mundializado e já está prestes a"totalizar-se" (globalizar). Não existe mais uma fronteira ou cume natural  capitalista que o ultrapasse, e, portanto, não existe mais uma grande cadeia de desenvolvimento económico na qual os países "atrasados" seguiriam aqueles que os precedem na sua ascensão na cadeia de valor, nem verdadeira natureza selvagem capaz de ser preservada numa espécie de estado imaculado e intacto. O mito do "retorno à terra mãe que nos alimenta" sobreviveu. O capital não possui  mais do que um país atrasado subordinado, ele próprio  integrado em todas as cadeias de valor mundial. Os sistemas sociais daí resultantes - incluindo tudo o que vai desde o chamado "tribalismo, casta e comunitarismo", até ao renascimento das religiões fundamentalistas - são produtos contemporâneos e quase sempre estão de facto conectados com os mercados mundiais do consumo excessivo e do  desperdício.
Nesta foto de arquivo obtida em 30 de Junho
   de 2017, um jovem pangolim alimenta-se
de formigas no Zoo de Singapura.
 O mesmo vale para os sistemas biológicos e ecológicos que daí resultam, uma vez que as zonas " selvagens - autênticas - tribais" realmente entram nessa economia mundial, ambas no sentido abstracto da dependência da estrutura económica global e da super-estrutura social (a indústria do turismo exótico e tóxico) que a ela estão ligadas e no sentido concreto da integração nessas cadeias de valor mundializadas.

Esse contexto complexo cria as condições necessárias para a transformação de estirpes virais "selvagens" em pandemias globais. O que provavelmente aconteceu nesta nova cidade de Wuhan, na encruzilhada da modernidade capitalista industrial e tecnológica, a urbanidade dos arranha-céus - e o feudalismo camponês chinês no processo de desintegração-absorção - mercado higienizado e climatizado adjacente matadouros abertos e favelas próximas. Mas o Covid-19 não é o pior de todos. “Uma ilustração ideal do princípio básico - e do perigo global - está no Ebola. O vírus Ebola é um caso claro de um reservatório viral existente que se espalha pelos seres humanos. As evidências actuais sugerem que os seus hospedeiros originais são várias espécies de morcegos da África Ocidental e Central, que agem como transportadores, mas não são afectados pelo vírus. O mesmo não ocorre com outros mamíferos selvagens, como primatas e cefalópodes, que contraem periodicamente o vírus e sofrem surtos rápidos e fatais. O vírus Ebola tem um ciclo de vida particularmente agressivo, além das espécies que o tornam um reservatório. Ao entrar em contacto com qualquer um desses hospedeiros selvagens, os humanos também podem ser infectados, com resultados devastadores ". (1) https://les7duquebec.net/archives/253400

A doença é frequentemente apresentada como se fosse um desastre natural, na melhor das hipóteses aleatórias, na pior das hipóteses atribuível às práticas culturais "impuras e selvagens" das populações atrasadas que vivem nas florestas. Mas o momento dessas duas grandes epidemias (2013-2016 na África Ocidental e 2018, como é o caso na RDC) não é coincidência. Ambos ocorreram precisamente no momento em que a expansão das indústrias primárias deslocou ainda mais as populações florestais e perturbou os ecossistemas locais. De facto, "toda a epidemia de Ebola parece estar ligada a mudanças no uso da terra induzidas pelo capital, inclusive desde a primeira epidemia em Nzara, no Sudão, em 1976, onde uma fábrica financiada pelo Reino Unido se instalou para produzir algodão tecido local ”(…)“ Da mesma forma, as epidemias de 2013 na Guiné ocorreram logo após um novo governo começar a abrir o país aos mercados mundiais e a vender grandes extensões de terra a conglomerados internacionais da indústria agro-alimentar.

A indústria de óleo de palma, conhecida pelo seu papel no desmatamento e destruição ecológica à escala global, parece ter sido particularmente responsável, porque as suas monoculturas devastam de uma vez só, os robustos recursos ecológicos que contribuem para a interrupção das cadeias de transmissão e retiram literalmente as espécies de morcegos “chauve-souris” que servem de reservatório natural para o vírus. »(2) https://les7duquebec.net/archives/253400

A indústria das ONG ecologistas contra caçadores aborígenes
 Ao mesmo tempo, a venda de grandes extensões de terra para empresas multinacionais agro-florestais resulta em desapropriação de moradores da floresta e interrupção das suas formas locais de produção e colheita, que dependem do ecossistema. Isso geralmente deixa os pobres rurais sem outra opção a não ser mergulhar ainda mais no seio da floresta, mesmo que o seu relacionamento tradicional com esse ecossistema tenha sido interrompido. Como resultado, a sobrevivência depende cada vez mais da caça de animais silvestres ou da colheita de flora e madeira locais para venda nos mercados mundiais. Essas populações são postas de lado pelas organizações ecológicas mundiais e da indústria de ONGs ambientais, que as descrevem como "caçadores furtivos" e "madeireiros ilegais" responsáveis ​​pelo desmatamento e destruição ecológica que os empurraram para esse tipo de comércio. Frequentemente, o processo é muito mais sombrio, como na Guatemala, onde os paramilitares da guerra civil foram transformados em forças de segurança "verdes-ecológicas", encarregadas de "proteger" a floresta da extracção ilegal de madeira de espécies "nativas", da caça e do narcotráfico, que eram os únicos empregos disponíveis para esses habitantes indígenas – empurrados para essas actividades justamente por causa da repressão brutal sofrida por esses mesmos paramilitares durante a guerra. Desde então, esse modelo foi replicado em todo o mundo, incentivado pela comunicação social de países com alto rendimento que celebram o assassinato (frequentemente fotografado) de "caçadores indígenas" por mercenários - paramilitares – que se auto-proclamam "verdes e ecológicos". (3) https://les7duquebec.net/archives/253400
A natureza do Estado burguês

Isso dá-nos uma ideia da natureza do estado burguês, mostrando-nos como ele desenvolve técnicas inovadoras de controle social e "contenção" de crises, que podem ser implantadas mesmo em condições onde o aparato estatal é deficiente.  Tais condições, por outro lado, oferecem uma imagem ainda mais interessante de como a classe dominante de um determinado país pode reagir quando crises generalizadas e insurgências reconhecidas causam vazios de poder em estados totalitários. A crise do coronavírus mostrou que os vários países capitalistas desenvolvidos se colocaram pela segunda vez depois da segunda guerra mundial atrás do desafiante chinês e contra a hegemónica América. (4) https://les7duquebec.net/archives/253280
Na China, como nos países ocidentais (França, Itália, Estados Unidos), a epidemia viral tem sido favorecida em todos os aspectos pela fraca coordenação entre os diferentes níveis de governo: a insuficiência de recursos preventivos locais e a negligência das autoridades locais vão contra os interesses do governo central; mecanismos ineficazes de denúncia em hospitais e a prestação extremamente pobre de cuidados básicos de saúde são apenas alguns exemplos. Enquanto isso, na China, diferentes governos locais voltaram à normalidade normal em ritmos diferentes, quase completamente fora do controle do estado central. Essas quarentenas de bricolage (“faça você mesmo” – Nota do Tradutor) fizeram com que as redes de logística cidade a cidade, entre longas distâncias, continuem interrompidas, pois qualquer governo local parece ter a capacidade de simplesmente impedir que comboios ou camiões de carga cruzem as suas fronteiras. E essa incapacidade básica dos governos obriga-os a tratar a crise do vírus como se fosse uma insurreição popular, jogando a guerra civil e a repressão contra um inimigo invisível (o vírus) e o seu bode expiatório (o povo ) O mesmo problema parece ter-se instalado hoje nos Estados Unidos. https://les7duquebec.net/archives/253280

Essa repressão em particular beneficia do seu carácter aparentemente humanitário, pois o estado é capaz de mobilizar um cada vez maior número de locais para ajudar no que é, essencialmente, a nobre causa de estrangular a propagação do vírus ao estrangular a avareza e a negligência do proletário indiferente (sic). Mas, como seria de esperar, essas medidas repressivas voltam-se sempre contra o proletariado e a população. A contra-insurgência é, afinal, um tipo de guerra desesperada travada apenas quando formas mais sólidas de conquista política, apaziguamento social e alienação económica se tornam ineficazes. Essas acções caras, ineficazes e reaccionárias traem a profunda incapacidade do poder responsável pela sua implantação - sejam os interesses coloniais franceses ou britânicos, o declínio do Império Americano ou o Conquista hegemónica chinesa. O resultado da repressão é quase sempre uma segunda insurreição, ensanguentada pelo esmagamento da primeira e ainda mais desesperada.

"Mas outros efeitos foram menos visíveis, embora sejam provavelmente muito mais significativos. Muitos trabalhadores migrantes, incluindo aqueles que permaneceram na sua cidade de trabalho para o festival da primavera ou que puderam retornar antes que os vários confinamentos fossem estabelecidos, agora estão presos num perigoso beco sem saída. Em Shenzhen, onde a grande maioria da população é composta por migrantes, os moradores relatam que o número de pessoas sem-abrigo começou a aumentar. Mas as novas pessoas que aparecem nas ruas não são sem-abrigo de longa duração, mas parecem literalmente atiradas para lá por não terem para onde ir - usam sempre roupas relativamente bonitas, não sabem onde dormir ao ar livre ou onde encontrar comida. Vários prédios da cidade registaram um aumento de pequenos furtos, principalmente de alimentos entregues às portas dos moradores que ficam em casa de quarentena. Regra geral, os trabalhadores estão a perder os seus salários porque a produção parou. Os melhores cenários durante as paralisações de trabalho são as quarentenas inactivas, como a imposta na fábrica da Foxconn em Shenzhen, onde novos retornados ficam confinados aos seus aposentos por uma semana ou duas, recebem cerca de um terço de seu salário normal e são autorizados a regressar à linha de produção. As empresas mais pobres não têm essa oportunidade, e é improvável que a tentativa do governo chinês e dos governos dos países industrializados de oferecer novas linhas de crédito baratas para pequenas empresas seja benéfica a longo prazo. Em alguns casos, parece que o vírus simplesmente acelera as tendências preexistentes de realocação de fábricas, já que empresas como a Foxconn estão a aumentar a produção no Vietname, Índia e México para compensar a desaceleração. (5) https://les7duquebec.net/archives/253400 .A crise económica, acelerada pela crise da saúde, não altera em nada as leis do desenvolvimento capitalista que a produziu.

Tentam erradicar a pandemia conservando os lucros
Em alguns países (França, Alemanha, Canadá, Japão, Rússia e certas empresas chinesas, etc.), o Estado previu o pagamento de indemnizações (até 75% do salário ou semanas de férias pagas) aos trabalhadores colocados em desemprego forçado. Sem concertação entre eles, esses governos capitalistas do Oriente e do Ocidente aproveitam-se dessa luta sistemática contra a pandemia para refinar as suas políticas, programas e medidas económicas e sociais para propagar (propaganda), fazer as pessoas aceitarem (produzir consentimento, resignação  e arrependimento), controlar, reprimir se necessário, e arrastar a população sob a bota do estado totalitário militarizado, supostamente em guerra total pela salvação da pátria e do planeta. O exército é chamado a contribuir para o esforço da guerra sanitária total, cuja intensidade deve ser mantida no mais alto nível de histeria, a fim de justificar o imenso esforço colectivo para a qual a população ainda não imagina a escala dantesca que está para vir, quando chegar a hora de pagar a dívida omnipresente, exactamente como após cada guerra mundial. Ontem, pedia-se ao soldado da frente para sacrificar a sua vida pela pátria e pela sua casa. Hoje, exige-se a cada cidadão "mundializado" -  agora que a guerra é global e total - é que sacrifique as suas liberdades, o seu rendimento, o seu pensamento livre, para salvar o estado totalitário compassivo e a humanidade traumatizada (sic).

Em todo o caso, esse problema apresenta rapidamente os seus limites. Durante as primeiras semanas de Março de 2020, milhões de trabalhadores foram forçados ao desemprego, alguns com remuneração parcial, a maioria sem remuneração. Ao paralisar o seu aparelho produtivo real dessa maneira (vamos esquecer a economia especulativa do mercado financeiro sem controle sobre as forças produtivas e de comercialização), os estados do G20 secaram as suas fontes de rendimento enquanto, ao mesmo tempo, esses estados sobre-endividados (dívida global 1,8 biliões de dólares) adoptou planos de emergência para um total de 5000 biliões de dólares em despesas adicionais: 2000 biliões de dólares para os Estados Unidos já endividados em 22.000 biliões, 110 biliões de dólares canadenses para o Canadá, 1200 biliões de euros para a Alemanha etc.

A pequena parte desse capital virtual - desse falso crédito monetário  - é destinada às grandes empresas multinacionais que forjam a economia mundializada, o que explica por que as bolsas de valores do mundo recuperaram temporariamente dos abismos em que se perderam no início da pandemia. Mas cada um dos apostadores da bolsa que presentemente se vangloriam histericamente sabe muito bem que esse sopro fugaz e ilusório de ar não vai durar até o final da primavera. O que acontecerá com esses governos em sobre-endividados, despesistas, em pânico, gastando com uma mão o dinheiro do "Monopólio", que eles imprimem e não possuem, e reduzindo as suas fontes de rendimento com a outra mão? O que acontecerá com esse confinamento resignado de centenas de milhões de pessoas em pânico que são convidadas a escolher entre passar fome ou a gripe? Quando esses sacrifícios fúteis lhes foram impostos, fingindo ter escapado de ambos.

O germe da insurreição e da revolta

 O risco é grande no momento em que milhões de proletários, unidos pelo capital numa economia mundial integrada e globalizada, como demonstra esta pandemia mundial, começam a pensar que a verdadeira fonte do problema não é tanto esse vírus místico e misterioso, fácil de erradicar, mas sim o vírus do lucro e da acumulação capitalista. O capitalismo certamente constituiu a resposta económica e lucrativa aos limites do feudalismo, mas hoje representa um obstáculo à evolução humana, forçada a ultrapassá-lo por um modo de produção superior.
Essa crise económica e social interligada oferece lições importantes para uma época em que a destruição causada pela acumulação sem fim se espalhou tanto para cima, para o sistema climático global, quanto para baixo, para os substratos microbiológicos da vida na Terra. Uma primeira lição a ser retida: tais crises económicas, sociais, de saúde e ecológicas só se multiplicarão no futuro. À medida que a crise secular do capitalismo assume um carácter aparentemente não económico, novas epidemias, fomes, inundações e outros desastres "naturais" serão usados ​​pelo capital e seus subordinados políticos para justificar a extensão do controle do estado totalitário, e a resposta a essas crises será cada vez mais uma oportunidade para testar novas ferramentas de contra-insurgência. Uma política proletária sistémica e coerente deve compreender o conjunto desses factos . Teoricamente, isso significa entender que a crítica do capitalismo se torna mais pobre cada vez que é separada da ciência e da economia política. Mas, ao nível prático, isso também implica que o único projecto político possível hoje é o que é capaz de se orientar num terreno definido sob um desastre ecológico e microbiológico generalizado, sob uma matriz económica que atingiu o limite das suas capacidades de produzir e distribuir os bens necessários à vida. É porque a matriz económica capitalista atingiu os seus limites e nenhuma reforma - reconstrução - paliativa é possível para que todas as esperanças sejam permitidas à classe proletária emancipadora.



































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