sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Trump e o nó-górdio alemão

 





30 de Setembro de 2020  Robert Bibeau  

Por Patrick Armstrong.  Fonte -  Strategic Culture

Há vários anos que sustentamos que a nova geopolítica mundial implica a aliança americana contra a aliança chinesa, enquanto uma terceira aliança imperialista está a formar-se gradualmente em torno da Alemanha sob a pressão da voracidade americana que não deixa nenhuma outra alternativa a este país. O artigo de Patrick Armstrong ilustra essa oposição crescente entre a América contemporânea e a Alemanha europeia. Robert Bibeau. https://les7duquebec.net

O navio russo de colocação de tubagens Akademik Cherskiy para concluir a construção do gasoduto Nord Stream 2, encontrava-se no porto de Mukran, na Alemanha, a 7 de Julho de 2020. REUTERS / Axel Schmidt.

Em Janeiro de 2018, avancei (ver link -avancé)  que o presidente dos Estados Unidos Trump tinha compreendido que a única maneira de "tornar a América grande novamente" era livrá-la da missão imperial que a empurrava para guerras perpétuas. Sugeri que desemaranhar esse "nó górdio" era difícil, senão impossível, de realizar pela sua parte, e que ele compreendia que esse nó só poderia ser rompido pelos seus oponentes. Continuei com outro ponto de vista (ver link - point de vue)  em Março de 2019. Agora volto à minha hipótese de que o primeiro mandato de Trump chega ao fim.

Se bem não estejamos mais perto de saber se esta é a estratégia de Trump ou uma consequência involuntária do seu comportamento, está claro que o "nó górdio das complicações imperiais dos EUA" está sujeito a fortes tensões.

As relações germano-americanas constituiem um ponto de observação revelador.

A administração Trump faz quatro exigências aos seus aliados - Huawei, Irão, Nord Stream 2 e despesas com defesa - e todas as quatro convergem com a Alemanha. A Alemanha é um dos aliados mais importantes da América; é provavelmente o segundo membro mais importante da OTAN; é o motor económico da União Europeia. Se ela realmente desafiasse Washington nestas questões, haveria danos fundamentais para o império americano. E, se George Friedman tem razão para dizer (ver link - raison de dire)  que impedir uma coalizão Alemanha-Rússia é do “ interesse primordial" dos Estados Unidos, os danos poderiam ser ainda mais importantes. E, no entanto, é isso que vemos, em várias questões, Berlim está a desafiar Washington.

Washington está determinado a eliminar a Huawei, a empresa chinesa de telecomunicações, da corrida pelas redes 5G, embora, na opinião da maioria dos especialistas, ela seja claramente uma líder tecnológico. Em Março, disseram (ver link - on a dit) em Berlim que Washington "não seria capaz de manter o compartilhamento de dados e outras informações ao seu nível actual" se as empresas chinesas participassem na rede 5G do país. De momento, Berlim não tomou uma decisão, aparentemente esta é esperada para Setembro. Londres, em contrapartida, que havia aceitado deixar a Huawei entrar, revogou a sua decisão inicial, foi-nos relatado, enquanto Trump ameaçou (ver link -  menacé) com sanções contra os serviços de informação e o comércio. Podemos, portanto, imaginar as pressões exercidas sobre Berlim.

Berlim estava fortemente implicada nas negociações do acordo nuclear com Teerão - o JCPOA - e ficou bastante chocada quando Washington se retirou. A chanceler alemã Merkel admitiu que há pouco que a Europa possa fazer sobre isso agora: mas acrescentou que "deve fortalecer [as suas capacidades] para o futuro". Quando Washington forçou o SWIFT a desconectar (ver link - déconnecter) o Irão, bloqueando assim as transações interbancárias, Berlim, Paris e Londres conceberam (ver link - conçu) um sistema alternativo chamado INSTEX. Mas, apesar das grandes ambições, aparentemente só foi usado (ver link - utilisé) uma vez - numa pequena transação de fornecimentos médicos em Março.

Até agora,  a resistência de Berlim aos ditames de Washington não foi grande, mas no caso do Nord Stream 2 foi provocadora desde o início. A Alemanha já compra hidrocarbonetos do Oriente há algum tempo, e é significativo que durante a Guerra Fria, quando a URSS e a Alemanha eram inimigas, o fornecimento nunca diminuiu. E a razão não é difícil de entender: Berlim quer energia e Moscou quer dinheiro; é uma dependência mútua. A dependência pode ser exagerada: um artigo (ver link - article) da BBC calculou há dois anos que a Alemanha obtém cerca de 60% do seu gás da Rússia, mas apenas cerca de 20% da energia da Alemanha vem do gás: ou um total de 12%. Mas é muito provável que esses 12% aumentem no futuro e o fornecimento russo se torne mais importante para a Alemanha. Por outro lado, embora feliz com a situação, a Rússia poderia abandonar o mercado europeu, se fosse necessário, dada a procura ilimitada da China. Mas, neste momento, continua a ser um comércio mutuamente benéfico.

Tendo em conta os problemas de trânsito de gás através da Ucrânia, o primeiro gasoduto (ver link - premier gazoduc) Nord Stream sob o Báltico foi construído e começou a operar em 2011. Conforme a procura, e com a falta de confiabilidade da política ucraniana a aumentar, um segundo gasoduto (ver link - deuxième gazoduc) submarino, Nord Stream 2, começou a ser construído. Estava quase concluído quando Washington impôs sanções à empresa suíça que estava a instalar a tubagem, e que se retirou (ver link - retirée )  do local. Um navio russo que colocava as tubangens interveio para concluir o trabalho. Enquanto isso, Washington está a redobrar os seus esforços para forçar a paralisação da construção. Aparentemente, Washington está a preocupar-se com a segurança - levantando o argumento razoável segundo o qual se a Alemanha fala da “ameaça russa”, no entanto compra energia à Rússia: do que é que se trata? Isso é perigoso ou não? Muitas pessoas, por outro lado, acreditam que o motivo real é forçar a Alemanha a comprar LNG [Gás Natural Liquefeito] dos Estados Unidos; ou "gás da liberdade", como gostam (ver link - aiment) de lhe chamar. Vale a pena meditar (ver link - médité) sobre esta passagem:

O GNL é significativamente mais caro do que o gás natural da Rússia e da Noruega, que actualmente são os dois principais exportadores para a Europa. Mas alguns países da UE - principalmente a Polónia e os Estados Bálticos - estão dispostos a pagar um prémio para diversificar os seus aprovisionamentos. A Bulgária, que atualmente é 100% dependente do gás russo, disse que está pronta a importar GNL dos Estados Unidos se o preço for competitivo, sugerindo que um fundo de 1 bilião de dólares poderia ser usado para reduzir o preço. Mas Perry, o ministro da Energia dos EUA, rejeitou qualquer sugestão de que o governo dos EUA interferisse nos preços, dizendo que cabia às empresas envolvidas assinar acordos de exportação e importação.

A liberdade não é gratuita, como nos dizem.  

Em Julho, o Congresso dos EUA acrescentou (ver link - ajouté) uma emenda ao projeto de lei de financiamento militar que alargou as sanções relacionadas com o Nord Stream 2 para incluir qualquer entidade que auxilie na conclusão do gasoduto. O que nos leva à chamada (ver link - intitulée) Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act  (Lei de Combate aos Adversários da América por meio de Sanções - NdT). Este projecto de lei extremamente aberto arroga a Washington o direito, primeiro de declarar tal e tal país um "adversário", depois sancionar seja quem for, ou qualquer pessoa, que tenha uma ligação, ou seja subcontratante, etc. No final das contas, praticamente qualquer entidade no planeta poderá enfrentar sanções - excepto, é claro, os próprios Estados Unidos, que se permitem comprar motores (ver link - moteurs ) de fusão ou petróleo (ver link - pétrole) à Rússia"adversária". Em suma, se você não escolher livremente comprar o nosso "gás da liberdade", nós o forçaremos a fazê-lo. A última piada (ver link - dernière ) do secretário de Estado dos EUA, Pompeo, é: "Faremos tudo o que pudermos para garantir que este gasoduto não ameace a Europa" - novamente sob o pretexto da segurança. Berlim reafirmou (ver link - réaffirmé ) a sua determinação em continuar o trabalho do oleoduto. Vinte e quatro países da UE iniciaram (ver link -initié )  um processo em Washington para protestar contra a tentativa de sanções extraterritoriais. O "envenenamento" de Navalny está em modo turbo como uma razão oportuna (ver link - raison opportune) para que Berlim obedeça aos ditames de Washington. Até agora, Merkel disse (ver link -dit)  que as duas coisas não deveriam estar ligadas. Mas a pressão não irá senão aumentar.

Outro tema frequentemente evocado (ver link - évoqué ) por Trump é que os Estados Unidos pagam para defender países ricos o suficiente para se defenderem. A OTAN concordou há alguns anos que os seus membros deveriam gastar 2% do seu orçamento em defesa. Poucos alcançaram essa meta, e a Alemanha ainda menos (ver link - encore moins) , os gastos da Alemanha em 2019 estiveram à volta de 1,2%. É improvável que o compromisso de aumentá-lo para 1,5% até 2024 seja cumprido. Presumivelmente como consequência, ou porque ele se imagina a punir a Alemanha pela sua desobediência. Trump ordenou a retirada de 12.000 soldados da Alemanha. É significativo que a maioria dos alemães esteja bastante satisfeita com essa redução; cerca de um quarto quer que todos desapareçam. O que sugere que os alemães não estão tão entusiasmados (ver link - assez satisfaits), a propósito dos seus laços com os Estados Unidos quanto os seus governos e que, portanto, podemos presumir que um chanceler pós-Merkel poderia estar pronto a registar esta indiferença e a cortar os laços.

O Irão está na "lista de adversários" de Washington e Washington está determinado a destruir este país. Tendo deixado o acordo JCPOA, Washington está agora a tentar convencer os outros signatários a impor sanções ao Irão para supostamente quebrar o acordo. Essa decisão afigura ser um ponto de discórdia, já que Paris, Londres e Berlim se recusaram (ver link - refusé) a juntar-se a esse esforço dizendo que permanecem comprometidos com o acordo; no universo claro-escuro de Pompeo, eles (ver link - ils se sont) "alinharam-se com os aiatolás". Este desaire  seguiu-se a outro (ver link - suivi un autre) na ONU uma semana antes. Mais uma vez, o vínculo com os aliados não foi quebrado, mas está a enfraquecer à medida que o secretário de Estado dos EUA se aproxima cada vez mais do momento em que acusa os principais aliados de Washington de serem "adversários" ao recusar a obediência.

E assim podemos ver a administração Trump a bater os pés ao redor da sala, a partir os móveis e ordenar abruptamente aos seus aliados que façam o que eles mandam, senão. Dificilmente se poderia encontrar um melhor representante desse estilo arrogante na admissão (ver link - l‘aveu) de Mike Pompeo: "Nós mentimos, nós enganámos, nós roubámos". Se o seu objetivo é indignar os seus aliados a ponto de eles se retirarem, isso é o ideal. As exigências de Washington, despojadas da retórica sobre a liberdade que a acompanha, são: juntar as suas sanções contra a China e o Irão; comprar seu gás; comprar as suas armas; caso contrário, correr o risco de ser declarado "adversário" numa guerra de sanções. A Alemanha é desafiadora quanto à Huawei, o Irão, Nord Stream 2 e despesas com armamento. Grande parte da Europa também o é, e o exemplo de Berlim terá um efeito cascata sobre os outros.

As exigências categóricas de Washington de adesão instantânea ao último plano não são certamente uma boa maneira de tratar os aliados. Mas será que isso faz parte de uma estratégia inteligente para fazê-los cortar o "nó górdio" por conta própria, ou é simplesmente arrogância americana desprovida de polidez?

Alguns vêem nisso uma intenção:

“ Para Trump, eu acho que ele vê Nordstream 2 como a solução ideal para sair do impasse da OTAN e libertar a Alemanha ou levar Merkel ao arrependimento (ver link - résipiscenceTom Luongo)

“ Se for reeleito, a realidade é que um governo Trump, com mais quatro anos, demolirá todo o edifício da OTAN. Russia Today (ver link)

Mesmo o The Economist, esse indicador fiável do nível médio da opinião convencional, se interroga (ver link - s’interroge) :

 “ Mas foi apenas sob o presidente Donald Trump que os Estados Unidos usaram os seus poderes de forma rotineira, e em toda a sua amplitude, envolvendo-se numa guerra financeira. Os resultados foram impressionantes e chocantes. Eles, por sua vez, incitaram outros países a procurar a liberdade da hegemonia financeira dos Estados Unidos.

Há um ano, o presidente francês Macron declarou (ver link - déclaré ) que a Europa não podia mais contar com a defesa americana. No início (ver link - au début) a chanceler alemã Merkel discordou, mas à medida que as querelas de Berlim com Washington aumentam, ela agora parece mais próxima da posição (ver link - position) de Macron. Apenas palavras, é claro, mas palavras que evoluem.

Se Trump conseguir um segundo mandato - a melhor aposta (ver link - meilleur pari ) por agora, acredito - essas palavras podem transformar-se em acção. Pelo menos um cálculo avalia (ver link - évalue) que as sanções custaram mais à UE do que à Rússia e muito mais do que aos EUA, que cuidadosamente se isentaram. Muitos europeus precisam entender que há mais custos do que ganhos no relacionamento. O que, é claro, explica a sequência contínua de histórias anti-russas e anti-chinesas calculadas para assustá-los e trazê-los de volta às fileiras. A administração Trump está a agir segundo a expressão popular "É pegar ou largar" – “My way or the highway  (“É do meu jeito ou vai pela auto-estrada" NdT). Os europeus já são suficientemente adultos para entrar na auto-estrada por conta própria.

Patrick Armstrong

Traduzido por jj, revisto por Hervé para o Saker Francophone

 

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