23 de Fevereiro
de 2021 Robert Bibeau
Por Pepe Escobar. Fonte: The French Saker
Os futuros historiadores poderiam registar este dia como o dia em que o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, geralmente inabalável, decidiu que estava farto:
Habituámo-nos ao facto de que a União
europeia tenta impôr restrições unilaterais, restrições ilegítimas e partimos
do princípio, nesta fase, de que a União Europeia é pouco fiável.
Josep Borrell, chefe de política externa da União Europeia, numa visita oficial a Moscovo, teve que que levar na cara.
Lavrov, sempre um perfeito cavalheiro, acrescentou: "Espero que a revisão estratégica que ocorrerá em breve se concentre nos interesses vitais da União Europeia e que essas conversações ajudem a tornar os nossos contactos mais construtivos".
Ele referia-se à cimeira de chefes de Estado e de governo da UE a realizar-se no próximo mês no Conselho Europeu, onde discutirão a Rússia. Lavrov não tem ilusões de que "parceiros não confiáveis" não se comportarão como adultos.
No entanto, algo extremamente intrigante pode ser encontrado nas observações de abertura de Lavrov durante a sua reunião com Borrell: "O principal problema que todos enfrentamos é a falta de normalidade nas relações entre a Rússia e a União Europeia - os dois maiores actores do espaço eurásia. É uma situação doentia que não beneficia ninguém."
Os dois maiores actores do espaço eurasiano. Retenha isso. Voltaremos a isso num instante.
No estado actual em que as coisas estão, a UE parece irremediavelmente inclinada a agravar esta "situação doentia". A chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, falhou miseravelmente nas negociações para a vacina. Inicialmente havia enviado Borrell a Moscovo para solicitar a taxa de licença para a produção da vacina Sputnik V por empresas europeias - uma vacina que deveria ser aprovada pela UE.
E ainda assim, os eurocratas preferiram afogar-se em histeria, promovendo as diatribes da OTAN e o condenado charlatão Navalny - o Guaido russo.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, sob o pretexto de "dissuasão estratégica",o chefe da STRATCOM americana, almirante Charles Richard,casualmente deixou escapar que"há uma possibilidade real de que uma crise regional com a Rússia ou a China possa rapidamente degenerar num conflito envolvendo armas nucleares, se eles percebessem que uma guerra convencional ameaçaria o seu regime ou Estado".
Assim, a responsabilidade pela próxima -
e última - guerra já é atribuída ao comportamento "desestabilizador" da Rússia e da China.
Presumem que eles vão
"perder" - e então, num acesso de raiva, passar para o nuclear. O Pentágono
será apenas uma vítima; afinal, diz a STRATCOM, não estamos "presos envolvidos numa guerra
fria".
Os planeadores da STRATCOM fariam bem em
ler a análise militar de
Andrei Martyanov, que há anos está na
linha de frente a explicar em detalhe como o novo paradigma hipersónico, não as armas nucleares, mudou a natureza
da guerra.
Numa apresentação técnica detalhada, Martyanov mostra como "os Estados Unidos simplesmente não têm boas opções agora. Não. A opção menos má, no entanto, é falar com os russos e não em termos de delírio geopolítico e sonhos molhados sugerindo que os Estados Unidos, de uma forma ou de outra, poderiam convencer a Rússia a "abandonar" a China — os Estados Unidos não têm nada, zero, para oferecer à Rússia para a pressionar a fazê-lo. Mas ao menos os russos e os americanos poderiam pelo menos resolver essa história da "hegemonia" entre si e depois convencer a China a finalmente sentar-se, como um "Clube dos Três", à mesa das negociação e finalmente decidir como governar o mundo. Esta é a única oportunidade de os Estados Unidos permanecerem relevantes no novo mundo."
A Pegada da Horda dourada
Apesar de as chances de a União Europeia melhorar o estado desta "situação doentia" com a Rússia serem insignificantes, não há indicação de que o que Martyanov descreve esteja nas previsões do estado profundo americano.
O caminho a seguir parece inevitável: sanções perpétuas; A expansão perpétua da OTAN ao longo das fronteiras da Rússia; construindo um círculo de estados hostis ao redor da Rússia; a perpétua interferência dos EUA nos assuntos internos russos - com uma quinta coluna; guerra de informações perpétua e em grande escala.
Lavrov está cada vez mais a deixar claro que
Moscovo não espera mais nada. Como resultado, os factos no terreno continuarão
a acumular.
O Nordstream 2 será concluído - sanções ou não - e fornecerá gás natural muito necessário para a Alemanha e a UE. O bandido Navalny, com 1% de "popularidade" real na Rússia, foi condenado e permanecerá na prisão. Cidadãos de toda a UE receberão a sua dose de Sputnik V. A parceria estratégica entre a Rússia e a China continuará a fortalecer-se.
Para entender como chegamos a essa confusão russofóbica profana, um roteiro essencial é fornecido pelo conservadorismo russo,um novo estudo emocionante da filosofia política por Glenn Diesen, professor associado da Universidade do Sudeste da Noruega, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia de Moscovo, e um dos meus eminentes interlocutores em Moscovo.
Diesen começa por focar-se no essencial: geografia, topografia e história. A Rússia é uma vasta potência terrestre sem acesso suficiente aos mares. A geografia, argumenta ele, condiciona os fundamentos das "políticas conservadoras definidas pela autocracia, uma concepção ambígua e complexa do nacionalismo e o papel duradouro da Igreja Ortodoxa" — o que implica resistência ao "secularismo radical".
É sempre crucial lembrar que a Rússia não tem fronteiras naturais defensáveis; foi invadida ou ocupada pelos suecos, polacos, lituanos, a Horda Dourada mongol, os tártaros da Criméia e Napoleão. Sem mencionar a invasão nazi, que foi extremamente sangrenta.
O que significa essa palavra? Tudo: "segurança" em russo é byezopasnost. Acontece que
isso é uma negação, porque byez significa "sem" e opasnost significa "perigo".
A complexa e única composição histórica
da Rússia sempre foi um problema sério. Sim, havia uma estreita afinidade com o
império bizantino. Mas se a Rússia "reivindicasse a transferência da autoridade
imperial de Constantinopla, seria forçada a conquistá-la". E reivindicar a
sucessão, o papel e o legado da Horda Dourada relegaria a Rússia apenas ao
estatuto de potência asiática.
No caminho para a sua modernização, a invasão mongol da Rússia não só provocou um cisma geográfico, mas deixou a sua marca na política: "A autocracia tornou-se uma necessidade após a herança mongol e o estabelecimento da Rússia como um império eurasiano com uma vasta extensão geográfica mal ligada".
"Um colossal Leste-Oeste"
A Rússia é acima de tudo o encontro do Oriente e do Ocidente. Diesen lembra-nos que Nikolai Berdyaev, um dos principais curadores do século XXE, já havia notado em 1947: "A inconsistência e complexidade da alma russa pode ser devida ao facto de que, na Rússia, duas correntes da história mundial - Oriente e Ocidente - se agitam e influenciam umas às outras (...) A Rússia é uma parte completa do mundo- um colossal Leste-Oeste. »
A Ferrovia Transiberiana, construída para fortalecer a coesão interna do império russo e projectar o seu poder em direcção à Ásia, mudou a situação: "Com a expansão das colónias agrícolas russas a leste, a Rússia está cada vez mais a substituir as antigas estradas que anteriormente controlavam e ligavam a Eurásia".
É fascinante ver como o desenvolvimento da economia russa levou à teoria "Heartland" de Mackinder - que o controlo do mundo exigia o controlo do supercontinente eurasiano. O que aterrorizou Mackinder foi que as ferrovias russas que ligavam a Eurásia prejudicariam toda a estrutura de poder da Grã-Bretanha como um império marítimo.
Diesen também mostra como o eurasismo - que emergiu na década de 1920 entre
os emigrantes em resposta a 1917 - foi de facto uma evolução do conservadorismo
russo.
O
eurasismo, por várias razões, nunca se tornou um movimento político unificado.
O coração do eurasismo é a ideia de que a Rússia não era apenas um Estado do
Leste Europeu. Após a invasão dos mongóis no século 13E
e a conquista dos reinos tártaros no século XVIE, a
história e a geografia da Rússia não poderiam ser apenas europeias. O futuro
exigiria uma abordagem mais equilibrada – o compromisso com a Ásia.
Dostoievski tinha dito brilhantemente antes de qualquer outra pessoa, em 1881:
Os
russos são tão asiáticos quanto os europeus. O erro da nossa política nos
últimos dois séculos foi fazer os europeus acreditarem que somos verdadeiros
europeus. Servimos muito bem a Europa, participámos demasiadamente nas suas
querelas internas (...). Curvamo-nos como escravos aos europeus e apenas
conquistámos o seu ódio e o seu desprezo. È hora de virar as costas a esta
Europa ingrata. O nosso futuro está na Ásia.
Lev Gumilev foi sem dúvida o astro de uma nova
geração de eurasistas. Ele alegou que a Rússia foi fundada por uma coligação
natural entre eslavos, mongóis e turcos. "A Antiga Rus e a Grande Estepe", publicado em 1989,
teve um enorme impacto na Rússia após a queda da URSS - como aprendi com os meus
anfitriões russos quando cheguei a Moscovo através da Ferrovia Transiberiana no
inverno de 1992.
Como explica Diesen, Gumilev propôs uma espécie de terceira via, além do nacionalismo europeu e do internacionalismo utópico. Uma Universidade Lev Gumilev foi estabelecida no Cazaquistão. Putin apelidou Gumilev de "o grande eurasiano do nosso tempo".
Diesen lembra-nos que mesmo George Kennan,em 1994, reconheceu a
luta conservadora por "este
país tragicamente ferido e espiritualmente diminuído". Putin,em 2005, era muito mais claro. Ele apontou:
O
colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica di século. E para
o povo russo, isto foi um verdadeiro drama (...) Os velhos ideais foram destruídos. Numerosas
instituições foram desmanteladas ou simplesmente refomadas à pressa(...) Com um
controlo ilimitado sobre os fluxos de informação, os grupos oligarcas serviram
exclusivamente os seus próprios interesses corporativos. A pobreza massiva
começou a ser aceite como a norma. Tudo isso evoluiu no contexto de uma das
mais severas recessões económicas, finanças instáveis e paralisia na esfera
social.
Aplicar a "democracia soberana"
É assim que chegamos à questão crucial da Europa.
Na década de 1990, sob o ímpeto dos
atlantistas, a política externa russa centrava-se na ideia da Grande Europa, um
conceito baseado na "Casa
Comum Europeia", cara a Gorbachev.
No entanto, a Europa pós-Guerra Fria passou a ser configurada, na prática,
como uma expansão ininterrupta da OTAN e do nascimento - e ampliação - da UE.
Todos os tipos de contorções liberais foram implantados para incluir toda a
Europa, excluindo a Rússia.
Diesen tem o mérito de resumir todo o processo numa frase: "A nova Europa liberal representou
uma continuidade anglo-americana em termos do domínio das potências marítimas,
e o objectivo de Mackinder de organizar a relação germano-russa num formato de
soma zero para impedir o alinhamento dos interesses."
Não admira que Putin mais tarde tivesse que ser erguido como um espantalho supremo, ou "novo Hitler". Putin rejeitou categoricamente o papel de mero aprendiz da civilização ocidental para a Rússia - e a sua hegemonia corolária, (neoliberal).
Mas ele permaneceu muito acomodado. Em 2005, Putin enfatizou que "acima de tudo, a Rússia fora, é e será, naturalmente, uma grande potência europeia". O que ele queria era separar o liberalismo da política de potência - rejeitando os princípios fundamentais da hegemonia liberal.
Putin disse que não há um modelo democrático único. O seu acabou por ser conceptualizado como uma "democracia soberana". A democracia não pode existir sem soberania; é por isso que se descarta a "supervisão" ocidental para fazê-la funcionar.
Diesen ressalta que, se a URSS fosse um "eurasismo radical de esquerda, algumas das suas características eurasianas poderiam ser transferidas para o eurasismo conservador". Diesen observa como Sergey Karaganov, às vezes referido como o "Kissinger Russo",mostrou "que a União Soviética estava no centro da descolonização e que foi o arquitecto da ascensão da Ásia, privando o Ocidente da capacidade de impor a sua vontade ao mundo pela força militar, o que o Ocidente fez no século XVI.E até a década de 1940".
Este facto é amplamente reconhecido em grandes áreas do Sul, da América Latina ao Sudeste Asiático e à África.
Península Ocidental da
Eurásia
Assim, após o fim da Guerra Fria e o fracasso da Grande Europa, o pivô de Moscovo para a Ásia para construir a Grande Eurásia não poderia senão ter um ar de história inevitável.
A lógica parecia impecável. Os dois
centros geo-económicos da Eurásia eram a Europa e o Leste da Ásia. Moscovo quer
ligá-los economicamente a um supercontinente: é aqui que a Grande Eurásia se junta à
iniciativa chinesa das "Novas Estradas da Seda". Mas há também a
dimensão adicional russa, como observa Diesen: a "transição da periferia usual
desses centros de energia para o centro de uma nova construção regional".
Do ponto de vista conservador, salienta Diesen, "a economia política da Grande Eurásia permite que a Rússia supere a sua obsessão histórica com o Ocidente e estabeleça um caminho orgânico russo para a modernização".
Isso envolve o desenvolvimento de indústrias estratégicas, corredores de ligação, instrumentos financeiros, projectos de infraestrutura para ligar a Rússia Europeia à Sibéria e à sua costa do Pacífico. Tudo isso sob um novo conceito: uma economia política conservadora da industrialização.
A parceria estratégica Rússia-China actua nesses três sectores geo-económicos:
indústrias estratégicas/plataformas tecnológicas, corredores de ligação e
instrumentos financeiros.
Isso impulsiona a discussão, mais uma vez, para o imperativo categórico
final: o confronto entre Heartland e o poder marítimo.
As três grandes potências eurasianas,
historicamente, eram os citas,os
hunos e os mongóis. A principal razão para a sua fragmentação e decadência é
que eles não foram capazes de alcançar - e controlar - as fronteiras marítimas
da Eurásia.
O quarto grande poder eurasiático foi o Império Russo e o seu sucessor, a URSS. A URSS entrou em colapso porque, uma vez no local, não conseguiu alcançar - e controlar - as fronteiras marítimas da Eurásia.
Os Estados Unidos impediram-no aplicando uma combinação de Mackinder, Mahan e Spykman. A estratégia dos EUA tornou-se até conhecida como o mecanismo de contenção Spykman-Kennan - todas essas "implantações avançadas" na periferia marítima da Eurásia, Europa Ocidental, Leste Asiático e Médio Oriente.
Todos sabemos agora que a estratégia global dos Estados Unidos no mar — e a principal razão pela qual os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial — foi impedir o surgimento de uma hegemonia eurasiana por qualquer meio necessário.
Quanto à hegemonia dos Estados Unidos, foi grosseiramente conceptualizada
- com a arrogância imperial exigida - pelo Dr. Zbig "Grande tabuleiro de xadrez" Brzezinski em 1997: "Para evitar conluio e manter a
dependência segura dos vassalos, para manter esses vassalos dóceis e
protegidos, e para evitar que os bárbaros se unissem." O bom e velho
"Dividir para melhor reinar", aplicado através da "dominação
sistémica".
É esse sistema que está a desmoronar -
para desespero dos suspeitos habituais. Diesen observa como, "no passado, empurrar a Rússia para
a Ásia relegou a Rússia à obscuridade económica e eliminou o seu estatuto como
uma potência europeia". Mas agora, com a mudança do centro
geo-económico da gravidade para a China e leste da Ásia, é um novo jogo de
estratégia.
A demonização permanente da aliança Rússia-China pelos Estados Unidos, juntamente com essa mentalidade de "situação doentia" dos bandidos da UE, só aproxima a Rússia da China, num momento em que a dominação mundial do Ocidente, que durou apenas dois séculos, como provou Andre Gunder Frank, está a chegar ao fim.
Diesen, talvez muito diplomaticamente, espera que "as relações entre a Rússia e o Ocidente também mudem a longo prazo com a ascensão da Eurásia. A estratégia hostil do Ocidente em relação à Rússia está condicionada pela ideia de que a Rússia não tem para onde ir e que deve aceitar tudo o que o Ocidente lhe oferece em termos de "parceria". O impulso oriental muda fundamentalmente a relação de Moscovo com o Ocidente, permitindo que a Rússia diversifique as suas parcerias."
Podemos em breve aproximar-nos do momento em que a Rússia na Grande Eurásia
apresentará à Alemanha uma oferta de pegar ou largar. Ou construímos o coração
da Europa juntos, ou construímos com a China - e vocês serão apenas um
espectador da história. É claro que há sempre a possibilidade de um eixo
Berlim-Moscovo-Pequim, embora seja muito remoto. Mas coisas mais estranhas já aconteceram.
Enquanto isso, Diesen está convencido de que "os poderes terrestres eurasianos eventualmente integrarão a Europa e outros estados à periferia interior da Eurásia. A lealdade política mudará gradualmente à medida que os interesses económicos se voltarem para o Oriente e a Europa gradualmente se tornar a península ocidental desta Grande Eurásia."
Isso é algo que dará para reflectir àqueles que alimentam uma "situação doentia" nesta península.
Pepe Escobar
Traduzido por Wayan, releitado por JJ para o Saker de língua francesa
Fonte: Voici pourquoi la Russie rend l’Occident dingue – les 7 du quebec
Sem comentários:
Enviar um comentário