Arábia Saudita: Utilizar o
captagon como arma contra os inimigos do Reino
René Naba. 1 DE ABRIL DE 2025 , EM Actualités
Versão em francês: https://www.madaniya.info/2025/04/01/arabie-saoudite-de-linstrumentalisation-du-captagon-comme-arme-de-combat-contre-les-ennemis-du-royaume/
A Arábia Saudita é o maior consumidor de
drogas no Médio Oriente e no mundo árabe, e o quarto maior consumidor do mundo
45% do captagon apreendido em todo o mundo
entre 2015 e 2019 foi apreendido na Arábia Saudita
A Arábia Saudita, com 32 milhões de
habitantes, é um dos maiores mercados consumidores de drogas do mundo. No
entanto, o reino considera que a droga é um produto de exportação do seu
ambiente próximo, rejeitando assim a responsabilidade pelos estragos causados
por este flagelo aos países exportadores e não aos consumidores sauditas, muito
menos à política ultra repressiva do poder real, que incita a população saudita
a procurar paraísos artificiais para escapar da sua sinistra realidade
quotidiana de forma estupefaciente.
Esta é a essência de um relatório
publicado pelo jornal libanês Al Akhbar em 26 de Junho de 2023, cuja versão em
árabe pode ser encontrada no link para o falante de árabe
A
caça ao Hezbollah
Envolvida no Iémen numa guerra que
desencadeou contra o país árabe mais pobre, a Arábia Saudita considerou
conveniente atacar o Hezbollah libanês, acusando-o de ser um grande produtor e
traficante de droga, o grande corruptor do reino e responsável pela dependência
de uma parte da sua população em relação às drogas pesadas.
O processo, clássico, foi utilizado pelos
inimigos da formação paramilitar xiita libanesa, indignados com o seu prestígio
e os seus sucessos militares. Um dos exemplos mais recentes dessa acusação é o
fogo cruzado operado em Fevereiro de 2023 pelos meios de comunicação israelitas
e franceses sobre esse assunto.
·
Ver este link sobre este assunto: https://www.madaniya.info/2023/02/03/liban-israel-tirs-croises-sur-le-hezbollah/
Nesta campanha de demonização, Yves Mamou desempenhou
um papel precursor. O antigo jornalista do Le Monde lançou-se, numa obra de
difusão restrita, numa demonstração confusa sobre o papel nefasto do Hezbollah
libanês, comparando-o ao barão da droga latino-americano Pablo Escobar,
omitindo mencionar que a triangulação do espaço europeu pela droga é obra de
corporações sunitas e não xiitas: o haxixe marroquino, a droga albanesa e a cocaína
do Sahel-Saara.
• Ver este
link sobre este assunto: https://www.renenaba.com/yves-mamou-et-le-phenomene-de-serendipite/
Na sua guerra contra o Hezbollah, a Arábia Saudita
chegou ao ponto de proibir a exportação de frutas e legumes do Líbano para o
reino, sob o pretexto de ter encontrado drogas em cargas refrigeradas de
laranjas e romãs, mesmo que essas cargas ilícitas tivessem sido descobertas
pelas forças de segurança libanesas ou que as cargas não fossem de origem
libanesa.
Mas desde a normalização das relações entre a Arábia
Saudita e o Irão e o regresso da Síria à Liga Árabe, em Março de 2023, por
iniciativa da Arábia Saudita, a acusação saudita aponta a Síria e o Líbano sem
mencionar especificamente a identidade dos traficantes. Riade chegou mesmo a
justificar parcialmente a normalização das suas relações com Damasco pela
preocupação da Síria em colaborar com o reino para combater este flagelo.
É certo que é dever de cada Estado combater o comércio
de drogas no seu território, mas ignorar os problemas específicos inerentes ao
consumo de drogas pelos seus próprios cidadãos é contra-producente, na medida
em que constitui uma fonte de complicações adicionais na erradicação deste
fenómeno, tanto mais grave quanto oculta um aspecto importante do problema: a
qualidade dos patrocinadores do tráfico, bem como a sua relação com o aparelho
de segurança do Estado saudita.
Cartazes publicitários que incitam à denúncia dos consumidores de drogas
Em Riade e nas grandes cidades sauditas, a afixação de
cartazes publicitários que alertam para os perigos do consumo de drogas é
intensa. Os cartazes incentivam a delação dos consumidores, informando-os sobre
a existência de centros de desintoxicação, bem como sobre o quadro de sanções
contra os usuários, incluindo a pena de morte para os traficantes. Essa
exibição revela, por outro lado, a amplitude do fenómeno e seus estragos.
Drones para o transporte de drogas e grandes traficantes poupados, alguns
dos quais pertencentes à família real
A guerra contra as drogas, tanto contra os traficantes
como contra os consumidores, apresenta uma grande falha, na medida em que poupa
os grandes traficantes, alguns dos quais pertencem à família real, que conta
com 15 000 membros, de acordo com as últimas estatísticas.
Alguns grandes traficantes não hesitam em recorrer a
drones para transportar a sua mercadoria, como foi o caso, em Junho de 2023, da
apreensão de uma carga transportada por drone via Toubouk, no noroeste do
reino.
Repressão aos pequenos traficantes
A repressão atinge principalmente os
pequenos traficantes, os intermediários indefesos: paquistaneses, indianos,
sírios, iemenitas, mas poupa os patrocinadores sauditas. Ora, é do conhecimento
geral que, sem o patrocínio saudita, nenhuma carga de droga poderia chegar a
bom porto no território do reino. Apesar disso, nenhum dignitário saudita foi
preso, muito menos interrogado. É verdade que Mohamad Ben Salmane, príncipe
herdeiro saudita e governador de facto do reino, tem o cuidado de não unir os
seus opositores dentro da família real e, assim, evita abrir uma nova frente
neste domínio.
Do financiamento das guerras pelas drogas
Cada guerra tem a sua droga: o ópio no
Vietname e no Afeganistão, na década de 1970-1980; o crack comercializado pelo
FBI na comunidade negra de Los Angeles para financiar os «contras» na América
Latina, particularmente contra o regime sandinista da Nicarágua, na década de
1980; e, finalmente, o captagon, para as guerras de predação económica do mundo
árabe no século XXI.
A droga foi amplamente utilizada para
financiar actividades ilícitas, inclusive por instâncias americanas, apesar da
presença da temível «US Food and Drug Administration», tanto no plano interno
como no teatro de operações externas, tanto para neutralizar a ascensão da
comunidade afro-americana como para financiar a guerra do Vietname.
Se a Guerra do Vietname (1955-1975), a
contra-revolução na América Latina, nomeadamente a repressão anti-castrista,
bem como a guerra anti-soviética no Afeganistão (1980-1989) puderam ser
amplamente financiadas pelo tráfico de drogas, a irrupção dos islamistas na
cena política argelina marcará a primeira concretização do financiamento
monárquico petrolífero da contestação popular em grande escala nos países
árabes.
O Líbano, centro nevrálgico da fabricação do captagon
Dano colateral da guerra na Síria, este
conflito transformou o Líbano num centro nevrálgico para a fabricação do
captagon e num dos principais pontos de passagem desta droga para os países do
Golfo, devido ao crescente interesse das monarquias petrolíferas por esta
substância considerada revigorante.
Além das suas propriedades energizantes, o
captagon tem o poder de dissolver todos os antagonismos regionais e
étnico-religiosos da zona. Xiitas e sunitas colaboram, assim como sírios e
libaneses como produtores e as petromonarquias como consumidoras. Uma unidade
árabe surpreendente, em suma, graças aos estupefacientes.
Uma substância tão cobiçada que o consumidor paga um
preço elevado pelo comprimido (entre 5 e 20 dólares) por um preço de fabrico
irrisório (alguns cêntimos).
Descoberta em 1963, esta droga classificada pela
ONUDUC no grupo dos estimulantes do tipo anfetamina (ATS), com uma composição
química à base de fenetilina, o captagon é o energizante preferido dos
jihadistas, amigos dos americanos e dos sauditas, que fazem grande uso dele
para conquistar o seu paraíso terrestre.
Com a guerra na Síria, o Líbano rapidamente se tornou
o principal produtor e exportador dessa substância. Oficinas clandestinas
instalaram-se na planície de Bekaa, na região fronteiriça entre a Síria e o
Líbano, enquanto Beirute, através do seu porto e aeroporto, foi promovida a
principal via de acesso para a exportação de captagon para os países do Golfo,
o maior mercado consumidor deste produto.
Com denominações variadas, Al Bahhar (o navegador),
Aboul Hilalyane (o pai entre parênteses), Lekrys (nome derivado de uma famosa
marca de automóveis), em várias cores (rosa, amarelo, branco) e formas, o
captagon é sem dúvida o produto de consumo e tráfico mais famoso da era contemporânea
entre os «senhores da guerra» da Síria e os seus apoiantes petrolíferos
monárquicos.
Oitenta (80) milhões de comprimidos foram apreendidos
em 2014-2015. Este número impressionante é infinitamente menor do que a
quantidade que escapou à vigilância das alfândegas e da brigada de combate às
drogas. Embora vários chefes do tráfico tenham caído nas mãos da justiça, a
fonte não se esgotou.
A indústria do captagon ultrapassa as divisões
étnico-religiosas. No início de 2012, com o lançamento das grandes ofensivas
jihadistas na Síria, que culminaram com a batalha de Bab Amro, em Fevereiro,
vários laboratórios de fabrico de captagon na Bekaa, que operavam no perímetro
de centros religiosos, perto de mesquitas, foram neutralizados.
O caso do Príncipe do Captagon
A caça ao Hezbollah será de curta duração. Em 2015,
foi a vez da Arábia Saudita estar no centro das atenções, com o envolvimento do
filho do antigo governador de Medina, o segundo local sagrado do Islão, num
tráfico de estupefacientes.
O príncipe Abdel Mohsen Ben Walid Ben Abdel Aziz foi
interceptado com os seus quatro cúmplices no aeroporto de Beirute, em 27 de Outubro
de 2015, quando se preparava para embarcar num avião real saudita com duas
toneladas de captagon e uma grande quantidade de cocaína contidas em 40 malas
diplomáticas. Um ano antes, 15 milhões de comprimidos tinham sido apreendidos
no porto de Beirute, em Abril de 2014.
O príncipe do Captagon, personagem augusta se é que
existe, foi literalmente alojado numa «prisão dourada» no edifício que abriga
os escritórios da luta contra os estupefacientes em Beirute, uma esquadra de
polícia no local chamado «Makhfar Hbeich». Uma sala espaçosa foi especialmente
preparada para ele, com ar condicionado, televisão e um telemóvel para as suas
comunicações externas; com um guarda retirado do efectivo de guardas para
servir de office boy; uma assinatura do «Free Delivry» para as suas duas
refeições diárias, além de uma segunda assinatura diária de um serviço de
lavandaria (lavandaria e não branqueamento) para a limpeza das suas roupas. Um
tratamento real para um criminoso real, em aplicação do princípio da igualdade
dos cidadãos perante a lei.
A Saudi Connection: A corte saudita entre o
narcotráfico e a toxicodependência
A família real saudita, queridinha das
potências ocidentais e defensora rígida de um dogma rigorista do Islão, não
deixa de ser regularmente alvo de notícias devido ao tráfico em que participa activamente.
As repetidas apreensões de drogas em França relacionadas com a família real
saudita deram origem a um livro de um ex-responsável da polícia que menciona
abertamente a Saudi Connection.
Assim, em 2010, 111 kg de cocaína, no
valor de 25 milhões de euros, foram apreendidos num apartamento em Neuilly Sur
Seine (região parisiense) pertencente a uma princesa saudita. Um caso obscuro
que levou à comparência em tribunal do comissário de Lyon Michel Neyret, em Maio
de 2016.
Anteriormente, em 1999, um vasto tráfico
de cocaína entre a Colômbia e a Europa, através do príncipe Nayef al Chaalane,
tinha sido desmantelado. O príncipe, que não está na linha directa de sucessão
ao trono da Arábia Saudita, era suspeito de ter disponibilizado o seu avião
privado para transportar duas toneladas de cocaína colombiana destinadas ao
mercado europeu. O caso começou em 6 de Junho de 1999 com a descoberta de mais
de 800 kg de cocaína num pavilhão em Noisy-le-Sec (Seine-Saint-Denis).
Durante a investigação, a polícia francesa
e, posteriormente, a americana descobriram que o tráfico tinha ramificações até
a Arábia Saudita. A droga, no valor de 30 milhões de dólares, tinha sido
transportada para França em Maio de 1999 a bordo do avião privado do príncipe,
que aterrou em Le Bourget, perto de Paris. Devia ser distribuída em Espanha e
Itália.
Relação de causalidade entre a política ultra
repressiva saudita e a toxicodependência
Especialistas internacionais na área da
toxicologia tendem a pensar que existe uma relação de causalidade entre a
política ultra repressiva conduzida por Mohamad Ben Salmane desde a sua chegada
ao poder, em 2015, e a toxicodependência generalizada na Arábia Saudita, na
medida em que acentuou o consumo de drogas entre os jovens do reino. Uma
procura amplificada pela precariedade financeira e social de uma parte da
população, bem como pela ausência de substitutos derivados, como o álcool.
Em 2020, o Centro Nacional Americano de
Informação Biotecnológica estimava que 7 a 8% da população saudita fazia uso de
estupefacientes, colocando a Arábia Saudita em quarto lugar no ranking mundial
de consumidores de drogas, atrás dos Estados Unidos, México e Tailândia.
Segundo este centro, a Arábia é o maior
consumidor de drogas no Médio Oriente e no mundo árabe, e o reino é considerado
pelos analistas ocidentais como «a capital da droga do Médio Oriente». 45% da
quantidade de captagon produzida em todo o mundo entre 2015 e 2019 foi
apreendida na Arábia Saudita.
A Arábia Saudita anuncia regularmente apreensões de
cargas de drogas provenientes de países vizinhos (Emirados Árabes Unidos,
Kuwait, Sultanato de Omã, Iémen, Iraque, Jordânia).
A última campanha anti-drogas lançada na Arábia Saudita foi desencadeada na
sequência de um escândalo retumbante que revelou a magnitude dos estragos
causados pelas drogas: Em abril de 2022, um morador da região de Al Qatif
incendiou a casa da família com um galão de gasolina, durante o Iftar, a
refeição que tradicionalmente marca o fim do jejum diário do Ramadão, matando
quatro membros da família. Al Qatif é uma cidade portuária da província
oriental do reino, no Golfo Pérsico, perto do Bahrein. O homem estava sob o
efeito da metanfetamina, uma droga potente composta por efedrina e
pseudoefedrina, que actua no cérebro.
Nervo da guerra na Síria, o captagon, como um efeito
bumerangue, revelou-se um poderoso factor de entorpecimento dos zombies
criminogénicos petromonárquicos.
Para saber mais sobre este tema:
• https://www.madaniya.info/2017/08/25/liban-captagon-stimulant-djihad-revenus-de-leurs-parrains-2/
• https://www.renenaba.com/arabie-saoudite-decapitation-romeo-et-juliette-dans-sa-version-wahhabite/
ILUSTRAÇÃO
As autoridades sauditas apreenderam mais de 600 milhões
de comprimidos de captagon nos últimos anos. (Joseph Eid/AFP)
René
Naba
Jornalista
e escritor, ex-responsável pelo Mundo Árabe-Muçulmano no serviço diplomático da
AFP, depois conselheiro do director-geral da RMC Médio Oriente, responsável
pela informação, membro do grupo consultivo do Instituto Escandinavo dos
Direitos Humanos e da Associação de Amizade Euro-Árabe. De 1969 a 1979, foi
correspondente rotativo no escritório regional da Agência France-Presse (AFP)
em Beirute, onde cobriu, nomeadamente, a guerra civil jordano-palestiniana, o
«Setembro Negro» de 1970, a nacionalização das instalações petrolíferas do
Iraque e da Líbia (1972), uma dezena de golpes de Estado e sequestros de
aviões, bem como a guerra do Líbano (1975-1990), a terceira guerra israelo-árabe
de Outubro de 1973 e as primeiras negociações de paz entre o Egipto e Israel em
Mena House, no Cairo (1979). De 1979 a 1989, foi responsável pelo mundo
árabe-muçulmano no serviço diplomático da AFP [ref. necessária], depois
conselheiro do director-geral da RMC Médio Oriente, encarregado da informação,
de 1989 a 1995. Autor de «L'Arabie saoudite, un royaume des ténèbres»
(Golias), «Du Bougnoule au sauvageon, voyage dans l'imaginaire français»
(Harmattan), «Hariri, de père en fils, hommes d'affaires, premiers ministres»
(Harmattan), «Les révolutions arabes et la malédiction de Camp David»
(Bachari), «Média et Démocratie, la captation de l'imaginaire un enjeu du XXIme
siècle» (Golias). Desde
2013, é membro do grupo consultivo do Instituto Escandinavo dos Direitos
Humanos (SIHR), com sede em Genebra. Além disso, é vice-presidente do Centro
Internacional Contra o Terrorismo (ICALT), em Genebra; presidente da associação
de caridade LINA, que actua nos bairros do norte de Marselha, e presidente
honorário da «Car tu y es libre» (Quartier libre), que trabalha para a promoção
social e política das zonas periurbanas do departamento de Bouches-du-Rhône, no
sul da França. Desde 2014, é consultor do Instituto Internacional para a Paz, a
Justiça e os Direitos Humanos (IIPJDH), com sede em Genebra. Desde 1 de Setembro
de 2014, é responsável pela coordenação editorial do site https://www.madaniya.info e apresentador de uma coluna semanal na Radio
Galère (Marselha), às quintas-feiras, das 16h às 18h.
Este
artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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