CAPITALISMO EM INTERSECÇÃO? - BARBARIA
postado em 13 de Outubro de 2025 pela Liga dos Comunistas Internacionalistas
[Publicamos aqui uma nova tradução de um
texto dos nossos camaradas da Barbaria, que é uma refutação completa do
pós-modernismo e da ideologia da interseccionalidade – produtos de uma extensa
campanha ideológica por parte do capital para fragmentar o proletariado e
dissolver os antagonismos de classe num olhar estéril para o umbigo sobre
"identidades". Este panfleto expõe como tais teorias reproduzem as
próprias categorias de capital que afirmam subverter, em oposição absoluta ao
movimento comunista e seu método materialista. Está disponível aqui no
seu original em espanhol.]
Introdução
Esta não é a
primeira vez que escrevemos sobre o pós-modernismo [1], mas voltamos a ele.
Porquê? Por um lado, queremos refinar melhor algumas considerações teóricas e
metodológicas na crítica ao pós-modernismo e, por outro lado, continuamos a acreditar
que é uma das ideologias que mais influencia aqueles que hoje procuram
esclarecimento e radicalização diante das misérias deste mundo. Para nós, é
também uma questão de método. Não é apenas importante o que pensamos
sobre a realidade social, mas também o método que usamos para abordá-la. O
método pós-moderno, como explicaremos mais adiante, inevitavelmente reproduz as
categorias do capital e impede-nos de realizar uma crítica que vá à raiz desse
sistema, uma questão essencial para aqueles de nós que estão comprometidos com
um mundo diferente. Entender em que consiste esse método pós-moderno e quais as
suas consequências é útil, nesse sentido, para adoptar um método que deriva do
comunismo e de um compromisso resoluto com a revolução. Por todas essas razões,
acreditamos que é importante retornar a esses temas de uma forma que não seja
repetitiva, mas sim aprofundando as razões da crítica, as falsas dicotomias que
muitas vezes confrontam os defensores do pós-modernismo com críticas fictícias.
Trata-se de compreender onde surge o pós-modernismo, quais são as razões da sua
força e hegemonia, pois sabemos que o falso é sempre um momento do verdadeiro
ou, dito de outra forma, que toda a ideologia é uma expressão que nasce do solo
desta sociedade. Não basta simplesmente denunciá-la como algo falacioso ou
negativo, mas compreendê-la como uma expressão distorcida e fetichista da
produção e reprodução material do mundo, neste caso, do capitalismo. Sabemos,
junto com Marx e outros camaradas do nosso partido histórico, que a ideologia
nada mais é do que outro exemplo das metamorfoses do valor como relação social.
Uma expressão da sua forma social objectiva no nível do pensamento e do
espírito. Um mundo dividido e fragmentado, como o capitalismo em que vivemos,
reproduz ideologias e teorias que fazem da divisão e da separação a base da sua
visão de mundo. Além disso, neste momento de desenvolvimento capitalista, em
que a sua crise é cada vez mais aguda, essas separações tendem a tornar-se mais
acentuadas. O dinheiro aparece, na sua virtualidade, como riqueza autêntica,
validada em si mesma. Vivemos em tempos em que o capital fictício se multiplica
geometricamente, com pouca relação com a produção real de valor. Quando estas separações
se tornam mais pronunciadas, torna-se possível uma teoria apaixonada pelos
simulacros puros da linguagem, independentemente da sua relação com a
realidade. Desejamos discutir e explorar tudo isto nas páginas que se seguem.
1. A derrota da vaga revolucionária da década de 1970
As décadas de 1960 e 1970 marcaram o fim
parcial do período contra-revolucionário, que tinha inaugurado a derrota da
importante vaga revolucionária que o proletariado mundial liderou de 1917 a
1927. Naqueles anos da segunda metade do século XX, da França à Espanha, de
Portugal ao México, da Argentina à Itália, da Polónia ao Irão, o proletariado
mais uma vez liderou uma vaga de lutas sem paralelo em força e intensidade
revolucionárias, mas que representou uma saída para o tédio contra-revolucionário
das décadas anteriores. Uma nova geração de proletários emergiu na luta de
classes e procurou esclarecer as suas posições: uma expressão parcial de como a
luta de classes emerge do solo desta sociedade e com ela, surgiram minorias que
moldam a expressão histórica do partido do proletariado. Essa vaga parcial de
lutas foi derrotada ao longo da década de 1980 não apenas pelas suas próprias
limitações, mas por uma força social (a do proletariado em luta) que ainda
estava em grande parte atolada nas confusões semeadas pela contra-revolução
vitoriosa (estalinismo, que finalmente entrou numa crise definitiva a partir de
1989, revelando assim a confirmação da sua natureza capitalista), mas também
porque o capitalismo e suas burguesias ainda tinham muito mais espaço de
manobra do que actualmente (a crise começou a manifestar-se em 1973/75), quando
os limites internos do capital estavam claramente a tornar-se aparentes. A
revolução foi sentida como uma urgência subjectiva, mas não como uma necessidade
material. Hoje vivemos no paradoxo inverso: o capitalismo revela claramente a
impossibilidade da sua existência no tempo (com a expulsão da força de
trabalho, o aumento geométrico da humanidade supérflua, o consumo acelerado do
planeta, etc.), bem como o potencial real do comunismo como modo de vida e
produção já possível com base no desenvolvimento material actual (a
possibilidade de implementar um plano de produção e reprodução da espécie sem
mercadorias e o dinheiro já está totalmente presente e possível) e, ao mesmo
tempo, a sua possibilidade subjectiva não é vista. Vivemos num eterno presente,
onde o horizonte do futuro parece quebrado na consciência dos proletários.
Nós, como comunistas revolucionários e
materialistas históricos, estamos convencidos de que as contradições do
capitalismo e a ameaça que ele representa para a sobrevivência da espécie e do
próprio planeta certamente levarão a um agravamento da luta de classes e dos
processos de polarização social, de classe contra classe. Trata-se de um
antagonismo que revela profundamente o choque entre dois mundos: capitalismo ou
comunismo, catástrofe ou espécie. Mas neste processo de antagonismo e
polarização social que estará cada vez mais presente, é muito importante como
nós, comunistas, demonstramos a dinâmica geral do processo e o alcance das
metas e objectivos da nossa luta (uma comunidade sem classes ou sem Estado). E,
para tanto, é fundamental também uma crítica determinada às correntes
ideológicas que são uma emanação do velho mundo e que, nesse sentido, consciente
ou inconscientemente lutam pela sua sobrevivência e sua catástrofe. A nossa
crítica ao pós-modernismo deve situar-se nesse terreno, a busca por clareza
diante de uma concepção que nos enraíza neste mundo.
E, de facto, o
termo pós-modernismo nasceu de um livro de 1979 de Lyotard chamado A condição pós-moderna. Como indicamos noutras ocasiões, Lyotard era um ex-membro do grupo de
extrema esquerda Socialisme ou
Barbarie (outros membros proeminentes eram
Castoriadis e Lefort), um grupo que havia rompido com o trotskismo em direcção
a perspectivas internacionalistas e uma procura por autonomia de classe após a
Segunda Guerra Mundial, mas que, no entanto, o fez levando consigo uma série de
confusões, como a tentativa de actualizar as reflexões de Marx sobre o
capitalismo ou a própria caracterização da URSS como uma sociedade burocrática
e não capitalista. Essas fraquezas seriam decisivas para o subsequente
desaparecimento do grupo. De qualquer forma, o que acreditamos ser importante
destacar é que o livro de Lyotard de 1979 marca o momento em que ele avalia o seu
passado. E esse momento já é o do fluxo e refluxo e da derrota que vem sendo
anunciada desde a década de 1980. As esperanças de 68 transformaram-se na
desilusão do refluxo. Nesse momento, emergem os indivíduos e as suas tentativas
de se reconciliar com a normalidade. A revolução não é mais uma realidade
material nascida da luta de classes e das contradições deste mundo, mas torna-se
uma ideia. E uma má ideia para Lyotard. Uma ideia que leva ao pior dos
desastres, ao totalitarismo, porque tem a pior das raízes: metanarrativas que procuram
uma redenção religiosa e teleológica, uma impossibilidade, em suma. Acreditamos
que é muito importante destacar essa origem porque ela contém a matriz política
e ideológica do pós-modernismo, uma teoria que tenta explicar uma época
histórica, a era pós-moderna e uma forma relativista de ver o mundo. No
entanto, é essencialmente uma teoria nascida da derrota da luta de classes e
desse ciclo de lutas proletárias que surgiu na década de 1960. É uma teoria que
concebe a contra-revolução a partir das categorias da contra-revolução, o
oposto do que afirmamos fazer, mas que finge um falso radicalismo ao procurar
desconstruir as categorias deste mundo e, portanto, exerce um fascínio
ideológico entre os activistas radicais. Mas a desconstrução verbal não
extingue este mundo; em vez disso, ela reforça-o.
Os autores pós-modernos, começando pelo
próprio Lyotard, veem no pós-modernismo uma nova época histórica. Essa tese é
defendida não apenas por eles, mas até mesmo por alguns dos seus críticos académicos
(Jameson), que encontra aqui uma nova era objectiva (Jameson fala do
capitalismo tardio) que também implica uma nova abordagem subjectiva da
cultura, da arte e do pensamento. Por exemplo, na arquitectura, o funcionalismo
artístico da Bauhaus ou Le Corbusier e os seus edifícios em forma de colmeia
para proletários é substituído pelos edifícios de Robert Venturi, Moneo ou
Calatrava, que privilegiam a heterogeneidade de estilos, um retorno ao passado
e os estilos específicos de cada país. Se pensarmos num edifício como o Centro
Pompidou, em Paris, não é exactamente um edifício onde prevalece a harmonia ou
a funcionalidade, e é isso que chama a atenção e surpreende. Da mesma forma, no
pensamento, a procura do desejo prevalece sobre a razão esclarecida, a dúvida
sobre os absolutos. E a perspectiva de classe é substituída por novos
movimentos sociais de natureza identitária. Esta é uma nova era marcada por uma
concepção diferente do mundo. E é assim que os seus autores nos apresentam.
Não negamos as mudanças e transformações
no capitalismo, mas sempre sustentamos que os seus fundamentos categóricos
permanecem os mesmos. Na realidade, o que estamos a testemunhar é um aprofundamento
da crise do capitalismo, um mundo que está a perder força no meio de uma crise
que nega os seus próprios fundamentos, gerando uma vida sem sentido através de
uma erosão das instituições tradicionais que antes organizavam a vida das
pessoas. Estamos a referir-nos à profunda crise das organizações tradicionais
do movimento operário, partidos e sindicatos de esquerda do capital, da
família, da vida de bairro. Esse processo de erosão e o que ele gera, na forma
de mal-estar generalizado, dificuldade em encontrar certezas e segurança fixa,
é o que cria o terreno fértil para muitas perspectivas pós-modernas. Dessa
forma, o pós-modernismo é uma expressão desse mundo em crise, mas que permanece
amarrado às suas categorias, às categorias do capital. Um mundo em crise onde as
suas próprias categorias têm uma relação cada vez mais disfuncional e separada
entre si: entre economia produtiva e capital fictício, entre economia e
Estados, entre as suas realidades nacionais e transnacionais. É um mundo
burguês que está cada vez mais exausto, em crise, e, nesse sentido, dizemos que
é uma forma social objectiva do espírito burguês: uma maneira de pensar sobre
este mundo que expressa as categorias sociais que o sustentam.
O pós-modernismo nasceu em universidades
francesas e norte-americanas; isto é, é um produto da academia. Na realidade, o
que normalmente chamamos de pós-modernismo é em grande parte uma corrente
específica da filosofia burguesa da segunda metade do século XX: o
pós-estruturalismo, uma corrente encarnada por Foucault, Derrida, Deleuze,
Guattari e uma longa lista de autores que, vindos do estruturalismo filosófico,
constroem uma teoria que torna a subjectividade e a vontade centrais para
pensar a filosofia. Esses autores, juntamente com outros de diversas origens, partilham
uma crítica mais ou menos contundente da obra de Marx. Isso é especialmente
verdadeiro para a perspectiva comunista do proletariado como uma classe
universal e para a concepção materialista da história como base para analisar a
realidade. Ao mesmo tempo, o estalinismo e o pós-modernismo são dois pólos
opostos da mesma unidade, valendo-se de origens comuns e em constante diálogo
com ela. Basta considerar a relação de Foucault com Althusser, que compartilham
um estruturalismo comum. Como dissemos, o pós-modernismo como movimento teórico
nasce de uma exaltação da subjectividade, um sujeito fermentado no seu próprio
molho epistemológico. Não há causalidade entre o sujeito cognoscente e a
realidade conhecida e, portanto, não há critérios objectivos de verdade. Por
outro lado, esse subjectivismo também leva ao voluntarismo político, uma vez
que não há relação entre a vontade do indivíduo e uma perspectiva que a
transcenda e a englobe. O sujeito não procura a emancipação e a libertação
humanas, o que na verdade seria uma metanarrativa religiosa que leva ao
totalitarismo. Muito pelo contrário, o sujeito procura alcançar o seu próprio
desejo rizomático e, portanto, também se constitui no desejo da sua própria
vontade. Tudo o que é desejado é bom.
Assim, podemos começar a definir algumas
das características que unem autores muito diferentes que identificamos como
parte desse movimento.
- Essa crítica da ideia
de verdade implica o desafio de toda a teoria revolucionária como
expressão teleológica e religiosa, como narrativa que esconde um sonho
gnóstico de redenção religiosa, de impor uma provação religiosa ao mundo
terrestre. Obviamente, para as visões pós-modernas, a teoria
revolucionária é uma visão entre outras, mas, como bons teóricos burgueses
diriam, também é perigosa e falha. Portanto, o pós-modernismo é uma teoria
contra a revolução e a reduz a uma ideia entre outras, e não ao movimento
real que nega este mundo – isto é, uma perspectiva que tem fundamentos
materiais profundos neste mundo.
- Argumenta-se que uma
crítica mundial deste mundo é impossível, impossível de conceber e
impossível de praticar. Tudo o que nos resta são as margens. O
pós-modernismo foge dos centros e elogia e exalta as diferenças e a
heterogeneidade. Opõe-se à totalidade que chama de totalitarismo e assume
fragmentos como expressão ao alcance dos desejos da vontade humana. Na
realidade, isso reforça a impossibilidade de questionar o fundamento que
sustenta a unidade opressora deste mundo.
- Esse relativismo
extremo coexiste coerentemente com a redução da realidade deste mundo a
representações teóricas. O que importa é o sujeito cognoscente, não o objecto
conhecido. Os conceitos e categorias do sujeito, suas representações
conceptuais, seus discursos e seus textos. Tudo é linguagem; A realidade é
filtrada exclusivamente por palavras e linguagem - palavras que, como
sabemos, não têm razão para nos dizer algo verdadeiro sobre a realidade.
Para autores pós-modernos proeminentes, como Derrida, essa relação entre
pensamento e realidade é uma forma de metafísica da presença. O objecto
nunca é dado em termos imediatos ao nosso conhecimento, o que é verdade,
mas não por uma mera razão ontológica e a-histórica, mas sim por causa de
como vivemos num mundo opaco dominado pelo capital. Somente descobrindo
esse fetichismo comercial podemos compreender a realidade que nos domina.
- Se a realidade é uma
construção (performativa) do sujeito, da sua linguagem, das suas
representações... É óbvio que o pós-modernismo se opõe radicalmente ao
determinismo do materialismo histórico, um determinismo que não é uma
forma de fatalismo. Tudo é produto da vontade humana; A contingência e o
acaso dominam a causalidade e o determinismo nos discursos pós-modernos.
Essa exaltação da liberdade é consistente com as doutrinas anteriores: a
realidade nada mais é do que uma expressão das representações dos
sujeitos; A emancipação humana não pode ter nenhum fundamento real, porque
de outra forma seria totalizante e totalitária. As acções dos sujeitos são
pura expressão da sua identidade e da sua vontade e nunca, portanto, de
interesses e dinâmicas materiais.
- Uma filosofia da
identidade que se opõe aos processos materiais de polarização social e à
constituição de classes sociais. Para os teóricos pós-modernos, tudo é
resultado de sujeitos que autodeterminam a sua identidade ou, ao
contrário, veem a sua identidade moldada pelo olhar dos outros. Não há
processos materiais que moldem os sujeitos desta sociedade; isto é, não há
classes sociais. Pelo contrário, para nós, as classes não são uma
expressão de identidades sociais e subjectivas, mas das divisões e cismas
materiais deste mundo dominado pelo capital e dos movimentos de luta que,
a partir de contradições e antagonismos materiais, segregam o proletariado
como uma classe social que se constitui como partido, como disse Marx,
isto é, como uma subjectividade organizada contra os fundamentos deste
mundo. Mas todo esse processo é dominado pelo determinismo da realidade
material. Identidade e classe social não são análogas e não combinam bem.
O proletariado não é uma identidade entre outras que podem ser
acompanhadas pela tríade pós-moderna de classe, raça e género. Além disso,
a opressão patriarcal ou racial do próprio capitalismo não pode ser
entendida a partir de uma perspectiva identitária. A fixação identitária
do pós-modernismo é consistente com o voluntarismo e o anti-determinismo
que cercam todas as suas noções teóricas.
- Identitarismo,
relativismo, crítica da teleologia e das metanarrativas, a impossibilidade
de uma perspectiva emancipatória. Tudo isso implica uma crítica ao
essencialismo e ao dogmatismo que nós, comunistas, que desejamos negar
este mundo, empregaremos. E, de facto, entendemos que o capitalismo é
constituído por categorias que são essencialmente as mesmas a partir do
momento em que emerge como o modo de produção dominante, que há um
contraste entre as necessidades humanas e a dinâmica do capital, e que,
portanto, podemos falar de uma natureza humana que, como todas as formas
de invariância, é dinâmica e não estática, Mas isso contém aspectos
essenciais: todo o ser humano precisa reproduzir o seu próprio sustento, é
um ser comunitário e tem faculdades racionais e sentimentais. Somos seres
naturais dotados de faculdades que, se não forem desenvolvidas e
implementadas, implicam uma alienação do nosso ser no mundo, como
explicaram Marx e o movimento comunista desde os seus primórdios. Estes
são os fundamentos materiais do antagonismo e do contraste do proletariado
em relação ao capitalismo. A negação disso, o anti-essencialismo
pós-moderno, sua negação da existência de fundamentos materiais, por sua
vez, implica a negação dos interesses sociais que surgem e fundamentam a
existência. Isso implica, como vimos, que tudo é reduzido a uma questão de
identidade, não de existência material. O dualismo entre sujeito e objeto
que subjaz à teoria pós-moderna, e seu subjectivismo dominante, implica a
redução dos conflitos sociais a questões de identidade e reconhecimento de
sujeitos.
- A impossibilidade de
alcançar uma verdade sobre este mundo e uma prática libertadora. Essas
são, portanto, teorias de impotência social porque, se nada é mais
autêntico do que outra coisa, não há base para lutar contra este mundo,
nem qualquer perspectiva melhor para superar a ordem existente. Portanto,
é uma visão relativista do mundo.
2. O individualismo metodológico da pós-modernidade
Achamos interessante contar uma anedota
para começar esta secção, que já experimentamos em várias outras ocasiões de
maneira semelhante. Numa discussão sobre 68 e críticas ambientalistas radicais
a este mundo, fomos informados de que a nossa perspectiva era interessante, mas
abordava apenas a economia, e que o foco da análise precisava ser ampliado para
abranger todas as formas de opressão. E essa reflexão anti-industrial depois de
1968 ajudou nisso. Este pequeno exemplo contém uma visão de mundo que é típica
da sociologia burguesa e que todos os teóricos pós-modernos adoptam
implicitamente.
Para eles,
vivemos num mundo opressor, mas constituído por uma multiplicidade de fontes
que explicam o poder social. Analisar o capitalismo é apenas entender uma das
bases da dominação, neste caso a económica. Mas a análise deve ser
complementada com uma leitura da opressão de género, do colonialismo que
constitui a relação entre raças e países, do meio ambiente e de uma concepção
consumista e produtivista que esgota o planeta. Somente a partir dessa
perspectiva pluralista podemos ter uma visão actualizada da dominação do
sistema sobre as nossas vidas. Este seria, de uma forma menos esquemática, o
tipo de abordagem com que somos confrontados. E isso simplesmente não é
verdade. Não há multiplicidade de opressões que nós, como indivíduos, possamos
sintetizar através das nossas lutas interseccionais. Permanecer nessa ideia é
ficar preso à maneira como o capitalismo aparece para as pessoas nas suas vidas
diárias, na sua existência. O capitalismo separa-nos numa diversidade de
esferas, fragmentadas umas das outras, e faz com que cada uma delas pareça
dotada de autonomia, com o seu próprio poder, hipostasiada, fetichizada. É uma
verdade parcial (é assim que a realidade aparece para os sujeitos) que esconde
a falsidade constitutiva do capitalismo como relação social mundial. A política
aparece como o terreno privilegiado da tomada de decisão colectiva, o direito
como a esfera das normas de conduta cívica, a família como o lugar de
convivência pessoal e privada, dos afectos, o mercado como a instância em que
os actores económicos trocam bens, serviços e factores de produção. Esta é a
maneira vulgar pela qual o capitalismo aparece para nós. Não por coincidência,
o que foi dito até agora é a base de teorias específicas do liberalismo
político e económico, por exemplo, a teoria neo-clássica. Os autores
pós-modernos são mais críticos nas suas análises, mais inclinados a Max Weber
do que à economia vulgar. E, portanto, são críticos. Mas o crítico criticismo não é suficiente, como Marx e Engels bem sabiam,
para negar este mundo. Os autores pós-modernos revelam a armadilha que se
encontra diante de nós. Nem tudo é cor-de-rosa. Temos de desconstruir. A lei é
um dispositivo bio-político que molda as identidades das pessoas a partir de
uma perspectiva de controlo social. A família é um terreno de opressão
patriarcal, e a cidadania esconde um homem branco, cis (O
que é ser uma pessoa cis? O termo “cisgénero” é usado para definir pessoas que
se identificam com o género que é designado quando nasceram , o qual é
associado socialmente ao sexo biológico. Noutras palavras, são pessoas nascidas
com pénis que se identificam como homens e pessoas nascidas com vagina que se
identificam como mulheres – NdT)), patriarcal,
que seria o sujeito que domina o mundo. Ora, esse esforço é, sem dúvida,
crítico em relação à forma como esse mundo surge, mas não revela a sua razão de
ser, o seu fundamento. Não é por acaso que os pós-modernistas evitam a questão
da origem. Apesar dos seus esforços genealógicos e arqueológicos, não há origem
que nos permita compreender o surgimento das categorias que nos dominam de
forma concreta e prática. Em última análise, tudo é resultado de uma vontade de
poder e dominação de alguns sujeitos sobre outros. De homens contra mulheres,
brancos contra pessoas racializadas, heterossexuais contra homossexuais,
capacitistas contra pessoas com deficiência. E tudo numa multiplicidade de
combinações que constituem uma complexa intersecção de privilégios e contra-privilégios.
Ora, toda essa argumentação ainda explica
muito pouco e, na realidade, falsifica o ponto essencial. É uma espécie de
tipos ideais (como na sociologia de Weber) onde a dinâmica dos comportamentos
plurais dos indivíduos é generalizada. Como em toda sociologia comportamental,
o importante é analisar essas atitudes e, a partir daí, construir modelos
gerais que nos permitam universalizar e generalizar esses comportamentos
humanos. Essa visão pressupõe o indivíduo como a força motriz do seu próprio
comportamento (daí o individualismo metodológico), e o objectivo é observá-lo e
considerá-lo teoricamente. Ele move-se do concreto para o abstracto. E o
concreto seria o comportamento social dos indivíduos. Nesse caso, indivíduos
mais ou menos privilegiados, com mais ou menos reconhecimento social, com mais
ou menos vontade de poder. Mas o ponto de partida é sempre o indivíduo e a sua
auto-expressão social.
E se o concreto fosse realmente um produto
histórico? E se o concreto fosse, por sua vez, uma síntese de múltiplas
determinações abstractas? Este é o ponto de partida de Marx e o nosso. O
indivíduo, separado da comunidade, é um produto histórico do capitalismo, assim
como a própria existência em instâncias separadas da economia, da política, das
relações público-privadas, do direito, das nações. Partir dessas fontes de
poder social como a esfera natural na qual os sujeitos agem nada mais é do que
permanecer dentro do terreno próprio do mundo capitalista, mas acreditando que
é algo natural e não histórico, neutro e não uma instância de reprodução e
dominação social. O paradoxo do pós-modernismo é que, ao procurar questionar
tudo, ele simplesmente naturaliza a base constitutiva e histórica do
capitalismo. É nesse sentido que dizemos que o concreto é uma síntese do abstracto,
ou seja, das categorias abstractas do capitalismo que permeiam e constituem o
mundo da práxis humana dominado pelo capital. O pós-modernismo naturaliza os
comportamentos dos indivíduos, ou no máximo explica-os como resultado de
diferentes concepções ou vontades de poder em conflito, quando na realidade são
uma expressão da forma como o capitalismo produz um certo tipo de antropologia
individual e humana.
O capitalismo é um modo de produção com
uma origem muito precisa. Historicamente, surgiu das rupturas das comunidades
camponesas na Europa, que forçaram esses camponeses a tornarem-se proletários
vendendo a sua força de trabalho, e a um mercado mundial que se expandiu
decisivamente com a conquista castelhana e portuguesa da América. Ao vender a sua
força de trabalho ao capital, o proletariado faz com que o capital se valorize
(ou se expanda) produtivamente. O capital incha de valor; assim aumenta. O
capital não é, na realidade, nada mais do que mais-valia, isto é, valor inchado
de valor, valor em constante crescimento. É isso que faz do capitalismo um modo
de produção dominado pelo capital, por essa forma social que é o valor
impulsionado por um desejo implacável de crescer. É um sistema onde as relações
entre as pessoas estão subordinadas às coisas sociais, que têm o seu próprio
movimento e constituem uma espécie de segunda natureza. O que é originalmente
claramente uma relação social violenta aparece para os sujeitos como algo
natural. A narrativa que emerge das profundezas da sociedade capitalista diz-nos
que é normal acordar todas as manhãs para ir trabalhar, pois temos que viver de
alguma forma. É normal vender a nossa força de trabalho em troca de um salário.
É normal que o dono do factor de produção (as máquinas) que aluga a nossa força
de trabalho se aproprie dos frutos do nosso trabalho, que é cada vez mais colectivo.
Tudo é perfeitamente normal porque é um contrato acordado entre sujeitos livres
e iguais na sua vontade abstracta. Tudo isso ocorre num mercado específico,
como o mercado de trabalho. Noutras palavras, o que é uma relação social de
exploração parece natural aos sujeitos envolvidos, impulsionada por forças
sociais fora do seu controlo e que se tornam autónomas. É por isso que Marx
fala do capital como uma força impessoal (não controlada por nós), que se move
por uma dinâmica automática e que nos torna apêndices (coisas) sujeitos à sua
força.
Essa é a relação social que a pós-modernidade
tende a naturalizar. Além disso, essa relação social mediada pelo capital não
se expressa apenas na esfera económica, mas condensa-se e cristaliza-se em
múltiplas determinações e terrenos através dos quais as actividades humanas, as
reflexões, as circunstâncias, os modos de pensar e as trocas são objectivados e
autónomos em relação às pessoas que os sustentam. Dessa forma, podemos falar de
diferentes metamorfoses da forma do valor, nas diferentes instâncias da vida
social, que veiculam a lógica fetichista e reificadora do capitalismo. O
capitalismo não apenas reifica as relações económicas, mas as suas metamorfoses
afectam tudo. O capitalismo não explica tudo, mas nada pode ser entendido se
não entendermos o capitalismo. A lógica da forma-valor é reproduzida através de
uma multiplicidade de separações e clivagens que lhe são inerentes: entre a
produção e a circulação de mercadorias, entre a esfera da produção (trabalho
assalariado) e a da reprodução (a esfera privada das famílias e da educação dos
filhos, a localização privilegiada da estrutura patriarcal do capitalismo),
entre a esfera privada da sociedade civil e a do Estado, entre o direito
comercial e o direito público, entre cidadãos e operários, entre seres humanos
e natureza, entre o corpo e a mente. Todas essas formas são intrínsecas à
lógica do valor na sua reprodução perpétua e impessoal. Não são expressões de
comportamento individual livre ou de qualquer vontade pessoal de poder, mas sim
maneiras pelas quais a lógica do valor coagula num processo permanente. Isso é
o que nem todos os teóricos burgueses entendem, pois baseiam as suas análises
na naturalidade social do capital. No máximo, podem questionar os efeitos mais
danosos, lutar por uma distribuição mais justa do valor ou pelo reconhecimento
das vítimas da dinâmica do capital. Mas sempre sem questionar a mesma dinâmica.
Sem entender que a sombra do capital está por trás de todos esses movimentos. O
facto é que a relação social capitalista não é apenas uma expressão das
relações de produção entre capital e trabalho. Quando falamos de capitalismo,
não estamos a falar apenas de economia; Pelo contrário, é a totalidade social
que é a expressão da dinâmica do capital em movimento, em metamorfose, onde
assume novas formas sob a forma de direito, democracia, cidadania. A nossa
crítica ao capital também é, inseparavelmente, uma crítica à política, ao
patriarcado e ao direito.
Não estamos, portanto, a falar de uma
relação social que é uma combinação cumulativa de redes, interacções e
instituições, mas, ao contrário, de uma única lógica social que inscreve
comportamentos sociais nas metamorfoses da forma de valor do capital. Portanto,
os comportamentos sociais não podem ser entendidos (como o pós-modernismo e a
sociologia burguesa concebem) fora dessa análise dos movimentos do capital
social, muito menos como um ponto de partida para a crítica social.
Esta é a grande diferença de método
teórico entre o nosso partido histórico e outras correntes críticas ao
capitalismo, mas que permanecem sob a longa sombra do capital. Os
pós-modernistas, como expressão típica da sociologia burguesa, partem de uma
visão analítica baseada na forma como a realidade aparece para os sujeitos e a
partir daí fazem uma generalização que permanece presa na dinâmica impessoal do
próprio capital. As relações sociais, que se desdobram através de múltiplas
máscaras, não são directamente visíveis ou perceptíveis para as pessoas no seu
isolamento social. Máscaras como a tecnologia, a estética da mercadoria, a
profusão de objectos, o consumo, a democracia e a vontade geral, os direitos
humanos. Todas elas são expressões do mesmo ser social: o capital e a sua
lógica abstracta. Não é visível, mas actua como o verdadeiro princípio da
realidade. O capital é um conjunto de abstracções que configuram a sua dinâmica
social e, como dizemos, são inseparáveis do seu próprio movimento. Ignorar a
sua origem e ligação comum, entendê-los como entidades autónomas e
independentes, desarma-nos e torna a nossa crítica impotente. O trabalho
assalariado e a família patriarcal, a cidadania e a lei, a democracia e a nação
são expressões do mesmo mundo social, o do indivíduo abstracto que rompeu a sua
ligação com as comunidades pré-capitalistas. O capital é o verdadeiro espírito
do mundo, mesmo que nunca apareça como tal na sua imediatez, mesmo que medie as
relações entre as coisas sociais ou entre formas de pensamento reificadas e
socialmente produzidas. É contra esta base material que devemos dirigir-nos. O
patriarcado reinante ou o ecocídio não são o simples produto de concepções do
mundo, mas expressões enraizadas na materialidade de uma dinâmica social. Por
esta mesma razão, não podemos desconstruir o patriarcado para acabar com ele ou
ser menos consumistas para impedir o ecocídio. Apenas uma materialidade mais poderosa
é capaz de destruir o monstro oculto que se acredita omnisciente na sua
metamorfose automática. O comunismo é o movimento real que nega todas estas
formas, para se afirmar e negar o capital.
3. A vontade de
poder como sua origem?
Pelo que vimos até aqui, podemos entender
que existe uma lógica de identidade que é intrínseca a essa sociedade, e que
surge dos seus próprios fundamentos e parâmetros. A identidade como auto-consciência
numa sociedade classista e, portanto, opressora não pode deixar de reproduzir
os fundamentos da sociedade que a produz continuamente. Portanto, as políticas
identitárias, que são a expressão ideológica mais imediata do pós-modernismo,
sempre operam dentro das categorias deste mundo. Eles não entendem a sua origem
ou por que se reproduz, nem as suas categorias ou como terminá-las.
Para o pós-modernismo, tudo é uma questão
de poder. No entanto, a origem da dominação não é muito clara. Tudo se reduz a
uma vontade de poder de alguns sujeitos sobre outros, de algumas concepções do
mundo sobre outras. Estamos condenados a um conflito perpétuo do qual não há
escapatória. É uma guerra de todos contra todos, que só pode ser resolvida
através do reconhecimento legal, pelo Estado, da identidade subalterna. Não é
por acaso que no final, embora de uma maneira diferente, chegamos à mesma
conclusão de Hobbes. O Estado, como representação de múltiplas identidades,
serve como mediador. Só ela pode mediar esse conflito perpétuo através do
reconhecimento de identidades subalternas: através de leis a favor das pessoas
trans, através de políticas a favor das pessoas racializadas nas escolas, através
de políticas de lembrança do passado colonial, o derrube de estátuas de
ex-proprietários de escravos. O problema com essas políticas, como tudo o que o
Estado faz, é que, em vez de resolver e aliviar a opressão, o que eles fazem é
amplificá-la a um nível superior. As origens dessas opressões reais (racismo,
patriarcado, falta de sentido na vida vivida por muitas pessoas hoje) têm uma
raiz comum na forma como o capitalismo organiza mundialmente a sua exploração e
o conjunto de opressões que experimentamos. Nenhuma lei eliminará o racismo. A
competição capitalista é o combustível que acende permanentemente o motor
racista. É o mundo capitalista, a sua própria antropologia, a competição
permanente organizada em identidades colectivas nacionais, que eleva o racismo
a algo intrínseco ao próprio capitalismo. Portanto, a própria história do
capitalismo está inseparavelmente ligada à dessas opressões.
Mas partir de
uma visão identitária, que reduz tudo a sujeitos conflitantes movidos por uma
vontade de poder, implica logicamente reproduzir a separação ad infinitum. Há sempre um Outro sobre o qual a opressão é exercida e que precisa ser
reconhecido. A lógica da dominação pós-moderna e a da exploração, defendida
pelo nosso partido histórico, são antagónicas. A exploração capitalista
pressupõe a existência de uma totalidade abstracta, o valor, que reproduz e
unifica a sua dominação em todas as esferas da vida. Como os sujeitos
experimentam essa exploração e dominação só podem ser entendidos a partir dessa
totalidade concreta. Parcializar a dominação em diferentes segmentos
simplesmente serve para não entender nada e operar dentro de uma totalidade,
que é o capitalismo, de suas próprias categorias. Isso é o que acontece com a
política de identidade pós-moderna. E, portanto, ao agir, eles só podem referir-se
aos canais apropriados que o próprio capitalismo, na sua reprodução impessoal,
apresenta. Se existe uma identidade subalterna, devemos lutar para que o Estado
a reconheça e lhe conceda direitos. A própria base da política de identidade é
a democracia e o Estado, a nação e a lei como conectores sociais da identidade
dos sujeitos. A política de identidade deriva das separações e fragmentações
deste mundo e só pode tentar uma unidade e estabilidade fracassadas através das
categorias que este mundo oferece. Como veremos na secção sobre
interseccionalidade, a importância dos estudos e práticas jurídicas para o
reconhecimento de direitos para activistas identitários não é coincidência. É a
consequência lógica das suas próprias posições teóricas.
A nossa
perspectiva não é alcançar o reconhecimento deste mundo, mas fazê-lo explodir.
É a lógica da negação afirmar a verdadeira comunidade humana (Gemeinwesen), uma comunidade que só pode emergir da negação dos fundamentos materiais
deste mundo: mercadorias, classes sociais, estados e nações. Noutras palavras,
não se trata de reconhecimento ou distribuição de poder ou recursos, mas sim da
negação radical das categorias do capitalismo. O nosso movimento tem
historicamente chamado a este movimento negativo, que afirma a comunidade
humana, de comunismo: este movimento real que nega e supera o estado actual das
coisas. O proletariado é a classe revolucionária (e não apenas a explorada) na
medida em que os proletários "não têm que realizar nenhum ideal, mas simplesmente dar rédea solta aos
elementos da nova sociedade que a velha sociedade moribunda carrega dentro de
si" (Marx, A Guerra Civil na França). E isso é possível na medida em que o proletariado assume:
“A formação de uma classe em cadeias radicais, de uma classe da sociedade
burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa, de uma classe social que é
o desaparecimento de todas as classes sociais; de um sector que deriva um carácter
universal do seu sofrimento universal e não reivindica nenhum direito especial
porque não sofre injustiça social, mas da própria injustiça, que não pode mais
apelar para um pretexto histórico, mas para um pretexto humano que não está em
contradição particular com as consequências, mas em contradição universal com
as premissas da ordem pública alemã; de um sector, finalmente, que não pode
emancipar-se sem emancipar-se de todos os outros sectores da sociedade e sem
emancipá-los por sua vez; significa, numa palavra, que a perda total do homem
só pode ser remediada com a recuperação completa do homem. Essa dissolução da
sociedade, na forma de uma classe especial, é o proletariado.”
Como vemos, para nós e para o nosso
partido histórico, o proletariado é, ao mesmo tempo, uma classe explorada e
revolucionária. É revolucionária porque, no movimento material e real de defesa
das suas necessidades humanas, afirma a necessidade de dissolver todo este
velho mundo, que chamamos de capitalista, e de afirmar um novo mundo que já
está potencialmente activo nas profundezas do antigo. O proletariado não
reivindica um direito especial, mas luta para acabar com todas as formas de lei
e, consequentemente, do Estado. O proletariado é a causa agente da dissolução
da sociedade capitalista, como afirma Marx. Para isso, deve dissolver todas as
separações e fragmentações inerentes a este mundo, a fim de afirmar a
comunidade comunista material. O proletariado não afirma os seus interesses e
direitos dentro deste mundo, mas luta para se negar a si mesmo, negando todo o
mundo do capital: não apenas a economia, como terreno de produção e realização
de valor, mas a política como mediação social das vontades humanas, o
patriarcado como cristalização das relações de género, o racismo como relação
violenta e opressiva com o outro. Na perspectiva de Marx, a luta entre classes,
a guerra social inerente ao capitalismo, deve ser entendida dentro do conflito
mais global entre capitalismo e comunismo. O proletariado é, muito
simplesmente, o agente desse movimento em direcção ao comunismo, na medida em
que, para defender as suas necessidades humanas, deve afirmar-se como classe,
constituir-se como partido e, através da revolução mundial, criar as condições
de possibilidade para, em última instância, negar-se a si mesmo e ao
capitalismo. É o único sector deste mundo que luta para se negar a si mesmo em
todos os níveis da sua existência.
Nem reconhecimento nem distribuição:
negação comunista.
4. Modernidade
ou pós-modernidade?
O próprio facto de falar de modernidade ou
pós-modernidade já pressupõe uma concepção teórica estranha à nossa perspectiva
e método. Não é por acaso que falamos de modos de produção e não de
civilizações. Falar de modernidade implica falar de uma civilização marcada por
uma visão de mundo (o Iluminismo) e práticas sociais secularizadas na política.
A abordagem dominante, mais uma vez, é a de Max Weber. O que domina essas
abordagens são perspectivas em que a análise é canalizada através da
centralidade das ideias, da cultura, da vontade de dominar, dos comportamentos
sociais. Os processos são inelutáveis, mas não a partir da lógica do nosso
determinismo histórico. O seu determinismo é fatalista e pressupõe sempre um
beco sem saída, sem saída emancipatória. A modernidade contém em si mesma a
jaula de ferro que aprisiona as nossas vidas numa racionalidade instrumental.
Tornamo-nos apêndices de uma máquina burocrática que encerra, em si mesma, os
aspectos qualitativos das nossas vidas. Superficialmente, a perspectiva não é
tão diferente da do fetichismo da mercadoria de Marx, mas o ponto de partida e
o resultado são completamente diferentes. O nosso método é diametralmente
oposto.
Partindo de uma abordagem materialista e
histórica, que entende o capitalismo como uma contradição em andamento, permite-nos
entender que, na sua materialidade, o mundo capitalista é muito mais
contraditório do que a sociologia e a filosofia burguesas estão dispostas a
admitir, e que, em última análise, procedem nas suas análises a partir das suas
próprias categorias. A famosa gaiola de ferro de Weber não é o resultado de
mera e inevitável complexidade social, mas de uma lógica, a da mercadoria
generalizada a todos os aspectos da vida, que nos torna coisas e instrumentos
para os outros e automaticamente concede personalidade às mercadorias e coisas.
A racionalidade instrumental nasce disso. Mais uma vez, testemunhamos um
exemplo de como as ciências sociais modernas nada mais são do que formas objectivas,
no pensamento, das categorias do capital. A modernidade como conceito nada mais
é do que o resultado da generalização de diferentes tipos ideais que surgem das
experiências e identidades dos comportamentos sociais neste mundo. E,
obviamente, os comportamentos sociais são experimentados pelos seres humanos de
maneira semelhante a uma prisão. Vivemos uma vida confinada, sufocante e cada
vez mais sem sentido. A modernidade é tudo isso, e está a tornar-se cada vez
mais profunda. Não é uma lógica simples; é a materialidade concreta que nasce e
engloba tudo neste mundo.
E, ao mesmo
tempo, é uma totalidade dinâmica, contraditória e dialéctica. Esta última
palavra, mágica para alguns como se fosse um fetiche, é, no entanto,
fundamental para Marx e sua abordagem. Marx sempre analisa os pólos
contraditórios de toda a realidade social, de todo o modo de produção. O
capitalismo é, ao mesmo tempo, uma catástrofe, mas no seu próprio
desenvolvimento prepara a sua negação. Portanto, a perspectiva de Marx não é a
de um retorno a um passado idílico e remoto, mas sim a da comunidade universal,
o comunismo como um projecto para a espécie. O capitalismo está a morrer de
complexidade social. O desenvolvimento das forças produtivas não se encaixa
mais no quadro estreito das relações sociais capitalistas. Não podemos mais
viver sob a égide do valor, do dinheiro, das mercadorias e do trabalho abstracto.
Como Marx explica claramente nas suas notas preparatórias para O Capital, os Grundrisse:
“Além disso, o capital aumenta o tempo de trabalho excedente das massas por
todos os recursos da arte e da ciência, uma vez que a sua riqueza consiste directamente
na apropriação do tempo de trabalho excedente; uma vez que o seu objectivo é
directamente o valor, não o valor de uso. Desta forma, apesar de si mesmo, é instrumental
na criação dos meios de tempo social disponível, a fim de reduzir o tempo de
trabalho de toda a sociedade a um mínimo decrescente e, assim, libertar o tempo
de todos para o seu próprio desenvolvimento. A sua tendência, no entanto, é
sempre, por um lado, criar tempo disponível e, por outro, convertê-lo em
trabalho excedente. Se tiver demasiado sucesso na primeira, experimenta a
sobreprodução e, então, o trabalho necessário será interrompido, porque o
capital não pode valorizar qualquer trabalho excedente. Quanto mais esta
contradição se desenvolve, mais evidente se torna que o crescimento das forças
produtivas já não pode estar ligado à apropriação do trabalho excedente dos
outros, mas que a própria massa operária deve apropriar-se do seu trabalho
excedente. Uma vez feito isso — e com isso, o tempo disponível deixará de ter
uma existência antitética —, por um lado, o tempo de trabalho necessário
encontrará a sua medida nas necessidades do indivíduo social e, por outro, o
desenvolvimento da força produtiva social será tão rápido que, embora a
produção seja agora calculada em termos da riqueza comum, o tempo disponível de
todos aumentará.”
O problema não
é de complexidade social; É que o grau de desenvolvimento material que a
humanidade alcançou implica uma bifurcação irreversível: catástrofe capitalista
ou comunismo. Tertium non
datur. Não há mal menor ou outras alternativas.
O nosso determinismo histórico e dialéctico não tem nada a ver com o fatalismo
das interpretações modernas ou pós-modernas do capitalismo. O comunismo é o
modo de produção e de vida possível para a nossa espécie no actual estado de
desenvolvimento histórico. Na verdade, é o único possível se não quisermos cair
numa catástrofe cada vez mais profunda.
Modernidade e pós-modernidade são o binómio
amplamente discutido hoje pela sociologia e filosofia burguesas: de um lado, os
defensores da modernidade e do Iluminismo, como Habermas; do outro, os seus
críticos, os autores pós-modernos nas suas várias versões. Para nós, essa é uma
falsa dicotomia.
Por um lado, filósofos como Habermas
defendem o Iluminismo europeu como um emblema da razão e do avanço humano. A
modernidade, com o uso da razão na esfera pública, permite uma racionalidade
comunicativa baseada num "mundo da vida" que pode e não deve ser
colonizado pelas estruturas do sistema social. O Iluminismo e a modernidade
existem nesse conflito, entre a gaiola de ferro weberiana e a possibilidade de
uma racionalidade comunicativa que desenvolve o mundo da vida dos seres
humanos, sua âncora mais profunda. O Iluminismo e a modernidade filosófica
permitem essa abertura positiva para a vida através da política, o que impede
que os sistemas económicos e políticos se separem dos seus fundamentos
antropológicos mais profundos. Habermas e os seus oponentes pós-modernos têm
muito mais em comum do que ousam admitir. Como já vimos em relação aos
pós-modernistas, Habermas também começa com o comportamento dos sujeitos
estruturados de forma simbólica e comunicativa para pensar a sociedade. Noutras
palavras, é a identidade dos sujeitos e suas acções que nos ajudam a pensar o
funcionamento dos sistemas sociais. Assim, Habermas é incapaz de compreender
porque é que os processos de autonomização dos sistemas sociais, políticos,
culturais e económicos ocorrem. Para fazer isso, devemos entender os
fundamentos da produção e reprodução social, e estes não são encontrados
principalmente no comportamento social. Pelo contrário, o comportamento social
é um produto deles.
Apesar de tudo, Habermas, de forma
voluntarista e idealista, apresenta-se como um defensor da racionalidade
moderna, como um projecto inacabado. O Iluminismo permite-nos confrontar as
deficiências dos seus limites com o uso da razão autêntica e uma democracia
deliberativa que desdobra a acção comunicativa. Pelo contrário, para os autores
pós-modernos, a origem do mal decorre claramente da própria modernidade e de
tudo o que ela implica. Uma perspectiva teleológica do desenvolvimento humano
em direcção à emancipação que, na realidade, esconde uma secularização da
narrativa religiosa, uma forma de gnosticismo, desta vez envolta em ideologias
radicais (anarquistas e/ou comunistas), um projecto de engenharia social que
esconde os totalitarismos do século 20, um uso da razão que cobriu o mundo com
sonhos monstruosos. Não há um projecto universal, como a modernidade pensou,
pois por trás de todo universalismo há sempre um particular que se proclama
ilegitimamente como o universal. E fá-lo com base no seu desejo de dominação.
Temos apenas linhas de fuga em relação ao
que existe, a subtracção como estratégia, para evitar metanarrativas
totalitárias como a revolução mundial, o molecular sempre melhor que o molar,
as formas quotidianas versus as formas de engenharia social dos programas
revolucionários, as identidades concretas dos indivíduos versus a tirania das
abstracções.
Obviamente, a visão pós-moderna da
modernidade teoricamente tem muito em comum com a filosofia moderna que
critica. Representa simplesmente uma radicalização dela, como já desenvolvemos
noutro lugar. [2]
De uma perspectiva pós-moderna, o
universal é criticado como algo pré-constituído que ignora a diversidade e os
particularismos. Por exemplo, isso fica muito evidente quando vemos como a
racialização critica a noção de classe operária como classe universal quando
ela é dividida em raças sobrepostas e hierárquicas. Já sabemos que, ao fazê-lo,
elimina qualquer ideia de universalidade e, portanto, não há saída possível. No
entanto, na sua essência, essa perspectiva abrange o eterno debate na filosofia
entre universais e particulares. Autores pós-modernos dizem-nos que o todo
universal nada mais é do que uma redução unívoca que elimina aquilo que conota
o particular, o concreto. Portanto, seria uma operação totalitária. E, no
entanto, não é a única relação possível que pode ser estabelecida entre o
universal e o particular.
Consideremos, para esse fim, a nossa noção
comunista de classe, que não é a da classe operária sociológica. É precisamente
um tornar-se universal: quando o proletariado luta, ele deve enfrentar as
formas de separação que o capital lhe impõe para triunfar e, ao fazê-lo,
torna-se universal e antecipa a comunidade universal do comunismo. Mas isso é
incompreensível se não entendermos como é que o capitalismo lançou as bases
para isso, subsumindo e proletarizando todo o planeta, corroendo as estruturas
patriarcais e tradicionais das comunidades pré-capitalistas no seu impulso
individualizante, questionando a religião como paradigma para entender o mundo,
etc. Há uma analogia permanente que atravessa a relação entre o universal e o
particular. Por um lado, o proletariado torna-se uma classe universal ao
confrontar as diferentes formas de separação do capital; Por outro lado, é a
universalidade (totalidade) do capital que constitui as diferentes instâncias
particulares que compõem a soma do seu domínio. Na realidade do capitalismo e
do seu movimento histórico mundial, o universal e o particular existem numa
relação contínua, recíproca e dialéctica. Isso é bem diferente do reducionismo
apresentado pela concepção pós-moderna.
5. O nosso fio histórico
Os pós-modernistas leem tudo através das
suas lentes. Tudo é uma identidade subjectiva, então o proletariado e a sua
história, os seus partidos e organizações formais, o seu programa histórico,
etc., são reduzidos a uma visão de mundo entre outras da modernidade. Uma visão
que, neste caso, procurou impor o domínio do operário cis-masculino sobre o
resto das minorias subalternas. Para eles, tudo é uma história, mas a vida real
e a história só podem ser enganosamente reduzidas a meros conflitos de ideias.
O programa comunista do proletariado, que envolve precisamente a negação da
sociedade de classes e do proletariado, simplesmente desaparece da equação
pós-moderna. Eles simplesmente ignoram. Eles baseiam-se tanto na modernidade
que são mais uma expressão da contra-revolução que está em curso há 100 anos.
Para eles, o marxismo é o estalinismo, os proletários são trabalhadores
acorrentados à competição capitalista e organizados em partidos nacional-comunistas.
A nossa oposição a essa perspectiva só pode ser frontal. É a frontalidade que
temos com qualquer fracção burguesa num nível político e ideológico.
E, claro, a
nossa história, a da nossa classe e das nossas minorias, é muito diferente das
narrativas ignorantes encerradas num texto para evitar a contaminação
logocêntrica, como diria Derrida, ou seja, a contaminação da vida real. A nossa classe e o nosso partido histórico nascem permanentemente do
solo desta sociedade; é por isso que é histórico. E é mundial pela sua
essência, como o capitalismo. É uma realidade material, constitutiva e primária
do mundo social em que vivemos; não é um mero desejo linguístico. Um
proletariado que lutou como classe em defesa dos nossos interesses históricos
em todos os lugares, da Comuna de Paris de 1871 à Rússia em 1917, da Alemanha
em 1919 ao Equador em 1922, da Itália durante o Bienio Rosso aos proletários
chineses de 1927, e às lutas que varreram o mundo nas décadas de 1960 e 1970
com a retoma da luta de classes independente, de Paris à greve selvagem de
Vitoria-Gasteiz, da Itália durante o Outono Quente às favelas proletárias de
São Paulo, dos cinturões industriais chilenos aos mineiros negros da África do
Sul, do Irão em 1979 e seus shoras ou conselhos operários à Polônia em
1980 ou à comuna coreana de Gwangjiu, para citar apenas alguns exemplos entre
dezenas de milhares. A nossa classe é uma realidade material que luta contra
este mundo, como uma velha toupeira que aparece e desaparece, mas sempre emerge
novamente. De derrota em derrota, aprendemos até a vitória final contra este
mundo miserável que reproduz a catástrofe em todos os aspectos da vida.
A continuidade
histórica e a nossa memória são fundamentais para o futuro. Somente através da
continuidade e do aprendizado com o nosso passado é possível um plano de vida
para a espécie. E isso requer continuidade com os camaradas históricos do nosso
partido, que lutaram intransigentemente contra o capitalismo e a contra-revolução
em todas as suas formas. Devemos isso aos petroleuses da Comuna de Paris e a Chen Du Xiu e às dezenas de milhares de
comunistas chineses assassinados pelo Kuomintang e pela subsequente contra-revolução
estalinista (maoísta), aos milhares de comunistas internacionalistas
vietnamitas que sofreram o mesmo destino devido à contra-revolução de Ho Chi
Minh, aos proletários iranianos que foram enforcados nas praças da contra-revolução
enquanto Foucault aplaudia os aiatolás de Khomeini.
Graças a todos eles, conhecidos e
desconhecidos, o internacionalismo proletário é uma realidade material
constitutiva do nosso programa histórico. É bem diferente do jogo pós-moderno,
ao estilo Baudrillard, de simulacros puros, onde a realidade não existe, excepto
como uma projecção intelectual e vazia.
6. Capitalismo em intersecção?
A interseccionalidade surge dos mesmos
limites da teoria pós-moderna quando tenta traduzir-se politicamente. É uma
tentativa de agir em comum quando a realidade é reduzida a uma rede infinita de
opressões, onde cada vítima também pode ser um opressor. O proletariado como
classe é branco e, portanto, colonialista. O feminismo como reacção ao machismo
patriarcal também é feminismo branco e, consequentemente, racista e colonial.
Um sexista da sua própria raça é menos sexista porque deve ser entendido dentro
dos seus parâmetros culturais. O oposto pode ser um exemplo de privilégio
derivado da branquitude.
A reflexão da
filósofa Judith Butler sobre a burca [3] pode servir como um exemplo
sintomático desse tipo de impotência pós-moderna. Para ela, a burca deve ser
entendida a partir dos traços culturais de pertencer a uma comunidade, a uma
história comum, a uma religião, a uma família. Também serve como medida de
protecção para as mulheres afegãs. A burca, além disso, seria um instrumento de
protecção para as mulheres contra a vergonha e opera como uma linha de
demarcação para o espaço em que a actividade feminina é possível. Nesse
contexto, a burca aparece como um instrumento de protecção contra a
vulnerabilidade e precariedade das mulheres, pelo menos nos países onde está em
uso. E isso implicaria, para Butler, uma certa avaliação positiva do uso da
burca, uma vez que estaria associada a um ethos (costume,
cultura) específico das mulheres afegãs que elas não podem abandonar da noite
para o dia. Remover a burca significa despir essas mulheres, extirpá-las da sua
cultura e da sua comunidade. O feminismo que propõe isso na verdade esconde o
desejo do colonizador ocidental de impor a sua cultura.
Este exemplo é muito útil para entender o
jogo de soma zero ao qual o pós-modernismo está politicamente condenado. Nessa
perspectiva, é impossível superar esse mundo porque o pós-modernismo sempre
parte das suas categorias. Não pretendemos banalizar o que Butler diz. É claro
que a denúncia da burca pelos estados ocidentais serve como uma justificativa
ideológica para os seus propósitos imperialistas. Mas a famosa filósofa
americana, através das suas categorias, simplesmente nos desarma de qualquer
projecto de libertação, que por essência só pode ser universal. A burca é claramente
um instrumento patriarcal que torna as mulheres invisíveis na esfera pública,
uma demonstração do carácter patriarcal de todas as sociedades de classes, que
nós, como comunistas, devemos combater. Só dentro de um processo de revolução
anti-capitalista e classista do proletariado mundial será possível superar os
impasses denunciados pela teoria pós-moderna, da qual Butler é um ilustre
representante. Somente a luta das mulheres proletárias afegãs pode ser um
agente de libertação desta e de outras formas de opressão, porque somente o
proletariado tem o poder de encarnar a negação total deste mundo.
Os autores
pós-modernos descobrem contradições reais dentro deste mundo. É claro que o
Iluminismo é usado como uma arma para justificar ideologicamente as formas de
opressão inerentes a esse sistema e suas dinâmicas sociais e políticas. Isso é
o que eles não conseguem entender. Eles próprios movem-se num mundo fragmentado
por opressões e formas de dominação social que acabam internalizando por serem
incapazes de compreender as suas causas e origens. Assim, a burca torna-se
simplesmente um instrumento do ethos das mulheres afegãs, que também
abrange um espaço de liberdade feminina. E qualquer pretensão crítica em
relação a isso esconderia um desejo ocidental de dominação. O pós-modernismo
emerge claramente como o que é: a corrente teórica da impotência. As
identidades criadas pelo capitalismo e outras sociedades de classes tornam-se
intransponíveis, inerentes ao ethos local e ao sagrado, numa vida após a
morte incriticável. Ao não entender a sua origem como produto das sociedades de
classes, ao reduzir tudo a uma luta de vontades pelo poder (neste caso,
Ocidente versus Oriente), o que é simplesmente concebido (e ontologizado) como
algo natural é o resultado da evolução material da história e das sociedades de
classes.
A teoria
pós-moderna opera com as categorias inerentes ao capital. A interseccionalidade
é apenas uma reviravolta adicional no uso desses instrumentos. O capitalismo
unifica o seu ser social, fracturado pela competição capitalista, graças à lei.
E a interseccionalidade não nasce coincidentemente como uma teoria e é cunhada
como um termo num artigo de Kimberlé Crenshaw intitulado Mapeando as margens para a Stanford Law
Review. Nisso, podemos perceber a importância do
direito para a perspectiva interseccional. Na verdade, de acordo com Hill
Collins e Sirma Bilge, dois estudiosos interseccionais, a sua perspectiva fala
a linguagem de activistas e instituições. Trata-se de alcançar a sua
convergência e, para isso, a prática de activistas e profissionais é
fundamental: académicos, advogados, assistentes sociais e assim por diante.
Intelectuais e profissionais têm como alvo as agências governamentais para
mudar a política governamental. Como exemplos positivos, esses dois académicos
e activistas citam exemplos como a Conferência Mundial da ONU contra o Racismo
em Durban (2001), o programa de microcrédito implementado por Yunus (vencedor
do Prémio Nobel da Economia) e assim por diante. Em última análise, a
interseccionalidade serviria para intervir, através de organizações activistas
de base e das habilidades dos profissionais, nas agendas públicas dos Estados
para ajudar a implementar políticas públicas favoráveis a diferentes minorias
de classe, raça e género. Para isso, eles oferecem possíveis exemplos, desde
campanhas de pressão contra o governo Obama (Why We Can't Wait) até a já mencionada campanha sobre
microcrédito, ou propostas sobre como a interseccionalidade pode ser útil para
que organizações internacionais entendam melhor a desigualdade social no mundo.
Uma conferência sobre capitalismo inclusivo realizada em Londres em 2014 serve
como exemplo.
Esse tipo de
interpretação da interseccionalidade é particularmente pragmático. Certamente
representa um tipo muito moderado de liberalismo distributivo. Reconhecemos que
outras perspectivas interseccionais podem ser mais radicais na forma, mas nunca
no conteúdo. O conteúdo é sempre a ferramenta que o capitalismo lhe oferece a si,
se você se mover dentro das suas categorias e divisões, como fazem os nossos
pós-modernistas. Como diz Elizabeth Duval no seu Después de los trans, quando polemiza com Paul Preciado, a perspectiva queer não tem nada de
revolucionário. É simplesmente uma tentativa de obter o reconhecimento do
Estado (que Duval vê positivamente, como um bom esquerdista) de certos
direitos.
E a interseccionalidade fala-nos,
simplesmente, de diferentes eixos de desigualdade que são autónomos e
independentes uns dos outros (classe, raça, género, capacitismo, sexualidade e
assim por diante ad infinitum). Não há hierarquia de algumas opressões sobre
outras, e o pluralismo é intrínseco a essa ideia de diferentes sistemas de
dominação. A sua lógica é típica de várias discriminações pessoais, baseadas em
categorias que são inerentes aos indivíduos (por exemplo, branquitude em
pessoas brancas) e que se expressam como uma vontade de poder e não como a
realidade de uma dominação capitalista que é realizada, sobretudo, por uma dinâmica
impessoal e automática. A nossa abordagem seria, para autores interseccionais,
um exemplo de reducionismo monista e teológico. Mas o que opera dessa maneira,
em qualquer caso, é a realidade do capitalismo e suas máscaras ocultas.
Como vimos, ao usar um método empirista, o
pós-modernismo tende a reificar identidades com base no comportamento imediato
dos indivíduos, que, na realidade, são uma expressão concreta do mundo
capitalista. A identidade de classe que os pós-modernistas pensam tem muito a
ver com as experiências sociológicas dos operários, e poderíamos desenvolver a mesma
abordagem em relação ao género ou raça. O que eles não conseguem analisar é porque
é que os comportamentos e identidades sociais são organizados dessa maneira. E
para conseguir isso, os seus tipos ideais não são mais suficientes; eles precisam
entender como é que a abstracção do
capital os constrói.
De qualquer
forma, para os teóricos da interseccionalidade, esses eixos de desigualdade
expressam diferentes experiências de discriminação que as pessoas experimentam
de maneiras particulares: diferentes hierarquias de dor que expressam uma
diversidade de geo-políticas de medo e desconforto interseccional. Como os
eixos da desigualdade são múltiplos e sempre incorporados de forma diferente em
cada pessoa, podemos entender que a unidade interseccional continua a ser um
desejo voluntarista piedoso e impossível de um encontro entre feminismos negros
e brancos, epistemologias do Sul e a decolonialidade de género, entre
movimentos gays e iranianos racializados que têm a perseguição aos homossexuais
como seu ethos.
Neste ponto, e a título de resumo, podemos
concluir com sete ideias:
1. Tudo isso é o preço de partir de categorias reificadas, extraídas do
comportamento imediato dos indivíduos, usando um método empirista,
característico da criação de tipos ideais.
2. O pós-modernismo é o resultado de uma concepção estática e cristalizada das
separações do capital, que não consegue ver a dinâmica da perspectiva histórica
em que operam as sociedades de classes, e o capitalismo em particular.
3. Ao reduzir o proletariado como classe a uma identidade entre outras, ele
não consegue compreender a sua realidade potencial como uma negação global
deste mundo e, portanto, acaba por declarar a impossibilidade de tal negação.
4. O pós-modernismo ignora a história e as origens na sua análise da exploração
e das diferentes formas de opressão, que são revisitadas na sua particularidade
e tendem a ser essencializadas, como se tudo fosse o resultado de uma eterna
luta pelo poder, uma guerra de todos contra todos.
5. Trata-se de uma perspectiva idealista que reduz tudo a um jogo linguístico
de significantes que proliferam ad infinitum, onde a realidade é uma mera projecção
sem fundamento material.
6. A totalidade social do capitalismo não é redutível à soma das suas partes,
como afirmam os teóricos do pós-modernismo interseccional, movidos pelo seu
desejo de pluralismo a todo custo. Pelo contrário, é a expressão de uma relação
social, o valor, que no seu movimento automático sofre diferentes metamorfoses.
A soma das partes não é igual ao resultado final, pois para entender as partes,
devemos partir da abstracção concreta que é o valor em processo.
7. Em última análise, o pós-modernismo é essencialmente uma perspectiva que se
situa no terreno cívico e legalista do direito e da democracia, ou seja, no
terreno que o capital apresenta para a co-existência dos seus conflitos e
separações.
7. Algumas notas finais
Na região
espanhola, estamos a testemunhar um debate acalorado entre pós-modernistas e
anti-pós-modernistas. A nossa intenção explícita é distanciarmo-nos deste debate.
Obviamente, não temos nada a ver com uma abordagem pós-moderna, como ficou bem
claro nestas páginas, mas também não temos nada a ver com os seus falsos
críticos que reproduzem e pioram os seus supostos rivais. Quem são esses
críticos do pós-modernismo e de onde eles conduzem a sua crítica? Escritores e
jornalistas como Daniel Bernabé, com a sua La trampa de la diversidad, ou Ana Iris Simón, com o seu livro Feria, opõem-se ao
pós-modernismo simplesmente porque estão horrorizados com a dinâmica de
dissolução que o capitalismo acarreta. Sabemos, com Marx, que o capitalismo
prepara as condições materiais para a sua própria superação. E é a partir dessa
percepção que a vontade pode reverter a práxis da dinâmica catastrófica que o
capitalismo também acarreta: "Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e
os homens são finalmente forçados a considerar calmamente as suas condições de
existência e as suas relações uns com os outros" (Marx-Engels, Manifesto do
Partido Comunista).
Os autores acima mencionados confrontam as
correntes pós-modernistas reivindicando e idealizando um passado que já passou,
um passado que eles idealizam e do qual se privam arbitrariamente da sua
realidade capitalista e exploradora. O capitalismo do pós-guerra foi o
resultado do massacre imperialista da Segunda Guerra Mundial, da morte de
milhões de proletários em todas as frentes, da contra-revolução reinante da
década de 1930, do fascismo, do New Deal e do estalinismo. Os nossos
intelectuais embelezam tudo isso porque, na realidade, o seu discurso é um
produto de terceira mão do seu estalinismo ao longo da vida. Eles não são mais
capazes de nada; eles são o resultado da contra-revolução com esse nível de
superficialidade.
O pós-modernismo é criticado para
recuperar a pátria (o que é feito não apenas por Ana Iris Simón, mas também por
Podemos e Errejón), o feminismo queer é criticado em nome da família e o
liberalismo da auto-determinação em nome do Estado é criticado. Nós dizemos:
todas essas falsas solidezes já se dissolveram e não voltarão, apesar dos
desejos "piedosos" de Bernabé, que na recente greve proletária em
Cádiz defendeu os sindicatos que cumpriram o seu papel de fura-greves. A
alternativa não é entre o estado corporativo ou a auto-determinação
pós-moderna, mas entre a catástrofe capitalista ou o comunismo.
A esta Sagrada Família de defensores do
passado capitalista devem-se juntar outros mais explicitamente contra-revolucionários,
como o novato YouTuber Roberto Vaquero. Vaquero é o líder do grupo estalinista
(do ramo pró-albanês) Frente Operária. Nos seus vídeos, ao criticar o
pós-modernismo em nome do capitalismo de Estaline [4] e da contra-revolução que
massacrou o proletariado e as suas minorias revolucionárias no passado, ele ajuda-nos
a entender ainda mais claramente a falácia da dicotomia
pós-modernismo/anti-pós-modernismo.
Quando todos esses autores defendem a
classe operária, eles não estão, na realidade, a defender o proletariado como
uma classe revolucionária, no sentido de Marx e da nossa tradição, mas sim a
classe operária sociológica, explorada, reduzida às engrenagens da sociedade
capitalista com as suas pátrias, a sua lógica produtiva e obreirista. A sua
tradição é a do comunismo nacional, que tem uma longa história por trás dele. É
a história da contra-revolução.
Ao longo deste texto, tentamos confrontar
o pós-modernismo como uma ideologia do nosso tempo. Nesta breve secção, estamos
a ver como existe actualmente uma dicotomia que tende a polarizar os círculos e
sectores que procuram confrontar radicalmente este mundo em duas alternativas:
pós-moderno ou anti-pós-moderno. Parece-nos, como tantas vezes antes, uma falsa
alternativa. A nossa época é atravessada por conflitos muito mais importantes e
decisivos.
Quando tudo o que é sólido se desmancha no
ar, quando o capitalismo atinge os seus limites internos, no momento em que a
vida parece não ter sentido, quando a defesa das nossas necessidades humanas
nos obriga a rebelar-nos, quando o ambiente social tende a tornar-se electrificado
por pólos com interesses opostos, quando o capitalismo dissolve tudo o que é
sólido porque não é mais possível viver sob o reino da mercadoria, quando
pudéssemos organizar as nossas vidas como espécie, sem Estado ou trabalho
assalariado. Neste momento histórico, não é nem um tempo de modernidade nem de
pós-modernidade, é o tempo do comunismo.
Barbaria, Dezembro de 2021
[1] Veja o nosso
livro, Contra o
pós-modernismo, disponível em versão impressa e
online. https://barbaria.net/2018/11/20/posmodernidad-o-la-impostura-de-una-falsa-radicalidad/
E a transcrição
de uma das nossas palestras na região chilena: https://barbaria.net/2020/09/11/titulo-el-espiritu-posmoderno-del-capitalismo/
[2] https://barbaria.net/2020/09/11/titulo-el-espiritu-posmoderno-del-capitalismo/
[3] Veja o seu
livro, Vida Precaria. El poder del
duelo y la violencia (Vida Precária. O poder do luto e da violência). E o artigo de Gabriel Bello, disponível online: Hacia una hermeneutica de la extraña (Rumo
a uma hermenêutica do estrangeiro. A burca e as mulheres muçulmanas).
[4] Veja o nosso livro, Stalin's Capitalism: https://barbaria.net/2020/12/15/el-capitalismo-de-stalin/
Fonte: Intersecting
Capitalism? – Barbaria – League of Internationalist Communists
Este texto foi traduzido para Língua
Portuguesa por Luis Júdice

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