quarta-feira, 22 de outubro de 2025

CAPITALISMO EM INTERSECÇÃO? - BARBARIA

 


CAPITALISMO EM INTERSECÇÃO? - BARBARIA

 

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postado em 13 de Outubro de 2025 pela Liga dos Comunistas Internacionalistas

[Publicamos aqui uma nova tradução de um texto dos nossos camaradas da Barbaria, que é uma refutação completa do pós-modernismo e da ideologia da interseccionalidade – produtos de uma extensa campanha ideológica por parte do capital para fragmentar o proletariado e dissolver os antagonismos de classe num olhar estéril para o umbigo sobre "identidades". Este panfleto expõe como tais teorias reproduzem as próprias categorias de capital que afirmam subverter, em oposição absoluta ao movimento comunista e seu método materialista. Está disponível aqui no seu original em espanhol.]

 

Introdução

 

Esta não é a primeira vez que escrevemos sobre o pós-modernismo [1], mas voltamos a ele. Porquê? Por um lado, queremos refinar melhor algumas considerações teóricas e metodológicas na crítica ao pós-modernismo e, por outro lado, continuamos a acreditar que é uma das ideologias que mais influencia aqueles que hoje procuram esclarecimento e radicalização diante das misérias deste mundo. Para nós, é também uma questão de método. Não é apenas importante o que pensamos sobre a realidade social, mas também o método que usamos para abordá-la. O método pós-moderno, como explicaremos mais adiante, inevitavelmente reproduz as categorias do capital e impede-nos de realizar uma crítica que vá à raiz desse sistema, uma questão essencial para aqueles de nós que estão comprometidos com um mundo diferente. Entender em que consiste esse método pós-moderno e quais as suas consequências é útil, nesse sentido, para adoptar um método que deriva do comunismo e de um compromisso resoluto com a revolução. Por todas essas razões, acreditamos que é importante retornar a esses temas de uma forma que não seja repetitiva, mas sim aprofundando as razões da crítica, as falsas dicotomias que muitas vezes confrontam os defensores do pós-modernismo com críticas fictícias. Trata-se de compreender onde surge o pós-modernismo, quais são as razões da sua força e hegemonia, pois sabemos que o falso é sempre um momento do verdadeiro ou, dito de outra forma, que toda a ideologia é uma expressão que nasce do solo desta sociedade. Não basta simplesmente denunciá-la como algo falacioso ou negativo, mas compreendê-la como uma expressão distorcida e fetichista da produção e reprodução material do mundo, neste caso, do capitalismo. Sabemos, junto com Marx e outros camaradas do nosso partido histórico, que a ideologia nada mais é do que outro exemplo das metamorfoses do valor como relação social. Uma expressão da sua forma social objectiva no nível do pensamento e do espírito. Um mundo dividido e fragmentado, como o capitalismo em que vivemos, reproduz ideologias e teorias que fazem da divisão e da separação a base da sua visão de mundo. Além disso, neste momento de desenvolvimento capitalista, em que a sua crise é cada vez mais aguda, essas separações tendem a tornar-se mais acentuadas. O dinheiro aparece, na sua virtualidade, como riqueza autêntica, validada em si mesma. Vivemos em tempos em que o capital fictício se multiplica geometricamente, com pouca relação com a produção real de valor. Quando estas separações se tornam mais pronunciadas, torna-se possível uma teoria apaixonada pelos simulacros puros da linguagem, independentemente da sua relação com a realidade. Desejamos discutir e explorar tudo isto nas páginas que se seguem.

 

1. A derrota da vaga revolucionária da década de 1970

As décadas de 1960 e 1970 marcaram o fim parcial do período contra-revolucionário, que tinha inaugurado a derrota da importante vaga revolucionária que o proletariado mundial liderou de 1917 a 1927. Naqueles anos da segunda metade do século XX, da França à Espanha, de Portugal ao México, da Argentina à Itália, da Polónia ao Irão, o proletariado mais uma vez liderou uma vaga de lutas sem paralelo em força e intensidade revolucionárias, mas que representou uma saída para o tédio contra-revolucionário das décadas anteriores. Uma nova geração de proletários emergiu na luta de classes e procurou esclarecer as suas posições: uma expressão parcial de como a luta de classes emerge do solo desta sociedade e com ela, surgiram minorias que moldam a expressão histórica do partido do proletariado. Essa vaga parcial de lutas foi derrotada ao longo da década de 1980 não apenas pelas suas próprias limitações, mas por uma força social (a do proletariado em luta) que ainda estava em grande parte atolada nas confusões semeadas pela contra-revolução vitoriosa (estalinismo, que finalmente entrou numa crise definitiva a partir de 1989, revelando assim a confirmação da sua natureza capitalista), mas também porque o capitalismo e suas burguesias ainda tinham muito mais espaço de manobra do que actualmente (a crise começou a manifestar-se em 1973/75), quando os limites internos do capital estavam claramente a tornar-se aparentes. A revolução foi sentida como uma urgência subjectiva, mas não como uma necessidade material. Hoje vivemos no paradoxo inverso: o capitalismo revela claramente a impossibilidade da sua existência no tempo (com a expulsão da força de trabalho, o aumento geométrico da humanidade supérflua, o consumo acelerado do planeta, etc.), bem como o potencial real do comunismo como modo de vida e produção já possível com base no desenvolvimento material actual (a possibilidade de implementar um plano de produção e reprodução da espécie sem mercadorias e o dinheiro já está totalmente presente e possível) e, ao mesmo tempo, a sua possibilidade subjectiva não é vista. Vivemos num eterno presente, onde o horizonte do futuro parece quebrado na consciência dos proletários.

Nós, como comunistas revolucionários e materialistas históricos, estamos convencidos de que as contradições do capitalismo e a ameaça que ele representa para a sobrevivência da espécie e do próprio planeta certamente levarão a um agravamento da luta de classes e dos processos de polarização social, de classe contra classe. Trata-se de um antagonismo que revela profundamente o choque entre dois mundos: capitalismo ou comunismo, catástrofe ou espécie. Mas neste processo de antagonismo e polarização social que estará cada vez mais presente, é muito importante como nós, comunistas, demonstramos a dinâmica geral do processo e o alcance das metas e objectivos da nossa luta (uma comunidade sem classes ou sem Estado). E, para tanto, é fundamental também uma crítica determinada às correntes ideológicas que são uma emanação do velho mundo e que, nesse sentido, consciente ou inconscientemente lutam pela sua sobrevivência e sua catástrofe. A nossa crítica ao pós-modernismo deve situar-se nesse terreno, a busca por clareza diante de uma concepção que nos enraíza neste mundo.

E, de facto, o termo pós-modernismo nasceu de um livro de 1979 de Lyotard chamado A condição pós-moderna. Como indicamos noutras ocasiões, Lyotard era um ex-membro do grupo de extrema esquerda Socialisme ou Barbarie (outros membros proeminentes eram Castoriadis e Lefort), um grupo que havia rompido com o trotskismo em direcção a perspectivas internacionalistas e uma procura por autonomia de classe após a Segunda Guerra Mundial, mas que, no entanto, o fez levando consigo uma série de confusões, como a tentativa de actualizar as reflexões de Marx sobre o capitalismo ou a própria caracterização da URSS como uma sociedade burocrática e não capitalista. Essas fraquezas seriam decisivas para o subsequente desaparecimento do grupo. De qualquer forma, o que acreditamos ser importante destacar é que o livro de Lyotard de 1979 marca o momento em que ele avalia o seu passado. E esse momento já é o do fluxo e refluxo e da derrota que vem sendo anunciada desde a década de 1980. As esperanças de 68 transformaram-se na desilusão do refluxo. Nesse momento, emergem os indivíduos e as suas tentativas de se reconciliar com a normalidade. A revolução não é mais uma realidade material nascida da luta de classes e das contradições deste mundo, mas torna-se uma ideia. E uma má ideia para Lyotard. Uma ideia que leva ao pior dos desastres, ao totalitarismo, porque tem a pior das raízes: metanarrativas que procuram uma redenção religiosa e teleológica, uma impossibilidade, em suma. Acreditamos que é muito importante destacar essa origem porque ela contém a matriz política e ideológica do pós-modernismo, uma teoria que tenta explicar uma época histórica, a era pós-moderna e uma forma relativista de ver o mundo. No entanto, é essencialmente uma teoria nascida da derrota da luta de classes e desse ciclo de lutas proletárias que surgiu na década de 1960. É uma teoria que concebe a contra-revolução a partir das categorias da contra-revolução, o oposto do que afirmamos fazer, mas que finge um falso radicalismo ao procurar desconstruir as categorias deste mundo e, portanto, exerce um fascínio ideológico entre os activistas radicais. Mas a desconstrução verbal não extingue este mundo; em vez disso, ela reforça-o.

Os autores pós-modernos, começando pelo próprio Lyotard, veem no pós-modernismo uma nova época histórica. Essa tese é defendida não apenas por eles, mas até mesmo por alguns dos seus críticos académicos (Jameson), que encontra aqui uma nova era objectiva (Jameson fala do capitalismo tardio) que também implica uma nova abordagem subjectiva da cultura, da arte e do pensamento. Por exemplo, na arquitectura, o funcionalismo artístico da Bauhaus ou Le Corbusier e os seus edifícios em forma de colmeia para proletários é substituído pelos edifícios de Robert Venturi, Moneo ou Calatrava, que privilegiam a heterogeneidade de estilos, um retorno ao passado e os estilos específicos de cada país. Se pensarmos num edifício como o Centro Pompidou, em Paris, não é exactamente um edifício onde prevalece a harmonia ou a funcionalidade, e é isso que chama a atenção e surpreende. Da mesma forma, no pensamento, a procura do desejo prevalece sobre a razão esclarecida, a dúvida sobre os absolutos. E a perspectiva de classe é substituída por novos movimentos sociais de natureza identitária. Esta é uma nova era marcada por uma concepção diferente do mundo. E é assim que os seus autores nos apresentam.

Não negamos as mudanças e transformações no capitalismo, mas sempre sustentamos que os seus fundamentos categóricos permanecem os mesmos. Na realidade, o que estamos a testemunhar é um aprofundamento da crise do capitalismo, um mundo que está a perder força no meio de uma crise que nega os seus próprios fundamentos, gerando uma vida sem sentido através de uma erosão das instituições tradicionais que antes organizavam a vida das pessoas. Estamos a referir-nos à profunda crise das organizações tradicionais do movimento operário, partidos e sindicatos de esquerda do capital, da família, da vida de bairro. Esse processo de erosão e o que ele gera, na forma de mal-estar generalizado, dificuldade em encontrar certezas e segurança fixa, é o que cria o terreno fértil para muitas perspectivas pós-modernas. Dessa forma, o pós-modernismo é uma expressão desse mundo em crise, mas que permanece amarrado às suas categorias, às categorias do capital. Um mundo em crise onde as suas próprias categorias têm uma relação cada vez mais disfuncional e separada entre si: entre economia produtiva e capital fictício, entre economia e Estados, entre as suas realidades nacionais e transnacionais. É um mundo burguês que está cada vez mais exausto, em crise, e, nesse sentido, dizemos que é uma forma social objectiva do espírito burguês: uma maneira de pensar sobre este mundo que expressa as categorias sociais que o sustentam.

O pós-modernismo nasceu em universidades francesas e norte-americanas; isto é, é um produto da academia. Na realidade, o que normalmente chamamos de pós-modernismo é em grande parte uma corrente específica da filosofia burguesa da segunda metade do século XX: o pós-estruturalismo, uma corrente encarnada por Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari e uma longa lista de autores que, vindos do estruturalismo filosófico, constroem uma teoria que torna a subjectividade e a vontade centrais para pensar a filosofia. Esses autores, juntamente com outros de diversas origens, partilham uma crítica mais ou menos contundente da obra de Marx. Isso é especialmente verdadeiro para a perspectiva comunista do proletariado como uma classe universal e para a concepção materialista da história como base para analisar a realidade. Ao mesmo tempo, o estalinismo e o pós-modernismo são dois pólos opostos da mesma unidade, valendo-se de origens comuns e em constante diálogo com ela. Basta considerar a relação de Foucault com Althusser, que compartilham um estruturalismo comum. Como dissemos, o pós-modernismo como movimento teórico nasce de uma exaltação da subjectividade, um sujeito fermentado no seu próprio molho epistemológico. Não há causalidade entre o sujeito cognoscente e a realidade conhecida e, portanto, não há critérios objectivos de verdade. Por outro lado, esse subjectivismo também leva ao voluntarismo político, uma vez que não há relação entre a vontade do indivíduo e uma perspectiva que a transcenda e a englobe. O sujeito não procura a emancipação e a libertação humanas, o que na verdade seria uma metanarrativa religiosa que leva ao totalitarismo. Muito pelo contrário, o sujeito procura alcançar o seu próprio desejo rizomático e, portanto, também se constitui no desejo da sua própria vontade. Tudo o que é desejado é bom.

Assim, podemos começar a definir algumas das características que unem autores muito diferentes que identificamos como parte desse movimento.

  • Essa crítica da ideia de verdade implica o desafio de toda a teoria revolucionária como expressão teleológica e religiosa, como narrativa que esconde um sonho gnóstico de redenção religiosa, de impor uma provação religiosa ao mundo terrestre. Obviamente, para as visões pós-modernas, a teoria revolucionária é uma visão entre outras, mas, como bons teóricos burgueses diriam, também é perigosa e falha. Portanto, o pós-modernismo é uma teoria contra a revolução e a reduz a uma ideia entre outras, e não ao movimento real que nega este mundo – isto é, uma perspectiva que tem fundamentos materiais profundos neste mundo.
  • Argumenta-se que uma crítica mundial deste mundo é impossível, impossível de conceber e impossível de praticar. Tudo o que nos resta são as margens. O pós-modernismo foge dos centros e elogia e exalta as diferenças e a heterogeneidade. Opõe-se à totalidade que chama de totalitarismo e assume fragmentos como expressão ao alcance dos desejos da vontade humana. Na realidade, isso reforça a impossibilidade de questionar o fundamento que sustenta a unidade opressora deste mundo.
  • Esse relativismo extremo coexiste coerentemente com a redução da realidade deste mundo a representações teóricas. O que importa é o sujeito cognoscente, não o objecto conhecido. Os conceitos e categorias do sujeito, suas representações conceptuais, seus discursos e seus textos. Tudo é linguagem; A realidade é filtrada exclusivamente por palavras e linguagem - palavras que, como sabemos, não têm razão para nos dizer algo verdadeiro sobre a realidade. Para autores pós-modernos proeminentes, como Derrida, essa relação entre pensamento e realidade é uma forma de metafísica da presença. O objecto nunca é dado em termos imediatos ao nosso conhecimento, o que é verdade, mas não por uma mera razão ontológica e a-histórica, mas sim por causa de como vivemos num mundo opaco dominado pelo capital. Somente descobrindo esse fetichismo comercial podemos compreender a realidade que nos domina.
  • Se a realidade é uma construção (performativa) do sujeito, da sua linguagem, das suas representações... É óbvio que o pós-modernismo se opõe radicalmente ao determinismo do materialismo histórico, um determinismo que não é uma forma de fatalismo. Tudo é produto da vontade humana; A contingência e o acaso dominam a causalidade e o determinismo nos discursos pós-modernos. Essa exaltação da liberdade é consistente com as doutrinas anteriores: a realidade nada mais é do que uma expressão das representações dos sujeitos; A emancipação humana não pode ter nenhum fundamento real, porque de outra forma seria totalizante e totalitária. As acções dos sujeitos são pura expressão da sua identidade e da sua vontade e nunca, portanto, de interesses e dinâmicas materiais.
  • Uma filosofia da identidade que se opõe aos processos materiais de polarização social e à constituição de classes sociais. Para os teóricos pós-modernos, tudo é resultado de sujeitos que autodeterminam a sua identidade ou, ao contrário, veem a sua identidade moldada pelo olhar dos outros. Não há processos materiais que moldem os sujeitos desta sociedade; isto é, não há classes sociais. Pelo contrário, para nós, as classes não são uma expressão de identidades sociais e subjectivas, mas das divisões e cismas materiais deste mundo dominado pelo capital e dos movimentos de luta que, a partir de contradições e antagonismos materiais, segregam o proletariado como uma classe social que se constitui como partido, como disse Marx, isto é, como uma subjectividade organizada contra os fundamentos deste mundo. Mas todo esse processo é dominado pelo determinismo da realidade material. Identidade e classe social não são análogas e não combinam bem. O proletariado não é uma identidade entre outras que podem ser acompanhadas pela tríade pós-moderna de classe, raça e género. Além disso, a opressão patriarcal ou racial do próprio capitalismo não pode ser entendida a partir de uma perspectiva identitária. A fixação identitária do pós-modernismo é consistente com o voluntarismo e o anti-determinismo que cercam todas as suas noções teóricas.
  • Identitarismo, relativismo, crítica da teleologia e das metanarrativas, a impossibilidade de uma perspectiva emancipatória. Tudo isso implica uma crítica ao essencialismo e ao dogmatismo que nós, comunistas, que desejamos negar este mundo, empregaremos. E, de facto, entendemos que o capitalismo é constituído por categorias que são essencialmente as mesmas a partir do momento em que emerge como o modo de produção dominante, que há um contraste entre as necessidades humanas e a dinâmica do capital, e que, portanto, podemos falar de uma natureza humana que, como todas as formas de invariância, é dinâmica e não estática, Mas isso contém aspectos essenciais: todo o ser humano precisa reproduzir o seu próprio sustento, é um ser comunitário e tem faculdades racionais e sentimentais. Somos seres naturais dotados de faculdades que, se não forem desenvolvidas e implementadas, implicam uma alienação do nosso ser no mundo, como explicaram Marx e o movimento comunista desde os seus primórdios. Estes são os fundamentos materiais do antagonismo e do contraste do proletariado em relação ao capitalismo. A negação disso, o anti-essencialismo pós-moderno, sua negação da existência de fundamentos materiais, por sua vez, implica a negação dos interesses sociais que surgem e fundamentam a existência. Isso implica, como vimos, que tudo é reduzido a uma questão de identidade, não de existência material. O dualismo entre sujeito e objeto que subjaz à teoria pós-moderna, e seu subjectivismo dominante, implica a redução dos conflitos sociais a questões de identidade e reconhecimento de sujeitos.
  • A impossibilidade de alcançar uma verdade sobre este mundo e uma prática libertadora. Essas são, portanto, teorias de impotência social porque, se nada é mais autêntico do que outra coisa, não há base para lutar contra este mundo, nem qualquer perspectiva melhor para superar a ordem existente. Portanto, é uma visão relativista do mundo.

 

2. O individualismo metodológico da pós-modernidade

Achamos interessante contar uma anedota para começar esta secção, que já experimentamos em várias outras ocasiões de maneira semelhante. Numa discussão sobre 68 e críticas ambientalistas radicais a este mundo, fomos informados de que a nossa perspectiva era interessante, mas abordava apenas a economia, e que o foco da análise precisava ser ampliado para abranger todas as formas de opressão. E essa reflexão anti-industrial depois de 1968 ajudou nisso. Este pequeno exemplo contém uma visão de mundo que é típica da sociologia burguesa e que todos os teóricos pós-modernos adoptam implicitamente.

Para eles, vivemos num mundo opressor, mas constituído por uma multiplicidade de fontes que explicam o poder social. Analisar o capitalismo é apenas entender uma das bases da dominação, neste caso a económica. Mas a análise deve ser complementada com uma leitura da opressão de género, do colonialismo que constitui a relação entre raças e países, do meio ambiente e de uma concepção consumista e produtivista que esgota o planeta. Somente a partir dessa perspectiva pluralista podemos ter uma visão actualizada da dominação do sistema sobre as nossas vidas. Este seria, de uma forma menos esquemática, o tipo de abordagem com que somos confrontados. E isso simplesmente não é verdade. Não há multiplicidade de opressões que nós, como indivíduos, possamos sintetizar através das nossas lutas interseccionais. Permanecer nessa ideia é ficar preso à maneira como o capitalismo aparece para as pessoas nas suas vidas diárias, na sua existência. O capitalismo separa-nos numa diversidade de esferas, fragmentadas umas das outras, e faz com que cada uma delas pareça dotada de autonomia, com o seu próprio poder, hipostasiada, fetichizada. É uma verdade parcial (é assim que a realidade aparece para os sujeitos) que esconde a falsidade constitutiva do capitalismo como relação social mundial. A política aparece como o terreno privilegiado da tomada de decisão colectiva, o direito como a esfera das normas de conduta cívica, a família como o lugar de convivência pessoal e privada, dos afectos, o mercado como a instância em que os actores económicos trocam bens, serviços e factores de produção. Esta é a maneira vulgar pela qual o capitalismo aparece para nós. Não por coincidência, o que foi dito até agora é a base de teorias específicas do liberalismo político e económico, por exemplo, a teoria neo-clássica. Os autores pós-modernos são mais críticos nas suas análises, mais inclinados a Max Weber do que à economia vulgar. E, portanto, são críticos. Mas o crítico criticismo não é suficiente, como Marx e Engels bem sabiam, para negar este mundo. Os autores pós-modernos revelam a armadilha que se encontra diante de nós. Nem tudo é cor-de-rosa. Temos de desconstruir. A lei é um dispositivo bio-político que molda as identidades das pessoas a partir de uma perspectiva de controlo social. A família é um terreno de opressão patriarcal, e a cidadania esconde um homem branco, cis (O que é ser uma pessoa cis? O termo “cisgénero” é usado para definir pessoas que se identificam com o género que é designado quando nasceram , o qual é associado socialmente ao sexo biológico. Noutras palavras, são pessoas nascidas com pénis que se identificam como homens e pessoas nascidas com vagina que se identificam como mulheres – NdT)), patriarcal, que seria o sujeito que domina o mundo. Ora, esse esforço é, sem dúvida, crítico em relação à forma como esse mundo surge, mas não revela a sua razão de ser, o seu fundamento. Não é por acaso que os pós-modernistas evitam a questão da origem. Apesar dos seus esforços genealógicos e arqueológicos, não há origem que nos permita compreender o surgimento das categorias que nos dominam de forma concreta e prática. Em última análise, tudo é resultado de uma vontade de poder e dominação de alguns sujeitos sobre outros. De homens contra mulheres, brancos contra pessoas racializadas, heterossexuais contra homossexuais, capacitistas contra pessoas com deficiência. E tudo numa multiplicidade de combinações que constituem uma complexa intersecção de privilégios e contra-privilégios.

Ora, toda essa argumentação ainda explica muito pouco e, na realidade, falsifica o ponto essencial. É uma espécie de tipos ideais (como na sociologia de Weber) onde a dinâmica dos comportamentos plurais dos indivíduos é generalizada. Como em toda sociologia comportamental, o importante é analisar essas atitudes e, a partir daí, construir modelos gerais que nos permitam universalizar e generalizar esses comportamentos humanos. Essa visão pressupõe o indivíduo como a força motriz do seu próprio comportamento (daí o individualismo metodológico), e o objectivo é observá-lo e considerá-lo teoricamente. Ele move-se do concreto para o abstracto. E o concreto seria o comportamento social dos indivíduos. Nesse caso, indivíduos mais ou menos privilegiados, com mais ou menos reconhecimento social, com mais ou menos vontade de poder. Mas o ponto de partida é sempre o indivíduo e a sua auto-expressão social.

E se o concreto fosse realmente um produto histórico? E se o concreto fosse, por sua vez, uma síntese de múltiplas determinações abstractas? Este é o ponto de partida de Marx e o nosso. O indivíduo, separado da comunidade, é um produto histórico do capitalismo, assim como a própria existência em instâncias separadas da economia, da política, das relações público-privadas, do direito, das nações. Partir dessas fontes de poder social como a esfera natural na qual os sujeitos agem nada mais é do que permanecer dentro do terreno próprio do mundo capitalista, mas acreditando que é algo natural e não histórico, neutro e não uma instância de reprodução e dominação social. O paradoxo do pós-modernismo é que, ao procurar questionar tudo, ele simplesmente naturaliza a base constitutiva e histórica do capitalismo. É nesse sentido que dizemos que o concreto é uma síntese do abstracto, ou seja, das categorias abstractas do capitalismo que permeiam e constituem o mundo da práxis humana dominado pelo capital. O pós-modernismo naturaliza os comportamentos dos indivíduos, ou no máximo explica-os como resultado de diferentes concepções ou vontades de poder em conflito, quando na realidade são uma expressão da forma como o capitalismo produz um certo tipo de antropologia individual e humana.

O capitalismo é um modo de produção com uma origem muito precisa. Historicamente, surgiu das rupturas das comunidades camponesas na Europa, que forçaram esses camponeses a tornarem-se proletários vendendo a sua força de trabalho, e a um mercado mundial que se expandiu decisivamente com a conquista castelhana e portuguesa da América. Ao vender a sua força de trabalho ao capital, o proletariado faz com que o capital se valorize (ou se expanda) produtivamente. O capital incha de valor; assim aumenta. O capital não é, na realidade, nada mais do que mais-valia, isto é, valor inchado de valor, valor em constante crescimento. É isso que faz do capitalismo um modo de produção dominado pelo capital, por essa forma social que é o valor impulsionado por um desejo implacável de crescer. É um sistema onde as relações entre as pessoas estão subordinadas às coisas sociais, que têm o seu próprio movimento e constituem uma espécie de segunda natureza. O que é originalmente claramente uma relação social violenta aparece para os sujeitos como algo natural. A narrativa que emerge das profundezas da sociedade capitalista diz-nos que é normal acordar todas as manhãs para ir trabalhar, pois temos que viver de alguma forma. É normal vender a nossa força de trabalho em troca de um salário. É normal que o dono do factor de produção (as máquinas) que aluga a nossa força de trabalho se aproprie dos frutos do nosso trabalho, que é cada vez mais colectivo. Tudo é perfeitamente normal porque é um contrato acordado entre sujeitos livres e iguais na sua vontade abstracta. Tudo isso ocorre num mercado específico, como o mercado de trabalho. Noutras palavras, o que é uma relação social de exploração parece natural aos sujeitos envolvidos, impulsionada por forças sociais fora do seu controlo e que se tornam autónomas. É por isso que Marx fala do capital como uma força impessoal (não controlada por nós), que se move por uma dinâmica automática e que nos torna apêndices (coisas) sujeitos à sua força.

Essa é a relação social que a pós-modernidade tende a naturalizar. Além disso, essa relação social mediada pelo capital não se expressa apenas na esfera económica, mas condensa-se e cristaliza-se em múltiplas determinações e terrenos através dos quais as actividades humanas, as reflexões, as circunstâncias, os modos de pensar e as trocas são objectivados e autónomos em relação às pessoas que os sustentam. Dessa forma, podemos falar de diferentes metamorfoses da forma do valor, nas diferentes instâncias da vida social, que veiculam a lógica fetichista e reificadora do capitalismo. O capitalismo não apenas reifica as relações económicas, mas as suas metamorfoses afectam tudo. O capitalismo não explica tudo, mas nada pode ser entendido se não entendermos o capitalismo. A lógica da forma-valor é reproduzida através de uma multiplicidade de separações e clivagens que lhe são inerentes: entre a produção e a circulação de mercadorias, entre a esfera da produção (trabalho assalariado) e a da reprodução (a esfera privada das famílias e da educação dos filhos, a localização privilegiada da estrutura patriarcal do capitalismo), entre a esfera privada da sociedade civil e a do Estado, entre o direito comercial e o direito público, entre cidadãos e operários, entre seres humanos e natureza, entre o corpo e a mente. Todas essas formas são intrínsecas à lógica do valor na sua reprodução perpétua e impessoal. Não são expressões de comportamento individual livre ou de qualquer vontade pessoal de poder, mas sim maneiras pelas quais a lógica do valor coagula num processo permanente. Isso é o que nem todos os teóricos burgueses entendem, pois baseiam as suas análises na naturalidade social do capital. No máximo, podem questionar os efeitos mais danosos, lutar por uma distribuição mais justa do valor ou pelo reconhecimento das vítimas da dinâmica do capital. Mas sempre sem questionar a mesma dinâmica. Sem entender que a sombra do capital está por trás de todos esses movimentos. O facto é que a relação social capitalista não é apenas uma expressão das relações de produção entre capital e trabalho. Quando falamos de capitalismo, não estamos a falar apenas de economia; Pelo contrário, é a totalidade social que é a expressão da dinâmica do capital em movimento, em metamorfose, onde assume novas formas sob a forma de direito, democracia, cidadania. A nossa crítica ao capital também é, inseparavelmente, uma crítica à política, ao patriarcado e ao direito.

Não estamos, portanto, a falar de uma relação social que é uma combinação cumulativa de redes, interacções e instituições, mas, ao contrário, de uma única lógica social que inscreve comportamentos sociais nas metamorfoses da forma de valor do capital. Portanto, os comportamentos sociais não podem ser entendidos (como o pós-modernismo e a sociologia burguesa concebem) fora dessa análise dos movimentos do capital social, muito menos como um ponto de partida para a crítica social.

Esta é a grande diferença de método teórico entre o nosso partido histórico e outras correntes críticas ao capitalismo, mas que permanecem sob a longa sombra do capital. Os pós-modernistas, como expressão típica da sociologia burguesa, partem de uma visão analítica baseada na forma como a realidade aparece para os sujeitos e a partir daí fazem uma generalização que permanece presa na dinâmica impessoal do próprio capital. As relações sociais, que se desdobram através de múltiplas máscaras, não são directamente visíveis ou perceptíveis para as pessoas no seu isolamento social. Máscaras como a tecnologia, a estética da mercadoria, a profusão de objectos, o consumo, a democracia e a vontade geral, os direitos humanos. Todas elas são expressões do mesmo ser social: o capital e a sua lógica abstracta. Não é visível, mas actua como o verdadeiro princípio da realidade. O capital é um conjunto de abstracções que configuram a sua dinâmica social e, como dizemos, são inseparáveis do seu próprio movimento. Ignorar a sua origem e ligação comum, entendê-los como entidades autónomas e independentes, desarma-nos e torna a nossa crítica impotente. O trabalho assalariado e a família patriarcal, a cidadania e a lei, a democracia e a nação são expressões do mesmo mundo social, o do indivíduo abstracto que rompeu a sua ligação com as comunidades pré-capitalistas. O capital é o verdadeiro espírito do mundo, mesmo que nunca apareça como tal na sua imediatez, mesmo que medie as relações entre as coisas sociais ou entre formas de pensamento reificadas e socialmente produzidas. É contra esta base material que devemos dirigir-nos. O patriarcado reinante ou o ecocídio não são o simples produto de concepções do mundo, mas expressões enraizadas na materialidade de uma dinâmica social. Por esta mesma razão, não podemos desconstruir o patriarcado para acabar com ele ou ser menos consumistas para impedir o ecocídio. Apenas uma materialidade mais poderosa é capaz de destruir o monstro oculto que se acredita omnisciente na sua metamorfose automática. O comunismo é o movimento real que nega todas estas formas, para se afirmar e negar o capital.

3. A vontade de poder como sua origem?

Pelo que vimos até aqui, podemos entender que existe uma lógica de identidade que é intrínseca a essa sociedade, e que surge dos seus próprios fundamentos e parâmetros. A identidade como auto-consciência numa sociedade classista e, portanto, opressora não pode deixar de reproduzir os fundamentos da sociedade que a produz continuamente. Portanto, as políticas identitárias, que são a expressão ideológica mais imediata do pós-modernismo, sempre operam dentro das categorias deste mundo. Eles não entendem a sua origem ou por que se reproduz, nem as suas categorias ou como terminá-las.

Para o pós-modernismo, tudo é uma questão de poder. No entanto, a origem da dominação não é muito clara. Tudo se reduz a uma vontade de poder de alguns sujeitos sobre outros, de algumas concepções do mundo sobre outras. Estamos condenados a um conflito perpétuo do qual não há escapatória. É uma guerra de todos contra todos, que só pode ser resolvida através do reconhecimento legal, pelo Estado, da identidade subalterna. Não é por acaso que no final, embora de uma maneira diferente, chegamos à mesma conclusão de Hobbes. O Estado, como representação de múltiplas identidades, serve como mediador. Só ela pode mediar esse conflito perpétuo através do reconhecimento de identidades subalternas: através de leis a favor das pessoas trans, através de políticas a favor das pessoas racializadas nas escolas, através de políticas de lembrança do passado colonial, o derrube de estátuas de ex-proprietários de escravos. O problema com essas políticas, como tudo o que o Estado faz, é que, em vez de resolver e aliviar a opressão, o que eles fazem é amplificá-la a um nível superior. As origens dessas opressões reais (racismo, patriarcado, falta de sentido na vida vivida por muitas pessoas hoje) têm uma raiz comum na forma como o capitalismo organiza mundialmente a sua exploração e o conjunto de opressões que experimentamos. Nenhuma lei eliminará o racismo. A competição capitalista é o combustível que acende permanentemente o motor racista. É o mundo capitalista, a sua própria antropologia, a competição permanente organizada em identidades colectivas nacionais, que eleva o racismo a algo intrínseco ao próprio capitalismo. Portanto, a própria história do capitalismo está inseparavelmente ligada à dessas opressões.

Mas partir de uma visão identitária, que reduz tudo a sujeitos conflitantes movidos por uma vontade de poder, implica logicamente reproduzir a separação ad infinitum. Há sempre um Outro sobre o qual a opressão é exercida e que precisa ser reconhecido. A lógica da dominação pós-moderna e a da exploração, defendida pelo nosso partido histórico, são antagónicas. A exploração capitalista pressupõe a existência de uma totalidade abstracta, o valor, que reproduz e unifica a sua dominação em todas as esferas da vida. Como os sujeitos experimentam essa exploração e dominação só podem ser entendidos a partir dessa totalidade concreta. Parcializar a dominação em diferentes segmentos simplesmente serve para não entender nada e operar dentro de uma totalidade, que é o capitalismo, de suas próprias categorias. Isso é o que acontece com a política de identidade pós-moderna. E, portanto, ao agir, eles só podem referir-se aos canais apropriados que o próprio capitalismo, na sua reprodução impessoal, apresenta. Se existe uma identidade subalterna, devemos lutar para que o Estado a reconheça e lhe conceda direitos. A própria base da política de identidade é a democracia e o Estado, a nação e a lei como conectores sociais da identidade dos sujeitos. A política de identidade deriva das separações e fragmentações deste mundo e só pode tentar uma unidade e estabilidade fracassadas através das categorias que este mundo oferece. Como veremos na secção sobre interseccionalidade, a importância dos estudos e práticas jurídicas para o reconhecimento de direitos para activistas identitários não é coincidência. É a consequência lógica das suas próprias posições teóricas.

A nossa perspectiva não é alcançar o reconhecimento deste mundo, mas fazê-lo explodir. É a lógica da negação afirmar a verdadeira comunidade humana (Gemeinwesen), uma comunidade que só pode emergir da negação dos fundamentos materiais deste mundo: mercadorias, classes sociais, estados e nações. Noutras palavras, não se trata de reconhecimento ou distribuição de poder ou recursos, mas sim da negação radical das categorias do capitalismo. O nosso movimento tem historicamente chamado a este movimento negativo, que afirma a comunidade humana, de comunismo: este movimento real que nega e supera o estado actual das coisas. O proletariado é a classe revolucionária (e não apenas a explorada) na medida em que os proletários "não têm que realizar nenhum ideal, mas simplesmente dar rédea solta aos elementos da nova sociedade que a velha sociedade moribunda carrega dentro de si" (Marx, A Guerra Civil na França). E isso é possível na medida em que o proletariado assume:

“A formação de uma classe em cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa, de uma classe social que é o desaparecimento de todas as classes sociais; de um sector que deriva um carácter universal do seu sofrimento universal e não reivindica nenhum direito especial porque não sofre injustiça social, mas da própria injustiça, que não pode mais apelar para um pretexto histórico, mas para um pretexto humano que não está em contradição particular com as consequências, mas em contradição universal com as premissas da ordem pública alemã; de um sector, finalmente, que não pode emancipar-se sem emancipar-se de todos os outros sectores da sociedade e sem emancipá-los por sua vez; significa, numa palavra, que a perda total do homem só pode ser remediada com a recuperação completa do homem. Essa dissolução da sociedade, na forma de uma classe especial, é o proletariado.”

Como vemos, para nós e para o nosso partido histórico, o proletariado é, ao mesmo tempo, uma classe explorada e revolucionária. É revolucionária porque, no movimento material e real de defesa das suas necessidades humanas, afirma a necessidade de dissolver todo este velho mundo, que chamamos de capitalista, e de afirmar um novo mundo que já está potencialmente activo nas profundezas do antigo. O proletariado não reivindica um direito especial, mas luta para acabar com todas as formas de lei e, consequentemente, do Estado. O proletariado é a causa agente da dissolução da sociedade capitalista, como afirma Marx. Para isso, deve dissolver todas as separações e fragmentações inerentes a este mundo, a fim de afirmar a comunidade comunista material. O proletariado não afirma os seus interesses e direitos dentro deste mundo, mas luta para se negar a si mesmo, negando todo o mundo do capital: não apenas a economia, como terreno de produção e realização de valor, mas a política como mediação social das vontades humanas, o patriarcado como cristalização das relações de género, o racismo como relação violenta e opressiva com o outro. Na perspectiva de Marx, a luta entre classes, a guerra social inerente ao capitalismo, deve ser entendida dentro do conflito mais global entre capitalismo e comunismo. O proletariado é, muito simplesmente, o agente desse movimento em direcção ao comunismo, na medida em que, para defender as suas necessidades humanas, deve afirmar-se como classe, constituir-se como partido e, através da revolução mundial, criar as condições de possibilidade para, em última instância, negar-se a si mesmo e ao capitalismo. É o único sector deste mundo que luta para se negar a si mesmo em todos os níveis da sua existência.

Nem reconhecimento nem distribuição: negação comunista.

4. Modernidade ou pós-modernidade?

O próprio facto de falar de modernidade ou pós-modernidade já pressupõe uma concepção teórica estranha à nossa perspectiva e método. Não é por acaso que falamos de modos de produção e não de civilizações. Falar de modernidade implica falar de uma civilização marcada por uma visão de mundo (o Iluminismo) e práticas sociais secularizadas na política. A abordagem dominante, mais uma vez, é a de Max Weber. O que domina essas abordagens são perspectivas em que a análise é canalizada através da centralidade das ideias, da cultura, da vontade de dominar, dos comportamentos sociais. Os processos são inelutáveis, mas não a partir da lógica do nosso determinismo histórico. O seu determinismo é fatalista e pressupõe sempre um beco sem saída, sem saída emancipatória. A modernidade contém em si mesma a jaula de ferro que aprisiona as nossas vidas numa racionalidade instrumental. Tornamo-nos apêndices de uma máquina burocrática que encerra, em si mesma, os aspectos qualitativos das nossas vidas. Superficialmente, a perspectiva não é tão diferente da do fetichismo da mercadoria de Marx, mas o ponto de partida e o resultado são completamente diferentes. O nosso método é diametralmente oposto.

Partindo de uma abordagem materialista e histórica, que entende o capitalismo como uma contradição em andamento, permite-nos entender que, na sua materialidade, o mundo capitalista é muito mais contraditório do que a sociologia e a filosofia burguesas estão dispostas a admitir, e que, em última análise, procedem nas suas análises a partir das suas próprias categorias. A famosa gaiola de ferro de Weber não é o resultado de mera e inevitável complexidade social, mas de uma lógica, a da mercadoria generalizada a todos os aspectos da vida, que nos torna coisas e instrumentos para os outros e automaticamente concede personalidade às mercadorias e coisas. A racionalidade instrumental nasce disso. Mais uma vez, testemunhamos um exemplo de como as ciências sociais modernas nada mais são do que formas objectivas, no pensamento, das categorias do capital. A modernidade como conceito nada mais é do que o resultado da generalização de diferentes tipos ideais que surgem das experiências e identidades dos comportamentos sociais neste mundo. E, obviamente, os comportamentos sociais são experimentados pelos seres humanos de maneira semelhante a uma prisão. Vivemos uma vida confinada, sufocante e cada vez mais sem sentido. A modernidade é tudo isso, e está a tornar-se cada vez mais profunda. Não é uma lógica simples; é a materialidade concreta que nasce e engloba tudo neste mundo.

E, ao mesmo tempo, é uma totalidade dinâmica, contraditória e dialéctica. Esta última palavra, mágica para alguns como se fosse um fetiche, é, no entanto, fundamental para Marx e sua abordagem. Marx sempre analisa os pólos contraditórios de toda a realidade social, de todo o modo de produção. O capitalismo é, ao mesmo tempo, uma catástrofe, mas no seu próprio desenvolvimento prepara a sua negação. Portanto, a perspectiva de Marx não é a de um retorno a um passado idílico e remoto, mas sim a da comunidade universal, o comunismo como um projecto para a espécie. O capitalismo está a morrer de complexidade social. O desenvolvimento das forças produtivas não se encaixa mais no quadro estreito das relações sociais capitalistas. Não podemos mais viver sob a égide do valor, do dinheiro, das mercadorias e do trabalho abstracto. Como Marx explica claramente nas suas notas preparatórias para O Capital, os Grundrisse:

“Além disso, o capital aumenta o tempo de trabalho excedente das massas por todos os recursos da arte e da ciência, uma vez que a sua riqueza consiste directamente na apropriação do tempo de trabalho excedente; uma vez que o seu objectivo é directamente o valor, não o valor de uso. Desta forma, apesar de si mesmo, é instrumental na criação dos meios de tempo social disponível, a fim de reduzir o tempo de trabalho de toda a sociedade a um mínimo decrescente e, assim, libertar o tempo de todos para o seu próprio desenvolvimento. A sua tendência, no entanto, é sempre, por um lado, criar tempo disponível e, por outro, convertê-lo em trabalho excedente. Se tiver demasiado sucesso na primeira, experimenta a sobreprodução e, então, o trabalho necessário será interrompido, porque o capital não pode valorizar qualquer trabalho excedente. Quanto mais esta contradição se desenvolve, mais evidente se torna que o crescimento das forças produtivas já não pode estar ligado à apropriação do trabalho excedente dos outros, mas que a própria massa operária deve apropriar-se do seu trabalho excedente. Uma vez feito isso — e com isso, o tempo disponível deixará de ter uma existência antitética —, por um lado, o tempo de trabalho necessário encontrará a sua medida nas necessidades do indivíduo social e, por outro, o desenvolvimento da força produtiva social será tão rápido que, embora a produção seja agora calculada em termos da riqueza comum, o tempo disponível de todos aumentará.”

O problema não é de complexidade social; É que o grau de desenvolvimento material que a humanidade alcançou implica uma bifurcação irreversível: catástrofe capitalista ou comunismo. Tertium non datur. Não há mal menor ou outras alternativas. O nosso determinismo histórico e dialéctico não tem nada a ver com o fatalismo das interpretações modernas ou pós-modernas do capitalismo. O comunismo é o modo de produção e de vida possível para a nossa espécie no actual estado de desenvolvimento histórico. Na verdade, é o único possível se não quisermos cair numa catástrofe cada vez mais profunda.

Modernidade e pós-modernidade são o binómio amplamente discutido hoje pela sociologia e filosofia burguesas: de um lado, os defensores da modernidade e do Iluminismo, como Habermas; do outro, os seus críticos, os autores pós-modernos nas suas várias versões. Para nós, essa é uma falsa dicotomia.

Por um lado, filósofos como Habermas defendem o Iluminismo europeu como um emblema da razão e do avanço humano. A modernidade, com o uso da razão na esfera pública, permite uma racionalidade comunicativa baseada num "mundo da vida" que pode e não deve ser colonizado pelas estruturas do sistema social. O Iluminismo e a modernidade existem nesse conflito, entre a gaiola de ferro weberiana e a possibilidade de uma racionalidade comunicativa que desenvolve o mundo da vida dos seres humanos, sua âncora mais profunda. O Iluminismo e a modernidade filosófica permitem essa abertura positiva para a vida através da política, o que impede que os sistemas económicos e políticos se separem dos seus fundamentos antropológicos mais profundos. Habermas e os seus oponentes pós-modernos têm muito mais em comum do que ousam admitir. Como já vimos em relação aos pós-modernistas, Habermas também começa com o comportamento dos sujeitos estruturados de forma simbólica e comunicativa para pensar a sociedade. Noutras palavras, é a identidade dos sujeitos e suas acções que nos ajudam a pensar o funcionamento dos sistemas sociais. Assim, Habermas é incapaz de compreender porque é que os processos de autonomização dos sistemas sociais, políticos, culturais e económicos ocorrem. Para fazer isso, devemos entender os fundamentos da produção e reprodução social, e estes não são encontrados principalmente no comportamento social. Pelo contrário, o comportamento social é um produto deles.

Apesar de tudo, Habermas, de forma voluntarista e idealista, apresenta-se como um defensor da racionalidade moderna, como um projecto inacabado. O Iluminismo permite-nos confrontar as deficiências dos seus limites com o uso da razão autêntica e uma democracia deliberativa que desdobra a acção comunicativa. Pelo contrário, para os autores pós-modernos, a origem do mal decorre claramente da própria modernidade e de tudo o que ela implica. Uma perspectiva teleológica do desenvolvimento humano em direcção à emancipação que, na realidade, esconde uma secularização da narrativa religiosa, uma forma de gnosticismo, desta vez envolta em ideologias radicais (anarquistas e/ou comunistas), um projecto de engenharia social que esconde os totalitarismos do século 20, um uso da razão que cobriu o mundo com sonhos monstruosos. Não há um projecto universal, como a modernidade pensou, pois por trás de todo universalismo há sempre um particular que se proclama ilegitimamente como o universal. E fá-lo com base no seu desejo de dominação.

Temos apenas linhas de fuga em relação ao que existe, a subtracção como estratégia, para evitar metanarrativas totalitárias como a revolução mundial, o molecular sempre melhor que o molar, as formas quotidianas versus as formas de engenharia social dos programas revolucionários, as identidades concretas dos indivíduos versus a tirania das abstracções.

Obviamente, a visão pós-moderna da modernidade teoricamente tem muito em comum com a filosofia moderna que critica. Representa simplesmente uma radicalização dela, como já desenvolvemos noutro lugar. [2]

De uma perspectiva pós-moderna, o universal é criticado como algo pré-constituído que ignora a diversidade e os particularismos. Por exemplo, isso fica muito evidente quando vemos como a racialização critica a noção de classe operária como classe universal quando ela é dividida em raças sobrepostas e hierárquicas. Já sabemos que, ao fazê-lo, elimina qualquer ideia de universalidade e, portanto, não há saída possível. No entanto, na sua essência, essa perspectiva abrange o eterno debate na filosofia entre universais e particulares. Autores pós-modernos dizem-nos que o todo universal nada mais é do que uma redução unívoca que elimina aquilo que conota o particular, o concreto. Portanto, seria uma operação totalitária. E, no entanto, não é a única relação possível que pode ser estabelecida entre o universal e o particular.

Consideremos, para esse fim, a nossa noção comunista de classe, que não é a da classe operária sociológica. É precisamente um tornar-se universal: quando o proletariado luta, ele deve enfrentar as formas de separação que o capital lhe impõe para triunfar e, ao fazê-lo, torna-se universal e antecipa a comunidade universal do comunismo. Mas isso é incompreensível se não entendermos como é que o capitalismo lançou as bases para isso, subsumindo e proletarizando todo o planeta, corroendo as estruturas patriarcais e tradicionais das comunidades pré-capitalistas no seu impulso individualizante, questionando a religião como paradigma para entender o mundo, etc. Há uma analogia permanente que atravessa a relação entre o universal e o particular. Por um lado, o proletariado torna-se uma classe universal ao confrontar as diferentes formas de separação do capital; Por outro lado, é a universalidade (totalidade) do capital que constitui as diferentes instâncias particulares que compõem a soma do seu domínio. Na realidade do capitalismo e do seu movimento histórico mundial, o universal e o particular existem numa relação contínua, recíproca e dialéctica. Isso é bem diferente do reducionismo apresentado pela concepção pós-moderna.

5. O nosso fio histórico

Os pós-modernistas leem tudo através das suas lentes. Tudo é uma identidade subjectiva, então o proletariado e a sua história, os seus partidos e organizações formais, o seu programa histórico, etc., são reduzidos a uma visão de mundo entre outras da modernidade. Uma visão que, neste caso, procurou impor o domínio do operário cis-masculino sobre o resto das minorias subalternas. Para eles, tudo é uma história, mas a vida real e a história só podem ser enganosamente reduzidas a meros conflitos de ideias. O programa comunista do proletariado, que envolve precisamente a negação da sociedade de classes e do proletariado, simplesmente desaparece da equação pós-moderna. Eles simplesmente ignoram. Eles baseiam-se tanto na modernidade que são mais uma expressão da contra-revolução que está em curso há 100 anos. Para eles, o marxismo é o estalinismo, os proletários são trabalhadores acorrentados à competição capitalista e organizados em partidos nacional-comunistas. A nossa oposição a essa perspectiva só pode ser frontal. É a frontalidade que temos com qualquer fracção burguesa num nível político e ideológico.

E, claro, a nossa história, a da nossa classe e das nossas minorias, é muito diferente das narrativas ignorantes encerradas num texto para evitar a contaminação logocêntrica, como diria Derrida, ou seja, a contaminação da vida real. A nossa classe e o nosso partido histórico nascem permanentemente do solo desta sociedade; é por isso que é histórico. E é mundial pela sua essência, como o capitalismo. É uma realidade material, constitutiva e primária do mundo social em que vivemos; não é um mero desejo linguístico. Um proletariado que lutou como classe em defesa dos nossos interesses históricos em todos os lugares, da Comuna de Paris de 1871 à Rússia em 1917, da Alemanha em 1919 ao Equador em 1922, da Itália durante o Bienio Rosso aos proletários chineses de 1927, e às lutas que varreram o mundo nas décadas de 1960 e 1970 com a retoma da luta de classes independente, de Paris à greve selvagem de Vitoria-Gasteiz, da Itália durante o Outono Quente às favelas proletárias de São Paulo, dos cinturões industriais chilenos aos mineiros negros da África do Sul, do Irão em 1979 e seus shoras ou conselhos operários à Polônia em 1980 ou à comuna coreana de Gwangjiu, para citar apenas alguns exemplos entre dezenas de milhares. A nossa classe é uma realidade material que luta contra este mundo, como uma velha toupeira que aparece e desaparece, mas sempre emerge novamente. De derrota em derrota, aprendemos até a vitória final contra este mundo miserável que reproduz a catástrofe em todos os aspectos da vida.

A continuidade histórica e a nossa memória são fundamentais para o futuro. Somente através da continuidade e do aprendizado com o nosso passado é possível um plano de vida para a espécie. E isso requer continuidade com os camaradas históricos do nosso partido, que lutaram intransigentemente contra o capitalismo e a contra-revolução em todas as suas formas. Devemos isso aos petroleuses da Comuna de Paris e a Chen Du Xiu e às dezenas de milhares de comunistas chineses assassinados pelo Kuomintang e pela subsequente contra-revolução estalinista (maoísta), aos milhares de comunistas internacionalistas vietnamitas que sofreram o mesmo destino devido à contra-revolução de Ho Chi Minh, aos proletários iranianos que foram enforcados nas praças da contra-revolução enquanto Foucault aplaudia os aiatolás de Khomeini.

Graças a todos eles, conhecidos e desconhecidos, o internacionalismo proletário é uma realidade material constitutiva do nosso programa histórico. É bem diferente do jogo pós-moderno, ao estilo Baudrillard, de simulacros puros, onde a realidade não existe, excepto como uma projecção intelectual e vazia.

6. Capitalismo em intersecção?

A interseccionalidade surge dos mesmos limites da teoria pós-moderna quando tenta traduzir-se politicamente. É uma tentativa de agir em comum quando a realidade é reduzida a uma rede infinita de opressões, onde cada vítima também pode ser um opressor. O proletariado como classe é branco e, portanto, colonialista. O feminismo como reacção ao machismo patriarcal também é feminismo branco e, consequentemente, racista e colonial. Um sexista da sua própria raça é menos sexista porque deve ser entendido dentro dos seus parâmetros culturais. O oposto pode ser um exemplo de privilégio derivado da branquitude.

A reflexão da filósofa Judith Butler sobre a burca [3] pode servir como um exemplo sintomático desse tipo de impotência pós-moderna. Para ela, a burca deve ser entendida a partir dos traços culturais de pertencer a uma comunidade, a uma história comum, a uma religião, a uma família. Também serve como medida de protecção para as mulheres afegãs. A burca, além disso, seria um instrumento de protecção para as mulheres contra a vergonha e opera como uma linha de demarcação para o espaço em que a actividade feminina é possível. Nesse contexto, a burca aparece como um instrumento de protecção contra a vulnerabilidade e precariedade das mulheres, pelo menos nos países onde está em uso. E isso implicaria, para Butler, uma certa avaliação positiva do uso da burca, uma vez que estaria associada a um ethos (costume, cultura) específico das mulheres afegãs que elas não podem abandonar da noite para o dia. Remover a burca significa despir essas mulheres, extirpá-las da sua cultura e da sua comunidade. O feminismo que propõe isso na verdade esconde o desejo do colonizador ocidental de impor a sua cultura.

Este exemplo é muito útil para entender o jogo de soma zero ao qual o pós-modernismo está politicamente condenado. Nessa perspectiva, é impossível superar esse mundo porque o pós-modernismo sempre parte das suas categorias. Não pretendemos banalizar o que Butler diz. É claro que a denúncia da burca pelos estados ocidentais serve como uma justificativa ideológica para os seus propósitos imperialistas. Mas a famosa filósofa americana, através das suas categorias, simplesmente nos desarma de qualquer projecto de libertação, que por essência só pode ser universal. A burca é claramente um instrumento patriarcal que torna as mulheres invisíveis na esfera pública, uma demonstração do carácter patriarcal de todas as sociedades de classes, que nós, como comunistas, devemos combater. Só dentro de um processo de revolução anti-capitalista e classista do proletariado mundial será possível superar os impasses denunciados pela teoria pós-moderna, da qual Butler é um ilustre representante. Somente a luta das mulheres proletárias afegãs pode ser um agente de libertação desta e de outras formas de opressão, porque somente o proletariado tem o poder de encarnar a negação total deste mundo.

Os autores pós-modernos descobrem contradições reais dentro deste mundo. É claro que o Iluminismo é usado como uma arma para justificar ideologicamente as formas de opressão inerentes a esse sistema e suas dinâmicas sociais e políticas. Isso é o que eles não conseguem entender. Eles próprios movem-se num mundo fragmentado por opressões e formas de dominação social que acabam internalizando por serem incapazes de compreender as suas causas e origens. Assim, a burca torna-se simplesmente um instrumento do ethos das mulheres afegãs, que também abrange um espaço de liberdade feminina. E qualquer pretensão crítica em relação a isso esconderia um desejo ocidental de dominação. O pós-modernismo emerge claramente como o que é: a corrente teórica da impotência. As identidades criadas pelo capitalismo e outras sociedades de classes tornam-se intransponíveis, inerentes ao ethos local e ao sagrado, numa vida após a morte incriticável. Ao não entender a sua origem como produto das sociedades de classes, ao reduzir tudo a uma luta de vontades pelo poder (neste caso, Ocidente versus Oriente), o que é simplesmente concebido (e ontologizado) como algo natural é o resultado da evolução material da história e das sociedades de classes.

A teoria pós-moderna opera com as categorias inerentes ao capital. A interseccionalidade é apenas uma reviravolta adicional no uso desses instrumentos. O capitalismo unifica o seu ser social, fracturado pela competição capitalista, graças à lei. E a interseccionalidade não nasce coincidentemente como uma teoria e é cunhada como um termo num artigo de Kimberlé Crenshaw intitulado Mapeando as margens para a Stanford Law Review. Nisso, podemos perceber a importância do direito para a perspectiva interseccional. Na verdade, de acordo com Hill Collins e Sirma Bilge, dois estudiosos interseccionais, a sua perspectiva fala a linguagem de activistas e instituições. Trata-se de alcançar a sua convergência e, para isso, a prática de activistas e profissionais é fundamental: académicos, advogados, assistentes sociais e assim por diante. Intelectuais e profissionais têm como alvo as agências governamentais para mudar a política governamental. Como exemplos positivos, esses dois académicos e activistas citam exemplos como a Conferência Mundial da ONU contra o Racismo em Durban (2001), o programa de microcrédito implementado por Yunus (vencedor do Prémio Nobel da Economia) e assim por diante. Em última análise, a interseccionalidade serviria para intervir, através de organizações activistas de base e das habilidades dos profissionais, nas agendas públicas dos Estados para ajudar a implementar políticas públicas favoráveis a diferentes minorias de classe, raça e género. Para isso, eles oferecem possíveis exemplos, desde campanhas de pressão contra o governo Obama (Why We Can't Wait) até a já mencionada campanha sobre microcrédito, ou propostas sobre como a interseccionalidade pode ser útil para que organizações internacionais entendam melhor a desigualdade social no mundo. Uma conferência sobre capitalismo inclusivo realizada em Londres em 2014 serve como exemplo.

Esse tipo de interpretação da interseccionalidade é particularmente pragmático. Certamente representa um tipo muito moderado de liberalismo distributivo. Reconhecemos que outras perspectivas interseccionais podem ser mais radicais na forma, mas nunca no conteúdo. O conteúdo é sempre a ferramenta que o capitalismo lhe oferece a si, se você se mover dentro das suas categorias e divisões, como fazem os nossos pós-modernistas. Como diz Elizabeth Duval no seu Después de los trans, quando polemiza com Paul Preciado, a perspectiva queer não tem nada de revolucionário. É simplesmente uma tentativa de obter o reconhecimento do Estado (que Duval vê positivamente, como um bom esquerdista) de certos direitos.

E a interseccionalidade fala-nos, simplesmente, de diferentes eixos de desigualdade que são autónomos e independentes uns dos outros (classe, raça, género, capacitismo, sexualidade e assim por diante ad infinitum). Não há hierarquia de algumas opressões sobre outras, e o pluralismo é intrínseco a essa ideia de diferentes sistemas de dominação. A sua lógica é típica de várias discriminações pessoais, baseadas em categorias que são inerentes aos indivíduos (por exemplo, branquitude em pessoas brancas) e que se expressam como uma vontade de poder e não como a realidade de uma dominação capitalista que é realizada, sobretudo, por uma dinâmica impessoal e automática. A nossa abordagem seria, para autores interseccionais, um exemplo de reducionismo monista e teológico. Mas o que opera dessa maneira, em qualquer caso, é a realidade do capitalismo e suas máscaras ocultas.

Como vimos, ao usar um método empirista, o pós-modernismo tende a reificar identidades com base no comportamento imediato dos indivíduos, que, na realidade, são uma expressão concreta do mundo capitalista. A identidade de classe que os pós-modernistas pensam tem muito a ver com as experiências sociológicas dos operários, e poderíamos desenvolver a mesma abordagem em relação ao género ou raça. O que eles não conseguem analisar é porque é que os comportamentos e identidades sociais são organizados dessa maneira. E para conseguir isso, os seus tipos ideais não são mais suficientes; eles precisam entender como é que  a abstracção do capital os constrói.

De qualquer forma, para os teóricos da interseccionalidade, esses eixos de desigualdade expressam diferentes experiências de discriminação que as pessoas experimentam de maneiras particulares: diferentes hierarquias de dor que expressam uma diversidade de geo-políticas de medo e desconforto interseccional. Como os eixos da desigualdade são múltiplos e sempre incorporados de forma diferente em cada pessoa, podemos entender que a unidade interseccional continua a ser um desejo voluntarista piedoso e impossível de um encontro entre feminismos negros e brancos, epistemologias do Sul e a decolonialidade de género, entre movimentos gays e iranianos racializados que têm a perseguição aos homossexuais como seu ethos.

Neste ponto, e a título de resumo, podemos concluir com sete ideias:

1.     Tudo isso é o preço de partir de categorias reificadas, extraídas do comportamento imediato dos indivíduos, usando um método empirista, característico da criação de tipos ideais.

2.     O pós-modernismo é o resultado de uma concepção estática e cristalizada das separações do capital, que não consegue ver a dinâmica da perspectiva histórica em que operam as sociedades de classes, e o capitalismo em particular.

3.     Ao reduzir o proletariado como classe a uma identidade entre outras, ele não consegue compreender a sua realidade potencial como uma negação global deste mundo e, portanto, acaba por declarar a impossibilidade de tal negação.

4.     O pós-modernismo ignora a história e as origens na sua análise da exploração e das diferentes formas de opressão, que são revisitadas na sua particularidade e tendem a ser essencializadas, como se tudo fosse o resultado de uma eterna luta pelo poder, uma guerra de todos contra todos.

5.     Trata-se de uma perspectiva idealista que reduz tudo a um jogo linguístico de significantes que proliferam ad infinitum, onde a realidade é uma mera projecção sem fundamento material.

6.     A totalidade social do capitalismo não é redutível à soma das suas partes, como afirmam os teóricos do pós-modernismo interseccional, movidos pelo seu desejo de pluralismo a todo custo. Pelo contrário, é a expressão de uma relação social, o valor, que no seu movimento automático sofre diferentes metamorfoses. A soma das partes não é igual ao resultado final, pois para entender as partes, devemos partir da abstracção concreta que é o valor em processo.

7.     Em última análise, o pós-modernismo é essencialmente uma perspectiva que se situa no terreno cívico e legalista do direito e da democracia, ou seja, no terreno que o capital apresenta para a co-existência dos seus conflitos e separações.

 

7. Algumas notas finais

 

Na região espanhola, estamos a testemunhar um debate acalorado entre pós-modernistas e anti-pós-modernistas. A nossa intenção explícita é distanciarmo-nos deste debate. Obviamente, não temos nada a ver com uma abordagem pós-moderna, como ficou bem claro nestas páginas, mas também não temos nada a ver com os seus falsos críticos que reproduzem e pioram os seus supostos rivais. Quem são esses críticos do pós-modernismo e de onde eles conduzem a sua crítica? Escritores e jornalistas como Daniel Bernabé, com a sua La trampa de la diversidad, ou Ana Iris Simón, com o seu livro Feria, opõem-se ao pós-modernismo simplesmente porque estão horrorizados com a dinâmica de dissolução que o capitalismo acarreta. Sabemos, com Marx, que o capitalismo prepara as condições materiais para a sua própria superação. E é a partir dessa percepção que a vontade pode reverter a práxis da dinâmica catastrófica que o capitalismo também acarreta: "Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a considerar calmamente as suas condições de existência e as suas relações uns com os outros" (Marx-Engels, Manifesto do Partido Comunista).

Os autores acima mencionados confrontam as correntes pós-modernistas reivindicando e idealizando um passado que já passou, um passado que eles idealizam e do qual se privam arbitrariamente da sua realidade capitalista e exploradora. O capitalismo do pós-guerra foi o resultado do massacre imperialista da Segunda Guerra Mundial, da morte de milhões de proletários em todas as frentes, da contra-revolução reinante da década de 1930, do fascismo, do New Deal e do estalinismo. Os nossos intelectuais embelezam tudo isso porque, na realidade, o seu discurso é um produto de terceira mão do seu estalinismo ao longo da vida. Eles não são mais capazes de nada; eles são o resultado da contra-revolução com esse nível de superficialidade.

O pós-modernismo é criticado para recuperar a pátria (o que é feito não apenas por Ana Iris Simón, mas também por Podemos e Errejón), o feminismo queer é criticado em nome da família e o liberalismo da auto-determinação em nome do Estado é criticado. Nós dizemos: todas essas falsas solidezes já se dissolveram e não voltarão, apesar dos desejos "piedosos" de Bernabé, que na recente greve proletária em Cádiz defendeu os sindicatos que cumpriram o seu papel de fura-greves. A alternativa não é entre o estado corporativo ou a auto-determinação pós-moderna, mas entre a catástrofe capitalista ou o comunismo.

A esta Sagrada Família de defensores do passado capitalista devem-se juntar outros mais explicitamente contra-revolucionários, como o novato YouTuber Roberto Vaquero. Vaquero é o líder do grupo estalinista (do ramo pró-albanês) Frente Operária. Nos seus vídeos, ao criticar o pós-modernismo em nome do capitalismo de Estaline [4] e da contra-revolução que massacrou o proletariado e as suas minorias revolucionárias no passado, ele ajuda-nos a entender ainda mais claramente a falácia da dicotomia pós-modernismo/anti-pós-modernismo.

Quando todos esses autores defendem a classe operária, eles não estão, na realidade, a defender o proletariado como uma classe revolucionária, no sentido de Marx e da nossa tradição, mas sim a classe operária sociológica, explorada, reduzida às engrenagens da sociedade capitalista com as suas pátrias, a sua lógica produtiva e obreirista. A sua tradição é a do comunismo nacional, que tem uma longa história por trás dele. É a história da contra-revolução.

Ao longo deste texto, tentamos confrontar o pós-modernismo como uma ideologia do nosso tempo. Nesta breve secção, estamos a ver como existe actualmente uma dicotomia que tende a polarizar os círculos e sectores que procuram confrontar radicalmente este mundo em duas alternativas: pós-moderno ou anti-pós-moderno. Parece-nos, como tantas vezes antes, uma falsa alternativa. A nossa época é atravessada por conflitos muito mais importantes e decisivos.

Quando tudo o que é sólido se desmancha no ar, quando o capitalismo atinge os seus limites internos, no momento em que a vida parece não ter sentido, quando a defesa das nossas necessidades humanas nos obriga a rebelar-nos, quando o ambiente social tende a tornar-se electrificado por pólos com interesses opostos, quando o capitalismo dissolve tudo o que é sólido porque não é mais possível viver sob o reino da mercadoria, quando pudéssemos organizar as nossas vidas como espécie, sem Estado ou trabalho assalariado. Neste momento histórico, não é nem um tempo de modernidade nem de pós-modernidade, é o tempo do comunismo.

Barbaria, Dezembro de 2021

[1] Veja o nosso livro, Contra o pós-modernismo, disponível em versão impressa e online. https://barbaria.net/2018/11/20/posmodernidad-o-la-impostura-de-una-falsa-radicalidad/

E a transcrição de uma das nossas palestras na região chilena: https://barbaria.net/2020/09/11/titulo-el-espiritu-posmoderno-del-capitalismo/

[2] https://barbaria.net/2020/09/11/titulo-el-espiritu-posmoderno-del-capitalismo/

[3] Veja o seu livro, Vida PrecariaEl poder del duelo y la violencia (Vida Precária. O poder do luto e da violência). E o artigo de Gabriel Bello, disponível online: Hacia una hermeneutica de la extraña (Rumo a uma hermenêutica do estrangeiro. A burca e as mulheres muçulmanas).

[4] Veja o nosso livro, Stalin's Capitalism: https://barbaria.net/2020/12/15/el-capitalismo-de-stalin/

 

Fonte: Intersecting Capitalism? – Barbaria – League of Internationalist Communists

Este texto foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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