Guerra na Ucrânia:
relato exclusivo do trágico conflito
Esta semana, o nosso
colunista Alexandre del Valle inaugura uma série de 3 episódios dedicados às
causas e desafios da guerra na Ucrânia, e suas dimensões internacionais,
estratégicas, geo-económicas e ideológico-políticas. Uma oportunidade de
entender esse terrível conflito não através das notícias imediatas com as quais
os canais de notícias lidam constantemente e sem retrospectiva, mas com elevação.
O conflito armado no
leste da Ucrânia eclodiu em 2014, opondo o governo de Kiev, por um lado, e os
milicianos separatistas do leste da Ucrânia, do Donbass, por outro, apoiados
não oficialmente pela vizinha Rússia. Este conflito – que em 2014, antes da invasão
da Ucrânia pela Rússia em Fevereiro de 2022, havia deixado entre dez mil e
treze mil mortos (dependendo da fonte), principalmente separatistas de língua
russa e quase um milhão e meio de deslocados – não foi uma simples guerra civil
ucraniana. Já estava a opor muito perigosamente as tropas russas às da OTAN
através da Ucrânia, esta última a compensar a sua fraqueza estrutural com o
apoio ocidental-americano, que crescia a princípio, entre 2014 e 2021, depois
massivo e ainda mais directo, desde Março de 2022. É, de facto, o resultado de
um antagonismo mais amplo, a opor, por um lado, as potências atlantistas
externas, indirectamente envolvidas (UE, NATO, Estados Unidos, Grã-Bretanha,
Polónia, etc.) e, por outro, a Rússia, directamente envolvida. No momento em
que escrevo o segundo volume deste ensaio, no Verão de 2023, a guerra
russo-ucraniana já matou entre 200.000 e 300.000 pessoas, pelo menos de acordo
com várias fontes (embora os números não sejam conhecidos senão vários anos
depois), e pode degenerar a qualquer momento num confronto directo Rússia-OTAN
ou mesmo numa "terceira guerra mundial" através da interacção de
alianças ucraniano-ocidentais e da parceria estratégica Rússia-China no caso de
uma invasão de Taiwan pelo Exército Vermelho.
Leia também: O dia em que a Ucrânia e a Rússia se tornaram inimigas
Lembremos o contexto
geral: desde o final da década de 1990, a Rússia experimentou uma certa
recuperação económica apoiada pelo aumento dos preços dos hidrocarbonetos.
Tentou, portanto, transformar essa melhoria conjuntural em influência política
com o objectivo final de reconstituir um espaço baseado num projecto de
integração em grande parte coincidente com a União Soviética e naturalmente
dominado e guiado por Moscovo. Toda a política externa de Vladimir Putin faz
parte dessa forte tendência na geo-política russa, tradicionalmente focada na
conquista territorial das áreas ao redor do seu histórico núcleo central
europeu. Nesse arranjo, a Ucrânia obviamente representou a peça central que
permitiu que a Rússia se tornasse uma potência eurasiana novamente porque, a
partir desse país, a Rússia poderia projectar-se simultaneamente no Mar Negro,
no Mediterrâneo Oriental e na Europa Central e Balcânica. Assim, em sentido
oposto, a estratégia americana e os países mais anti-russos da Aliança
Atlântica (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia, Estados Bálticos, Roménia,
etc.), visavam apoiar na Ucrânia, como na Geórgia e noutros lugares, todas as
forças políticas hostis a Moscovo, sustentadas pelo projecto de construção de um
"cordão sanitário do Báltico ao Mar Negro" contra Moscovo defendido
não só por Zbigniew Brzezinski desde a Guerra Fria, mas também mais
recentemente pelo chefe muito influente da Stratfor ("sombra da
CIA"), George Friedman, que desenvolveu esta tese precisamente em
2014-2015.
Neste confronto mundial
Rússia-Ocidente, do qual o povo ucraniano (dilacerado) está tragicamente a pagar
o preço como uma área de grande atrito entre os dois blocos, o papel belicista
directo dos Estados Unidos, dos britânicos, dos Estados Bálticos e da Polónia,
obcecados com a necessidade de reduzir toda a influência russa na Europa e no
Cáucaso, foi amplamente complementado pela influência exercida pelo suposto
Eldorado da União Europeia. Igualmente beligerante, mas de forma mais indirecta,
por causa da desestabilização que causou e das reacções previsíveis
(reconhecidamente desproporcionais) da Rússia ao "proselitismo
liberal-democrático" ocidental e atlantista. Essa afirmação parece
contra-intuitiva, mas quando lembramos que em 2010, os ucranianos – ainda
divididos 50/50 entre anti-russos e pró-russos ou indiferentes – votaram
democraticamente (eleições reconhecidas como justas pelos observadores
internacionais) a favor de um presidente bastante "pró-russo",
podemos – sem cair na armadilha de desculpar a reação ilegal, desproporcional e
inaceitável de Moscovo – notar que o Ocidente euro-americano, pelo imperativo
da extensão ilimitada dos seus modelos e instituições, mergulharam a Ucrânia na
guerra, incitando as forças nacionalistas revanchistas anti-russas – cujo povo
era na sua maioria bastante neutro e dividido em relação a Moscovo até 2014 – a
romper com Moscovo e a alinhar-se com os Estados Unidos, a UE e a OTAN),
percebidas com ou sem razão na Rússia e especialmente no Kremlin como um
império rival e uma ameaça existencial inaceitável à sua porta.
Alguns lembretes históricos
Para entender a génese
da actual guerra na Ucrânia e o choque russo-ocidental, lembremos primeiro que
foi com o apoio dos Estados Unidos e da UE que o campo "anti-russo"
ucraniano assumiu o poder na Ucrânia durante a "Revolução Laranja" de
2004-2005, amplamente apoiado por "ONGs" democráticas e instituições
americanas (National Endowment for Democracy, Fundação Albert Einstein, Voz da
América, Open Society, Carneggie, Canvas, etc.), na origem do movimento de
protesto da juventude ucraniana chamado Pora[1]*. No entanto, após cinco anos de gestão
catastrófica num cenário de megacorrupção, esse campo ucraniano muito
"pró-ocidental" decepcionou as massas de ucranianos pobres e até
mesmo alguns que os aplaudiram no início. Este campo, carregado pela
"Revolução Laranja", perdeu a eleição presidencial de 2010 para o
ex-candidato Viktor Yanukovych, um nativo de língua russa de Donetsk (Leste),
ligado aos interesses económicos do leste industrial do país, que exporta para
a Rússia. Embora democraticamente eleito, este supostamente
"pró-russo" – na realidade o chefe de um partido popular entre os
ucranianos mais "russos" do Leste e do Sul (o Partido das Regiões,
agora totalmente banido) – contradizia os planos americanos na Eurásia de
trazer todo o "exterior próximo" da Rússia pós-soviética para o rebanho
ocidental-atlantista numa lógica de cerco à Rússia. Isso levou o governo Obama
dos EUA a apoiar massivamente a segunda revolta chamada "Euromaidan"
(Novembro de 2013 – Fevereiro de 2014), dirigida contra o poder
"pró-russo" de Yanukovych, ao lado da UE e dos países mais
atlantistas e pró-americanos da Europa Central e Oriental. Através da presença
e ajuda maciça de muitas ONGs pró-americanas, secretários de Estado e senadores
dos EUA e depois líderes europeus presentes nas manifestações anti-governamentais
(George Soros e Victoria Nuland admitiram que os Estados Unidos e fundações
próximas dos neo-conservadores e democratas despejaram pelo menos cinco mil milhões
de dólares em forças anti-russas entre 2005 e 2014), A interferência política
ocidental será mais do que óbvia neste "exterior próximo russo", cuja
penetração do Ocidente foi apresentada desde 2007 (o famoso discurso de
Vladimir Putin em Munique em Davos ameaçando o Ocidente) como um casus belli extremamente
grave. Deste ponto de vista, a interferência euro-americana e atlantista foi o
espelho da interferência russa no Ocidente constantemente denunciada por
Washington e Bruxelas. O poder de atracção do chamado Eldorado europeu – em
termos das perspectivas futuras de acordos de associação, parcerias de
vizinhança e outras ajudas à adesão – foi tal que ajudou a transformar a
maioria dos ucranianos anteriormente pró-russos ou neutros em decepção e
revolta com a decisão de Viktor Yanukovych de não assinar o acordo de
associação com a União Europeia (sob pressão russa). Sinónimo, na consciência
ucraniana, de prosperidade, em contraste com o Acordo de Associação da Eurásia
fortemente apoiado por Putin e aceite por Yanukovych, que rimava – com ou sem
razão – para os ucranianos, com precariedade e socialização pós-sovietismo. O
poder de atracção do Ocidente liberal-consumista americanizado era mil vezes
mais forte do que o quase inexistente soft
power russo ... E seria um factor gigantesco para desestabilizar
a Ucrânia em detrimento da Rússia, que a via como uma ameaça existencial.
Leia também: Os objectivos da Rússia na Ucrânia e a contra-estratégia
ocidental
Em apoio à tese
kissingeriana da "provocação" americana, que é certamente discutível
(saberemos a verdade nas próximas décadas com a desclassificação de documentos
secretos), recordemos as palavras de Victoria Nuland, então secretária de
Estado adjunta para a Europa e Eurásia entre 2013 e 2017 e sub-secretária de
Estado para Assuntos Políticos desde 2021 – portanto ainda em vigor sob Biden –
que explicou ao então embaixador americano na Ucrânia como "transformar
homens "Investimos cinco mil milhões de dólares para ajudar a Ucrânia
(...), poderíamos fazer a panqueca cair do lado certo se agirmos rapidamente,
(...) Devemos apenas tentar encontrar alguém com personalidade internacional
para dar origem ao nosso projecto. Biden está pronto"[2]. Ao mesmo tempo, os senadores
americanos anti-russos/falcões – John McCain, Chris Murphy – apareceram
publicamente em Kiev com o líder da oposição de extrema-direita Oleh Tyahnybok
em apoio zeloso ao futuro golpe de Estado que depôs – após as manifestações
cada vez mais violentas do Euromaidan – o ex-presidente eleito ucraniano
Yanukovych a favor de forças políticas anti-russas que só serão consagradas nas
urnas num estágio posterior. Após uma deterioração da situação, Nuland e o
embaixador americano Geoffrey Pyatt na Ucrânia, longe de respeitar a
neutralidade exigida num país soberano, praticaram uma interferência mais do
que óbvia ao falar publicamente sobre a política interna ucraniana e distribuir
biscoitos aos manifestantes anti-governamentais na Praça Maidan. Era como se
parlamentares e diplomatas russos tivessem vindo marchar em Washington para
apoiar ostensivamente os manifestantes do Black Live Matter no derrube do actual
governo dos EUA.
Em suma, a Rússia de
Putin exerceu pressão sobre Yanukovych para que se juntasse à "União
Eurasiática", e este foi um grande erro por parte do governo russo que
contribuiu para fazer com que Moscovo perdesse os últimos "corações"
ucranianos que ainda eram neutros ou não anti-russos e ainda predominantemente
de língua russa, o que prova que a divisão opõe dois modelos de sociedades e
economias mais do que dois grupos etnolinguísticos. Mesmo que a questão
linguística, como veremos, desempenhe um papel explosivo decisivo e mobilize a
opinião patriótica russa a favor de uma crescente intervenção russa na Ucrânia.
Também é verdade que o acordo de associação concorrente com a Rússia (União
Eurasiática) foi mais vantajoso para o presidente Viktor Yanukovych, porque a sua
base eleitoral estava localizada no leste, onde o padrão de vida dependia em
grande parte das relações económicas com Moscovo. Um Oriente que era o reduto
do partido pró-russo conhecido como "as regiões". A não assinatura
(suspensão, mas não recusa definitiva) do acordo com a UE desencadeou a nova
revolução conhecida como Euromaidan, que de facto começou de forma não violenta
assim que o presidente ucraniano deposto anunciou, em 21 de Novembro de 2013,
que não assinaria o acordo Ucrânia/UE previsto para 29 de Novembro de 2013. No
início, os protestos foram pacíficos, exigindo uma reaproximação com a Europa,
e eram compostos principalmente por estudantes. Uma deriva extrema foi
provocada pela oposição Bat'kivshchyna (Timoshenko, UDAR, Vitali Klitschko) e
pelos ultra-radicais da extrema direita, com uma base muito violenta como o
Svoboda (Oleh Tyahnybok), Pravi Sektor e a nebulosa nazificante de Azov, agora
diluída no exército ucraniano. Esses grupos radicais, adoradores do "herói
nacional" ucraniano pró-nazi Stepan Bandera, a quem os líderes ucranianos
pós-Yanukovych ergueram uma estátua em Lviv e uma avenida em Kiev em 2016, substituindo
a antiga Avenida Moscovo, exigiram a saída imediata de Yanukovych, acusado de
ter "vendido o país para comprar um governo no império russo". A
violência do final de Novembro a 8 de Dezembro de 2013 e de 18 a 21 de Fevereiro
de 2014 levou, após um saldo humano de 100 mortes (principalmente por repressão
da polícia ucraniana, mas também por ataques de partidos extremistas
ucranianos), a um ponto sem retorno.
Leia também: Lições da guerra russo-ocidental na Ucrânia
No entanto, sabemos hoje
que, pelo acordo de 21 de Fevereiro de 2014, o ex-presidente ucraniano
considerado "pró-russo", Vyktor Yanukovych – na realidade ucraniano
muito mais patriótico e não tão pró-russo como foi dito caricaturalmente – mas
resolutamente neutro, cedeu em todos os pontos para satisfazer os
manifestantes: um inquérito independente sobre as mortes no Maidan, um retorno
a uma constituição parlamentar e eleições antecipadas num ano. Mas o acordo foi
aplicado apenas do lado do governo. Com um forte e beligerante incentivo
americano para não dar nada, o ímpeto revolucionário dos nacionalistas
ucranianos pró-ocidentais anti-Yanukovych continuou no Parlamento ucraniano, a
Rada, que nomeou Oleksander Turshinov, o braço direito da oponente anti-russa
Yulia Tymoshenko, (heroína da revolução Laranja Pora de 2005, desde então
indiciada por corrupção) para o cargo de chefe de Estado interino, aguardando
uma eleição presidencial marcada para 25 de Maio de 2014. Embora nunca tenha
sido derrotado nas urnas, Viktor Yanukovych teve que fugir em 22 de Fevereiro
de 2014 e foi (ilegalmente) cassado, depois de fugir para escapar da violência,
em violação da constituição ucraniana, uma vez que o procedimento de
impeachment não havia sido seguido. Como refugiado na Rússia, ele tentou obter
apoio de Moscovo, que não reconhecia o governo ucraniano pró-ocidental que
emergiu da revolução, ao contrário do Ocidente. Putin, portanto, considerou os
eventos do Euromaidan um "acto hostil" e uma "interferência
inaceitável".
Por fim, podemos
dizer em retrospectiva que a mudança de regime apoiada pelo Ocidente não
apaziguou de forma alguma a discórdia, muito pelo contrário, porque as tensões
chegariam mais tarde ao seu ponto de não retorno entre o Oriente, supostamente
"pró-russo", e o Ocidente, supostamente "pró-Ocidente",
mesmo que a realidade seja de facto ainda mais entrelaçada e complexa. De facto,
após o derrube do poder pró-ocidental em Kiev, graças a um golpe revolucionário
e ideológico dos ultra-nacionalistas ucranianos mais russofóbicos, os
confrontos iniciais do Euromaidan transformaram-se numa luta
"intercultural", porque, como Elisa Khodalitsky explicou em 2016,
"o campo nacionalista ucraniano denuncia o domínio da Rússia sobre a
Ucrânia e o campo pró-russo revolta-se contra a chamada política
"russofóbica" do novo governo. A revogação pelo Parlamento da Lei
sobre a Política Linguística do Estado, que concedeu ao russo o status de língua
regional em territórios onde os falantes de russo representam mais de 10% da
população total, contribuiu para esse discurso. Durante os primeiros meses de
2014, os dois lados entraram em confronto violento, não apenas em Kiev, mas
também no sul e no leste do país.
Apoio ocidental a uma minoria radical russofóbica que se tornou
maioria após uma "deterioração" da situação e intensa propaganda
mediática
Deve ser lembrado que
o movimento Euromaidan começou inicialmente com apenas mil manifestantes pacíficos,
reunidos em Kiev em 21 de Novembro de 2013, e que protestavam contra a recusa
de Yanukovych em assinar o acordo com a UE. De acordo com uma pesquisa, 48% dos
ucranianos apoiaram a decisão do presidente de não assinar o acordo e apenas
35% o desaprovaram... Foi só então, a partir das populações do Ocidente
sensíveis à propaganda ultra-nacionalista, que o movimento cresceu, atingindo
500.000 manifestantes no 1º de Dezembro de 2013, em grande parte apoiados e
encorajados pelo Ocidente. Segundo o especialista Olivier Berruyer, "os
americanos colocaram lenha na fogueira (...). Assim, em 5 de Dezembro, a
secretária de Estado dos EUA para Assuntos Europeus, Victoria Nuland, pediu ao
"governo ucraniano que ouça a voz do seu povo (...)". Uma votação que
não é necessariamente maioritária então... "No entanto, as pesquisas
(confiáveis) mostraram que os manifestantes de Maidan nunca obtiveram 50% de
apoio da população ... ». Berruyer também lembra a realidade do papel dos ultra-nacionalistas
anti-russos, em parte neo-nazis, que, com o apoio directo do Ocidente, estão a
"apodrecer" a situação: "Se a maioria dos manifestantes eram
democratas fervorosos, uma minoria activa de nacionalistas neo-nazis infiltrou-se
no movimento, tornando-se seu braço armado, com milhares de fascistas a entrar
em confronto regular com a polícia. Em 18 de Fevereiro, os nacionalistas
abriram fogo contra a polícia: dez deles foram mortos. A partir de então, o
Governo autorizou o disparo de munições reais em situações de legítima defesa.
Os eventos tornaram-se sangrentos em 20 de Fevereiro de 2014: mais de cem
mortes foram registadas. As mortes atribuíveis directamente à polícia são cerca
de dez, a maioria delas mortas por franco-atiradores. Quinhentos polícias foram
hospitalizados, incluindo 150 com ferimentos de bala, quase trinta morreram. Em
21 de Fevereiro, um acordo foi assinado entre Yanukovych e os três
representantes da oposição, prevendo uma eleição presidencial antecipada em Maio.
Neste ponto, Maidan havia vencido. Mas os manifestantes recusaram o acordo e a
pressão aumentou. Yanukovych deixou Kiev, temendo pela sua vida; o Parlamento
demitiu-o (sem respeitar a Constituição) e ... assinou uma amnistia para todos
os manifestantes e atiradores no mesmo dia. (…). Um governo foi então formado,
compreendendo um terço de liberais, finanças e negócios estrangeiros (a maioria
deles de Lviv) e um terço de neo-nazis (Svoboda e
outros pequenos grupos), incluindo os cargos de vice-primeiro-ministro,
ministros da defesa, educação, agricultura e "purificação" (sic.). O
co-fundador do
Svoboda, Andriy Parubiy, dirige agora o importantíssimo Conselho
Nacional de Segurança e Defesa, e o seu partido assumiu o papel de Procurador
de Kiev. Em suma, ocorreu um golpe de Estado na Ucrânia, que derrubou o
presidente legitimamente eleito (e este ainda estava bem à frente nas pesquisas
com 25% dos votos). O Ocidente reconheceu imediatamente a legitimidade deste
governo ... Em reacção às leis discriminatórias contra os russos orientais
aprovadas sob pressão das forças ucranianas de extrema-direita e apoiadas pelo
Ocidente, as forças autonomistas do Donbass (ainda não eram separatistas na
época, pois apoiavam os famosos acordos de Minsk (não aplicados pelo Ocidente,
que defendia, entre outras coisas, a federalização do país e os direitos
concedidos às províncias de língua russa do Oriente), entrou em rebelião, com
apoio não oficial russo, e a Crimeia realizou um "referendo sobre a auto-determinação,
em grande parte vencido pelos partidários de um retorno à Rússia".
Leia também: HISTÓRIA/ANÁLISE – Um destino comum na Nova Caledónia?
(PARTE 5)
Graças à
retrospectiva, sabemos agora que, do lado ocidental, nada foi realmente feito
para evitar a guerra, pois os patrocinadores ocidentais dos acordos de Minsk
(França e Alemanha) e, a fortiori, os Estados Unidos, a NATO e a Grã-Bretanha,
que não eram nem garantes nem
signatários, não fizeram nada para obrigar os seus protegidos e forçados
ucranianos a aplicá-los. Em Janeiro de 2022, Oleksiy Danilov, secretário do
Conselho de Segurança Nacional e Defesa da Ucrânia, afirmou que «o respeito
pelos acordos de Minsk significa a destruição do país. Quando foram assinados
sob a ameaça armada dos russos — e sob o olhar dos alemães e franceses — já era
claro para todas as pessoas racionais que era impossível aplicar esses
documentos». Essa visão foi, de facto, sistematicamente encorajada entre 2014 e
2022 pelas potências ocidentais, que não tinham qualquer interesse em ver
entrar em vigor um acordo apoiado por dois países que, em 2008, se tinham
declarado hostis à eventual adesão da Ucrânia à NATO: a França e a Alemanha...
Em entrevista ao jornal Die Zeit, a ex-chanceler alemã Angela Merkel admitiu a posteriori que os acordos de Minsk, assinados sob a égide da França e da Alemanha, mas sobretudo desejados por François Hollande e depois reiterados por Emmanuel Macron[3], eram na verdade apenas um "meio para a Ucrânia se fortalecer militarmente para se preparar para um conflito inevitável". em suma, para "dar tempo à Ucrânia, que o usou para se tornar mais forte"... [4] Este tipo de confissão não é para aumentar a credibilidade do Ocidente que, com ou sem razão, é cada vez mais acusado pelas potências multipolaristas e/ou anti-ocidentais de trair as suas promessas e de aplicar e respeitar os acordos internacionais (bem como a soberania dos Estados) apenas quando serve os seus interesses "hegemónicos". Um argumento que é frequentemente apresentado por Vladimir Putin, que descreve o Ocidente como um "império de mentiras" ... Uma acusação espelhada de uma potência que também lida com mentiras de forma tão consistente quanto o Ocidente, mas muitas vezes de uma forma menos sofisticada e mais caricaturada.
A espiral infernal e o desejo de guerra do Ocidente... até aos
últimos ucranianos!
O desenrolar dos
acontecimentos, cada vez mais beligerantes, é conhecido. As etapas da escalada
para um conflito mundial sucederam-se de forma tragicamente lógica e altamente
previsível: após a Revolução pró-ocidental do Euromaidan, que derrubou o poder
pró-russo na Ucrânia, e dada a vontade das novas forças no poder em Kiev de
cortar relações com Moscovo, de não aplicar os acordos de Minsk, de não
conceder um estatuto às populações não russófonas (maioritárias na Ucrânia,
mesmo em Kiev) mas «russas» do leste, e finalmente aderir o mais rapidamente possível
à OTAN, a «reação» russa na Crimeia seria inevitável: longe de ser moralmente
justificada por nós – pois tratava-se de uma invasão seguida de uma anexação
ilegal – a tomada da Crimeia por Moscovo era «racional» por parte de um regime
russo obcecado pelo medo do cerco da OTAN e do bloqueio dos mares quentes
(«tendências pesadas») pelas potências rivais anglo-saxónicas. Assim, para
preservar a presença da sua base naval russa em Sebastopol, na Crimeia,
resquício da antiga Crimeia russa concedida unilateralmente à Ucrânia em 1954
pelo ditador soviético Khrushchev, e antecipando o perigo existencial que seria
uma futura atlantização da Ucrânia, o poder russo decidiu anexar a Crimeia para
preservar a sua presença militar numa zona altamente estratégica, não muito
longe dos estreitos turcos e passagem obrigatória da Rússia para o
Mediterrâneo. Para Moscovo, era pelo menos a segunda vez em dois séculos que os
ocidentais intervinham para impedir os russos de controlar o Mar Negro e o
acesso aos estreitos turcos, sendo a primeira a «Guerra da Crimeia» de 1853,
promovida pelos britânicos e pelo seu então aliado ingénuo na França, Napoleão
III.
Leia também: Crónica de uma guerra russo-ocidental anunciada: génese,
motivações e desafios da guerra na Ucrânia [ 2 – 3 ]
Recorde-se também
que, em 1997, a Rússia reconheceu a soberania de Kiev sobre a Crimeia em troca
da garantia de poder manter a sua frota militar no local. O acordo, que
resolveu a questão do compartilhamento da frota da ex-URSS, previa o
arrendamento da base durante vinte anos, renovável. Em Dezembro de 1998, a
constituição da Crimeia tornou-a um território autónomo dentro da República da
Ucrânia. Em 2006, o ex-presidente pró-ocidental Yushchenko, que saiu da
"Revolução Laranja", desafiou a neutralidade da Ucrânia e pediu
oficialmente para ingressar na OTAN, o que implicava a eventual expulsão da
frota russa da Crimeia. No entanto, essa ameaça, que quebrou um pacto implícito
de neutralidade do país, bem como o Memorando de Budapeste de 1994 (veja abaixo), tornou-se
óbvia para os russos em 2014, após a mudança radical de poder em Kiev, porque
Moscovo desde então acredita, com ou sem razão, que o Euromaidan trouxe apoiantes
pró-OTAN ao poder em Kiev que queriam fazer a Rússia perder não apenas os seus
territórios ucranianos, mas também o seu acesso vital aos mares quentes.
[1] * PORA! significa "está na
hora!" em ucraniano. Esta organização ucraniana de juventude e resistência
não violenta defendia o estabelecimento de uma genuína democracia nacional. Foi
fundada em 2004 com o apoio financeiro do National Endowment for Democracy, da
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), da
Westminster Foundation for Democracy, financiada pelo Ministério dos Negócios
Estrangeiros britânico e pela Commonwealth, e da Freedom House, para coordenar
a oposição dos jovens ao governo ucraniano. considerado muito pró-russo, pelo
ex-presidente Leonid Kuchma, que insistiu que o seu país permanecesse neutro e
mantivesse boas relações com Moscovo, e um ano depois contra o suposto
"pró-russo" Viktor Yanukovych, cuja vitória contra o liberal
pró-Ocidente, Viktor Yushchenko, foi contestada. Em 2004, Pora foi, portanto, a
ponta de lança da Revolução Laranja, que implementou o modus operandi desenvolvido
por Gene Sharp, presidente da Fundação Einstein e designer de "revoluções
coloridas" ou revoltas "por acção civil", com base no uso
massivo de acessórios publicitários; ocupações pacíficas de espaços públicos, o
estabelecimento de vilas de tendas ao estilo Woodstock em lugares proibidos com
o objectivo de desencadear a repressão policial com o objectivo de demonizar e
deslegitimar a ordem em vigor.
[2] Conversa entre Nuland, subsecretária
de Estado dos EUA de Obama para a Europa-Eurásia, e o ex-embaixador dos EUA na
Ucrânia, Geoffrey Pyatt, sobre o papel da Europa na Ucrânia. "Foda-se a
UE", disse ela na quinta-feira, 6 de Fevereiro de 2014, numa conversa
gravada sem o seu conhecimento, com o embaixador americano na Ucrânia, Geoffrey
Pyatt, a fim de discutir a estratégia a ser seguida na crise ucraniana de 2014.
A conversa foi publicada no YouTube, e Victoria Nuland teve que "se
desculpar"... Victoria Nuland também menciona o diplomata da ONU, Robert
Serry, recentemente nomeado representante especial do secretário-geral da ONU
para a Ucrânia, em quem ela pensa cinicamente: "esse gajo da ONU, seria óptimo
ajudar a colar as coisas, ter essa cola da ONU e, você sabe, foder a
UE"...
[3] O Protocolo de Minsk (ou Minsk I) é
um acordo assinado em 5 de Setembro de 2014 pelo Grupo de Contacto Trilateral
sobre a Ucrânia (Ucrânia, Rússia e OSCE). O grupo visa facilitar o diálogo e a
resolução de conflitos no leste e sudeste da Ucrânia, daí as reuniões com
representantes informais da República Popular de Donetsk e da República Popular
de Luhansk, entidades separatistas da Ucrânia. O texto do protocolo inclui doze
pontos, dos quais os mais importantes são: Garantir um cessar-fogo bilateral
imediato; a descentralização de poderes, através do auto-governo local
nos oblasts de Donetsk e Luhansk; zona de segurança na fronteira
russo-ucraniana; Libertação de reféns e pessoas detidas ilegalmente; Prosseguir
um diálogo nacional entre as partes; melhorar a situação humanitária no Donbass; eleições antecipadas nos oblasts de
Donetsk e Luhansk; retirada do território ucraniano de formações armadas e
equipamentos militares ilícitos, bem como combatentes e mercenários
irregulares; programa económico para promover a retoma das actividades e da
economia local no Donbass. Após o fracasso do Protocolo de Minsk, após a retoma
das tensões em Dezembro de 2014, novos acordos "Minsk II" estão
programados para 12 de Fevereiro de 2015. Eles foram assinados de acordo com o
"formato da Normandia" por François Hollande, Angela Merkel, Petro
Poroshenko, Vladimir Putin e representantes das auto-proclamadas Repúblicas
Populares de Donetsk e Lugansk e estabeleceram um novo cessar-fogo.
[4] "A verdadeira intenção por trás
dos acordos de Minsk destrói ainda mais a credibilidade do
Ocidente", Global
Times, 12 de Dezembro de 2022.
Crónica de uma Guerra Russo-Ocidental Anunciada: Génese, Motivações e Desafios da Guerra na Ucrânia [ 2 – 3 ]
Esta semana, o nosso colunista Alexandre del Valle continua a sua série de artigos dedicados às causas e desafios da guerra na Ucrânia e as suas dimensões internacionais, estratégicas, geo-económicas e ideológico-políticas. Uma oportunidade de entender esse terrível conflito não através das notícias imediatas com as quais os canais de notícias lidam constantemente e sem retrospectiva, mas com elevação.
Uma estratégia americana que compensa
A estratégia de
interferir e alimentar a disputa russo-ucraniana entre 2005 e 2014 "valeu
a pena" retrospectivamente para os Estados Unidos e seus aliados mais
anti-russos e atlantistas, descritos acima. Também tornou possível matar dois
coelhos com uma cajadada só: em primeiro lugar, fazendo com que a Rússia
perdesse o controlo de uma área estratégica do seu antigo império, destinada a
servir de aríete e posto avançado pró-americano e atlantista a poucos minutos
da Rússia, e, em segundo lugar, comprometendo – após uma guerra que Washington,
Bruxelas e Londres nada fizeram para evitar e talvez até encorajaram (veja
abaixo) – a segurança dos gasodutos que transportavam o Gás russo para a Europa
Ocidental (ver abaixo)
e que reforçou a dependência da UE em relação à Rússia e, em seguida, a
autonomia geo-económica, energética e industrial da Europa em detrimento dos
Estados Unidos e das suas empresas de gás de xisto, petróleo e armas. Daí a
hostilidade das várias administrações americanas (Obama, Trump, Biden) em
relação aos gasodutos Nord Stream 1 e 2 (mesmo que Biden os tenha
aceitado condicionalmente
no último minuto, pouco antes da eclosão da guerra russo-ucraniana,
provavelmente mais como parte de um estratagema de guerra muito inteligente
para tramar o Kremlin e fazer as pessoas acreditarem numa fraqueza do que em
virtude de uma fraqueza real dos Estados Unidos de Biden) que possibilitou
abastecer a Alemanha e a Europa enquanto contornava a Ucrânia
("problemática" desde 2014), graças à rota pelo norte (Mar Báltico,
ver mapas de gasodutos da Eurásia).
Leia também: Crónica de uma guerra russo-ocidental anunciada: génese,
motivações e desafios da guerra na Ucrânia [ 1 – 3 ]
No entanto, este
projecto foi apenas parcialmente apoiado e sob condições ou restricções
financeiras e regulatórias pela União Europeia (especialmente Nord Stream 2) –
ela própria sob pressão interna, da Polónia e dos Estados Bálticos, e
externamente, dos Estados Unidos. O Nord Stream I e II atenderam muito bem aos
interesses da indústria alemã e europeia (ver Mapa 13), para quem o gás barato
e ecologicamente correcto vindo directamente da Rússia por gasoduto era o
melhor activo competitivo e comprometeu o imperativo estratégico número um dos
anglo-saxões na Eurásia formulado em todos os livros de geo-política ingleses e
americanos: para evitar qualquer "soldagem" euro-russa ou
germano-russa que faria com que os impérios anglo-americanos perdessem a sua
hegemonia na Europa, o que requer divisão intracontinental e a perpetuação da
sua heterogeneidade. Este importante activo para a indústria euro-alemã foi
agora destruído pelas sanções anti-russas, para grande benefício das indústrias
americana (gás de xisto e petróleo) e chinesa (painéis solares fotovoltaicos,
baterias, terras raras e carros eléctricos). A este respeito, a comunidade de
inteligência, na França, Itália ou Alemanha, tem poucas dúvidas de que a
explosão dos gasodutos euro-russos Nord Stream I e II no Mar Báltico em 26 de Setembro
de 2022 foi provavelmente orquestrada ou sub-contratada pelos Estados Unidos e
seus aliados, mesmo que não haja evidências formais para atestar essa teoria ou
o seu oposto (responsabilidade russa ou sabotagem deliberada como falsa bandeira),
sabendo que nenhuma investigação oficial foi capaz de designar formalmente o
culpado até o momento. Voltaremos a este evento mais adiante no capítulo sobre
energia e gasodutos.
Estratégias e objectivos da guerra em ambos os lados
Uma vez que relembramos
a génese do conflito intra-ucraniano alimentado pelo Ocidente e pelos russos,
as principais tendências e variáveis contemporâneas estão suficientemente
reunidas para entender a guerra interestatal russo-ucraniana iniciada em Fevereiro
de 2022, bem como o cabo de guerra altamente sísmico que opõe a Rússia e o
Ocidente todos os dias de forma cada vez menos indirecta (mesmo que as formas
sejam preservadas para evitar o apocalipse nuclear) entre a Rússia e o Ocidente
através da Ucrânia. A guerra directa entre os dois vizinhos era previsível há
muito tempo. Os sinais de alerta ao longo da fronteira começaram já no final de
Março de 2021, quase um ano antes, quando a Federação Russa concentrou dezenas
de milhares de soldados nas regiões russas adjacentes e na Crimeia (anexada por
Moscovo em 2014), enquanto as forças ucranianas, muito bem preparadas e apoiadas
pelos anglo-saxões desde 2016, preparavam um futuro ataque para retomar o
Donbass no que havia sido totalmente rejeitado por Kiev e seus protectores
ocidentais. Vários especialistas russos informados sobre a situação, como o
especialista em defesa e jornalista da oposição Pavel Felgenhauer, expuseram os
supostos planos de guerra russos, revelando que Moscovo estava a preparar-se
para uma grande guerra a ser lançada por dois grandes avanços de Belgorod ao
sul e da Crimeia ao norte, a fim de tomar a maior parte do exército ucraniano
na parte oriental do país. O objectivo teria sido destruí-lo e impor uma
solução favorável aos interesses russos. Do lado ucraniano, havia, por outro lado, o
desejo de reproduzir o cenário azeri, de recuperar militarmente os territórios
rebeldes de língua russa no leste, com a Ucrânia a contar com que a Rússia não
ousaria intervir directamente no Donbass, sabendo que a independência dessas
auto-proclamadas repúblicas nunca havia sido reconhecida pelas próprias
autoridades russas (como a de Nagorno-Karabakh), que contavam com uma solução
diplomática da questão até ao final de 2021. A Ucrânia e o Ocidente contavam
com o facto de que a ameaça das pesadas sanções impostas pelo Ocidente à Rússia
em caso de guerra impediria Moscovo de agir. Este não foi o caso, e os
movimentos de tropas em ambos os lados da fronteira russo-ucraniana a partir da
Primavera de 2021 anunciaram a inevitabilidade de uma guerra interestadual de
alta intensidade.
Leia também: Crónica de uma guerra russo-ocidental anunciada: génese,
motivações e desafios da guerra na Ucrânia [ 3 – 3 ]
Na verdade, nenhum
analista sério poderia descartar o risco iminente de guerra. Outra pista era
clara: o exército ucraniano havia sido consideravelmente renovado: em 2014, só
podia colocar em campo 6.000 soldados prontos para o combate, enquanto na
véspera da invasão russa no final de Fevereiro de 2022, tinha dezenas de
milhares de soldados bem treinados por instrutores americanos e canadianos
presentes na Ucrânia sob acordos de cooperação militar. Como resultado, o
orçamento do exército ucraniano foi aumentado e as forças nacionais
reestruturadas. O cientista geo-político Vyacheslav Aviutskii lembra que, em
2020, o Pentágono concedeu 250 milhões de dólares em ajuda militar às forças
armadas ucranianas. Oficialmente, no entanto, os ucranianos sempre refutaram rumores
de intenção bélica, até mesmo negando avisos da CIA e da Casa Branca no início
de 2022. O presidente Volodymyr Zelensky insistiu que estava à procura de uma
solução diplomática, chegando a propor um novo encontro pessoal no Donbass
ucraniano com Vladimir Putin. Foi um estratagema ucraniano de guerra, um sinal
de que a guerra certamente havia sido declarada pela Rússia, mas
"provocada" pelos Estados Unidos que desejavam combatê-la até ao
"último ucraniano" para enfraquecer a Rússia? Só o tempo o dirá ("síndrome
de Pearl Harbor").
Um conflito existencial alimentado pela expansão da OTAN e pela
nova Guerra Fria russo-ocidental?
O cenário mais
provável era, antes da invasão russa, que a Ucrânia acabasse por obter a sua
integração na NATO, cada vez mais empática com a sua causa, que aproveita este
pretexto de defender a Ucrânia para continuar a sua expansão cada vez mais para
Leste em detrimento do "exterior próximo russo". Isso poderia,
portanto, dar à Ucrânia a oportunidade de recuperar militarmente os seus
territórios disputados um dia, ou pelo menos forçar a mão da Rússia nas
negociações. No entanto, Moscovo nunca poderia ter aceite esse tipo de cenário
de grande invasão no seu território. Em Junho de 2017, o Parlamento ucraniano
aprovou uma lei que tornou a adesão à OTAN um "objectivo estratégico da
política externa e de segurança do país". E esse objectivo foi definido na
forma de uma emenda à constituição ucraniana que entrou em vigor em 2019. Ao
mesmo tempo, lembramos a superioridade de Andrij Melnyk, o ex-embaixador
ucraniano na Alemanha, que disse na rádio alemã Deutschlandfunk: "Não podemos ficar indefinidamente
na sala de espera da UE e da OTAN. Ou fazemos parte de uma aliança como a OTAN (...), ou
temos apenas uma opção, a de nos armar e, talvez, considerar um status nuclear »…
Para ele, como para tantos líderes nacionalistas ucranianos, a adesão à OTAN
era tão crucial que, em caso de recusa, como em 2008 (por causa do bloqueio
franco-alemão), Kiev "poderia
então recorrer a outra solução", incluindo a posse de um
arsenal militar nuclear... Lembremos de passagem que a Ucrânia já foi a
terceira potência nuclear do mundo (1.700 ogivas) e que, assim que se tornou
independente, Kiev reivindicou a propriedade dela, chegando a recusar o
Protocolo de Lisboa [23 de Maio de 1992] que, assinado pelos Estados Unidos e
quatro ex-repúblicas soviéticas, reconhecia a Rússia como a única herdeira do
arsenal da URSS. Essa exigência não atendida levou ao famoso "Memorando de
Budapeste", assinado em 1994, segundo o qual, ao concordar em se livrar do
arsenal soviético e aderir ao Tratado de Não Proliferação [TNP], a Ucrânia obteve
"garantias" da sua segurança da Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e
França. Do lado russo, a não adesão da Ucrânia à OTAN – e, portanto, a sua
neutralidade –; a renúncia à energia nuclear militar; depois a manutenção da
base militar naval russa na Crimeia (Sebastopol) eram condições oficiais e não
oficiais para a independência efectiva da ex-república soviética, que o governo
de Kiev conhecia perfeitamente. No entanto, o espectro quádruplo da Ucrânia
como futuro membro da OTAN; potencial detentor de fogo nuclear a médio prazo[1]; ao aperfeiçoar o seu exército com a ajuda
ocidental, com o objectivo de recuperar o Donbass e a Crimeia aos russos, com o
espectro de uma perda por parte do exército russo da sua base naval na Crimeia,
não podia deixar de deixar nervosos os líderes russos, e não apenas Vladimir
Putin, mas também o seu exército, os falcões, os siloviki e os partidos
nacionalistas (de esquerda comunista ou de extrema-direita). Os falcões,
militares e civis, criticavam-no desde 2014-2015 por não ter derrubado o regime
anti-russo de Kiev quando ainda era fácil, ou seja, antes que a crescente ajuda
militar ocidental reequilibrasse gradualmente o equilíbrio de poder entre o
exército russo e o exército ucraniano.
Leia também: Guerra na Ucrânia: Apocalipse agora?
É certo que Zelensky
não relançou um programa nuclear militar nem prometeu oficialmente fazê-lo, mas
com a inclusão da entrada do seu país na OTAN na constituição ucraniana, esses
"espectros" mais ou menos reais tornaram inevitável a guerra com a
Ucrânia e até com o Ocidente (OTAN), directa ou indireta. Pior ainda, e prova
do "ponto de não retorno" nas relações russo-ocidentais mencionado em
Março de 2022 pela porta-voz russa Maria Zakharova, o ultimato russo formulado
oficialmente pela Rússia em 17 de Dezembro de 2021 aos Estados Unidos e à OTAN,
portanto, apenas alguns meses antes da invasão russa da Ucrânia, também foi
como a recusa russa da extensão da OTAN para o leste para o Ocidente,
totalmente inaceitável do ponto de vista euro-americano. Era semelhante a uma
ameaça real de guerra no caso de uma recusa em dar "garantias de
segurança" à Rússia ... A isso somou-se, do lado russo, o casus belli da
retoma do bombardeamento ucraniano das populações russas ucranianas do Donbass
(que causou entre 10.000 e 11000 mortes ucranianas anti-Kiev, a maioria delas
logo após o Euromaidan), que foi retomado com vigor renovado algumas semanas
antes da invasão da Ucrânia, quando as tropas ucranianas se preparavam para
realizar uma ofensiva massiva no Donbass, com forte apoio anglo-americano e
canadian, para expulsar as forças pró-russas, o que o Kremlin absolutamente não
podia aceitar – inclusive por razões políticas internas. É verdade (e muitas
vezes ignorada no Ocidente) que a causa dos "irmãos" russos na
Ucrânia "perseguidos" por países ex-soviéticos revanchistas (países
bálticos, Ucrânia, Geórgia, etc.) é defendida com extrema sensibilidade dentro
das massas russas – não apenas pró-putinistas, aliás – e na vida política
russa, sabendo que o mestre do Kremlin corria o risco de perder a sua
popularidade, ou mesmo poder, no caso de um ataque ucraniano vitorioso no
Donbass. Esta realidade, conhecida pelos estrategas ocidentais, motivou o
Pentágono e o seu think tank
estratégico, a Rand Corporation, a pressionar os ucranianos a recusarem a
aplicação dos acordos de Minsk e, em seguida, a «facilitar» uma intervenção
bélica na Rússia, a fim de a encurralar, provocar sanções destrutivas e fazer
cair o presidente russo numa lógica de desestabilização-enfraquecimento-mudança
de regime, com vista a expandir o sistema ocidental no último país «europeu
branco» hostil a Washington e ao seu império consumista e atlantista McWorld...
As "garantias de
segurança dadas à Rússia" e o ultimato de Dezembro de 2021 ao Ocidente
A imprensa ocidental
poderia e deveria ter falado muito mais sobre isso, porque o duplo ultimato
formulado em 17 de Dezembro de 2021 pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros
da Rússia era claro sobre o risco de um conflito directo entre o Ocidente e a
OTAN / Rússia no caso de uma extensão das forças dos países da OTAN para o
quintal russo. Aparentemente educadamente redigido na forma de futuros acordos
a serem assinados entre ex-rivais da Guerra Fria, o ultimato consistia numa proposta de "Tratado entre os
Estados Unidos e a Federação Russa sobre Garantias de Segurança" e um "Acordo sobre Medidas para
Garantir a Segurança da Federação Russa e dos Estados Membros da Organização do
Tratado do Atlântico Norte [OTAN]". Na realidade,
todos os ingredientes da guerra actual e o risco de um conflito mundial entre a
Rússia Ocidental estavam presentes há anos: Moscovo acabara de avisar os
Estados Unidos e os seus aliados da OTAN para satisfazer as exigências russas
sob o risco de uma guerra futura que poderia ser evitada pela única negociação
ou "renegociação" dos arranjos de segurança na Eurásia. Os
russos convocaram assim as potências atlantistas a "escolher entre levar a sério o que
é colocado na mesa ou enfrentar uma alternativa técnico-militar". O
ultimato russo exigia que "a
renúncia a qualquer alargamento da OTAN [para o leste], a cessação da
cooperação militar com os países pós-soviéticos, a retirada das armas nucleares
americanas da Europa e a retirada das forças armadas da OTAN para as fronteiras
de 1997" fossem "legalmente fixadas". O
ultimato pedia que os Estados Unidos e a Rússia se comprometessem a não
implantar armas nucleares no exterior, retirar as já implantadas e eliminar a
infraestrutura de implantação de armas nucleares fora do seu território. O
artigo 4º estipulava, inter alia, que "a
Federação Russa e todos os participantes que eram, em 27 de Maio de 1997,
Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte, não devem
implantar as suas forças armadas e armamentos no território de todos os outros
Estados europeus, além das forças estacionadas naquele território em 27 de Maio
de 1997". Particularmente importante para a compreensão
do conflito russo-ocidental na Ucrânia foi o Artigo 7, que afirmava que "os participantes, que são
Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte, devem abster-se
de realizar qualquer actividade militar no território da Ucrânia, bem como de
outros Estados da Europa Oriental, Transcaucásia e Ásia Central".
O ultimato dizia respeito a um total de catorze Estados da Europa Oriental e
dos Balcãs que se tornaram membros da OTAN nos últimos vinte e quatro anos.
Obviamente, a Polónia e os Estados Bálticos são os mais visados "porque forças
adicionais da Aliança do Atlântico Norte foram implantadas lá, conforme
decidido na cimeira da OTAN em Varsóvia em 2016. Em
resumo, "as
partes excluem a implantação de armas nucleares fora do território nacional e
devolvem ao território nacional as armas já implantadas fora do território
nacional no momento da entrada em vigor deste Tratado". É
claro que o ultimato russo a exigir que os países da OTAN, a OTAN e os Estados
Unidos desistissem da sua presença militar e estratégica na Europa Oriental era
totalmente inaceitável para o Ocidente.
Leia também: O conflito russo-ucraniano: uma guerra por quem?
O cálculo de Moscovo
era provavelmente que, ao exigir o máximo e o inaceitável, seria possível
posteriormente uma negociação intermédia que pusesse um ponto final no destino
atlantista da Ucrânia, da Geórgia e de outros países da antiga União Soviética
e dos Balcãs que ainda não são membros da OTAN. Ao querer negociar em pé de
igualdade com o presidente dos Estados Unidos, Vladimir Putin pretendia
demonstrar aos seus eleitores que a Rússia e o Kremlin eram reconhecidos como
iguais por Washington, mas provavelmente subestimou a capacidade do Ocidente de
preferir arriscar um conflito geral a ceder às exigências russas. Ecoando o
famoso discurso de Vladimir Putin, durante a 43ª edição da conferência de Munique sobre segurança, em 10 de Fevereiro de 2007,
no qual o presidente russo ameaçou o Ocidente com um conflito mundial se este
persistisse em querer ultrapassar a linha vermelha, propondo a adesão da
Geórgia e da Ucrânia à Aliança Atlântica. O mestre do Kremlin provavelmente
cometeu o erro de apostar excessivamente na «covardia» dos ocidentais,
especialmente dos europeus ocidentais, mas também de Joe Biden, considerado
erroneamente como um fraco, pois a ameaça de Munique (10 de Fevereiro de 2007,
ver infra) acabou por produzir o efeito contrário ao esperado: os ocidentais
responderam abrindo as portas da OTAN à Geórgia e à Ucrânia logo na Primavera
de 2008... É certo que esta perspectiva potencialmente beligerante foi
momentaneamente bloqueada pela França e pela Alemanha durante a cimeira da NATO
em Bucareste, e até autorizou o presidente georgiano Mikheil Saakashvili a
atacar (por sua conta e risco...) a Ossétia do Sul em 8 de Agosto de 2008...
Isso desencadeou a intervenção militar russa, já em apoio às populações russófonas
pró-russas da Ossétia e da Abcásia bombardeadas por um poder central anti-russo
e pró-ocidental (o ex-presidente Saakachvili) encorajado por Washington, bem
como a grave crise que se seguiu e opôs os países da OTAN a Moscovo. Da mesma
forma, após o ultimato russo de Dezembro de 2021, não só os ocidentais não
cederam às exigências russas nem retiraram as bases militares ou as baterias de
mísseis e anti-mísseis posicionadas na Europa Oriental (apesar de serem ainda
mais motivo de conflito do que a própria expansão da OTAN), como os Estados
Unidos, Grã-Bretanha e Canadá reiteraram o seu apoio à Ucrânia, concedendo
centenas de milhões de dólares de ajuda ao seu exército.
Armadilha americana
ou anglo-saxónica-atlantista?
Em Setembro de 2014,
John Mearsheimer, um importante académico da chamada escola americana
"realista-ofensiva" de relações internacionais, um perfeito
conhecedor de conflitos de grandes potências e, em particular, um especialista
indiscutível na Guerra Fria e nas relações russo-americanas, escreveu num
artigo no Foreign
Affairs, em 2015, com o título sugestivo: "Porque é que a crise da Ucrânia é
culpa do Ocidente. As ilusões liberais que provocaram Putin"[2]. Reconhecidamente altamente polémico
e na origem de uma polémica nacional, o académico explicou que o seu país teria
sido o principal responsável pela radicalização de Vladimir Putin e pela guerra
na Ucrânia. A intervenção russa na Crimeia e na Ucrânia foi de facto motivada,
segundo ele, pelos "objectivos
estratégicos irresponsáveis da OTAN na Europa Oriental". A
extensão das armas anti-mísseis da OTAN e do Ocidente para o Oriente representa
uma "ameaça
existencial" para os russos, continua ele, (...) é "como se os russos ou os chineses
estivessem a concluir uma aliança militar na América do Norte com o Canadá e o
México". Mearsheimer acrescenta que "a raiz do problema pode ser
encontrada numa estratégia ocidental para arrancar a Ucrânia da Rússia e
integrá-la nas instituições e alianças do Ocidente (...) brasas que estavam
apenas à espera para serem acesas"...
Leia também: Risco terrorista nos Jogos Olímpicos
Por sua vez, o famoso
diplomata-estratega Henri Kissinger, que reiterou muitas vezes as suas propostas
nas suas conferências, entrevistas, artigos e livros publicados desde Fevereiro
de 2022, previu a guerra na Ucrânia resultante da expansão da OTAN desde 2014:
"O Ocidente deve
entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser um
um simples país
estrangeiro. A história da Rússia começou na "Rússia de Kiev" (...).
A religião russa espalhou-se a partir daí. "A Ucrânia faz parte da Rússia há
séculos (...). A Frota do Mar Negro – o meio da Rússia para projectar o seu
poder no Mediterrâneo – está baseada, sob um arrendamento de longo prazo, em
Sebastopol, na Crimeia. (...) o objectivo final para a estabilidade
(...) deve ser estabelecer a Ucrânia como "uma espécie de estado neutro (...) A Ucrânia
nunca deve entrar na OTAN"... Apesar desse alerta,
conhecido por todos os estrategas e especialmente pela CIA, em 10 de Novembro
de 2021, os Estados Unidos e a Ucrânia assinaram uma "carta de parceria
estratégica" que convidava a Ucrânia a ingressar na OTAN, condenava a
"agressão russa em andamento" e afirmava um "compromisso inabalável"
com a reintegração da Crimeia na Ucrânia, tudo casus belli recebido em Moscovo como
um incitamento a atacar desta vez o governo de Kiev, a fim de afastar a sua
futura adesão à OTAN e o risco de ver a frota russa em Sebastopol expulsa de
uma futura Crimeia que se tornaria ucraniana e atlantista novamente e,
portanto, incompatível com o antigo acordo russo-ucraniano de co-presença
militar na península.
A «estratégia da
sangria» ou «sangramento»
Nos seus muitos
escritos, John Mearsheimer menciona a estratégia de "derramamento de sangue",
que ele descreve no seu livro "The
Tragedy of Great Power Politics" (2001), e que consiste em
incitar um estado rival a envolver-se numa guerra de atrito "para que ele se sangre"
... Daí até a conclusão de que os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e seus aliados
mais anti-russos, os países bálticos e a Polónia em particular, empurraram a
Rússia para o pior ao "tramá-la", há apenas um passo que alguns
qualificam como uma "análise da conspiração". Somente as
investigações futuras e de longo prazo possibilitadas pela desclassificação de
notas secretas (como no caso do Iraque) permitirão um dia tirar conclusões
sobre as causas da guerra na Ucrânia além do inegável erro inaceitável que foi
a decisão russa de atacar a Ucrânia e anexar regiões inteiras deste país cujas
fronteiras e integridade territorial Moscovo havia reconhecido.
Leia também: Os objetivos da Rússia na Ucrânia e a contra-estratégia
ocidental
Num relatório de 2019
intitulado " Extending Russia",
a prestigiosa Rand Corporation (próxima da Casa Branca) sugeriu como estratégia
americana enfraquecer a Rússia, pressioná-la a intervir na Ucrânia para
"esgotar as suas forças, fazê-la sangrar". O relatório Rand, portanto,
defendia enormes sanções económicas; a "implantação hiperagressiva da
OTAN"; o cancelamento dos projectos de gasodutos Nord Stream 1 e 2; a
venda de GNL americano para o mundo e aconselhou o governo dos EUA a "armadilhar
a Rússia, atraindo-a para uma guerra em território ucraniano"...
Esses poucos trechos denotam o extremo cinismo de certos estrategas americanos
próximos do governo: desde
2014, "O exército
ucraniano já está sangrando a Rússia na região do Donbass (e vice-versa).
Fornecer mais equipamento militar e aconselhamento dos EUA pode levar a Rússia
a aumentar o seu envolvimento directo no conflito e o preço que paga por ele.
Moscovo poderia responder encenando uma nova ofensiva e tomando mais território
ucraniano. (página XV). O relatório, portanto, instou sem rodeios
os Estados Unidos a fazer todo o possível para que a Rússia seja tentada a
expandir o seu envolvimento na Ucrânia para aí a armadilhar...
Mais ainda antes disso,
é evidente que a proposta oficialmente apresentada à Ucrânia pelo Ocidente,
desde 2008, de um dia integrar a NATO foi percebida, com ou sem razão, como uma
provocação e uma ameaça existencial pela Rússia, ao ponto de arriscar
desencadear uma guerra de alta intensidade com a Ucrânia e com os próprios
países da NATO e, portanto, com a UE e os Estados Unidos. Recordemos aqui, de
passagem, todos os avisos formulados por personalidades políticas ou
intelectuais americanas de alto nível sobre este risco de guerra entre o
Ocidente e a Rússia induzido por uma expansão sem fim da NATO para leste:
– William James
Perry, ministro da Defesa de Bill Clinton, recordou nas suas memórias de 2015
as declarações feitas em 1996, segundo as quais o alargamento da NATO para leste
era responsável pela «ruptura das relações com a Rússia». Na altura, protestou
veementemente contra o projecto de incluir novos países na aliança.
– Em 1997, Paul
Keating, ex-primeiro-ministro australiano, declarou: «A decisão de alargar a
NATO, convidando a Polónia, Hungria e República Checa a participar e propor o
mesmo a outras nações – ou seja, deslocar a demarcação militar europeia até às
fronteiras da antiga URSS – é, na minha opinião, um erro que poderá ser
comparado aos erros estratégicos que impediram a Alemanha de integrar o sistema
internacional no início do século [XX]».
– No mesmo ano,
cinquenta especialistas em relações internacionais (senadores, oficiais,
diplomatas) enviaram uma carta ao presidente Clinton para se oporem à expansão
da OTAN: «Nós, abaixo assinados, acreditamos que as actuais manobras dos
Estados Unidos para expandir a OTAN [...] constituem um dos piores erros
políticos da sua história. Na nossa opinião, a expansão da OTAN terá como efeito
reduzir a segurança dos seus membros e colocar em risco a estabilidade
europeia».
– Jack F. Matlock
Jr., embaixador americano na URSS, ainda em 1997, advertiu que «longe de
melhorar a segurança dos Estados Unidos, dos seus aliados e das nações que
desejam integrar a Aliança, a expansão da OTAN corria o risco de provocar a
mais grave ameaça à segurança americana desde o desmantelamento da União
Soviética. »
– Em 1998, após a
decisão de lançar uma nova expansão da OTAN, o estratega da contenção, citado
infra, George Kennan, ele próprio antigo embaixador americano em Moscovo,
declarou: «é o início de uma nova Guerra Fria. […] Penso que é um erro trágico.
[...] É óbvio que a Rússia reagirá com hostilidade e, depois, [os defensores da
expansão da OTAN] dirão que sempre nos alertaram para os russos, que são
naturalmente hostis – mas isso é simplesmente falso.»
– Em 1999, o
jornalista e político americano Pat Buchanan escreveu: «Ao deslocar as
fronteiras da OTAN até ao limiar da Rússia, previmos um confronto na agenda do
século XXI. [...] Estamos realmente preparados para usar armas nucleares para
defender a Europa Oriental?»
– Em 2008, o diretor
da CIA, Bill Burns, advertiu que «para [a Rússia], a adesão da Ucrânia à OTAN
constitui um facto absolutamente inaceitável» e que «a presença da Ucrânia na
OTAN é um ataque directo aos interesses da Rússia».
– Em 2014, o
primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Fraser, declarou que «a expansão da
Aliança para o Leste é uma manobra provocadora e imprudente, que envia um sinal
muito claro à Rússia [e pode levar] a uma situação difícil e
extraordinariamente perigosa».
– Em 2015, o ministro
da Defesa dos Estados Unidos, Bob Gates, escreveu nas suas memórias: «Foi um
erro preparar-se para integrar, tão pouco tempo após a queda da União
Soviética, um número tão grande de Estados que anteriormente lhe estavam
submetidos. [...] Tentar integrar a Geórgia e a Ucrânia na OTAN foi um exagero.
As raízes do Império Russo remontam a Kiev no século IX, pelo que se tratou de
uma provocação particularmente monumental. »
– Em 2021, Sir
Roderic Lyne, antigo embaixador britânico na Rússia, declarou durante a cimeira
da NATO em Bucareste, em 2008: «O Ocidente cometeu um erro fatal ao avançar com
a ideia de integrar a Geórgia e a Ucrânia. […] Foi uma estupidez sobre todos os
pontos de vista. Se se quisesse desencadear uma guerra com a Rússia, não se
encontraria melhor maneira de o fazer.»
– Em 8 de Fevereiro
de 2022, poucos dias antes do início da «operação especial» russa na Ucrânia, o
economista Jeffrey Sachs escreveu: «Os aliados ocidentais da Ucrânia afirmam
protegê-la defendendo o seu direito de aderir à OTAN, mas o que acontece é exactamente
o contrário. Ao defenderem um direito puramente teórico, eles colocam em risco
a segurança da Ucrânia, aumentando os riscos de uma invasão russa. »
– Em 2022, o
especialista em política internacional Ted Galen Carpenter escreveu: «Sabemos
há muito tempo que a expansão da OTAN só poderia levar à tragédia. Agora
estamos a sofrer as consequências da arrogância americana. », reiterando a sua
profecia de 1994 de que a expansão da OTAN seria «uma provocação desnecessária
à Rússia».
– Pino Arlacchi,
político e sociólogo italiano, ex-subsecretário-geral das Nações Unidas, disse,
em 2022, que "a causa fundamental da crise ucraniana é a expansão
implacável da OTAN. […] Na minha opinião, a solução é bastante simples. A
solução fundamental depende dos estados europeus, que devem declarar que a OTAN
não aceitará a Ucrânia nas suas fileiras."
Quer se trate de uma reacção inevitável às «provocações» anglo-saxónicas ou
a uma «armadilha» americana, teses de Henri Kissinger ou John Mearsheimer, ou,
pelo contrário, de uma predação russa premeditada à procura de um pretexto, é
claro que, segundo muitos estrategas, em Fevereiro de 2022, após décadas de
expansão da OTAN e após a crise de 2013-2014, que culminou com o
estabelecimento em Kiev de um poder pró-ocidental e anti-russo, desejoso de um
dia aderir à UE e à OTAN, Vladimir Putin não tinha muitas outras saídas – do
seu ponto de vista, que não é o dos autores deste livro – a não ser atacar
primeiro, sob pena de sofrer uma derrota – fatal para o seu poder pessoal –
face a um ataque ucraniano iminente ao Donbass e à Crimeia, possibilitado pelo
crescente apoio ocidental às forças armadas ucranianas...
[1] A Ucrânia também estava em processo
de substituição parcial da parceria nuclear civil nacional estabelecida com a
empresa russa Rosatom por uma nova concluída com a americana Westinghouse...
[2] John Mearsheimer
Guerra na Ucrânia:
conflito terrível e apostas estratégicas
Esta semana, o nosso
colunista Alexandre del Valle encerra a sua série de artigos dedicados às
causas e desafios da guerra na Ucrânia e suas dimensões internacionais,
estratégicas, geo-económicas e ideológico-políticas. Uma oportunidade de
entender esse terrível conflito não através das notícias imediatas com as quais
os canais de notícias lidam constantemente e sem retrospectiva, mas com elevação.
Crónica de uma guerra
anunciada...
Desde
a redação da primeira versão desta obra, em Março-Abril-Maio de 2021, era
evidente que o antagonismo entre a Ucrânia e a Rússia, que não havia sido
reduzido, muito pelo contrário, pela ingerência euro-americana na Ucrânia, iria
inevitavelmente conduzir a uma guerra directa ou indirecta entre o Ocidente e a
Rússia. Este choque entre dois impérios (russo e americano-atlântico), que tudo
opõe, seria, na nossa opinião, fatal, tanto para a autonomia estratégica da
Europa como para o povo ucraniano sacrificado e usado pelo Ocidente como um
aríete contra a Rússia numa estratégia aparentemente muito moral de expansão da
democracia liberal ocidental, mas na realidade muito cínica de «bloodletting (sangramento-NdT)». Quase
dois anos após a invasão (inaceitável) da Ucrânia pela Rússia revanchista, que
se tornou uma potência revisionista banida das nações e líder dos inimigos do
Ocidente, é claro que, do ponto de vista frio — e, portanto, nem emocional nem
moralista — da análise geo-política chamada clássica, este conflito ucraniano
não beneficiou de forma alguma os europeus, mais do que nunca separados das
reservas de gás russo, as mais acessíveis e baratas do continente, portanto óptimas
para a saúde industrial da Europa numa fase de transição energética. Por outro
lado, esta guerra beneficiou objectivamente os três maiores predadores
civilizacionais e/ou estratégicos do Velho Continente, que são: 1/ os Estados
Unidos, que vendem mais do que nunca à Europa as suas armas e o seu gás de
xisto (três vezes mais caro que o gás natural russo e que a UE se recusa a
produzir no seu território por razões ecológicas...), 2/ a China neo-maoísta,
que ganha em todos os planos, se apresenta como pacificadora e conclui a sua
ascensão ao primeiro lugar, arrebatando-o aos Estados Unidos, que empurraram a
Rússia para os seus braços; 3/ e a Turquia nacional-islamista de Erdogan, o neo-sultão
reeleito no final de Maio de 2023, em parte graças ao seu papel de «mestre dos
relógios» no Mar Negro e à sua posição equidistante entre Moscovo e Washington.
Ao longo deste livro, voltaremos à crónica da guerra anunciada, por um lado,
entre a Ucrânia e a Rússia e, por outro, entre a Rússia e o Ocidente, ou mesmo
entre a dupla Rússia-China e o Ocidente.
Os objectivos da
Rússia na Ucrânia e a contra-estratégia ocidental
No
início da «operação militar especial» russa e da invasão da Ucrânia, os objectivos
estratégicos da Rússia na Ucrânia eram, em primeiro lugar, privar o exército
ucraniano da sua capacidade de atacar o Donbass (ou mesmo a Crimeia), que, em Fevereiro
de 2022, estava prestes a ser atacada e recuperada por Kiev, que voltava a
bombardear intensamente a sua população russo-ucraniana desde 2021, violando os
acordos de Minsk, e a tinha bombardeado massivamente desde 2014 e,
posteriormente, durante oito anos (entre 10 000 e 14 000 mortos); em segundo
lugar, criar um continuum territorial
entre a Crimeia, no sul, altamente estratégica no Mar Negro, e o Donbass, a
leste e nordeste; em terceiro lugar, eliminar os elementos mais nacionalistas
anti-russos do exército e do poder ucranianos («desmilitarização» e «desnazificação»),
e, por fim, impedir, através do conflito em curso, que os ocidentais e os
dirigentes ucranianos integrem a Ucrânia na OTAN, que não pode acolher um país
em guerra e com um grave litígio territorial por resolver.
Após vários meses, e
antes dos primeiros sucessos da contra-ofensiva ucraniana na Primavera de 2022,
parece ter sido acrescentado um objectivo adicional, menos prioritário e susceptível
de evoluir e servir como moeda de troca, dependendo do equilíbrio de forças:
privar a Ucrânia do seu acesso ao mar através do controlo de todo o sul da
Ucrânia («nova Rossia»...). Como se viu desde a Primavera de 2022, embora as
cidades do noroeste tenham sido abandonadas pelo exército russo (e não apenas
«recuperadas» pelas forças ucranianas), os objectivos de guerra do Kremlin e do
exército russo na Ucrânia consistiram em consolidar o Donbass até Mariupol, no
sul, e até o Dnieper, no oeste e no centro, e depois tentar privar a Ucrânia do
seu acesso ao mar através da junção entre o Donbass e a Transnístria, via
Mariupol, Crimeia e Odessa. Esta última não foi conquistada pelos russos,
continuando a ser bombardeada pelo exército russo no momento em que escrevemos
estas linhas. Não se pode negar que, sob o pretexto de defender os «russos» do
leste da Ucrânia atacados por Kiev, o exército ucraniano se preparava para
retomar o Donbass, bombardeado desde 2014 (balanço de 10 a 14 mil mortos, a
grande maioria pró-russos), com esta «Operação Militar Especial», Moscovo – que
tomou nota de que o Ocidente nunca deixará de expandir a NATO para o seu
«estrangeiro próximo» e de expandir os seus sistemas de defesa anti-mísseis e
bases na Europa Oriental –, está tentada a fugir para a frente, aumentando a
«massa crítica» do Estado russo, através da conquista de antigos territórios
soviético-russos povoados por russófonos e/ou pró-russos em todo o sul do país
e a leste do Dnieper. Na realidade, é
provável que o exército russo não tivesse inicialmente como objectivo invadir
toda a Ucrânia, de modo que a frente noroeste parece ter sido mais uma manobra
de diversão para atrair as forças ucranianas e desviá-las do leste, ao mesmo
tempo que uma fase inicial de destruição das infraestruturas ucranianas, prévia
ao verdadeiro objectivo de conquista duradoura do leste e do sul. No entanto,
os objectivos de guerra de Putin estão em constante evolução, dependendo das
relações de força e dos contextos, incluindo no âmbito de negociações para
obter margens de negociação, sendo o Mar Negro e Odessa peças centrais do puzzle.
A "Nova
Rússia" ("Nova Rossia"), um objectivo russo máximo inaceitável
para o Ocidente e os ucranianos
A
vasta zona sul e leste da Ucrânia russófona, controlada pela Rússia até 1770,
que se estende do Donbass (russo até Lenine) à Transnístria, é chamada pelos
estrategas russos e neo-tsaristas de «Novorossia», ou «Nova Rússia»/Новороссия.
O seu controlo pela Rússia privaria a Ucrânia do seu acesso ao Mar Negro, o que
é existencialmente inaceitável para os ucranianos, bem como para os seus
aliados anglo-saxónicos e a NATO, imbuídos dos escritos dos estrategas
anglo-americanos adeptos do «Sea Power», que convidam a cercar o Heartland
russo (Mckinder; Spykman, ver supra).
Deste ponto de vista, a Ucrânia é o teatro de guerra de um antagonismo muito
mais amplo e antigo entre os impérios russo e anglo-saxão. Recorde-se que esta
«Novorossia» é uma vasta planície a leste e sudeste-sul que albergava a maioria
das indústrias ucranianas e ex-soviéticas (carvão, aço, armamento, gás natural,
etc.), bem como os portos de exportação estratégicos de Mariupol e Odessa.
Esses objectivos de guerra russos, se alcançados, reduziriam a Ucrânia a um
país agrícola totalmente dependente da UE ou subordinado à Rússia, opção
certamente impossível hoje, pois a invasão russa apenas tornou os ucranianos,
tanto os russófonos quanto os ucranófonos, ainda mais anti-russos. Deste ponto
de vista, a ocupação da estratégica cidade portuária de Mariupol, que dá o
controlo do mar de Azov, retomada dos russos pelos ucranianos em 2014 e novamente
retomada pela Rússia na Primavera de 2022, foi, por isso, uma «vitória» para o
exército russo, pois, ao controlar o território entre o golfo da Crimeia até à
actual fronteira russa, a Rússia adquiriria o controlo total do mar de Azov e
poderia assim abastecer o porto militar de Sebastopol a partir da actual ponte
sobre o estreito de Kerch e a partir do Donbass. Daí o facto de a contra-ofensiva
ucraniana, que avança certamente muito mais lentamente do que o previsto, no
momento em que escrevemos estas linhas, parecer cada vez mais visar a
recuperação da Crimeia, opção que será favorecida pelo fornecimento de mísseis
de longo alcance, como, por exemplo, os alemães Taurus [1] prestes
a ser desbloqueada desde que as principais forças políticas alemãs retiraram as
suas objecções. Numa deriva ainda mais geral da guerra, a parte russa poderia
ir ainda mais longe e activar a opção da Transnístria, abrindo assim outra
frente a oeste, sabendo que, caso a NATO continue a expandir-se para leste,
nunca aceitará que a Moldávia adira à NATO. A guerra entre a Ucrânia e a Rússia
poderia então alastrar-se à Transnístria, caso o Ocidente persistisse em «não
fechar a porta» da OTAN aos países limítrofes da Rússia. A auto-proclamada
república independente russófona da Moldávia, a Transnístria, situada a oeste
de Odessa, controlada por separatistas pró-russos desde os anos 90 e ocupada
pelo exército russo, também poderia fazer parte do objectivo de guerra russo na
sua dimensão maximalista, embora, neste momento, pouco viável. No entanto, a
estratégica cidade portuária e russófona de Odessa, certamente longe de ser
conquistada pelo Kremlin, dada a desconexão entre a língua russa e a russofobia
que Putin subestimou gravemente, continua a ser um elemento central da
Novorossia devido à sua posição estratégica no Mar Negro para exportar bens e
matérias-primas ucranianas por mar e para o acesso das forças armadas aos
estreitos turcos e ao Mediterrâneo.
É evidente que os
apoiantes anglo-americanos, polacos, alemães e atlantistas dos ucranianos farão
tudo para impedir esses cenários em torno da «Nova Rossia», totalmente
inaceitáveis, não apenas pela questão da exportação de trigo e outros produtos
ucranianos bloqueados pela recusa russa (no final de Julho de 2023) de renovar
o acordo sobre cereais celebrado com a Turquia e a Ucrânia sob os auspícios das
Nações Unidas. Os países da OTAN não podem, de forma alguma, permitir que a
parte norte do Mar do Norte se torne um «lago russo» e que o Mar do Norte seja
reduzido a um lago «russo-turco». E é por esta razão que o objetivo dos países
ocidentais é esgotar ao máximo as forças convencionais russas através do
sobrearmamento dos exércitos e milícias ucranianos, desde que isso seja
sustentável, é certo, e apesar de, desde agosto de 2023, serem visíveis sinais
de abrandamento e diminuição do apoio da opinião pública, nomeadamente do lado
americano.
De qualquer forma, o
actual apoio maciço do Ocidente – que consiste em fornecer cada vez mais armas
ofensivas sofisticadas aos ucranianos, incluindo mísseis de longo alcance, como
os alemães Taurus, drones (nomeadamente os americanos Reaper) e caças (F16) que
permitem atingir alvos na Rússia e na Crimeia, nomeadamente – pode contribuir
para transformar a guerra russo-ucraniana num conflito directo entre a Rússia e
o Ocidente, uma vez que a Rússia declarou que estes sistemas de armas
ocidentais, se forem utilizados contra o território russo ou contra edifícios
militares navais russos ou a Crimeia, serão considerados como ataques de países
da NATO... Recorde-se que atacar directamente o território russo com armas de
longo alcance, como os F16 ou os Taurus, já constitui, por si só, uma violação
de uma «linha vermelha». No entanto, esta linha vermelha está, na verdade, cada
vez mais instável e cada vez menos respeitada, tal como interpretam os
ucranianos e os seus padrinhos ocidentais, que apostam no bluff das ameaças e
avisos russos. A guerra russo-ucraniana corre, portanto, cada vez mais o risco
de se desviar para teatros de operações próximos dos países da OTAN: Mar Negro,
Moldávia-Roménia e, claro, Polónia, que se sente ameaçada pelos exercícios
russo-bielorrussos e pelo grupo Wagner. Por fim, o ataque à Crimeia é, por si
só, uma linha vermelha susceptível de radicalizar ainda mais Moscovo e aumentar
o nível de tensão entre o Ocidente-OTAN e a Rússia.
Sem esquecer o risco
de um ataque nuclear russo no território ucraniano, que, tal como os próprios
Estados Unidos e a OTAN alertaram, seria severamente «punido» com a destruição
da frota russa no Mar Negro (32 navios), ou mesmo de toda ou parte da armada
russa no território ucraniano ocupado... Ora, tal cenário de acções e reacções
punitivas, em que o Mar Negro seria o palco de uma guerra importante com o sul
da Ucrânia, constitui um verdadeiro pesadelo e um quebra-cabeças estratégico em
termos de teoria dos jogos, pois não se pode saber qual seria a «resposta»
russa à punição convencional maciça do Ocidente...
Se os ocidentais continuarem
a armar massivamente os ucranianos em 2024 e a longo prazo (o que não é certo,
especialmente com as eleições americanas, daí a escolha dos russos de prolongar
a guerra), e se não renunciarem a uma futura integração na OTAN da Moldávia, da
Ucrânia e da Geórgia (recusando-se a pôr fim à política de «portas abertas»
inaugurada em 2008, que deu início ao conflito), Vladimir Putin só poderá
intensificar a «Operação Militar Especial», sabendo que, no contexto de uma
mobilização geral favorecida pelos crescentes ataques ucranianos em solo russo
e na Crimeia e, posteriormente, a navios russos no Mar Negro, a Rússia pode
literalmente esgotar as tropas ucranianas com milhões de soldados russos que
ainda não foram mobilizados em massa.
A guerra entre dois
impérios e dois modelos totalmente contraditórios
O
objectivo russo na Ucrânia vai além deste simples teatro de guerra por
procuração que, na realidade, como demonstra a nova corrida ao armamento, opõe
dois impérios historicamente e estruturalmente inimigos: o império territorial
e continental («Heartland») russo «à moda antiga» e o império marítimo
anglo-saxónico do Atlântico, que domina a UE e quer controlar o «Rimland»
eurasiático. O Kremlin não recuará. Utilizará praticamente todos os meios
possíveis para manter o controlo do território oriental e meridional da
Ucrânia, incluindo o acesso ao Mar Negro e aos portos ultra-estratégicos –
militar e economicamente – de Mariupol e Odessa (além da Crimeia). Este plano
russo, que não é assim tão novo, é inconcebível para o império anglo-saxónico e
para o Ocidente, incluindo a França (guerra anglo-francesa da Crimeia de 1853
contra a Rússia). Há um século e meio, os estrategas ingleses (Mackinder) e
americanos (Spykman, Mahan) de outrora, assim como aqueles que influenciaram os
líderes americanos durante e após a Guerra Fria, de Zbigniew Brzezinski a
Georges Friedman, sempre trabalharam para bloquear a Rússia no norte (Báltico),
no oeste (Roménia, Ucrânia, Polónia) e no sul (Crimeia, Mar Negro). Brzezinski
escreveu assim, em 1997, na sua importante obra O Grande Tabuleiro de Xadrez, «sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser
um império». E esta visão é uma das chaves para explicar o enorme investimento
político, mediático, financeiro, ideológico e militar dos Estados Unidos e da
UE na Ucrânia, em curso desde 2004. Bloquear o império russo czarista, soviético
ou pós-soviético de Putin no Mar Negro e ao norte dos estreitos turcos, e
privá-lo do controlo da Ucrânia e do seu «estrangeiro próximo», é uma
constante, uma verdadeira tendência marcante da História e da geografia... Da
mesma forma, inversamente, o império russo sempre esteve em expansão para o
leste, enquanto procurava aumentar a sua profundidade estratégica para o norte,
oeste e sul. De um modo geral, a Ucrânia, a Geórgia (2008-), a Transnístria
(Moldávia), o Cáucaso (Arménia/Nagorno-Karabakh/Geórgia/Azerbaijão) e até mesmo
a Ásia Central ex-soviética (Quirguistão, Cazaquistão, Uzbequistão, etc.),
regiões ricas em energia e outros recursos, são palcos de rivalidades por
interposição entre o império russo pós-soviético e o império ocidental
americano-atlantista. A população ucraniana é, em última análise, utilizada por
ambos os campos como uma zona de confronto, e se o Kremlin é generoso em vidas
sacrificadas, russas ou ucranianas, os ocidentais não o são menos, até ao
«último ucraniano».
Como bem demonstrou
com cinismo realista o estratega americano da Stratfor (ver supra), «A sombra
da CIA», George Friedman, numa conferência no Chicago Global Institute (ver
supra), a vantagem do império anglo-saxónico e o seu modus imperandi desde as
colónias britânicas baseia-se no princípio da não frontalidade directa, do
divide et impera (impedir qualquer unidade continental eurasiática) e,
portanto, da dominação e do conflito indirecto ou delegado. Em contrapartida, a
força imediata, mas que é uma fraqueza a longo prazo, do império territorial
russo reside na dificuldade de manter sob um jugo de ocupação directa e física
um território habitado por uma população que se tornou hostil. O desafio dos
Estados Unidos é, portanto, fazer tudo para atolar os russos na Ucrânia, mesmo
que isso signifique levá-los a cometer as piores atrocidades, a fim de fazer
com que os russófonos da Ucrânia «percam os corações» dos ocupantes/irmãos mais
velhos russos de forma duradoura. Os anglo-saxões e todos os líderes ocidentais
estão convencidos de que a sua ajuda económica e militar maciça aos ucranianos
permitirá, a longo prazo, expulsar definitivamente o exército russo da Crimeia,
do Donbass e de todos os territórios conquistados pelo Exército Vermelho. Na
realidade, a falta de pessoal militar ucraniano qualificado para manusear as
armas cada vez mais sofisticadas fornecidas pelos anglo-saxões e outros países
da OTAN às forças ucranianas, e o considerável enfraquecimento das forças
humanas ucranianas e das infraestruturas do país (incluindo portos e aeroportos
desde Junho de 2023) levam os especialistas em assuntos militares a duvidar do
carácter inevitável de um cenário tão optimista... Mas é claro que nenhum
cenário deve ser descartado. É verdade que, se vencer a guerra é possível para
o Kremlin, vencer a batalha da reconstrução económica e, sobretudo, dos
corações da Ucrânia atacada será muito mais difícil.
O império ocidental,
tanto político-militar como ideológico-cognitivo (soft power), mas sobretudo
económico e financeiro (armas das sanções em massa), dispõe de armas e planos
estratégicos de conquista e dominação sem equivalentes no resto do mundo. A
Rússia ainda não sofreu de pleno o impacto devastador das sanções e embargos, e
a desdolarização que deseja acelerar, mas que será lenta, não provocará
necessariamente um efeito dominó devastador, pois a indústria americana poderia
ser mais facilmente relocalizada e relançada com uma queda do dólar induzida
pela desdolarização.
No entanto, a
principal fraqueza do Ocidente reside na fraca propensão dos líderes das
democracias liberais em servir os interesses nacionais e civilizacionais das
suas nações e em ouvir os estrategas competentes, em benefício de lógicas
eleitorais de curto prazo ou de demagogia que consiste em surfar nas emoções
veiculadas pelos lobbies mediáticos e associativos ligados a interesses
transnacionais. É claro que também podemos mencionar os lobbies americanos do
armamento e do gás de xisto, que pressionaram a administração Biden (a
vice-presidente americana Kamala Harris é nada menos que a esposa do ex-lobista
da empresa de armamento Looked Martin) a permitir as condições para uma guerra
duradoura na Ucrânia, a fim de perpetuar as vendas de armas americanas na
Europa para substituir o «mercado» no Afeganistão com a retirada do exército
americano em 2020. Isto não é uma boa notícia para a paz, pois as indústrias de
armamento ocidentais e americanas – e, portanto, a OTAN — não têm qualquer
interesse em promover, neste momento, uma verdadeira solução de paz na Ucrânia
e, portanto, muito menos em deixar de cercar a Rússia a leste, sul e norte,
através da expansão da OTAN, o que faz com que Washington ganhe novos países
clientes compradores de armamento americano. Ora, esta espiral infernal só pode
levar o urso russo ferido a tornar-se ainda mais imprevisível e a cometer o
irreparável...
A solução para este conflito e os
caminhos a explorar no futuro para evitar que outras frentes se acendam noutras
«zonas vermelhas» vizinhas não poderão ignorar a questão da expansão neo-imperial
da Aliança Atlântica, das instituições e dos modelos políticos ocidentais para
o «estrangeiro próximo» russo. Qualquer fórmula de paz vencedora deverá propor
às diferentes nações do continente europeu uma nova arquitectura mundial de
segurança menos beligerante do que a induzida exclusivamente pela OTAN, que é,
em si mesma, uma máquina para fazer girar as indústrias de armamento americanas
e para fazer comprar, face à ameaça russa, sistemas de armamento atlânticos
interoperáveis, portanto americanos... Estamos longe dessa perspectiva sensata
que visa ter em conta no futuro o complexo cerco russo. Por conseguinte, o
intervencionismo reforçado da OTAN, desde a invasão russa da Ucrânia, aliado ao
proselitismo ocidental e à vontade americana de reduzir a profundidade estratégica
russa na Europa e, portanto, de a enfraquecer existencialmente, é, tal como o
neo-imperialismo russo do Kremlin, uma causa profunda e importante da guerra na
Ucrânia, cuja população, refém desses dois impérios, paga o preço humano mais
alto.
Fonte: Monde en guerre : La convergence des luttes - Le Diplomate
Estes artigo em 3 partes foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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