Hispanidade, um papel galvanizador na dinâmica de contestação da ordem
mundial (atualização de 2025)
René NABA / 20 de outubro de 2025 / in Actualités, Amérique latine
Os Estados Unidos atacaram deliberadamente a Venezuela em Setembro de 2025, por duas vezes, causando um total de 14 mortes. A destruição, em 2 de Setembro de 2025, de um barco que partiu da Venezuela transportando 11 pessoas levanta a questão da legitimidade da operação.
O ataque militar de 2 de Setembro —
decidido e encenado pelo presidente americano Donald Trump — contra um barco no
Caribe suscitou uma onda de reprovação entre os especialistas em direito
internacional. Segundo a versão das autoridades americanas, o navio, que partiu
da Venezuela, encontrava-se em águas internacionais e transportava drogas.
Havia onze pessoas a bordo, todas mortas pelo bombardeamento.
Durante o segundo ataque naval
americano, em 15 de Setembro, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, acusou
os Estados Unidos, que enviaram forças armadas para o Caribe, de «agressão
militar». Segundo ele, o objectivo é «apoderar-se das imensas riquezas
petrolíferas e gasíferas» do país.
Em sobreposição Erik Prince está de
volta. No Haiti ou em El Salvador, passando pelo Peru e Equador, o fundador e
ex-CEO da empresa de segurança privada Blackwater multiplica as aparições desde
a reeleição, no final de 2024, do seu melhor aliado na Casa Branca, Donald
Trump, de quem é um fervoroso apoiante.
De qualquer forma, estes dois factos lançam
uma nova luz sobre o nervosismo dos Estados Unidos em relação a tudo o que diz
respeito à efervescência revolucionária do cone sul do continente americano.
Hispanidade (América Latina): O principal
fornecedor das figuras míticas da mística revolucionária do mundo contemporâneo
De Sitting Bull, a Pancho Villa, a
Emiliano Zapata, a Simón Bolívar, ao comandante Ernesto Che Guevara, ao
subcomandante Marcos (México), ao presidente Arbenz Guzmann (Guatemala),
primeiro presidente do pós-Segunda Guerra Mundial a ser destituído pelo
exército americano em 1954, ao seu distante sucessor Salvador Allende (Chile),
que teve um fim trágico vinte anos depois, em 1973, a Fidel Castro (Cuba), Lula
(Brasil), Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), o continente
latino-americano é um dos principais fornecedores de figuras míticas da mística
revolucionária do mundo contemporâneo.
A mitologia revolucionária não constitui
o seu legado exclusivo à humanidade. As suas lutas contra os «conquistadores»
espanhóis, primeiro, e contra os «gringos» norte-americanos, depois, o seu
papel tradicional de principal foco de contestação na esfera da civilização
ocidental, conferem ao hemisfério sul do continente americano um lugar de
destaque no imaginário colectivo dos povos e um papel galvanizador na dinâmica
contestatária da ordem mundial.
Este papel é, aliás, amplificado por um
posicionamento geo-estratégico incomparável, constituído por um bloco cimentado
por uma continuidade territorial e uma homogeneidade cultural e linguística de
cerca de 600 milhões de pessoas distribuídas por 20 países, raramente igualado
noutros continentes, na junção de duas importantes vias de comunicação marítima
internacional (Oceano Atlântico e Oceano Pacífico), bem como por uma língua de
comunicação planetária, o espanhol, que ocupa a 4.ª posição no ranking
linguístico mundial, com 548 milhões de falantes, logo atrás do chinês, do
hindi e do inglês, mas muito à frente do francês (12.ª posição), com 200
milhões de falantes.
A sua projecção demográfica nos Estados
Unidos, ou seja, no coração do principal centro de produção de riqueza e
valores da era contemporânea, com a presença de uma população hispófona de
cerca de 50 milhões de pessoas, equivalente a 12,5% da população dos Estados
Unidos, acentua a importância dessa expansão, cuja relevância se ampliará ao
longo do século XXI.
Neste hemisfério sul, não se trata de uma
guerra entre o Islão e o Ocidente ou de um "choque de civilizações".
Os «latinos» pertencem à esfera da
civilização ocidental, mas, ao contrário dos seus congéneres, o dia 12 de Outubro
de 1492 não marca para eles, ou pelo menos para a sua esmagadora maioria, a
descoberta do novo mundo, tão celebrada em toda a Europa e América do Norte,
mas o início de quase seis séculos de desapropriação e escravidão... Também de
luta pela reapropriação da personalidade indígena, fundamento autêntico da
personalidade americana.
No auge da Guerra Fria entre a União
Soviética e os Estados Unidos (1945-1990), quando a religião era instrumentalizada
pelos Estados Unidos como arma de combate contra o ateísmo marxista,
especialmente nos países árabes e muçulmanos, a América Latina forjou um
conceito inovador, a «teoria da libertação», para justificar, em nome dessa
mesma religião, a luta contra a hegemonia norte-americana.
De forma alguma anódina, a expressão
remetia ao cristianismo das cavernas dos primórdios da cristandade, época em
que os discípulos de Cristo pregavam a insurreição contra a idolatria, o
paganismo, a covardia e a vilania.
O facto de os padres terem podido pregar
uma «Teologia da Libertação» vinte séculos após o advento do cristianismo, numa
das terras eleitas da cristandade, a América Latina, dá a medida das
frustrações acumuladas e das injustiças infligidas ao longo do tempo pela
devastação de um capitalismo desenfreado.
Mas esse lema revolucionário, que não
carece de ambição nem para os seus autores nem para o seu projecto, ressoará no
contexto exacerbado da Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos,
como um lema subversivo para os defensores da ordem estabelecida, seja dentro
da hierarquia clerical ou entre os latifundiários e seus aliados, os dirigentes
dos conglomerados americanos da indústria agro-alimentar «United Fruit», da
indústria mineira «Anaconda» ou das telecomunicações IIT (International
Telephone and Telegraph), que a combaterão como tal.
O confronto ao longo da segunda metade
do século XX será implacável e sem piedade. Todos os grandes países serão
vítimas da desestabilização. As ditaduras militares, muitas vezes instaladas
secretamente pela CIA, a agência central de inteligência americana, afogarão em
sangue qualquer tentativa de reivindicação. Da Guatemala (1954) à Nicarágua
(1980), passando pelo Brasil (1964), Bolívia (1967), Chile (1973) e Argentina,
todos ficarão na história pelo seu macabro balanço.
O mais elaborado dos planos concertados
de repressão colectiva, o plano Condor, de memória sinistra, apresenta o
seguinte balanço edificante: De 1975 a 1983, desde a queda de Saigão, bastião
da presença militar americana na Ásia, até ao desmantelamento do santuário
palestiniano em Beirute, a vasta e implacável caça aos opositores das ditaduras
latino-americanas lançada em todo o Cone Sul por instigação do secretário de
Estado Henry Kissinger, com a colaboração dos ditadores do Paraguai, Alfredo
Stroessner, e do Chile, Augusto Pinochet, causou dezenas de milhares de vítimas
em seis países da América Latina: Argentina (30.000), Bolívia (350), Brasil
(288), Chile (3.000), Paraguai (2.000) e Uruguai (178).
A repressão também não poupou o clero
católico: à imagem dos seus emuladores políticos, cujas figuras emblemáticas
ainda hoje povoam o imaginário colectivo universal, a América Latina também
produziu figuras míticas na ordem religiosa, verdadeiros ícones modernos do
continente, como Camillo Torres, o padre colombiano, animador do «Frente
Unido», que pediu a sua redução ao estado leigo em 1964 para se envolver na
luta armada e que morreu com as armas nas mãos, em 1966, aos quarenta anos, uma
idade sensivelmente próxima da de Cristo.
Outra figura mítica do clero militante
foi Dom Helder da Camara, arcebispo de Recife, o «bispo vermelho» das favelas e
do Banco da Providência, animador do movimento «acção justiça e paz» e crítico
da corrida ao armamento, ou ainda o padre Rutilio Grande, assassinado a 12 de Março
de 1977 por um misterioso esquadrão da morte no ano da entronização do seu
amigo, Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, que seria assassinado
três anos mais tarde.
A caça aos padres guerrilheiros estendeu-se
durante mais de dez anos após o fim do plano Condor, tamanha era a corrosão que
a religião causava aos olhos de uma população crente: Para o período de 1966 a
1992, o martirológio cristão é impressionante: quatro bispos, 85 padres, 19
freiras católicas, 10 freiras não sacerdotisas, 9 pastores e 150 leigos membros
proeminentes do movimento católico e cooperantes estrangeiros num contexto
diocesano foram mortos na América Latina por motivos políticos. A esta lista
acrescenta-se o guatemalteco Juan Gerardi, morto em 1998.
Este balanço não inclui, no entanto, os
padres guerrilheiros mortos em combate: Camillo Torres (1966), Domingo Lain
(1974) na Colômbia e Gaspar Garcia Laviana (1978) na Nicarágua.
Vários teólogos de renome foram, aliás,
silenciados: Hans Kung (Suíça), Curran (Estados Unidos), Schillebeeckx (Países
Baixos) e Pohier (França). O destino singular de um desses teólogos ilustra de
forma trágica o drama da Igreja latino-americana: com uma carreira promissora,
Leonardo Boff, padre franciscano brasileiro, professor universitário e aluno do
cardeal Joseph Ratzinger, antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
que sucederia ao Papa João Paulo II com o nome de Bento XVI, foi condenado a um
«silêncio deferente» em 26 de Abril de 1985, proibido de falar e escrever, uma
condenação que, para um teólogo, equivale a uma morte civil.
Estoicos na adversidade, mas coerentes
com a sua ética de vida, esses teólogos e guerrilheiros demonstraram que a fé
não é incompatível com a justiça. Com o seu exemplo, eles também preservaram a
mensagem cristã de uma «igreja dos pobres», abrindo caminho para os seus
sucessores leigos.
Enquanto a globalização e a privatização
contaminavam as mentes com os seus benefícios, a nova geração política,
nomeadamente o boliviano Evo Morales, iria, vinte anos mais tarde, proceder a
uma revolução na ordem semântica, restabelecendo a nacionalização das riquezas
nacionais, um termo riscado do léxico político desde o fim da Guerra Fria e o
triunfo da livre iniciativa e do capitalismo financeiro.
Com as eleições que ocorreram no início do século XXI, a América Latina
ofereceu uma alternativa democrática à ordem americana nas suas duas variantes:
·
a variante reformista representada pelo Lula brasileiro apoiado por uma
sobrevivente do regime ditatorial de Pinochet, a chilena Michelle Bachelet,
filha de um dos principais colaboradores de Salvador Allende.
·
a variante radical, liderada pelos herdeiros presuntivos do patriarca
cubano Fidel Castro, Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia).
A rivalidade é acirrada entre as duas alas da renovação: o Brasil, o maior país da América Latina, com uma população de quase 220 milhões de habitantes, pretende ser o motor da renovação humanista e democrática do sub-continente.
Além de sediar o fórum de Porto Alegre,
local de concertação anual do movimento anti-mundialização que se realiza paralelamente
ao colóquio de Davos, que reúne em Fevereiro, na Suíça, os grandes chefes das
grandes empresas ocidentais, o Brasil, com a ajuda da China, da Rússia, da
Índia e da África do Sul, empenhou-se em criar uma estrutura paralela ao fórum
das potências industriais do mundo ocidental (G7), o BRICS, com o objectivo de
influenciar a cena internacional em nome do terceiro mundo.
A Venezuela, por sua vez, procurou
constituir um núcleo militante no seio da OPEP, a organização dos países
exportadores de petróleo, através de uma aliança estratégica com o Irão. Teerão
e Caracas concluíram, em Junho de 2006, uma dezena de acordos de parceria no
valor de 9 mil milhões de dólares para o financiamento de 125 projectos, e
Washington suspeita que o Irão pretenda fazer da Venezuela a sua cabeça de
ponte comercial na América do Sul.
O mercado comum da América do Sul, o
Mercosul, reúne a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai. A adesão da
Venezuela, oitavo produtor e quinto exportador mundial de petróleo, faz do Mercosul
um bloco comercial que representa agora 75% do produto interno bruto
sul-americano e 250 milhões de pessoas.
Inimigo dos Estados Unidos, cujo projecto
de uma zona de livre comércio à escala continental pretendia contrariar, Hugo
Chávez procurou «politizar» este agrupamento económico. Nessa perspectiva, ele
bateu a porta da Comunidade Andina de Nações (CAN), bloco comercial que reúne
também a Bolívia, a Colômbia, o Equador e o Peru. O presidente Chávez criticava
Bogotá e Lima por terem assinado um acordo de livre comércio com Washington.
Para além das rivalidades, das manobras
diplomáticas e das lutas pela liderança regional, é evidente que a América
Latina, nas suas duas variantes – reformista e radical –, participa plenamente
no debate sobre a reconfiguração geo-económica do planeta, à sombra da mundialização
impulsionada pela potência americana.
Impulsionada pela viragem à esquerda da América
Latina, Cuba sai assim progressivamente do seu isolamento, apesar do bloqueio
americano de cinquenta anos, o mais longo da era moderna, e da presença militar
americana no solo da ilha, na base de Guantánamo, de sinistra reputação.
O Líder Máximo, aos 80 anos, um dos mais famosos
sobreviventes políticos da história contemporânea, planeou serenamente ceder o
poder em 2009, por ocasião do cinquentenário da revolução cubana.
Graças a uma recuperação espectacular, o decano
absoluto dos contestatários da ordem americana tem agora a certeza de ter
marcado a história do seu país com uma capacidade de sobrevivência política sem
igual, apesar de todas as operações de desestabilização do seu poderoso
vizinho. A chegada ao poder da nova geração política parece, assim, ser a
última afronta infligida à hegemonia americana pelo antigo barbudo da Sierra
Maestra, apesar dos erros e excessos do seu regime. A vingança de todos os
torturados pela repressão americana, de Che Guevara a Salvador Allende e
Camillo Torres.
René Naba
Jornalista-escritor, ex-chefe do mundo
árabe e muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do
director-geral da RMC Médio Oriente, chefe de informação, membro do grupo
consultivo do Instituto Escandinavo de Direitos Humanos e da Associação de
Amizade Euro-Árabe. De 1969 a 1979, foi correspondente rotativo no escritório
regional da Agence France-Presse (AFP) em Beirute, onde cobriu a guerra civil
jordaniano-palestiniana, o "Setembro Negro" de 1970, a nacionalização
de instalações petrolíferas no Iraque e na Líbia (1972), uma dúzia de golpes de
Estado e sequestros de aviões, bem como a Guerra do Líbano (1975-1990) a 3ª
guerra árabe-israelita de Outubro de 1973, as primeiras negociações de paz
egípcio-israelitas na Mena House Cairo (1979). De 1979 a 1989, foi responsável
pelo mundo árabe-muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do
director-geral da RMC Médio Oriente, encarregado da informação, de 1989 a 1995.
Autor de "Arábia Saudita, um reino das trevas" (Golias), "De
Bougnoule a selvagem, uma viagem ao imaginário francês" (Harmattan),
"Hariri, de pai para filho, empresários, primeiros-ministros" (Harmattan),
"As revoluções árabes e a maldição de Camp David" (Bachari),
"Media e democracia, a captura do imaginário, um desafio do século
XXI" (Golias). Desde 2013, ele é membro do grupo consultivo do Instituto
Escandinavo de Direitos Humanos (SIHR), com sede em Genebra. Ele também é vice-presidente
do Centro Internacional Contra o Terrorismo (ICALT), Genebra; Presidente da
instituição de caridade LINA, que opera nos bairros do norte de Marselha, e
Presidente Honorário do 'Car tu y es libre', (Bairro Livre), trabalhando para a
promoção social e política das áreas periurbanas do departamento de Bouches du
Rhône, no sul da França. Desde 2014, é consultor do Instituto Internacional
para a Paz, Justiça e Direitos Humanos (IIPJDH), com sede em Genebra. Desde 1
de setembro de 2014, é responsável pela coordenação editorial do site https://www.madaniya.info e
apresentador de uma coluna semanal na Radio Galère (Marselha), às
quintas-feiras, das 16h às 18h.
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa
por Luis Júdice

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