sexta-feira, 5 de abril de 2024

Doze teses por uma linguística dialética

 


 5 de Abril de 2024  Ysengrimus 

De facto, o problema que a linguística enfrenta hoje é um problema de constrangimento institucional. A linguística não é uma actividade que sirva a produção económica e é, em muitos aspectos, altamente ideológica. Nos domínios da medicina ou da biologia, há motivações muito complexas, mas há também estímulos que orientam a investigação. Mas, no caso da linguística, foram quase sempre factores externos que levaram ao seu desenvolvimento. Nalguns casos, são a religião ou a filosofia. Noutros casos, é o imperialismo.

(Antoine Culioli, Seminário de 1976)


YSENGRIMUS — Vou resumir aqui de forma muito clássica, em doze teses, o programa de linguística dialéctica, seis ontológicas e seis gnoseológicas.

1.      O mundo objectivo é anterior à nossa consciência dele. Isto é apenas um truísmo na aparência. Os desvios argumentativistas e pragmatistas, por um lado, e os desvios logicistas, por outro, tendem a fazer esquecer a referência ao mundo objectivo em toda a sua complexidade, substituindo-o insidiosa e vergonhosamente por "mundos possíveis" ou por uma verdade publicitária livre do equilíbrio de forças entre subjectividades hipostasiadas que são individualismos que não dizem o seu nome.

2.      A realidade é infinitamente polimorfa. Esta posição opõe-se ao escolasticismo dos modelos, ao qual os epígonos só podem responder através da casuística e do bizantinismo. Recusa também a sobreposição de uma (hipóstase) ou várias (ecletismo) facetas do objecto. Põe mesmo em causa a pertinência científica do modelo.

3.      O objecto concreto tem primazia sobre a ciência que pretende dar conta dele. Inverter esta relação é cientismo. Para referir e interagir, mexemos na linguagem porque a vemos como um organon, sem complexos (e, no caso dos puristas, com complexos). Para dar conta da linguagem, mexemos na teoria-organon. A posição oposta é mexer na linguagem para a forçar a entrar no leito teórico procrusteano.

4.      A verdade é local. Isto significa que a análise concreta do objecto concreto é essencial. Os estudos linguísticos que melhor envelhecem são as monografias, enquanto a linguística teórica está a tornar-se cada vez mais senil (cf. a obsolescência sucessiva da Gramática Generativa Transformacional).

5.      O generalizável está no particular. A linguagem é apreendida na e pela diversidade das línguas naturais e das situações sobredeterminadas de interacção enunciativa. Tal como a procura do generalizável, o empírico opõe-se ao empirismo: não pode haver prática sem teoria.

6.      A essência da realidade resume-se a relações, ou seja, a contradição como identidade e auto-desdobramento. As contradições passam de uma para a outra. O estruturalismo e o seu equivalente heurístico, a taxonomia, são inaplicáveis. Não estamos a trabalhar numa linguística de estados, mas numa linguística de operações de interacção e de referenciação.

7.      Não existe um problema insolúvel ou uma realidade incognoscível. Para já, há apenas incógnitas e, sobretudo, problemas mal colocados. É esta a nossa resposta ao agnosticismo(pseudo-objectivismo individual). Dizer que o conteúdo gramatical das estruturas profundas é incognoscível impede-nos de perguntar se a estrutura profunda é de facto constituída por um conteúdo gramatical... ou mesmo de perguntar se vale a pena falar de estruturas profundas.

8.      As hipóteses não são convenções. São verdades. Verdades parciais, inscritas na sócio-historicidade. São apostas. A neutralidade do investigador é, portanto, uma ilusão, e o trabalho teórico é inseparável da tomada de partido. O operador Iota é formal e pouco arriscado, a fléchage (reserva - NdT) é uma hipótese aberta à crítica.

9.      Não existe uma teoria acabada, porque o conhecimento exaustivo de um objecto tende para ele como uma curva para a sua assímptota. O movimento da historicidade no pensamento teórico funciona como uma sobre-sunção das realizações anteriores, que nos obriga sempre a rever tudo de alto a baixo. Trata-se de uma resposta ao dogmatismo (subjectivismo colectivizado) em que o marxismo, que inicialmente lutou contra o agnosticismo (Engels-Lenine), caiu sob a pressão da história (Lyssenko/Estaline), mas de que os linguistas não estão isentos.

10.  O conhecimento é um reflexo da realidade. Esta é complexa e muitas vezes mal interpretada, se não mesmo sabotada. Assim, o pensamento burguês trata a "velha tese leninista da reflexão" como um cão morto, sem se aperceber de que está a projectar nela a sua própria concepção de reflexão: a reflexão num espelho de casa de banho, ou seja, a contemplação individual passiva. Mas esta é uma actividade colectiva. Isto tem implicações para os linguistas: compare-se o linguista de escritório que forma exemplos fictícios no seu gabinete com aqueles que constroem corpora e interrogam informadores.

11.  O critério fundamental para avaliar a adequação do conhecimento ao objecto é a prática. A riqueza e a profundidade desta posição no que respeita ao conhecimento das línguas. A prática não se reduz ao utilitarismo, mas sobrepõe-se a ele na sua totalidade.

12.  A relação com o conhecimento prévio é fundamentalmente uma relação crítica (auto-crítica). A crítica de uma teoria é por vezes atenuada a partir de dentro sob a forma de uma estratégia escolástica, ou a partir de fora nos compromissos tácticos do ecletismo. Há um elemento de verdade em cada teoria, e o erro consiste muitas vezes em tomar como absoluto o que é relativo, em hipostasiar uma tendência local... em tomar o cosmos pelo universo ou o modelo pelo objecto.

Dialectar a linguística é também negá-la. De facto, quando pensamos na energia feroz que a burguesia quebequense investiu para manter a sua língua - o francês dos seminários e da televisão - sob o pretexto de que é uma minoria no continente norte-americano, em detrimento dos vernáculos falados neste vasto território pela maioria das pessoas e relegados para o estatuto de vulgaridade, idiotice ou folclore, acabamos por dizer a nós próprios que a língua, em última análise, não é grande coisa...

Das páginas 861-864 de :

LAURENDEAU, Paul (1986), Pour une linguistique dialectique – Étude de l'ancrage et de la parataxe énonciative en vernacular québécois, Thèse de doctorat dactylographiée, Université de Paris VII, 917 p.

 


Fonte : Douze thèses pour une linguistique dialectique – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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