sexta-feira, 5 de abril de 2024

UM MUNDO SEM DINHEIRO : O COMUNISMO (1975-1976)

 



UM MUNDO SEM DINHEIRO

Preâmbulo

"Em 1975, com o meu amigo Dominique Blanc, actual vice-presidente do Kêrvreizh, publiquei três brochuras intituladas "Un monde sans argent: le communisme" (Um mundo sem dinheiro: o comunismo).

A primeira capa apresentava o chefe índio Sitting Bull, que dizia: "Então a URSS não é comunista, mas os Estados Unidos da América eram-no há alguns séculos!

A segunda capa apresenta um pirata. Era um pagão bretão de Léon, que dizia: "A pilhagem é uma reacção saudável ao merchandising provocador, mas não pode ser usada como meio de distribuição de bens...".

O terceiro retratava o meu avô paterno, Yves Tillenon, como um druida que declarava: "O comunismo remonta à aurora dos tempos e é a tendência saudável para reencontrar a antiga comunidade perdida...".

Publiquei-os de 1974 a 1976 como suplemento de : "Les Amis de 4 Millions de Jeunes Travailleurs", a revista da O.J.T.R. (Organização dos Jovens Trabalhadores Revolucionários, à qual aderi em 1972). Eram, na altura, a ala juvenil do PSU de Michel Rocard".

~ Yann-Ber Tillenon ~ 3



Robert Bibeau

UM MUNDO SEM DINHEIRO : O COMUNISMO (1975-1976)

Collectif Les Amis de 4 Millions de Jeunes Travailleurs



Ú

ÍNDICE

O que é o comunismo ?

Ciência - ficção ?

II COMUNISMO OU CAPITALISMO ?

Cortar a manteiga

O modo de produção capitalista

Propriedade privada

O lucro

Salários e industrialização

O Estado e o capitalismo

A recuperação

Os selvagens

Marx e Engels

III FIM DA PROPRIEDADE

O que é a propriedade?

A questão agrária

Da escassez à abundância

A transformação dos produtos

IV PARA ALÉM DO TRABALHO

Trabalho e tortura

Ciência e automatização

Sociedade de classes e robotização

Remuneração

A preguiça

Divisão do trabalho

Trabalho duro

O fim da separação

Produção e consumo

Produção e educação 4

V DINHEIRO E ESTIMATIVA DE CUSTOS

O dinheiro

Os elogios

Lei do valor

Gratificação

Tempo de trabalho

Fantástico

Elevador ou escadas

Cálculo

Comparações

VI PARA ALÉM DA POLÍTICA

O fim do Estado

Os Conselhos Operários

A democracia

O circo eleitoral

A greve

O partido

VII INSURREIÇÃO E COMUNIZAÇÃO

Violência

O Exército

Vingança

Reconversão

Ruptura

Internacionalismo

VIII PROLETARIADO E COMUNISMO

Lénine

Burgueses e Proletários

À espera de Godot

IX O DEVIR HUMANO

História

Comunismo Guarani

Niveladores

Socialismo científico

Actividade comunista

Atividade e programa 5



I O QUE É O COMUNISMO ?

O comunismo é a negação do capitalismo. Um movimento produzido pelo próprio desenvolvimento e sucesso do modo de produção capitalista, que acabará por o derrubar e dar origem a um novo tipo de sociedade. Onde existe um mundo baseado no trabalho assalariado e nas mercadorias, deve surgir um mundo onde a actividade humana nunca mais será trabalho assalariado e onde os produtos dessa atividade deixarão de ser objectos de troca. O nosso tempo é o tempo desta metamorfose. Ela reúne os elementos da crise do capitalismo e todos os materiais necessários para uma resolução comunista dessa crise. Tentaremos descrever os princípios do comunismo, examinar como eles podem assegurar a vida futura da humanidade e mostrar que eles já estão em acção diante dos nossos olhos.

CIÊNCIA - FICÇÃO ?

Queremos ilustrar como será o mundo de amanhã, a sociedade comunista dos nossos sonhos. Não se trata, de forma alguma, de competir com a ficção científica ou com o jornalismo, escrevendo uma reportagem sobre a vida das pessoas e dos animais no futuro. Não dispomos de uma máquina do tempo.

Apesar do interesse da questão, não podemos prever quem ganhará a guerra entre eles, as calças ou o vestido, o caldo de legumes ou a sopa de ninho de andorinha. Em última análise, não podemos sequer garantir que a humanidade terá um futuro. Quem nos garante que não seremos dizimados por uma guerra atómica ou por um cataclismo cósmico?

Dito isto, a previsão do futuro continua a ser desejável e possível. O nosso objectivo é descrever a sociedade comunista com base nas suas regras gerais de funcionamento, sublinhando as diferenças entre ela e a sociedade actual. Temos de mostrar que o amanhã pode ser algo mais do que um hoje melhorado ou recondicionado.

Para não sermos demasiado insípidos, entraremos por vezes em pormenores e daremos exemplos. Mas não os levem demasiado a sério. Toda a gente pode imaginar outros. Nós podemos rejeitar os nossos.

O futuro não é um terreno neutro. O capital tende a ocupar e a subjugar todos os espaços sociais. Não pode, como imaginam os escritores de ficção científica, organizar as trocas das suas mercadorias e dos seus operários entre o passado e o futuro. Vinga-se no domínio da publicidade e da ideologia. Somos convidados a viver o presente no tempo do futuro, a comprar agora o relógio ou o carro de amanhã. As concepções sucessivas, concorrentes e por vezes "anti-capitalistas" de um futuro capitalista confundem o nosso presente.

Discutir a organização comunista da sociedade é, apesar dos riscos de erro, começar a levantar o manto de chumbo que paira sobre as nossas vidas.

A velha pergunta dos reaccionários: "Mas o que é que vocês propõem em substituição? Não somos mercadores de ideias. Não temos de lançar uma sociedade alternativa no 6 no mercado como se fosse um novo sabonete. O comunismo não é objecto de comércio ou de política. É a sua crítica radical. Não é um programa proposto, mesmo democraticamente, à escolha dos eleitores ou dos consumidores. É a esperança das massas proletarizadas de não serem mais reduzidas ao estatuto de eleitores ou consumidores. Aqueles que se colocam na posição de espectadores, que querem poder julgar sem terem de se comprometer, excluem-se do debate.

Se é possível falar de uma sociedade revolucionária, é porque ela está em gestação na sociedade atual.

Algumas pessoas acharão as nossas teses loucas e ingénuas. Não esperamos convencer toda a gente. Se isso fosse possível, seria preocupante! Em todo o caso, há quem prefira arrancar os seus próprios olhos a reconhecer a verdade das nossas posições. A revolução proletária será a vitória da ingenuidade sobre uma ciência servil e seca. Que se acautelem aqueles que pedem manifestações. Arriscam-se a ser levados a cabo, não na calma dos laboratórios, mas com violência e de barriga para baixo. Antes de dizer o que é o comunismo, é preciso primeiro limpar o terreno. Temos de desmascarar as mentiras sobre ele e dizer o que o comunismo não é. Porque, embora o comunismo seja uma realidade muito simples, tão ligada à experiência quotidiana que é quase palpável, não têm faltado as mais enormes inverdades sobre ele. Isto é um paradoxo apenas para aqueles que não sabem que, na "sociedade do espetáculo", é precisamente o significado do quotidiano e do familiar que tem de ser reprimido.

II COMUNISMO OU CAPITALISMO ?

De acordo com a opinião popular, o comunismo foi originalmente uma doutrina desenvolvida no século XIX pelos dois famosos irmãos siameses Karl Marx e F. Engels, e aperfeiçoada um pouco mais tarde pelo fundador do Estado soviético, Lenine. Diz-se que foi aplicada com diferentes graus de sucesso numa série de países, incluindo a URSS, a Europa de Leste, a China e Cuba. É nesta linha que debatemos se a Jugoslávia ou a Argélia têm ou não regimes socialistas, capitalistas ou mistos. Quer nos tranquilizemos, quer nos lamentemos, não vamos exaltar os encantos desse socialismo ou desse comunismo. Não vamos tomar o cinzento sombrio da Europa de Leste ou as ilusões do culto da personalidade na China pelo futuro radioso da humanidade.

LE FIL À COUPER LE BEURRE (SER INGÉNUO)

O comunismo não foi fundado por Marx, Engels ou Ramsés II. Pode ter havido um inventor brilhante na origem da faca de manteiga ou da pólvora. Não houve nenhum na origem do comunismo, tal como não houve na origem do capitalismo. Os movimentos sociais não são uma questão de invenção. 7

Engels e depois Marx juntaram-se a um movimento que já estava bem consciente da sua existência. Nunca afirmaram ter inventado a coisa ou a palavra. Não escreveram muito sobre a sociedade comunista enquanto tal. Ajudaram o movimento e a teoria comunistas a libertarem-se das brumas da religião, do racionalismo e da utopia. Encorajaram os proletários a não confiarem nos projectos deste ou daquele reformador ou nas revelações deste ou daquele homem iluminado.

Os verdadeiros revolucionários não fetichizam as ideias de Marx e Engels. Sabem que elas são o produto de uma época e que têm os seus limites. Os dois homens evoluíram e, por vezes, contradizem-se mutuamente. Pode dizer-se que tudo está em Marx. Mas é preciso ser capaz de o perceber!

Não pretendemos ser marxistas. Mas negamos àqueles que se dizem marxistas o direito de se apropriarem e falsificarem o pensamento dos seus ídolos. A prova da impotência dos grandes homens perante os movimentos da história é-nos dada pela forma ignominiosa como a obra de Marx e Engels foi distorcida para ser utilizada contra o comunismo.

Há indivíduos mais dotados e mais clarividentes do que a massa dos seus semelhantes. A sociedade de classes cultiva essas diferenças. Elas reflectem-se no movimento comunista. Não estamos a discutir se são os líderes ou as pessoas que fazem a história. Estamos a dizer que a obra de Marx, como a de Fourier, Bordiga ou qualquer outro porta-voz do comunismo, ultrapassa o simples ponto de vista de um indivíduo. O comunismo não nega as diferenças de capacidades, não reduz os teóricos a meros altifalantes das massas, mas, por outro lado, é o inimigo amargo e permanente do carreirismo e do estrelato.

O comunismo não é uma ideologia nem uma doutrina. Tal como existem actos comunistas, também existem palavras, escritos e uma teoria comunista, mas a acção não é a aplicação da ideia. A teoria não é um plano pré-estabelecido para uma luta ou uma sociedade que deve ser implementado o mais eficazmente possível. O comunismo não é um ideal.

Os países que se proclamam marxistas-leninistas não são zonas onde os princípios do comunismo foram mal aplicados por uma razão ou outra. São países capitalistas. O seu regime tem as suas características particulares, mas é tão capitalista como qualquer regime liberal. Pode mesmo dizer-se que um país como a Polónia ou a RDA é muito mais capitalista do que muitos dos países menos industrializados do "mundo livre". Nestes países "comunistas", certas tendências espontâneas do capital são combatidas. Isto é feito para o bem do desenvolvimento geral do capitalismo, e não é de modo algum uma particularidade.

A planificação imperativa, a propriedade colectiva dos meios de produção e a ideologia proletária não são comunistas. São características do capitalismo que foram aqui acentuadas. Todas as características fundamentais do sistema e a lógica da acumulação de capital, rebaptizada de "acumulação socialista", estão aqui bem presentes. 8

O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

Considerar os regimes marxistas-leninistas como socialismo ou comunismo é não compreender a sua realidade e, acima de tudo, é mostrar que não sabemos o que é o capitalismo.

Acredita-se que ele se baseia no poder de uma classe particular, a burguesia, na propriedade privada dos meios de produção, na busca frenética do lucro. Nenhum destes aspectos é fundamental.

A burguesia é a herdeira da antiga classe dos comerciantes. Tendo desempenhado durante muito tempo um papel importante mas limitado nas sociedades de base agrária, a burguesia mercantil começou a controlar os instrumentos de produção em vez de meras mercadorias durante a Idade Média europeia. Entre eles, o trabalho humano, que transformaram em mercadoria através do trabalho assalariado. Esta foi a origem do capitalismo.

A burguesia está no poder a partir do momento em que se torna a classe dominante, graças ao poder das forças económicas e industriais que a apoiam e que tornaram obsoletas as antigas formas de produção. Mas ela não pode fazer outra coisa senão curvar-se às leis da sua economia. Enquanto detentor do capital, deve obedecer a essa força que o impulsiona, o empurra e, por vezes, o leva à falência.

O indivíduo ou a empresa particular têm espaço de manobra, mas não podem navegar contra a corrente durante muito tempo. Nenhuma classe conseguiu, no passado, satisfazer todos os seus caprichos utilizando o poder que parece estar à sua disposição. O tirano mais incontestado só pode manter-se se conhecer os limites estreitos da sua soberania real. É um erro tentar explicar os fenómenos sociais em termos de poder. Isto aplica-se ainda menos ao capitalismo do que aos sistemas que o precederam. A classe dos gestores do capital tem sido constantemente remodelada pela própria acção do capital. O que é que o rico comerciante da Idade Média e o gestor moderno têm em comum? As suas motivações e gostos são diferentes. Isto é necessário para que possam desempenhar a mesma função em dois momentos diferentes do desenvolvimento do capital. A classe dos senhores feudais era identificada pela tradição e pela hereditariedade. Já não é o caso de uma burguesia que se desfaz e se refaz através do sucesso, do casamento e da falência.

A relação entre escravo e mestre, servo e senhor, é uma relação pessoal. Pelo contrário, o proletário moderno está mais ligado a um sistema do que a um patrão. O que o prende não é uma fidelidade pessoal ou um constrangimento particular, é directamente a necessidade de sobreviver, a ditadura das suas próprias necessidades. O proletário, arrancado da sua terra e separado dos meios de produção, não tem outra alternativa senão ir trabalhar como prostituta. É livre, maravilhosamente livre. Pode até recusar-se a vender-se e morrer à fome, se assim o desejar.

Um burguês ou um político pode ir pessoalmente à falência. Na Rússia e na China, toda uma parte da classe burguesa internacional foi à falência. Foi substituída por uma burocracia. A burocracia não deve ser vista como uma classe radicalmente diferente! Um banqueiro ou um capitão de indústria 9

O "comunista" assemelha-se mais ao seu adversário capitalista do que este se assemelha ao seu "antepassado", não do século XV ou XVI, mas de há 50 anos.

Se o capitalismo, ocidental ou oriental, não pode ser explicado pelo poder da burguesia, o comunismo ainda menos pode ser reduzido ao poder do proletariado. O seu advento significa a autodestruição dessa classe.

A PROPRIEDADE PRIVADA

A propriedade privada dos meios de produção não é uma característica constitutiva do modo de produção capitalista. Pertence à esfera jurídica. Sobrevive no Oriente com as parcelas de terra dos camponeses. No Ocidente, foi mordiscada pela propriedade pública. O Estado é frequentemente proprietário de grandes complexos industriais. Ao serem nacionalizados, os correios e os caminhos-de-ferro não perderam o seu carácter de capital. F. Engels viu nesta tendência do Estado para se tornar proprietário das forças produtivas uma evolução geral que relegaria o capitalismo privado para a antiguidade.

O desenvolvimento do capitalismo moderno tende a dissociar cada vez mais a propriedade e a gestão das forças produtivas. Não só os gestores das empresas nacionalizadas, mas também os das grandes empresas privadas não são proprietários, ou são proprietários apenas de uma fração ínfima do capital que controlam. As necessidades de capital dos gigantes industriais excedem de longe o que uma fortuna pessoal ou familiar poderia proporcionar. Operam com dinheiro fornecido por uma massa de pequenos accionistas e aforradores que praticamente não têm poder. A situação na Europa de Leste deve ser entendida à luz desta evolução geral do capital.

O LUCRO

O capitalista seria movido pela procura do lucro máximo. A expressão "lucro máximo" não significa muito. Um patrão pode tentar, durante um dia, uma semana ou um mês, pôr homens e máquinas a trabalhar ao máximo, se tiver a certeza de encontrar saídas. É provável que se arrependa rapidamente de ter esgotado o seu capital. O fracasso de uma tentativa deste género ocorreu na China com o "grande salto em frente". O montante dos lucros gerados e, por conseguinte, o rendimento dos accionistas e dos gestores, bem como a taxa de crescimento económico, não são decididos livremente pelos capitalistas todo-poderosos.

O que leva o capitalista a enriquecer ou a investir é o facto de ganhar dinheiro. Se não o fizer, por complacência ou por bondade, ou porque objectivamente já não é possível, a sua empresa será eliminada. Para o burocrata, o medo das sanções administrativas também entra em jogo. Nem na URSS nem na China se proclama que o lucro desapareceu. Pelo contrário, o lucro é procurado para o bem do povo, para construir o comunismo.

Tornou-se um instrumento de medida económica ao serviço da planificação!

No Oriente como no Ocidente, e como Marx demonstrou, o desenvolvimento do capitalismo não pode ser explicado pela atracção do lucro. É exactamente o contrário. As noções de lucro ou de renda fundiária não explicam o funcionamento do sistema. São as categorias através das quais as classes dominantes tomam consciência das necessidades económicas e são levadas a agir. Ao contrário dos humanistas de esquerda que vêem, ou fingem ver, o lucro como o seu grande inimigo, os revolucionários não estão iludidos. Não censuramos o sistema pela sua imoralidade. Não nos agarramos a sectores arcaicos que já não são rentáveis.

O lucro desaparecerá com a revolução. E sem demora! Até lá, desempenha, em certa medida, um papel de protecção dos operários. Impõe limites à tirania do patrão. Obriga-o a poupar material humano. Se fosse possível abolir o lucro preservando o capital, a empresa média transformar-se-ia num campo de concentração e a sociedade deslizaria para a barbárie total. O nazismo não é um acidente da história. É o desencadear de forças que continuam a espreitar nas profundezas da civilização do capital. O lucro impõe limites ao autoritarismo, à vontade de dominar e esmagar que um sistema desumano gera.

Ataquemos o lucro! Mas ataquemos também o conjunto de uma sociedade em que a própria vida humana se tornou uma mercadoria.

TRABALHO ASSALARIADO E INDUSTRIALIZAÇÃO

O modo de produção capitalista assenta em dois pilares de solidariedade que o distinguem dos modos de produção que o precederam. O primeiro desses pilares é o trabalho assalariado. Os homens já tinham alugado o seu charme, a sua ligação política, a sua capacidade militar e até a sua força de trabalho a outros homens. Mas tudo isso permanecia marginal em agrupamentos sociais constituídos por pequenos grupos entre os quais o dinheiro e os bens não circulavam muito. O desenvolvimento do capitalismo significou a introdução efectiva do trabalho assalariado na esfera da produção. Este tornar-se-á a forma geral de exploração.

O segundo pilar é a industrialização ou, mais amplamente, uma mudança na relação do homem com a natureza e com a sua própria actividade. O homem já não se contenta em arranhar o solo para viver. A partir de agora, transformam sistematicamente a natureza numa escala crescente. O capitalismo é uma revolução ininterrupta dos modos de produção. É o progresso da ciência e da razão face ao fatalismo e ao obscurantismo. É o movimento que sucede ao imobilismo das sociedades agrárias.

O comunismo não fará o tempo voltar atrás. O fim do trabalho assalariado não significa o regresso à escravatura ou à servidão. A superação do processo de "conquista da natureza" e da organização industrial do trabalho não significa o regresso ao imobilismo do passado. O comunismo abandonará o carácter agressivo e desordenado da acção do capital. O seu objectivo não é 11 destruir, dividir e subjugar, mas agir globalmente sobre o mundo para o humanizar e o tornar habitável. Para além da indústria, conciliará o útil e o agradável. A um nível superior, redescobrirá a familiaridade perdida que unia o ser humano ao seu ambiente.

O capitalismo não começou a florescer numa bela manhã porque, de repente, nos apercebemos de como podia ser eficiente. Não se trata de uma vitória do espírito. Foi estabelecido no trabalho através de convulsões sociais que foram frequentemente cruéis e irracionais. Provocou reacções de revolta. Teve de dar um passo atrás, para voltar a avançar. A empresa foi buscar os seus empregados a uma massa de camponeses que tinha anteriormente expulsado das suas casas e reduzido a mendigos.

O movimento do capital tem dois aspectos. Por um lado, é o desenvolvimento das forças produtivas humanas e materiais e, por conseguinte, do valor de uso e da utilidade. Por outro lado, é o desenvolvimento do valor da mercadoria. A mercadoria já tinha esta dupla face. O capital continua a ser uma mercadoria, mas é também um valor que tende a aumentar constantemente.

Durante muito tempo, o capital esteve por baixo da mercadoria. Graças ao seu engenho ou à sua astúcia, o comerciante pode possuir e explorar uma massa crescente de produtos. O agiota pode fazer o mesmo, mas apenas com dinheiro. Mas estas formas primitivas de capital não podem expandir-se indefinidamente. O valor permanece parasitário e não cria os meios necessários para a sua acumulação. Só com a apropriação e a fixação de um valor sempre crescente nos meios de produção é que o capital pôde realmente florescer. Como um vampiro que se alimenta de valor, isto é, de trabalho humano, tem de desenvolver a maquinaria e a produtividade para atingir os seus objectivos. Para ele, estes são apenas meios para atingir um fim. Para nós, é o que interessa. Este desenvolvimento técnico assume muitas vezes formas desagradáveis: desemprego, armas mortíferas, destruição da natureza, mas vai revolucionar a actividade humana e permitir-nos sair da era bárbara das sociedades de classes.

O comunismo não destrói o capital para recuperar a mercadoria original. A troca de mercadorias é um elo e uma forma de progresso. Mas é um elo entre partes antagónicas. Desaparecerá sem o regresso à troca directa, essa forma primitiva de troca. A humanidade deixará de estar dividida em grupos e sociedades antagónicas. Organizar-se-á para desenvolver e utilizar o seu património comum, para repartir as tarefas e os prazeres. A lógica da partilha substituirá a lógica da troca.

O dinheiro desaparecerá. O dinheiro não é um instrumento de medida neutro. É a mercadoria em que se reflectem todas as outras mercadorias. O ouro, a prata e os diamantes deixarão de ter qualquer valor para além daquele que deriva da sua própria utilidade. Como Lenine desejava, o ouro poderia ser reservado para a construcção de urinóis.

O ESTADO E O CAPITALISMO

No campo "comunista", o dinheiro continua a circular sem perturbações. A divisão por fronteiras e, dentro dessas fronteiras, a divisão da economia em empresas, está viva e de boa saúde. O papel do Estado na economia 12 , que se baseia juridicamente na propriedade pública das empresas, explica-se pela natureza do capitalismo.

O Estado e a mercadoria são velhos amigos. Os comerciantes querem que a sociedade seja unificada, que os ladrões sejam perseguidos e que o dinheiro seja garantido. O Estado e a burocracia encontraram na circulação de bens e pessoas o meio de se desligarem do mundo agrícola.

O Estado moderno, seja ele real ou republicano, é o produto da dissolução das estruturas feudais pelo capital. Opõe-se a interesses particulares como representante do interesse geral. É necessário ao capital porque o ajuda a ultrapassar as contradições e oposições que o capital não pode deixar de provocar. A monarquia e a burguesia, apesar dos momentos difíceis, apoiaram-se mutuamente face ao feudalismo. A unificação política era necessária para o desenvolvimento das empresas comerciais e industriais. A riqueza e as riquezas permitiram reforçar o poder do Estado e dar-lhe autonomia. Muitas vezes, o Estado intervém directamente para fornecer ou obter os capitais necessários a um determinado ramo da indústria. Desenvolveu o arsenal jurídico necessário para desenvolver uma mão de obra livre. Eliminou os antigos costumes e barreiras. Quando a burguesia aparece directamente na cena política, já há muito que se tornou uma força dominante e o Estado monárquico passou para o seu serviço.

Na Rússia e no Japão, países que foram lançados na cena internacional num estado de sub-industrialização, foi o próprio Estado que provocou e organizou o desenvolvimento do capitalismo. Fê-lo para preservar as bases do seu próprio poder e para se dotar de armas modernas. Ao colocar o capital ao seu serviço, estava simplesmente a curvar-se perante a sua superioridade. A monarquia iniciava um processo que acabaria por a destruir. As condições necessárias para este enxerto não existiam em todo o lado. No Japão, teve êxito porque o Estado já era autónomo e o comércio se tinha desenvolvido. A China falhou momentaneamente, tal como a maioria dos outros países pré-capitalistas.

O Estado tem muitas vezes de intervir para corrigir um capital que gosta de ser caprichoso e que prefere instalar-se ali do que noutro lugar. Os regimes burocráticos apenas acentuam esta tendência até um ponto nunca antes atingido.

Será que o capitalismo oriental conduz a um crescimento mais harmonioso ou racional do que o capitalismo ocidental? A pergunta não faz muito sentido. Se o fez, foi graças às falhas do capitalismo tradicional. Se esse capitalismo tradicional é hoje reimplantado em Moscovo ou em Leninegrado, isso deve-se às falhas do capitalismo de Leste.

Onde a burguesia se tinha desenvolvido lentamente através da economia, a burocracia conquistou o poder político apoiando-se em forças sociais como o proletariado e o campesinato. No entanto, foi o fruto da desintegração da sociedade tradicional pelo capital internacional. A burocracia não teve escolha. Não podia, como pretendia, instaurar o socialismo ou o comunismo. Também não podia restaurar e fecundar o capitalismo tradicional. A burocracia não podia, como pretendia, instaurar o socialismo ou o comunismo. Empiricamente, 13, encontrou um caminho que se adequava à sua natureza e que lhe permitia acumular capital industrial à custa do campesinato.

A burocracia é uma força unificadora que permitiu a transferência autoritária de riqueza de um sector da sociedade para outro. Modifica o desenvolvimento espontâneo do capital a favor dos seus objectivos de poder e de permanência. Mas o capital não é uma força neutra que pode ser usada para qualquer objectivo. A burocracia planeia, domina. Mas o que é que ela planeia, o que é que ela domina? A acumulação de capital. Reduz o mercado livre, combate um mercado negro que não pára de renascer. Isto não é uma prova do seu anti-capitalismo, mas um sinal de que a base natural do capital está viva e de boa saúde. O que diríamos de um jardineiro que, por ter de arrancar ervas daninhas, afirma que as plantas que cultiva já não são plantas!

Os próprios governos ocidentais tiveram de intervir cada vez mais directamente na interacção das forças económicas. Têm de ter uma política social e ocupar-se do planeamento. A burocratização não é um fenómeno exclusivo da Europa de Leste. Afecta os Estados democráticos e fascistas, bem como as grandes empresas privadas. É simultaneamente o produto e o triste remédio para a crescente atomização da sociedade.

De certa forma, é incorreto falar de capitalismo burocrático ou de capitalismo de Estado na Europa Oriental. Todos os capitalismos modernos são burocráticos e geridos pelo Estado. O Estado, que detém a totalidade da indústria, não tem um controlo absoluto sobre ela. O poder real e o poder legal não são a mesma coisa.

No capitalismo liberal, o Estado pode utilizar forças populares, militares ou mesmo burguesas para atacar uma determinada grande empresa. No entanto, isso não lhe permite passar por cima das leis económicas. Queremos erguer-nos contra o poder dos monopólios, mas não podemos regressar às pequenas empresas do passado.

Com o capitalismo oriental, o Estado burocrático, por muito sedento de controlo que esteja, não pode abolir as categorias de mercado e a concorrência entre empresas. Enquanto existirem empresas separadas, elas competirão entre si, mesmo que os preços não sejam livres.

Esta falta de unidade não se limita à esfera económica. A própria burocracia está constantemente dividida por lutas de facções e conflitos pessoais. Na ausência de unidade, é preciso manter a imagem de unidade. O inimigo não é a concorrência nas mãos do partido, mas o anti-partido.

O que a economia ganha em eficiência com a burocracia, ela perde. As mentiras e a perda da realidade permeiam o corpo social. A luta oculta substitui a concorrência aberta.

Capaz de organizar o arranque económico em condições ingratas, a burocracia está atrasada em relação ao avanço tecnológico das sociedades liberais. 14

RECUPERAÇÃO

Que interesse têm os capitalistas em serem chamados comunistas? Regra geral, os capitalistas não gostam que lhes chamem capitalistas! Este nome tem uma origem precisa, ligada à revolução russa. Chamar a si próprio comunista é afirmar que se dedicou à classe operária em vez de reconhecer que a explora. Significa ser capaz de dar um sentido humano ao desenvolvimento desumano do sistema: a construção do comunismo. Noutros lugares, os projectos de uma "nova fronteira" ou de uma "nova sociedade" são apresentados às massas!

Quando o capital se proclama comunista, quando recupera o pensamento de Marx para o destilar nas suas universidades para os intelectuais ou para entorpecer os operários nas suas fábricas, está apenas a imitar um movimento que, na realidade, está a realizar. O capital não cria, recupera. Alimenta-se da paixão e da iniciativa dos proletários, por outras palavras, alimenta-se do comunismo. Não se pode compreender muito do comunismo se não se compreender a natureza capitalista dos países da Europa de Leste. A luta revolucionária não pode poupar o estalinismo, que é um sistema e uma ideologia fundamentalmente anti-comunistas. O facto de ele ter fortalezas no próprio seio da classe operária não nos deve abrandar, mas, pelo contrário, encorajar-nos a não transigir.

Prestámos um grande serviço ao estalinismo ao não o criticarmos como um sistema capitalista. Os revolucionários, nomeadamente os anarquistas, reconheciam-no como comunista, desde que pudessem associar-lhe o termo autoritário. Autoridade, eis o monstro! A título de explicação, vejamos o carácter de Karl Marx.

Seguindo Trotsky, o infeliz adversário de Estaline, os trotskistas desenvolveram interpretações que são tão complicadas como imbecis. Uma base socialista e uma superestrutura capitalista coexistiriam, pelo menos na União Soviética. Em todo o caso, nunca compreenderam nada do comunismo. Nem Trotsky, que via o trabalho obrigatório como um princípio comunista. Eles não são revolucionários, Trotsky é que era. Mas ele nunca passou de um revolucionário burguês e de um burocrata infeliz. Deixemos tudo isto para o seu intelectualismo, as suas querelas bizantinas e o seu ridículo fetiche pela organização.

Os maoístas, esses "místicos-estalinistas", reduzem tudo a uma questão de política e de moral. A URSS tornou-se social-imperialista e talvez mesmo capitalista. Felizmente, a China e a Albânia, sob a sábia direcção proletária de Mao, H. Hodja e Bibi Fricotin, não foram contaminadas. O comunismo é o lucro e a política ao serviço do povo! À medida que as ideias comunistas se difundem, incluindo na URSS e na China, para responder às necessidades de um proletariado que se está a tornar novamente revolucionário, estas seitas parecerão cada vez mais rebuscadas! Estão a tentar desempenhar o papel da revolução no palco político. Estão na vanguarda, mas na vanguarda do capital. Porque em tempos de revolução são todos os palhaços políticos que tentam dar um ar revolucionário para não serem derrubados. 15

Tornou-se uma tradição que a revolução seja combatida em nome da revolução. Os militantes estalinistas ou de esquerda que se extraviaram juntar-se-ão ao verdadeiro Partido Comunista. Alguns, menos cegos, reconheceram a divisão em classes sociais no capitalismo de Leste. Infelizmente, pensaram também reconhecer nele um modo de produção novo e superior. Isso foi um grande mérito de Estaline e da sua laia.

OS SELVAGENS

Não vemos nada de comunista nos regimes que se dizem comunistas. Em contrapartida, vemo-lo onde não estamos habituados a vê-lo. As sociedades primitivas que, suprimidas pela "civilização", subsistem em regiões áridas ou inacessíveis são comunistas, quer os seus membros vivam da caça e da recolha ou de uma agricultura pouco sofisticada. A URSS não é comunista, mas os Estados Unidos da América eram-no há alguns séculos! Não é nossa intenção fazer regressar a humanidade a este estádio. Em todo o caso, seria muito difícil porque este estado de coisas exige uma densidade populacional muito baixa. No entanto, é importante reabilitar a humanidade primitiva e pré-histórica.

O índio era mais feliz e, nalguns aspectos, mais civilizado do que o cidadão americano moderno. Os homens das cavernas não morriam de fome. Actualmente, centenas de milhões de seres humanos passam fome. O primitivo, como o Sr. Sahlins demonstrou, vive na abundância. São ricos não porque acumularam riqueza, mas porque vivem como lhes apetece. A sua pobreza aparente, a sua indigência, tem causado pena ao viajante ocidental que, por vezes, paradoxalmente, se surpreende com a sua boa saúde antes de lhe dar a varíola. Os povos primitivos não possuem praticamente nada. Mas para aqueles que vivem da caça e da recolha, isso não é um obstáculo. A sua indigência permite-lhes circular livremente e desfrutar das riquezas da natureza. A sua segurança não se baseia em poupanças, mas no conhecimento e na capacidade de utilizar o que o ambiente lhes dá. Passam menos tempo do que as pessoas civilizadas a ganhar a vida. A sua actividade "produtiva" não tem nada a ver com o tédio do escritório ou da fábrica. Felizes os Yir-Yiron da Austrália que confundem trabalho e diversão na mesma palavra!

Existe uma profunda diferença entre o comunismo do passado e o comunismo do futuro. Por um lado, há uma sociedade que utiliza o seu ambiente ou sabe adaptar-se a ele; por outro lado, há uma sociedade baseada na transformação contínua e profunda desse ambiente. Em retrospectiva, o período entre estes dois comunismos parecerá uma etapa dolorosa, mas relativamente curta, da história da humanidade. Pouca consolação para aqueles que continuam imersos nela! 16

MARX E ENGELS

Marx e Engels dedicaram-se a compreender o desenvolvimento da sociedade capitalista. Prestaram pouca atenção à descrição do mundo futuro que tinha monopolizado os esforços dos socialistas utópicos. Mas a crítica do capitalismo e a afirmação do comunismo não podem ser completamente dissociadas. Uma verdadeira compreensão do papel histórico do dinheiro e do Estado só pode ser obtida do ponto de vista do seu desaparecimento. Se Marx e Engels não falaram mais da sociedade comunista, foi sem dúvida paradoxalmente porque essa sociedade era mais difícil de apreender, porque estava menos ao alcance da mão, mas também porque estava mais presente nos espíritos revolucionários. Quando falavam da abolição do trabalho assalariado no "Manifesto Comunista", eram compreendidos por aqueles de quem faziam eco. Hoje é mais difícil imaginar um mundo livre do Estado e da mercadoria, porque estes se tornaram omnipresentes. Mas, ao tornarem-se omnipresentes, perderam também a sua necessidade histórica. O esforço teórico deve substituir a consciência espontânea antes que se torne inútil porque o que afirma se tornou banalidade. Marx e Engels foram talvez menos bem sucedidos do que Fourier na compreensão da natureza do comunismo como libertação e harmonização das paixões. Fourier, no entanto, não conseguiu libertar-se do trabalho assalariado, insistindo, entre outras coisas, em que os médicos deixassem de ser pagos em função das doenças dos seus clientes, mas em função do estado de saúde da comunidade.

Marx e Engels, no entanto, foram suficientemente claros ao afirmar que não podemos colocar nas suas costas o peso da burocracia e das finanças dos países “comunistas”. Segundo Marx, o dinheiro desapareceu imediatamente com o advento do comunismo e os produtores deixaram de trocar os seus produtos. Engels fala do desaparecimento da produção mercantil com o advento do socialismo. Que ninguém nos fale de um erro juvenil, como toda a escória marxológica adquiriu o hábito de fazer. Referimo-nos à “Crítica ao Programa de Gotha” e ao “Anti-Dühring”.

Estalinistas de todos os tipos falarão de lixo no trabalho dos mestres. Cantarão uma estrofe para que se saiba que são marxistas e não dogmáticos. Para eles, o dinheiro, o capital, o Estado perderam o seu carácter burguês para se tornarem proletários. Os mais ousados ​​chegam a dizer que, uma vez construído o comunismo, talvez nos consigamos livrar  de todo esse lixo. Para outros, o comunismo será simplesmente uma sociedade com um padrão de vida muito, muito elevado. Em qualquer caso, o comunismo está perdido nas nuvens e a escada que leva a ele é composta por uma infinidade de degraus que formam tantas etapas de transição.

É verdade que o comunismo está a ser construído nos países orientais. Não o construímos nem melhor nem mais conscientemente do que em qualquer outro lugar. Uma revolução será necessária para fazê-lo nascer.

Esta concepção da construção do comunismo através de instrumentos económicos e sociais é tipicamente burguesa. Ela representa a coisa como a produção de um objecto manufacturado. Ela vê a sociedade como uma vasta fábrica. Ele acredita que o todo funciona como a parte. Trata-se de vontade, de projecto, de linha política... 17

O erro que estes estalinistas cometem no caminho tem repercussões no resultado. Não se trata de fazer desaparecer a economia empresarial, mas de fazer da economia um negócio único. O desperdício de ter uma força policial desaparecerá. Fortalecer o sentido moral através da educação “comunista” será suficiente para fazer desaparecer o roubo e a subversão!

A melhor solução é certamente a proposta pelo próprio José Estaline. Não conseguindo mudar as coisas, mudemos as palavras. Como é que vocês esperam, explica o paizinho do povo, que quem recebe salário seja empregado, pois através do Estado são donos das empresas que os empregam. Você não pode ser o seu próprio funcionário! O emprego assalariado foi, portanto, abolido na União Soviética. Se você sente que está a receber um salário, se tem medo de ser demitido, é porque se está a iludir. Felizmente a nossa pátria socialista tem centros de reabilitação e hospitais psiquiátricos!

Estaline admite que a produção de mercadorias e a divisão em empresas permanecem, mas não pode ser capitalismo porque o que constitui o capitalismo é que os meios de produção são propriedade de indivíduos. Tudo se resume a questões de definição jurídica. Basta que o Estado se proclame comunista para que o seja.

Dado que Estaline nos explicou tudo isto em “Os Problemas Económicos do Socialismo na U.S.S.R.” aqueles que analisaram a questão não trouxeram nada de novo.

Podemos ver em Mao Tse Tung ou em Fidel Castro partidários corajosos, políticos habilidosos. Podemos considerar que os chineses comem mais que os indianos e têm menos liberdades políticas que os japoneses. Mas tudo isto tem a ver com capitalismo.

III O FIM DA PROPRIEDADE

O comunismo é o fim da propriedade. A coisa é conhecida e gera muita preocupação. Alguns são inteiramente justificados. Proprietários de grandes propriedades, numerosas residências ricas... serão forçados a reduzir o seu estilo de vida. As fortunas industriais e comerciais desaparecerão. Os que serão expropriados, mesmo que hoje detenham grande parte da riqueza da sociedade, formam uma casta pequena e bem definida. Geralmente não atacaremos as pessoas, agiremos de acordo com a natureza dos bens. Tomaremos os castelos e deixaremos as cabanas, sejam elas dos pobres ou dos ricos! As preocupações que se insinuaram nos cérebros dos proletários e especialmente dos camponeses não são justificadas. O comunismo não consiste em tirar dos oprimidos o pouco que lhes resta. 18

O QUE É QUE É A PROPRIEDADE ?

A questão não é tão simples de resolver. Testemunhe a controvérsia entre Marx e Proudhon. Este último afirmou que “propriedade é roubo”. Proudhon compreende claramente que a origem da propriedade não é natural. É o produto de uma sociedade onde reinam as lutas pelo poder, a violência e a apropriação dos esforços dos outros. Só que, se dissermos que a propriedade é roubo, enquanto o roubo só é definido em relação à propriedade, estaremos a andar em círculos. O problema tornou-se ainda mais obscuro quando passamos da propriedade para a abolição da propriedade. Deveriam todos os bens ser abolidos, quer se trate de meios de produção ou de bens pessoais? Devemos agir selectivamente? Trata-se de substituir a propriedade privada pela propriedade colectiva ou estatal? Será uma questão de pôr fim radicalmente a toda a propriedade e como poderá ser isso?

O comunismo escolhe a última proposição. Não se trata de uma transferência de títulos de propriedade, mas sim do desaparecimento da própria propriedade. Na sociedade revolucionária não se pode “usar e abusar” da propriedade porque somos proprietários dela. Não haverá excepção a esta regra. Um prédio, um alfinete, um terreno não será mais de ninguém ou, se quiser, será de todos. A própria ideia de propriedade será rapidamente considerada absurda.

Será então que tudo será igual para todos? Será que o primeiro que chegar poderá desalojar-me, despir-me, tirar-me o pão da boca, já que não serei mais dono da minha casa, das minhas roupas ou da minha comida? Certamente que não, pelo contrário, a segurança material e emocional de todos será reforçada. Simplesmente não será o direito à propriedade que será invocado como protecção, mas directamente o interesse da pessoa em questão. Todos devem poder alimentar-se quando têm fome e quando lhes for conveniente, estar abrigados e vestidos. Todos deveriam poder ter paz de espírito. Alguns ideólogos querem apenas ver a propriedade como a extensão humana do território animal. Assim, a propriedade não é mais o facto de uma determinada época ou mesmo de uma espécie particular, mas de todo um ramo zoológico. Porém, nunca vimos uma raposa ou um urso alugar um território do qual é proprietário ou habitar uma toca da qual é apenas o simples inquilino! No entanto, isso é algo comum na nossa sociedade. É precisamente a propriedade que permite dissociar uso e posse.

O facto de um bem já não ser propriedade não dá qualquer indicação da utilização que dele se faz. Mas precisamente o uso reduz-se ao uso. Uma bicicleta será usada para se locomover e não apenas para o Sr. Dupont, o seu legítimo proprietário, se locomover. Saber se por razões sentimentais ou emocionais os seres humanos ou certos seres humanos precisam de um território fixo e de objectos aos quais possam se apegar não é uma questão de propriedade. Os higienistas podem ficar tranquilos: não sugerimos a partilha de escovas de dentes.

Opor-se ao individualismo e ao colectivismo, ao uso pessoal e social para tentar torná-los objecto de uma “escolha social” é de facto o cretinismo burguês. Deste ponto de vista, é absolutamente necessário ficar do lado da ferrovia contra o veículo individual. Os comunistas seriam pelas orgias colectivas e os burgueses pela masturbação! Nós não nos importamos 19

Este tipo de debate só pode ser resolvido com base em circunstâncias práticas. Em todo caso, não somos nós que acumulamos e despersonalizamos. Na situação actual, o direito à propriedade constitui uma garantia contra a destruição da vida pessoal. Esta é uma garantia muito insignificante. Não impede a passagem de ruído em edifícios com isolamento acústico insuficiente. Ele não pode fazer muito em relação à expropriação. O agricultor pode ser o proprietário da sua terra. Isso não impediu que o campo ficasse despovoado. Hoje, a terra permanece em pousio, as casas estão desabitadas, riquezas de todos os tipos são deixadas para trás. Tudo isso seria muito necessário. Infelizmente, os proprietários não querem ou, pior ainda, não podem usá-las ou transferi-las.

A noção de propriedade cobre uma realidade, mas é também uma mistificação. Você pode ser proprietário sem ser capaz de controlar verdadeiramente. A mentira é dupla. É social e económica. Também diz respeito às relações entre os homens e a natureza. Os direitos de propriedade são necessários para o capitalismo. A troca exige que as coisas fiquem claras. Você tem que saber, quando está no negócio, quem realmente tem os bens e quem não tem. Os costumes locais podem resolver a questão de como organizar e usar as coisas. Assim que essas coisas adquirem independência dos homens e podem passar de mão em mão, os costumes não são mais suficientes. Apenas restos dela permanecem no campo: direitos de passagem, abastecimento de água, colecta... As mercadorias e o capital precisam de um conjunto de regras válidas, independentemente da natureza particular da situação.

Na Idade Média, a propriedade da terra no sentido moderno não existia. Num determinado domínio exerciam-se os direitos dos servos, do senhor, do seu suserano da igreja... Até ao século XIX um certo número de regras continuou a limitar o poder do proprietário que só podia usufruir do primeiro corte de um prado , não tem o direito de cercá-lo, deve permitir a respiga e o pastoreio ocioso.

No mundo da igualdade burguesa, todos são proprietários livres. O camponês vem do seu campo, o patrão da sua fábrica, o operário da sua força de trabalho. Não há roubo, mas a pessoa enriquece e acumula desproporcionalmente ao que o seu próprio trabalho deveria permitir. A propriedade oculta relatórios de exploração.

Se o camponês que se torna “agricultor” é proprietário da parcela que cultiva, está ainda assim sujeito a preços cuja formação lhe escapa. Trabalhando constantemente, ele não consegue enriquecer. A propriedade não explica o poder da empresa capitalista. A empresa possui o capital fixo: edifícios, máquinas. Isto não tem em conta a importância da riqueza que lhe passa pelos dedos e que constitui o seu volume de negócios. A interpenetração da economia exige a limitação dos direitos de propriedade. Na verdade, o que fazemos em casa corre o risco de ter consequências infelizes para os nossos vizinhos. Você não pode descartar impunemente os seus resíduos num rio só porque possui parte do banco.

A natureza absoluta do direito à propriedade, é “inviolável e sagrado” segundo a Declaração dos Direitos Humanos, não conta com força e 20

caprichos da natureza. O proprietário mais determinado ficará indefeso se um vulcão entrar em erupção na sua casa. Ele pode pedir ajuda à polícia, mas isso não fará com que o intruso fuja. É uma regra geral que os objectos e fenómenos naturais não obedecem aos nossos olhos e dedos.

Como observa Niño Cochise, neto do grande Cochise, os homens brancos passam a vida a lutar pela terra. Contudo, não são os homens que podem possuir a terra, mas, pelo contrário, a terra que possui e nutre os homens. Ela acaba por enterrar todos eles um dia ou outro.

A QUESTÃO AGRÁRIA

A questão agrária está intimamente ligada à solução do problema da propriedade. É uma questão vital para a revolução. No passado, as insurreições operárias foram combatidas por exércitos camponeses. O contrário também aconteceu, como no México. O pequeno camponês sempre foi facilmente mobilizado pela contra-revolução em nome da defesa dos seus sagrados direitos de propriedade.

Nos países industrializados, o capital fez o trabalho que criticava os "vermelhos" por quererem fazer. Expulsou a maior parte dos camponeses das suas casas. Por conseguinte, já não pode contar com a sua massa assustada para formar o exército da contra-revolução. No entanto, o abastecimento de géneros alimentícios às cidades continua a depender do campo. O partido da ordem terá sempre o prazer de utilizar esta situação como arma contra a revolução.

Quando os trabalhadores agrícolas não são proprietários das terras que trabalham, mas são simples camponeses ou empregados de grandes explorações, organizam-se para continuar a ocupar-se da produção. Deixarão de ser responsáveis perante os seus antigos patrões. A terra pertencerá a quem a cultivar! Se o seu antigo patrão ou proprietário de terras quiser juntar-se a eles e ajudá-los com os seus conhecimentos e a sua força, isso será bom. Só o pode fazer em pé de igualdade.

Quando a propriedade e a exploração da terra coincidem, quando o agricultor tem poucos ou nenhuns empregados, o problema deve ser abordado de forma diferente. Isto é para o bem de toda a sociedade, que não pode passar facilmente sem agricultores descontentes. É para o bem do camponês, cuja condição se proletarizou, que depende do sistema capitalista para o seu abastecimento e escoamento, e que deve compreender que tem tudo a ganhar com a revolução comunista.

O desenvolvimento do capital foi contrário à agricultura. Induziu o trabalho e os recursos para a indústria. O comunismo inverterá a maré. A agricultura é a sua menina de ouro, porque diz directamente respeito à produção de alimentos e à preservação de um ambiente habitável. Duas coisas que o capital negligenciou particularmente.

A propriedade, familiar ou não, desaparecerá juntamente com o Estado e o sistema jurídico que a garantia. O uso e o hábito de cultivar um determinado pedaço de terra permanecerão e deverão mesmo ser garantidos pelas autoridades revolucionárias. É nesta base que os camponeses poderão reagrupar-se ou, se preferirem, continuar a cuidar das suas parcelas de forma isolada. É provável que, pelo menos durante algum tempo, combinem os dois métodos. Cada um permanecerá ligado à sua terra, mas ajudar-se-á mutuamente, mais do que actualmente, em certas tarefas e na venda dos seus produtos. A herança, no sentido estrito, desaparecerá, mas quem será mais qualificado e interessado em suceder a um agricultor do que o seu filho? A regra geral será deixar os agricultores organizarem a produção agrícola como entenderem. A coerção seria a pior solução e a mais dispendiosa.

A colectivização agrária praticada pelo capitalismo de Leste não tem nada a ver com o comunismo. Não foi por razões ideológicas que se procedeu à colectivização, mas por razões económicas e de classe. Tivemos de lutar contra o renascimento espontâneo da burguesia no campo. Os camponeses ricos estavam a enriquecer à custa dos camponeses pobres, praticando a usura. Isto criou um centro de acumulação de capital usurário em concorrência com o centro industrial em que se baseava a burocracia. Foi por isso que a colectivização agrária teve de ser imposta e paga.

Era dispendiosa. Inicialmente, na União Soviética, os camponeses resistiram, chegando mesmo a dizimar o gado. A longo prazo, as consequências foram a estagnação da produtividade agrícola devido à falta de interesse dos kolkhozianos. Esta situação conduziu a uma política oscilante em relação às parcelas de terra familiares. A colectivização contribuiu para manter os camponeses no campo, retirando-os da pressão económica directa. Este facto conduziu a uma menor pressão e concorrência no mercado de trabalho. A URSS conservou um número excepcionalmente elevado de camponeses em comparação com o seu nível industrial. Carrega-o como uma bola e uma corrente.

Ao renunciarmos à colectivização, estamos a renunciar à revolução e à comunização do campo? De modo algum! Muito pelo contrário! A revolução comunista é a liquidação da economia de mercado. Isto também diz respeito ao mundo rural.

O agricultor deixará de receber dinheiro pelo seu esforço, se for trabalhador por conta de outrem, ou pelos seus bens, se for trabalhador por conta própria. Ele fornecerá gratuitamente à sociedade o excedente da sua produção. Em contrapartida, não terão de pagar nada pelos bens necessários à sua subsistência e à sua actividade. Deixará de ser movido pelo desejo ou pela necessidade de dinheiro. Será movido directamente pelo interesse do seu trabalho, pelo amor do seu modo de vida ou pelo desejo de ser útil.

O agricultor verá a sua pena reduzida. Poderá recorrer a mão de obra externa para o ajudar. Isto será possível graças ao encerramento de toda uma série de empresas mais ou menos parasitárias e à redução da mão de obra na indústria e no sector terciário. Será possível suspender temporariamente certos tipos de produção aquando das grandes obras agrícolas para libertar mão de obra. Isto é impensável actualmente.

Não é apenas a produção que será transformada, mas também a distribuição. O trajecto entre o agricultor e o consumidor será reduzido ao máximo. Os produtos serão transportados directamente das explorações agrícolas para as cidades, pelos próprios agricultores. Quando se vê a diferença entre o preço 22 e o preço pago pelo consumidor, vê-se a vantagem desta simplificação.

Os agricultores efectuarão o trabalho de cultivo e de criação de gado, sozinhos ou com ajuda. Não o farão independentemente do resto da sociedade. Não lhes estamos a prometer liberdade absoluta. A agricultura é e continuará a ser dependente de outros sectores que não ela própria. A montante, tem os seus fornecedores de adubos e de equipamentos agrícolas. A sua independência é, portanto, necessariamente limitada neste domínio. Por outro lado, ocupa um lugar demasiado importante para que todos aqueles que dela dependem deixem de a observar.

Tomando um caso extremo: se alguns agricultores deixarem as suas terras e o seu gado ao abandono porque já não precisam de ganhar dinheiro, seria ingénuo pensar que outros se deixarão morrer à fome. Numa tal situação, seria possível retribuir cortando o abastecimento alimentar dos preguiçosos. Os agricultores devem poder manter as suas terras e viver confortavelmente com elas. Mas não se pode permitir que se tornem parasitas e, sobretudo, que monopolizem bens que outros poderiam utilizar.

A superação do fosso entre a cidade e o campo faz parte do programa revolucionário. Mas isso só pode ser feito muito gradualmente, porque a separação está inscrita na pedra e no betão. Não se pode acenar com uma varinha mágica e deslocar arranha-céus ou florestas. No entanto, as medidas para o conseguir podem ser implementadas rapidamente. Por exemplo, a deslocação temporária ou permanente das populações urbanas para o campo, onde podem ser criados pequenos centros industriais que complementem e, se possível, se articulem com as actividades agrícolas. Muitas pessoas que só deixaram o campo com relutância ou que não gostam da cidade terão todo o gosto em regressar. As hortas individuais e comunitárias multiplicar-se-ão e alegrarão os subúrbios e mesmo os centros urbanos. Para o efeito, será possível limpar os passeios inutilizados pela redução do tráfego automóvel. Isto facilitará a reciclagem de alguns resíduos domésticos, reduzirá os custos de transporte e fornecerá à população legumes frescos. Um dos defeitos da agricultura capitalista é o facto de, tendo-se afastado do consumidor e dos seus resíduos, ter de compensar o desequilíbrio produzido por insumos químicos ou biológicos cada vez maiores. Nestas hortas, as crianças, os idosos e os doentes, actualmente excluídos da produção e muitas vezes condenados ao tédio, poderão ocupar-se e sentir-se úteis. Será um óptimo local de aprendizagem para os jovens que abandonaram a escola. Por fim, regenerará o ar poluído!

DA PENÚRIA À ABUNDÂNCIA

O direito e o sentimento de propriedade desaparecerão na sociedade comunista porque a escassez desaparecerá. Deixará de ser necessário agarrarmo-nos a um objecto por medo de que, se o largarmos por um momento que seja, deixemos de poder usufruir dele.

Com que magia pretendem realizar esta fantástica era de abundância? Ironizam os burgueses. Não há magia nenhuma nisso. Nós vamos ser capazes de conjurar a abundância porque ela já está lá debaixo dos nossos 23 pés. Não se trata de a fazer nascer, mas simplesmente de a libertar. Foi o capital que tornou isso possível, dobrando os homens e a natureza sob o seu jugo durante séculos. Não é o comunismo que produzirá subitamente a abundância, mas o capitalismo que mantém artificialmente a escassez.

O enorme aumento da produtividade do trabalho pouco contribuiu até agora para mudar o destino do proletariado. Teve mesmo efeitos nefastos. O poder do capital destruiu as sociedades tradicionais do Terceiro Mundo sem dar às suas populações acesso ao mundo industrial. Este facto, combinado com um crescimento demográfico monstruoso, atirou uma grande parte da humanidade para a miséria total. O estatuto de escravo assalariado tornou-se um verdadeiro patamar acima do de vagabundo.

A energia nuclear e a electrónica foram inicialmente utilizadas como armas. Felizmente, o progresso científico fez-nos sair desses tempos bárbaros em que éramos obrigados a ver aqueles que matávamos e, por vezes, até nos salpicávamos com o seu sangue. Ugh! ! Mesmo os habitantes dos países "ricos", que beneficiam deste aumento de produtividade, estão a ser enganados. Os aumentos salariais e o aumento do consumo servem apenas para compensar a degradação das suas condições de vida. O facto de se possuir mais coisas, ou coisas mais sofisticadas do que antigamente, não significa que se viva melhor. O operário tem um carro que o seu pai não tinha. Mas o seu local de trabalho e o campo de fim de semana ficaram mais distantes. Perde em engarrafamentos o que ganhou em tempo de trabalho e em cansaço nervoso o que perdeu em esforço físico. O que a indústria concede com uma mão, as condições para o seu desenvolvimento já lhe foram retiradas com a outra. Vangloria-se da qualidade dos seus remédios, mas esquece-se de dizer que inocula a doença. Não é por acaso. A lógica da produção comercial pressupõe a manutenção de condições de insatisfação. O remédio precisa da doença. Na civilização, a escassez nasce da própria abundância, e a sociedade caminha num círculo vicioso. O ser humano é cada vez mais reduzido ao papel passivo de consumidor. O seu estado de morto-vivo é animado pela vida artificial das mercadorias. A sua miséria torna-se o reflexo multicolorido da felicidade exposta em cada montra e oferecida ao melhor preço.

Numa sociedade comunista, os bens serão gratuitos. As bases da organização social serão livres de dinheiro.

Como evitar que a riqueza seja monopolizada por alguns em detrimento de outros? Depois de um período de euforia, em que as pessoas se servirão das reservas existentes, não haverá o risco de a nossa sociedade resvalar para o desperdício e a desigualdade, antes de cair na desordem e no terror?

Estas preocupações não são apenas as de alguns privilegiados que têm interesse em manter o sistema. Exprimem também o ponto de vista dos oprimidos, amarrados pelo medo de que as convulsões sociais agravem a sua situação. Quando a tempestade chegar, não estarão os grandes mais bem equipados para a enfrentar do que os pequenos?

Numa sociedade comunista desenvolvida, as forças produtivas serão suficientes para satisfazer as necessidades. O desejo frenético e neurótico de consumir e acumular desaparecerá. Será absurdo querer fazê-lo 24

Não haverá mais dinheiro para meter ao bolso, nem mais empregados para contratar. Porquê acumular latas de feijão ou próteses dentárias que não se vão usar? Nesta fase, se restar alguma forma de constrangimento, não será na distribuição dos produtos mas na sua própria natureza, na obrigação imposta por valores de uso específicos. Algumas possibilidades serão inevitavelmente escolhidas e outras rejeitadas na fase de fabrico.

Quando a sociedade revolucionária emergir dos flancos do velho mundo, a situação será diferente. As autoridades revolucionárias, os conselhos operários, terão de definir e aplicar um certo número de regras que protejam contra o regresso dos hábitos e dos mecanismos do mercado. Talvez seja necessário limitar o número de latas de feijão ou de quilos de açúcar que cada pessoa pode ter em casa. É impossível dizer exactamente quanto tempo durará esta fase. Ela vai variar de acordo com o grau de pobreza de cada região. Dependerá da força e da determinação do partido revolucionário. Uma guerra provocada pelo partido do capital, que causaria danos à produção e aos transportes, só poderia prolongar esta fase de transição. Se considerarmos apenas o período necessário para a reconversão comunista das forças produtivas, ele pode ser muito curto. Basta ver a rapidez com que a economia americana se transformou numa economia de guerra durante a Segunda Guerra Mundial!

O comunismo transforma radicalmente o carácter de toda a produção e a natureza dos objectos produzidos. O desaparecimento do valor de troca repercute-se no valor de uso.

TRANSFORMAÇÃO DOS PRODUTOS

As mercadorias no mercado formam um conjunto extremamente hierarquizado. Não existe apenas um ou alguns produtos para uma determinada necessidade, mas uma multiplicidade de produtos da mesma marca ou de marcas concorrentes. O objectivo é, evidentemente, satisfazer o público e responder às suas diferentes necessidades. O cliente deve poder escolher! De facto, só tem a escolha que os seus meios financeiros e a sua função social lhe permitem. Muitos produtos satisfazem a mesma necessidade, mas diferem em termos de qualidade e de marca própria. É o caso das panelas, por exemplo. Diferentes produtos podem ser utilizados para diferentes fins. Mas estas diferentes utilizações não estão ao alcance dos mesmos indivíduos. Pessoas diferentes fazem o seu trabalho em aviões supersónicos e em bicicletas.

Esta hierarquização e diferenciação dos bens reflecte a concorrência entre grupos e a extrema desigualdade dos salários e das condições de vida no mundo capitalista. Deixou a sua marca no desenvolvimento industrial. As necessidades dos ricos desempenham um papel orientador. Bens como o automóvel perdem muito da sua qualidade de utilização quando deixam de ser privilégio de uma minoria e passam a ser propriedade de todos. 25

O comunismo não se propõe vestir todos com o mesmo uniforme e dar-lhes a mesma papa. Mas vai pôr fim a esta nociva diversificação e hierarquização dos produtos. Os novos bens, ainda pouco numerosos, serão primeiro utilizados colectivamente ou pelos primeiros que aparecerem.

No domínio do vestuário, podemos imaginar que, por um lado, será produzido um número reduzido mas suficiente de peças de qualidade para todos os tamanhos e todas as utilizações habituais. A produção em massa será tão automática quanto possível. Por outro lado, poderão ser abertas oficinas onde máquinas e tecidos poderão ser postos à disposição de quem quiser fazer roupas diferentes para si ou para os seus amigos.

A famosa liberdade do consumidor não é limitada apenas pelo número de ecus (combinações de produto – NdT). Pode pagar-se muito e mesmo assim ser-se enganado na qualidade. Se não se tem muito dinheiro, é quase certo que se recebe uma peça de lixo. O engano e a mercadoria andam de mãos dadas. É um passo curto do comerciante ao vigarista. Não importa se a vantagem é aparente, e não importa se é apenas aparente. O que outrora dependia da malícia do comerciante, o capital faz agora praticamente uma regra permanente. Produz a própria mercadoria. Pode, portanto, actuar no sentido de realçar a sua imagem em vez da sua qualidade real. Chegámos a um ponto em que os engenheiros calculam e determinam a deterioração necessária dos objectos. Não queremos entupir o mercado com produtos que duram demasiado tempo!

Além disso, quanto mais depressa o capital se transforma, quanto mais depressa volta a ser dinheiro, para voltar a perdê-lo quando se torna um bem tangível, mais rende. É reinvestido com um lucro acrescido. Esta tendência do capital leva-o a condenar as reservas improdutivas. Tudo tem de andar depressa. Mesmo os seus investimentos em edifícios e máquinas devem ser amortizados o mais rapidamente possível: representam dinheiro imobilizado. O capitalista sacrifica as possibilidades da técnica no altar da finança. Investe a curto prazo e não a longo prazo. Reduzem a qualidade e aumentam o custo dos produtos porque reduziram os investimentos nos meios de produção. A renovação rápida e as alterações superficiais das gamas de produtos são preferidas às alterações tecnológicas profundas do sistema de produção. O progresso técnico é conseguido, como mostra a história do capitalismo, mas é conseguido através de convulsões económicas e de enormes desperdícios.

Quando os produtos da actividade humana deixarem de assumir a forma de capital, não haverá razão para não constituir reservas. Elas garantirão a nossa segurança e aliviarão as exigências da produção e dos transportes, actuando como um amortecedor. A menos que a própria natureza dos produtos o imponha, a necessidade de pressa constante desaparecerá. Será possível planear a longo prazo e reunir forças para grandes investimentos a longo prazo. A tecnologia será orientada para o fabrico de objectos duradouros. Actualmente, os custos de deslocação das mercadorias são cada vez mais importantes e ultrapassam frequentemente os custos de produção reais. Por custos de deslocação entendemos não só o custo de deslocação 26, mas também os custos de embalagem, de marketing, de publicidade, etc. Uma grande parte destes custos não depende da natureza ou do local de utilização do produto. Trata-se da promoção do produto enquanto produto. Desaparecerá.

Também se podem fazer grandes poupanças nos custos de transporte. A crescente separação entre os locais de produção e de consumo não é alheia ao carácter capitalista do sistema. O transporte de mercadorias será simplificado. A multiplicidade de empresas e de intermediários desaparecerá.

Os custos de controlo e de vigilância do que pode ser roubado, e tudo o que tem a ver com o pagamento, deixarão de ser necessários.

Neste novo mundo, as pessoas não terão de pagar e contabilizar constantemente os alimentos, os transportes e as diversões. Rapidamente perderão o hábito. Isto dar-lhes-á a sensação de serem verdadeiramente livres. Sentir-se-ão em casa em todo o lado. Como não está constantemente a ser controlado, não se sentirá tentado a abusar. Não vale a pena mentir ou acumular quando se sabe que se terá o suficiente.

Pouco a pouco, o sentimento de posse desaparecerá. Em retrospectiva, parecerá algo bizarro e mesquinho. Porquê agarrar-se a um objecto ou a uma pessoa quando todo o universo é seu?

O novo homem estará mais próximo do seu antepassado caçador-recolector, que confiava na natureza para lhe fornecer o suficiente para viver, gratuitamente e muitas vezes em abundância, e que não se preocupava com um amanhã sobre o qual não tinha qualquer controlo. O homem de amanhã terá como natureza o mundo que moldou, e a abundância nascerá das suas próprias mãos. Ele será autoconfiante porque terá confiança na sua força e conhecerá os seus limites. Será despreocupado porque saberá que o amanhã lhe pertence. E a morte? Ela existe. Mas não vale a pena chorar por algo que é uma questão de necessidade. O importante é saber saborear o momento.

IV PARA ALÉM DO TRABALHO

O capitalismo tem revolucionado constantemente os meios de produção, mas tem sido incapaz de libertar e transformar verdadeiramente a actividade produtiva. O trabalho industrial significa a alienação mais extrema. O proletário, de fato-macaco ou camisa branca, está acorrentado à sua máquina ou à organização do seu trabalho. Perdeu a liberdade de apreciação e a margem de manobra que restava ao artesão e até ao servo e ao escravo. O carácter impessoal desta dominação não a tornou mais suportável.

O trabalho separou-se do resto da vida. Domina a vida através do cansaço e da estupefacção que gera e do salário que proporciona. Com o controlo do capital moderno sobre o conjunto da vida social, toda a existência acaba por ser regida pelos princípios do trabalho. A lógica do rendimento e da produção rege o tempo "livre". Tudo deve ser racionalizado e rentabilizado, incluindo o prazer e o desperdício! Todos têm 27 anos

Todos são cordialmente convidados a substituir o sistema no seu próprio condicionamento.

O comunismo é, antes de mais, uma transformação radical da actividade humana. Neste sentido, podemos falar de abolição do trabalho.

TRABALHO E TORTURA

Se há uma palavra que não é neutra, é trabalho.

Em francês e espanhol, deriva da palavra latina trepalium, que designava um instrumento de tortura que substituiu a cruz. Antes de assumir a sua simplificação moderna, foi primeiro utilizada para designar um trabalho particularmente árduo e, depois, um trabalho mineiro. Actualmente, o seu significado expandiu-se consideravelmente, mas as suas fronteiras continuam a ser pouco nítidas. Como que para lhe dar uma justificação natural, trabalho passou a designar fenómenos físicos.

Em inglês, a palavra tem origem numa actividade camponesa concreta. O que caracteriza o termo trabalho é precisamente o seu carácter abstracto. Já não se refere a uma actividade específica, mas à actividade e ao esforço em si mesmos. Já não plantamos couves, tecemos tecidos ou tratamos de ovelhas, trabalhamos. Cada trabalho vale por outro. O que conta é o tempo que se dedica a ele e o salário que se ganha. Como dizia Marx: "O tempo é tudo, o homem não é nada: é, no máximo, a carcaça do tempo". Não é a palavra trabalho que estamos a atacar, mas a realidade odiosa que ela encobre. Pouco importa que o termo permaneça ou desapareça. Se quiser permanecer, terá de sofrer uma profunda mudança de significado.

Talvez acabe por designar o auge do prazer! Na sociedade comunista, a actividade produtiva perderá o seu carácter estritamente produtivo. A obsessão da produção e do tempo perdido desaparecerá. O trabalho fundir-se-á no conjunto de uma vida transformada.

Tal mudança significa o fim da hierarquia, da divisão entre chefes e seguidores, da cisão entre decisão e execução, da oposição entre trabalho manual e intelectual. O homem deixará de ser dominado pelos produtos da sua actividade ou pelas suas ferramentas. A subjugação da natureza ao processo produtivo e a sua monopolização por grupos ou indivíduos desaparecerão.

Esta revolução será acompanhada de uma evolução tecnológica. É a própria natureza do desenvolvimento industrial que está em causa.

O carácter parasitário do capitalismo reflecte-se no facto de a vida social poder ser mantida através do encerramento de uma grande parte das empresas. A greve de Maio de 68 em França é um bom exemplo dos recursos de um país desenvolvido. Foi possível encerrar toda a indústria durante um mês sem grande impacto.

Pode haver falta de pão durante uma revolução. Mas isso não pode ser atribuído a uma falta de capacidade de produção. Deve-se a causas específicas. Isto não impediria de modo algum o encerramento das indústrias parasitárias. Pelo contrário, tornaria mais necessária a reconversão das forças para os sectores vitais. 28

Não podemos decidir antecipadamente e em pormenor o que será ou não eliminado. Estamos convencidos do papel sujo desempenhado pela indústria de guerra. Ela não terá mais razão de existir numa sociedade comunista desenvolvida. No entanto, não podemos decidir se ela deve ou não ser desenvolvida numa fase transitória!

Em todo o caso, as decisões não serão tomadas por comités de tecnocratas, mas directamente pelos operários envolvidos. A ameaça de perda de salário deixará de pesar na sua decisão!

Se alguns, por corporativismo ou por razões menos declaradas, se agarrarem a tarefas inúteis ou mesmo prejudiciais, serão responsabilizados perante todo o proletariado comunista. O direito de propriedade ou de livre determinação não servirá de pretexto para os polícias ou os financeiros que gostariam de ver perpetuada a rotina do seu pequeno trabalho habitual!

Tudo o que serve a finança e a máquina do Estado, que exige esforços árduos e significativos para satisfazer necessidades secundárias, será eliminado ou, pelo menos, profundamente transformado. Produtos ou "serviços" como o telefone e a electricidade, actualmente utilizados pelas empresas, poderiam ser em grande parte reorientados directamente para o consumo individual. Os edifícios e as máquinas poderiam mudar de utilização.

Muitas necessidades poderão ser satisfeitas com despesas sociais muito mais reduzidas. Os transportes, por exemplo, basear-se-ão numa utilização mais racional dos veículos individuais ou colectivos. Os condicionalismos de tempo serão muito mais flexíveis. A necessidade de deslocação será menos frequente.

Algumas actividades não desaparecerão verdadeiramente, mas serão profundamente transformadas. Na medida do possível, a educação escapará ao controlo dos especialistas. A impressão deixará de servir os grandes jornais diários e passará a servir uma multiplicidade de pequenos boletins informativos.

O princípio não será produzir por produzir e não lutar para manter a clientela, mas reduzir ao máximo os trabalhos industriais fastidiosos e desinteressantes. O encerramento dos sectores inúteis permitirá aligeirar e variar as tarefas produtivas que continuam a ser necessárias. As forças sociais libertadas poderão assumir novas actividades.

As crianças, os estudantes, os idosos e as donas de casa poderão participar nas actividades sociais na medida das suas capacidades, sem terem de competir no mercado de trabalho.

Estas transformações não são um luxo a que a revolução se deve permitir para atrair os relutantes. São imediatamente necessárias para combater e concentrar forças contra o partido do capital, que provavelmente ainda estará vivo durante algum tempo. 29

CIÊNCIA E AUTOMAÇÃO

Todas estas medidas dão-nos apenas uma vaga ideia do que se seguirá. O comunismo utilizará a base material que lhe foi legada pelo velho mundo. Acima de tudo, desenvolverá as realizações técnicas e científicas. Fá-lo-á rapidamente e melhor do que o capital.

Está na moda ficarmos extasiados com os progressos técnicos registados desde a última guerra mundial. Na realidade, deveríamos espantar-nos com a lentidão com que as descobertas científicas penetram na indústria. Antes de mais, a indústria caracteriza-se pela inércia. Progride quando "acidentes" históricos a obrigam a mudar de oferta ou de escoamento, modifica a sua base técnica quando as taxas de juro baixaram para sair do marasmo económico.

A indústria actual baseia-se no aperfeiçoamento de invenções e descobertas feitas há décadas. Por exemplo, os veículos que se baseiam no motor de combustão interna e na energia do petróleo, como os nossos automóveis de vanguarda, são verdadeiros fósseis em termos de possibilidades científicas. A indústria não foi capaz de desenvolver a automatização ou novas fontes de energia. Só o pode fazer se se tornar rentável do seu ponto de vista restrito.

O comunismo pode dar-se ao luxo de construir máquinas ou complexos industriais que não teriam sido rentáveis do ponto de vista de uma empresa capitalista ou mesmo de um Estado capitalista. Considerará que os progressos realizados valem a pena, não em termos de vantagem imediata. Mesmo assim, poderá muitas vezes encontrar essa vantagem imediata onde o capitalismo não a veria: melhoria da qualidade dos produtos, interesse pela investigação, melhoria das condições de trabalho.

Do ponto de vista do capitalismo, não é rentável fabricar um martelo pneumático silencioso enquanto o preço da máquina não for igual ou inferior ao de um martelo pneumático ruidoso. É indiferente que as economias realizadas se façam à custa de incómodos evidentes. O facto de, uma vez desenvolvida a sua produção, o martelo pneumático silencioso poder ser mais barato do que o martelo pneumático ruidoso não pode ser tido em conta no momento do seu lançamento. Por que razão há-de uma empresa arriscar a falência ou, pelo menos, fazer sacrifícios em nome do progresso técnico ou do humanismo? O comunismo não vai simplesmente substituir o capitalismo. Transformará a ciência e a técnica. De servos conscientes ou inconscientes do inferno industrial, passarão a ser instrumentos de libertação.

A ciência deixará de ser um sector separado da produção.

O capital tem uma necessidade vital de inovação. Não pode gerá-la directamente a partir do sector produtivo. Este último deve manter-se calmo e a imaginação não deve correr solta. Assim, a ciência desenvolveu-se por si só. Durante muito tempo, permaneceu marginal, obra de amadores. O capital, com uma necessidade mais premente dos seus serviços, teve de a tomar em mãos. Sob a égide do Estado e das empresas, a ciência tornou-se um investimento. Burocratizou-se, sob o jugo de mandarins e administradores. A liberdade criativa é mantida sob rédea curta. 30

Aos olhos do público, a ciência é uma fada, boa ou má. O cientista é o feiticeiro tornado assalariado. O que é o resultado de um pensamento crítico é visto como uma obra de magia.

A ideologia da produção recupera o que tinha de ceder à experimentação. A ciência aparece como o sector em que se produz uma mercadoria especial: o conhecimento. O conhecimento deixa de ser o resultado precário de uma investigação específica e passa a ser um produto sagrado oferecido à contemplação de uma massa de deficientes mentais.

É preciso libertar a iniciativa e a experimentação e torná-las acessíveis a todos. A ciência deve deixar de ser apanágio de uma casta de especialistas e voltar ao gosto pelo risco e pelo jogo, ao prazer da descoberta.

A "conquista" do espaço ilustrou as possibilidades da automatização e da electrónica. Agora é preciso aplicar toda esta tecnologia para transformar a nossa vida quotidiana. A automatização permite libertar o homem de tarefas fastidiosas e confiar às máquinas o que é seu.

Os primeiros passos em direcção a sistemas automáticos que, uma vez postos em funcionamento, funcionam e se regulam sem intervenção remontam ao tempo dos faraós. Eram utilizados para regular o Nilo. Nos tempos modernos, começam a florescer. Começamos a ver "fábricas" automáticas. Em 1784, por exemplo, este moinho perto de Filadélfia recebia o trigo e transformava-o em farinha sem intervenção manual. A par das máquinas automáticas de produção, surgem as máquinas de calcular. O telefone automático foi introduzido em 1881.

A automatização existe há muito tempo. É apenas uma forma extrema de maquinismo. Foi a electrónica que a tornou uma forma comum, se não a mais comum, de engenharia mecânica.

A electrónica combinada com o controlo de grandes fontes de energia tornou possível agir à distância e centralizar um grande número de operações.

A automatização não é apenas a possibilidade de confiar às máquinas as tarefas que o homem executa com relutância. É também, e talvez sobretudo, a possibilidade de fazer coisas que de outra forma nunca teriam sido possíveis. Torna possíveis operações que exigem reacções mais rápidas e cálculos mais complexos do que os que são possíveis para os seres humanos. As máquinas podem funcionar em condições impróprias para a vida. Sem a automatização, o desenvolvimento da energia nuclear ou a descoberta do espaço seriam empreendimentos impossíveis.

Aqueles que querem a revolução, mas não querem usar a ciência e a tecnologia amaldiçoadas, estão num impasse. A destruição maciça do nosso ambiente não é certamente independente das possibilidades técnicas, mas não podemos atribuir-lhes a culpa.

A energia nuclear e a tecnologia da informação podem ser muito perigosas. É um reflexo do seu poder. Mas isso só condena a sociedade que as utiliza de forma imprudente ou que as utiliza para reforçar o seu controlo sobre as pessoas.

Até agora, o capital só automatizou em pormenor. Isso não significa que possa ficar por aí. 31

A lógica do capital, a necessidade de manter ou recuperar uma taxa de lucro decente, deve obrigá-lo a ir mais longe. Isto não significa que a generalização da automatização seja compatível com a manutenção do sistema actual. O seu próprio princípio é contrário à sobrevivência de uma sociedade de classes: torna o proletário inútil. "A máquina automática... representa o equivalente económico exacto do trabalho escravo". (N. Wiener) O ponto extremo do desenvolvimento do maquinismo torna inúteis as máquinas humanas.

A solução é a revolução comunista ou a destruição do proletariado, que seria reduzido a uma camada de beneficiários da assistência social ou eliminado por completo. Os profetas da desgraça prevêem esta última hipótese. O nosso optimismo não se baseia no humanismo dos nossos dirigentes: A História demonstrou que o genocídio não os assusta. Acreditamos simplesmente que eles são incapazes de dominar a situação e de conduzir uma verdadeira política. Para o bem e para o mal, não somos governados por super-homens com visões poderosas, mas por imbecis, hábeis nas manobras mas incapazes de ter uma visão histórica dos acontecimentos. Eles próprios são parcialmente rejeitados do processo produtivo. O que é preciso é que o proletariado não se mostre demasiado estúpido.

A força do proletariado é imensa. A sua consciência dessa força é extremamente limitada. A classe operária sempre derivou o seu poder do seu lugar no aparelho produtivo. O início da automatização desse aparelho só veio reforçar esse poder. Pequenas fracções de operários e técnicos detêm um enorme poder nas suas mãos. É provável que as convulsões económicas lhes dêem o gosto de o utilizar.

A burguesia ou a burocracia não podem negar o proletariado sem se negarem a si próprias. Ela está acorrentada ao valor, isto é, ao trabalho humano que é a base desse valor. Não quer o progresso pelo progresso, mas pelo dinheiro. Se desenvolve o maquinismo, não é com o objectivo de se livrar dos operários demasiado indisciplinados. O proletariado não é simplesmente um instrumento da burguesia. É também a sua razão de ser. O capital (ou o trabalho) reduz o homem ao nível de uma máquina, mas não pode deixar de ser uma relação social entre classes.

SOCIEDADE DE CLASSES E ROBOTIZAÇÃO

Todas a sociedade de classes tendem a transformar os seres humanos em robôs, a reduzi-los a objectos cujos corpos e inteligência podem ser utilizados. Quando uma parte da sociedade já não trabalha para si própria, mas trabalha para alimentar outra parte da sociedade, isso significa que tem de fazer um esforço suplementar, mas sobretudo que a sua actividade muda de natureza. O que interessa ao senhor não é o prazer ou o desprazer, a alegria ou a dor do escravo, mas a sua produção. A sociedade de classes baseia-se na capacidade humana de produzir bens que podem ser separados do produtor e utilizados por outros. O ser humano deixa de ser um ser humano e passa a ser um instrumento. A própria capacidade humana de construir ferramentas e de pensar antecipadamente a produção é virada contra ele, transformando-o numa ferramenta! O explorador pode ser bom ou mau para o explorado. Nem todos os sentimentos são excluídos. 32

Melhor ainda, os sentimentos são necessários para lubrificar as rodas do sistema. Mas são um produto secundário e limitado do sistema. O explorador pode ser bom, mas não pode deixar de explorar. Pode ser sádico, mas não pode destruir o seu material humano. No entanto, quando o capitalismo atinge este ponto de barbárie, é movido pela necessidade económica. As classes dominantes do passado foram enxertadas em comunidades camponesas. O capital desfez essas comunidades para se submeter a um material humano mutilado e atomizado. Como uma mercadoria entre mercadorias, o proletário confronta-se com os seus concorrentes mecânicos no mercado dos "factores de produção". Nesta luta, a máquina vence gradualmente e reduz o seu lugar no processo de produção.

O comunismo inverte o carácter desta evolução. O homem deixará de competir com a máquina porque deixará de ser um factor de produção.

A utilização comunista da maquinaria significa a possibilidade de automatizar um número muito grande de actividades. Isto não significa que a chave da questão social esteja na automatização generalizada.

A abolição do trabalho assalariado não é a substituição do homem pela máquina, mas a transformação humana da actividade humana através das máquinas. Não se trata de reduzir gradual ou brutalmente a semana de trabalho de quarenta horas para zero, como propõem alguns pseudo-revolucionários. Um mundo em que uma indústria inteiramente automática, trabalhando uma matéria inesgotável, fornecesse imediatamente tudo o que é desejável, reduziria o homem a um estado vegetal. Seria um universo gelado, sem aventuras, porque tudo o que nele acontecesse estaria previamente programado.

Independentemente da fé que deposita na ciência, este mito é profundamente capitalista. Considera completa e natural a separação entre tempo de trabalho e tempo livre. Pretende reservar o inferno da produção às máquinas e o paraíso do consumo aos seres humanos. Dependendo do rigor com que se traça a linha, podemos acabar com um clube de férias permanente ou com um feto generalizado.

O comunismo é o fim da separação entre tempo de trabalho e tempo livre, entre produção e consumo, entre o que se vive e o que se experimenta.

A REMUNERAÇÃO

O desaparecimento do trabalho por conta de outrem é suficiente para abalar os alicerces da velha sociedade. Desaparece a obrigação de trabalhar para sobreviver. O trabalho deixa de ser um meio de ganhar a vida. Já não é um intermediário entre o homem e as suas necessidades. É a satisfação directa de uma necessidade. Por isso, deixa de ser trabalho. O impulso para agir deixa de aparecer como uma necessidade exterior ao indivíduo e torna-se uma necessidade interior: o desejo de se manter ocupado, o desejo de ser útil. A dissociação entre actividade e remuneração, se por remuneração não entendermos o prazer que essa actividade pode trazer em concreto, deve ser acompanhada de uma profunda transformação do indivíduo.

Exige que os indivíduos assumam a responsabilidade pelo que fazem. Exige o desenvolvimento da iniciativa e da inteligência, o desaparecimento do egoísmo e da mesquinhez.

Tornou-se habitual explicar todos os males da humanidade em termos da incorrigível natureza humana. É um facto conhecido: o homem é um lobo para o homem. Isto não explica nada, mas mostra o desprezo que o ser humano tem por si próprio. Reflecte o fatalismo desenvolvido pelo capital, que reduz o ser humano ao papel de espectador do seu próprio desenvolvimento.

Não é desejável manter qualquer forma de remuneração durante um período transitório, como propôs Marx, sob a forma de uma distribuição de cupões proporcionais às horas trabalhadas. Se o desenvolvimento das forças produtivas torna possível a revolução comunista, e ela é possível actualmente, a revolução comunista não pode adiar a aplicação plena dos seus princípios. Um sistema de cupões para remunerar e, portanto, obrigar o trabalho, ficaria aquém da revolta espontânea dos oprimidos, de todos aqueles que se levantam sem esperar poder, dinheiro ou recompensa. Contaria com a simpatia dos burocratas, dos gestores, de todos aqueles que preferem controlar e obrigar os outros a agir. Um tal sistema apenas restringiria aqueles que são a favor da acção e não conseguiria conquistar os seus opositores. Se é preciso obrigar alguém a fazer alguma coisa, preferimos o método do "pontapé no rabo". É mais franco e mais eficaz.

Não somos opositores irreconciliáveis da utilização de cupões. Seria absurdo permitir que os diamantes fossem distribuídos livremente! Nestes casos, os cupões seriam emitidos pelas autoridades competentes. No caso de bens relacionados com a produção, o vale seria emitido por um conselho de fábrica. No caso de medicamentos raros ou perigosos, seriam emitidos por hospitais ou médicos... Estes vales não serão utilizados para efectuar pagamentos. Desempenharão o mesmo papel que uma receita médica actualmente. A sua utilização será determinada pela natureza ou raridade dos bens pelos quais são "trocados".

O maior número possível de bens, nomeadamente alimentares, deve ser tornado livre e gratuito sob a égide dos comités e conselhos revolucionários nas zonas que passaram para as mãos do partido revolucionário, ou pela força nas zonas que não foram libertadas. Este é o método de distribuição mais simples, mais barato e mais agradável. É o mais susceptível de popularizar o comunismo. É preferível aplicar esta regra geral, mesmo que isso implique uma repressão severa dos abusos, do que ficar atolado em controlos minuciosos e desagradáveis durante a distribuição.

A PREGUIÇA

Um tal programa não favorecerá o desenvolvimento da preguiça? Se fosse possível abolir o princípio da remuneração do trabalho mantendo o mundo tal como ele é, isso seria certamente verdade. Mas o comunismo inverte todas as condições de vida e de trabalho.

O espírito revolucionário não é o espírito de sacrifício: todos se esquecem de si próprios para servir a colectividade. Isso é que é maoísmo! 34

O comunismo pressupõe um certo altruísmo, mas pressupõe também um certo egoísmo. Acima de tudo, não opõe o amor do próximo ao amor de si próprio, pedindo que um esteja ao serviço do outro. Não amamos os padres, tal como não amamos os especuladores. O capitalismo faz com que os interesses do indivíduo e os da colectividade estejam sempre em oposição: dar é renunciar.

O homem comunista não será mais o homem da renúncia do que o da fatalidade. A transformação das mentalidades não é uma questão de pedagogia. Não haverá uma imagem ideal a que se conformar. Não haverá transformação das estruturas sociais, por um lado, e transformação dos indivíduos, por outro. É o capitalismo que separa as coisas desta forma. O proletariado desalienar-se-á a si próprio e só o poderá fazer mudando o mundo e as suas condições de existência. Algumas semanas de revolução destruirão décadas de condicionamento. A cobardia, a ganância e a debilidade são o resultado de um determinado estado social. As cenouras, o bastão e a educação só podem servir para os reprimir se a situação que os gera e lhes dá uma certa utilidade não desaparecer. Com o comunismo, esses defeitos desaparecerão porque já não corresponderão a nada.

Se houvesse egoístas, preguiçosos incuráveis e incompetentes irremediáveis, isso não seria necessariamente muito grave. O inimigo mais poderoso dessas pessoas não é a repressão, mas o tédio. Eles fariam muita gente ceder. As pessoas são animais sociais. É preciso muita coragem para suportar o facto de ser inútil na comunidade em que se vive. Ainda hoje, o parasita e o egoísta têm de fingir para bem dos outros e de si próprios. Com a abolição do trabalho assalariado, será muito difícil iludir-se com a sua actividade. Cada um será julgado pelo que realmente faz e não pelo tempo que gasta.

O comunismo não exclui os conflitos entre indivíduos e entre grupos. Os aproveitadores arriscam-se a ser chamados à responsabilidade. Se os aturamos e engordamos, é porque queremos. Os comunistas não têm nada contra a preguiça saudável. A sociedade revolucionária não é um lugar para se esgotar. Os preguiçosos só são condenáveis se exigirem dos outros aquilo que recusam para si próprios. Os corajosos não devem deixar-se enganar, mas não devem pretender impor os seus gostos pessoais a toda a gente!

Se o trabalho forçado for substituído por uma actividade apaixonada, a maior parte das causas da preguiça sistemática desaparecerá. Desaparecerá também a irritação que o trabalhador sente em relação ao preguiçoso, que muitas vezes não passa de inveja disfarçada.

O preguiçoso de hoje não será necessariamente o preguiçoso de amanhã. Alguns dos que labutam e se esgotam sob o impulso do lucro precisarão da nossa benevolência. Outros, que parecem incapazes de se mexer, despertarão e tornar-se-ão selvagens.

Na sociedade comunista desenvolvida, a maquinaria dará ao homem um grande poder. Cada um poderá escolher o seu próprio ritmo de vida. Um esgotar-se-á em aventuras dispendiosas e gastará mais do que dá em troca à sociedade. O outro fará muito pouco e, no entanto, será a sociedade que estará em dívida. Não haverá contas de mercearia. 35

Uma vez desaparecido o interesse económico, não desaparecerá também o espírito de investigação e de invenção? Não se contentará toda a gente em fazer os seus pequenos trabalhos de rotina, mas nada mais? É um erro acreditar que a atracção pelo lucro e o espírito de investigação andam de mãos dadas. O empresário faz um pacto com a mentira e a ilusão. O cientista tem de as manter à distância. A ciência paga e a invenção paga, mas muitas vezes não são as mesmas pessoas que descobrem e embolsam. Mesmo no mundo capitalista, o motivo da paixão científica não é o dinheiro. A criatividade e a imaginação são aproveitadas para ganhar dinheiro.

DIVISÃO DO TRABALHO

Se não nos tornarmos preguiçosos, não haverá o risco de a nossa sociedade se afundar na desordem? Mesmo que haja uma boa vontade geral, será ela suficiente para resolver o problema da coordenação de todas as actividades? Não irão todos apressar-se a fazer o trabalho mais agradável e deixar os outros para trás, antes que as máquinas tenham tido tempo de o fazer? Em suma, cada um a fazer o que lhe apetece, seria um desastre!

A ideia de que a sociedade moderna é muito complexa e que essa complexidade é inevitável é muito difundida. Não se trata de uma mera ilusão. Os indivíduos sentem-se perdidos na selva capitalista. Não conseguem orientar-se e muito menos compreender como tudo funciona. É um erro pensar que esta impressão se aplica a todas as sociedades modernas. Não é necessariamente gerada pela multiplicidade de operações e situações que constituem o todo social. Resulta da distância entre a decisão e a coordenação, por um lado, e a acção, por outro.

Esta impressão de complexidade e de permanente desorientação gerada pela sociedade capitalista reflectiu-se nas descrições de um mundo socialista. Os socialistas acreditavam que o principal problema a resolver na sociedade futura seria o da planificação e da coordenação. Imaginaram uma "fábrica de planeamento" que faria o ponto da situação da economia e determinaria os coeficientes técnicos que ligam a produção de um produto à produção de outro: a quantidade de carvão necessária para produzir uma tonelada de aço, por exemplo. Esta fábrica proporia objectivos realizáveis e faria as revisões necessárias durante a execução. Os problemas da sociedade futura são vistos essencialmente do ponto de vista da gestão. (Chaulieu, Socialismo ou Barbárie, N° 22)

A sociedade comunista terá de resolver muitos problemas técnicos complexos. Mas estas questões não serão da responsabilidade de nenhum organismo em particular. Não se trata de tentar prever as formas que a actividade humana assumirá, mas de determinar o seu conteúdo. Não haverá necessidade de unificar ou gerir o que não está separado. O produtor individual estará tão preocupado com a sua própria actividade como com a sua ligação à totalidade das necessidades e possibilidades gerais.

Numa sociedade revolucionária, as relações entre as pessoas e entre os grupos de produtores serão simples e transparentes. 36

O medo da concorrência que obriga ao secretismo desaparecerá. O importante não é que todos cheguem a uma ciência universal e que todos os cérebros sejam uma "fábrica de projectos" em miniatura. De que serve saber de onde vem o minério que me serve de garfo! O que importa é que a informação necessária circule e esteja disponível.

Numa sociedade fluida onde o paroquialismo e o patriotismo corporativo desapareceram, onde as pessoas são versáteis, os indivíduos e os grupos orientar-se-ão de acordo com as necessidades da sociedade.

As necessidades sociais não serão impostas de fora através de um gabinete central: um comité ditatorial ou uma assembleia democrática. O indivíduo ou grupo não deve cumprir a sua consciência da situação se imaginarmos essa consciência como um simples reflexo de imperativos externos. É claro que agiremos de acordo com a nossa consciência das necessidades e possibilidades sociais, mas não independentemente dos nossos próprios gostos. Muitas vezes não haverá compromisso a ser feito. Primeiro sentimos as nossas próprias aspirações como uma necessidade social. Ficamos bastante tentados a remediar o que consideramos uma falta. Se tiver dificuldade em obter vinho e me faltar, não precisarei necessariamente de ir conhecer as curvas de produção num computador para saber que talvez deva ir cuidar das vinhas!

O homem comunista não separará o exercício dos seus gostos das suas repercussões sociais. Ele não se apressará em tarefas que já foram realizadas. De qualquer forma, seria estúpido pensar que todos serão padronizados e se deixarão levar pela moda para as mesmas ocupações.

A consciência do que será necessário para a sociedade será muito mais aguçada do que agora. Todos poderão ser informados e compreender o que funciona e o que não funciona, mesmo que não tenha repercussões directas para todos. Os computadores serão instrumentos essenciais para a circulação e interpretação da informação.

A organização geral da sociedade não necessita de um ou mais centros directores. Haverá talvez pessoas que estarão mais particularmente preocupadas com a recolha de informação, com o planeamento, mas não terão de desenvolver um plano no sentido imperativo do termo. Planear é querer ligar o futuro ao presente!

A coordenação não pode ser obra de uma determinada casta. Será realizado constantemente e em todos os níveis da sociedade. Os homens, já não separados por mil barreiras, consultar-se-ão espontaneamente.

Nem tudo será necessariamente tranquilo. Os conflitos serão inevitáveis. Mas o problema da revolução não é livrar a sociedade de todos os conflitos, gerar uma sociedade onde tudo seja harmonizado a priori. Certamente serão eliminadas certas formas de conflito, aquelas que opõem classes, nações... No mundo que queremos, as oposições têm tanto lugar como os acordos. A harmonização e o equilíbrio serão desenvolvidos através de debates e disputas.

A diferença fundamental com a situação actual é que cada um só empenhará as suas próprias forças na batalha. Não podemos evocar direitos abstractos desligados do mundo das oposições e das relações de poder concreto. 37

Não será mais possível recorrer a um órgão especial, como o exército ou a polícia, para que o direito à sua causa seja reconhecido.

O comunismo fará do conflito uma coisa normal e até necessária, desde que, obviamente, o interesse na questão não seja menor que o dano causado. O capitalismo é profundamente conflituoso. Baseia-se na oposição entre classes, nações e indivíduos. Todos estão em oposição a todos. É para afastar esta realidade que pregamos o amor feliz e a fraternidade. Há uma agressão monótona por toda a parte, mas a imagem da paz deve reinar. Se alguma vez nos separarmos, não será em nome de interesses particulares, mas para o bem da civilização, dos valores universais, etc.

Não corremos o risco de perder muito tempo em conversas e conflitos? Ao reduzir os problemas de coordenação e ajustamento ao nível em que se encontram, corremos o risco de ganhar alguns. A ideia de que o tempo é algo que pode ser perdido ou ganho é em si bastante surpreendente.

Do ponto de vista comunista, o problema não pode ser reduzido a saber qual o método que poupa mais tempo. O que importa é como preenchemos esse tempo. Teremos ou não prazer e interesse em discutir e harmonizar, ou preferiremos simplesmente aplicar sem discussão as decisões de um comité director que terá planeado a ausência de confrontos? Os homens reaprenderão a conversar e a discutir de maneira agradável. As discussões tediosas serão limitadas pelo tédio dos interlocutores, mas também pelo simples facto de que tudo não fará sentido e continuarão a trazer o assunto à tona. Podemos confiar na experiência passada.

TRABALHO DURO

Existem tarefas que são francamente dolorosas e desagradáveis. Podemos esperar reduzi-las através de maquinaria, mas teremos de cuidar delas primeiro e não se diz que tudo possa necessariamente ser eliminado.

Seria inaceitável e certamente não aceite pelos interessados ​​que este trabalho ingrato repousasse sobre os mesmos ombros. Será necessário, portanto, organizar-se para que o maior número possível de pessoas se revezem no cuidado dela. Será secundário perdermos rentabilidade.

Numa fábrica ou outro local de produção, podemos facilmente revezar-nos em posições desagradáveis.

Ao nível da sociedade como um todo, podemos pedir que estas tarefas ingratas também sejam sujeitas a rotação. Estaremos em serviço de recolha de lixo durante uma determinada parte do ano.

O trabalho árduo é muito menor se for a extensão e o preço de actividades prazerosas. Hoje, o trabalho está extremamente fragmentado e as necessidades de utilização “racional” da força de trabalho exigem que façamos aquilo para que estamos qualificados, deixando o resto para outros. Na sociedade comunista, o investigador poderá cuidar da limpeza das instalações que utiliza, o motorista poderá participar no asfaltamento das estradas e os mortos estarão em melhor posição para cuidar da escavação das suas sepulturas. 38

As actividades desagradáveis ​​serão muito menos desagradáveis ​​se aqueles que com elas lidam lhes dedicarem apenas uma pequena parte do seu tempo e não tiverem a impressão, como acontece agora, de estarem a elas acorrentados para o resto da vida. Acima de tudo, estas actividades podem ocorrer numa atmosfera completamente diferente da actual: sem mais pequenos chefes, sem mais obsessão pelo desempenho. A recolha de lixo poderia, por exemplo, assumir um aspecto carnavalesco.

Muitas actividades dolorosas tornam-se assim não por causa do seu próprio carácter, mas porque, em nome da racionalização do trabalho, são feitas para serem realizadas em série pelas mesmas pessoas. Estas transformações no ritmo, na distribuição e na própria natureza do trabalho não serão obviamente programadas antecipadamente e equilibradas a partir de cima. Elas serão realizadas no trabalho de acordo com os desejos das pessoas envolvidas. Se num canteiro de obras houver alguém apaixonado por carrinhos de mão ou qualquer outra tarefa geralmente impopular, seria obviamente um absurdo fazê-lo abrir mão dos seus gostos.

Não somos fanáticos pela igualdade. Seria imbecil, quando faltam cirurgiões, condená-los ao trabalho de auxiliares de enfermagem. Este tipo de desigualdade só pode ser mitigado pelo desenvolvimento da versatilidade e pela reconversão profissional das pessoas para sectores verdadeiramente úteis.

O FIM DAS DIVISÓRIAS

O comunismo significa o fim das divisórias que compartimentam as nossas vidas.

A vida profissional e a vida emocional deixam de se opor. Não há mais tempo para consumir e tempo para produzir. Escolas, locais de produção, centros de lazer não são mais universos distintos e estranhos. Eles desaparecem gradualmente com o desaparecimento da sua função especializada. Dentro do processo produtivo, a hierarquia e a divisão em segmentos da actividade humana estão a desaparecer. Este será o fim desta situação em que o operário é o executor do projectista, o projectista o executor do engenheiro, o engenheiro o executor das finanças ou da administração.

Concluir essas transformações levará tempo. Não podemos eliminar o nosso ambiente de vida, um certo tipo de desenvolvimento tecnológico, hábitos humanos e deficiências com o passar de uma esponja. Medidas neste sentido serão necessárias e farão sentir os seus efeitos assim que a produção de mercadorias e o trabalho assalariado forem abolidos.

A separação entre a vida profissional, por um lado, e a vida real e familiar, por outro, está ligada ao desenvolvimento do trabalho assalariado. O camponês viu-se arrancado da sua terra e da sua família para ser integrado no mundo industrial. No passado, a família constituía a unidade de vida e de produção. O marido e a mulher, mas também os filhos e os idosos, participavam nos trabalhos da quinta e dos campos. Todos consideravam as actividades úteis e dentro dos seus pontos fortes.

Os reaccionários gostam de se fazer passar por defensores da família ameaçada. Estes idiotas recusam-se a ver que é precisamente a ordem que defendem que a reduz ao papel marginal que se tornou seu. 39

Laços familiares eram elos de ajuda mútua a nível agrícola. Eles estendiam-se muito além do casal e dos seus descendentes directos. Hoje a família nada mais é do que o lugar onde os filhos são produzidos. E mesmo assim ! O seu papel económico é o de unidade de consumo. A instituição fundamental, a célula básica da sociedade capitalista desenvolvida, não é a família, é a empresa.

Não pretendemos reerguer a velha família patriarcal para garantir a produção no lugar da empresa capitalista. Os laços de sangue podem ter desempenhado um grande papel no passado. Eles já não correspondem a muita coisa no mundo moderno.

Na sociedade comunista, para realizar ou não uma actividade produtiva, as pessoas já não serão reunidas pela força do capital. Elas associar-se-ão unidas pelo gosto comum e pela afinidade. As relações entre as pessoas assumirão tanta importância quanto a própria produção.

Não afirmamos que os laços estrictamente românticos, por um lado, e as relações profissionais, por outro, coincidirão. Será uma questão de escolha e sorte. Mas isso será muito mais possível do que é actualmente.

Alguns querem ver no comunismo a união de mulheres e crianças. Isso é estupidez.

Os relacionamentos românticos não terão outra garantia senão o amor. Os filhos não ficarão mais apegados aos pais pela necessidade de comer. O sentimento de propriedade sobre as pessoas desaparecerá juntamente com o sentimento de propriedade sobre as coisas. Isto é muito preocupante para quem não se imagina a passar sem a garantia do polícia ou do padre. O casamento desaparecerá como sacramento de Estado. A questão de saber se duas... ou três ou dez pessoas querem viver juntas e até mesmo vincular-se por um pacto é só delas. Não temos de determinar ou limitar antecipadamente as formas possíveis e desejáveis ​​de ligação sexual. A castidade em si não deve ser rejeitada. É uma perversão tão estimável quanto qualquer outra! O que importa, além do prazer e da satisfação dos parceiros, é que os filhos cresçam num ambiente que atenda às suas necessidades de segurança material e emocional. Isto não é uma questão de moralidade.

Nos restos de uma família corrompida pela mercadoria, a hipocrisia domina. Ou atribui ao amor o que é apenas segurança económica, emocional ou sexual. As relações entre pais e filhos chegaram ao fundo do poço. Sob o véu da afeição o desejo de explorar responde ao desejo de possuir. A criança carrega as esperanças dos pais com vidas fracassadas como uma bola e uma corrente. Ela deve brincar de cão amestrado, ter sucesso na escola, ser sábio e calmo ou activo e cheio de iniciativa. Em troca recebe um pouco de carinho ou mesada.

Assim como a família, refúgio de segurança e amor num mundo duro e hostil, não escapa à realidade comercial, também os negócios não escapam à afectividade. A aparente simpatia e aperto de mão escondem desprezo, rivalidade e exploração. Toda a gente é linda, toda a gente  é fantástica, toda gente conversa, mas acima de tudo toda a gente se irrita.40

PRODUÇÃO E CONSUMO

A separação entre produção e consumo surge como uma divisão natural entre duas esferas muito distintas da vida social. Nada poderia estar mais longe da verdade. Isto tem um duplo propósito.

Em primeiro lugar, a fronteira entre o que se chama tempo de produção e tempo de consumo está a mudar do ponto de vista histórico e a confundir-se do ponto de vista ideológico. Em que categoria se enquadram a culinária e o desporto? Depende se são feitos por profissionais ou amadores. O que é decisivo não é a própria natureza da actividade: cozinhar é mais produtivo do que a triagem postal no sentido de ser uma acção de transformação material, do que o facto de ser assalariada ou não. Muitas actividades relacionadas com o consumo passaram para a produção. O astronauta ou o paciente que respira oxigénio engarrafado, a dona de casa que obtém café moído ou latas de comida participam nessa mudança de limites.

A divisão entre produção e consumo mascara a importância que o trabalho doméstico independente mantém no mundo moderno. Dá uma aparência fixa e natural a uma demarcação comovente e social.

Em segundo lugar, qualquer acto de produção é também e necessariamente um acto de consumo. Nós apenas transformamos a matéria de uma certa maneira e para um determinado propósito. Ao mesmo tempo que destruímos ou se queremos consumir certas coisas obtemo-las ou se queremos produzimos outras. O consumo é produtivo, a produção é consumidora. Produção e consumo são duas faces inseparáveis ​​da mesma moeda.

Os conceitos de produção e consumo não são neutros. Não podemos dizer que sejam burgueses. Mas a sociedade burguesa faz uso certo disso. Uma pereira não é burguesa porque produz peras. A noção de produção assume um caráter ideológico porque por baixo da ideia de geração e desapego escorregamos a de projecto e de consciência. Há confusão entre as duas coisas. Tudo acaba por ser interpretado em termos de produção. Uma galinha torna-se uma fábrica de ovos.

Mascaramos a continuidade do ciclo pelo qual o homem primitivo ou civilizado, capitalista ou comunista, modifica de maneira simples ou erudita, individual ou colectiva, irreversível ou temporária, no geral ou no detalhe o mundo que o rodeia e se transforma inseparavelmente. . O uso totalitário da noção de produção esconde a inserção radical e a dependência dos seres humanos em relação ao seu ambiente e às leis naturais. Interpretamos tudo em termos de dominação e uso. O homem produtor consciente e mestre propõe-se a conquistar a natureza. A omnipotência que a humanidade confiou à imagem divina ela atribui directamente à imagem que tem de si mesma. O comunismo não é a vitória da consciência sobre a inconsciência. Esta não é a fase em que, depois de se ter dedicado à produção das coisas, o homem poderá finalmente produzir-se, assumindo de alguma forma o lugar do criador divino. Querer que o homem se torne o seu próprio dono, assim como ele é dono do objecto que molda, é querer reunir o separado sob o signo de

produção e, portanto, separação. 41

O produtor não deixaria de ser um objecto, seria simplesmente o seu próprio objecto.

A divisão entre produção e consumo desaparece devido à separação muito concreta, mas arbitrária, do ponto de vista da natureza e da fisiologia, entre o tempo gasto para ganhar dinheiro e o tempo gasto para gastá-lo.

Para o homem comunista, consumir não se oporá a produzir porque não será antagónico cuidar de si e cuidar dos outros. Isso porque ao produzir para os outros, ao gastar para os outros, ele cria valores de uso que podem ser úteis para si mesmo. Por um lado, não produziremos sapatos e, por outro, seremos obrigados a comprá-los no mercado. Acima de tudo, a produção transformar-se-á e tornar-se-á criação, poesia, despesa. O grupo ou indivíduo expressar-se-á por meio do que faz. Neste aspecto, a revolução é a generalização da arte e a sua superação como sector comercial e separado.

Continuando a raciocinar do ponto de vista da oposição entre consumo e produção, podemos dizer que encontrando satisfação e prazer (ou em contraponto insatisfação e desprazer) no decorrer da sua actividade produtiva, o homem será um consumidor. O computador ou a espátula que ele usa não terá um valor fundamentalmente diferente do carro ou da comida que ele usa noutro momento.

O comunismo não é absolutamente a produção finalmente colocada ao serviço do consumidor, tal como o capitalismo não seria a ditadura da produção. Ao envolvermo-nos numa atividade, adquiriremos um certo poder. Até certo ponto poderemos dispor do fruto dos nossos esforços, dar ou recusar dar o que produzimos. Acima de tudo, ao fornecer um determinado bem ou serviço e ao fazê-lo assumir uma determinada forma, actuamos no campo de possibilidades da sociedade. A actividade dos utilizadores será determinada pela dos produtores. Não há razão para estes últimos abusarem de um poder que, em qualquer caso, não será um poder político ou separado, mas a simples expressão da utilidade das suas ocupações.

O “consumidor” não poderá censurar o produtor pela imperfeição do que faz em nome do dinheiro que não lhe dará em troca, mas simplesmente criticá-lo não por fora, mas por dentro. O que estará em causa será o seu trabalho conjunto caso participem no mesmo empreendimento. Se alguém não estiver satisfeito com o que está a ser feito ou com o que não está a ser feito, não poderá invocar os seus direitos abstractos de consumidor. Ele terá apenas que destacar a sua própria capacidade de fazer melhor ou pelo menos destacar as suas próprias contribuições. A revisão será apaixonada e positiva. Não pode ser obra de quem quer tirar sarro mas prefere não se envolver.

PRODUÇÃO E EDUCAÇÃO

A separação entre a vida produtiva, por um lado, e a educação, por outro, não é o resultado de uma necessidade. A sua razão de ser não reside na importância crescente dos conhecimentos a ingerir. Ou melhor, reside, mas é preciso compreender por que razão é necessário que o conhecimento deixe de ser o fruto directo da experiência. 42

A base desta cisão é que o proletário não deve poder ocupar-se de si próprio, do seu prazer ou da sua formação, enquanto produz. Esta separação, indispensável à sobrevivência do mundo económico, tem um custo muito elevado. Imobiliza nas escolas, nos centros de formação profissional e nas universidades uma grande parte da população, que poderia ser útil noutro lugar e divertir-se mais. Não permite uma adaptação adequada das capacidades humanas às necessidades das actividades a que deve conduzir. Esta formação na escola é completada por uma aprendizagem no local de trabalho, muitas vezes efectuada de forma clandestina.

A escola é apresentada como um serviço público que transcende as classes sociais. A sua utilidade é incontestável. Quem teria a audácia de ser o apóstolo da ignorância? Os espíritos esclarecidos atrevem-se a atacar o conteúdo da educação. Acusam-no de ser arcaico, divorciado da vida, um factor de subversão. Segundo os seus gostos, as crianças deveriam ser ensinadas a ler o Santo Evangelho, o Manifesto Comunista ou o Kamasutra.

Os extremistas começam a atacar a própria escola. Não em nome da sua eficácia nefasta, mas em nome da sua ineficácia. Atacam a escola para salvar a pedagogia.

É preciso aprender, e aprender sempre. Temos de engolir esta porcaria insípida a que chamamos cultura. O mundo é tão complexo! Não entendes? Então é preciso ir fazer uma reciclagem. Nunca as pessoas aprenderam tanto, nunca foram tão ignorantes sobre as suas próprias vidas. Estão sobrecarregadas, desorientadas pela massa de informação que sai das universidades, dos jornais e da televisão. A verdade nunca emergirá da acumulação de conhecimento mercantilizado. É uma forma morta de conhecimento, incapaz de compreender a vida porque a sua própria natureza é estar desligada da experiência e da vivência.

É na escola que se aprende a ler, a escrever e a fazer contas. Mas, acima de tudo, é na escola que se aprende a desistir. Aprende-se a suportar o tédio, a respeitar a autoridade, a ter sucesso contra os amigos, a esconder-se e a mentir. O presente é sacrificado no altar do futuro.

O comunismo é a descolonização da infância. Deixará de haver necessidade de uma instituição especial para as educar. Estamos preocupados com a forma como as crianças vão aprender a ler? Deveríamos preocupar-nos antes de sabermos como é que elas aprendem a falar.

As escolas dissociam e inculcam a dissociação entre o esforço ou a aprendizagem e a sua necessidade. O importante é que as crianças aprendam a ler porque precisam de aprender a ler, não para satisfazer a sua curiosidade ou o seu amor pelos livros. O resultado paradoxal é que, embora tenha diminuído o analfabetismo, sufocou ao mesmo tempo o gosto pela leitura e a verdadeira capacidade de ler na maioria das pessoas. Numa sociedade comunista, as crianças aprendem a ler e a escrever porque sentem a necessidade de aprender e de se exprimir. Como o mundo da criança não está separado do resto da vida social, será um imperativo para ela aprender. Fá-lo-á tão naturalmente como aprende a andar ou a falar. Não o fará apenas por si própria sozinha. 43

Encontrará os seus pais ou pessoas mais velhas que sabem mais do que ela para a ajudar. As dificuldades com que se depara ser-lhe-ão úteis. Ao ultrapassá-las, ela aprenderá a aprender. Não recebendo o conhecimento como um alimento pré-digerido da mão de um educador, ela habituar-se-á a ver e a ouvir, tornando-se capaz de desenvolver o conhecimento e de deduzir da sua experiência. Esta será a vingança da experiência sobre a programação académica ou extracurricular dos seres humanos.

As pessoas partilharão as suas experiências e comunicarão os seus conhecimentos umas às outras. Os lugares e os tempos que escolherem serão para sua própria conveniência. A forma da relação não será determinada antecipadamente. Dependerá do conteúdo da troca e do conhecimento recíproco dos intervenientes sobre o assunto em questão. Se 10 ou 10.000 pessoas esperam saber o que uma pessoa sabe, o mais simples será reinventar a aula.

O interesse moderno pela pedagogia reflecte o facto de não se poder impor um método a partir de um determinado conteúdo. Quando já não temos nada a dizer uns aos outros, quando o conteúdo do ensino se tornou permutável, então discutimos a forma de o dizer. É quando a sopa está má que nos interessamos pelo aspecto do prato.

O que aconteceria no mundo da produção capitalista se, de repente, os operários tivessem de facto o direito de experimentar e deixassem de ser julgados pela sua rentabilidade imediata? Muito rapidamente correriam o risco de se esquecerem da razão pela qual tinham sido contratados. Andariam à deriva de experiência em experiência. Não tendo nada a ver com a produção, rapidamente abandonariam a busca do desempenho em favor do seu próprio prazer. A alegria da descoberta e o entusiasmo da liberdade substituiriam a rotina e a repetição. Os contactos que se desenvolveriam entre os operários, sob o pretexto de melhorar a produção através da troca de experiências, correriam o risco de tomar um rumo diferente. Porque não ceder às alegrias da sabotagem colectiva, porque não organizar jogos, porque não reorganizar ou desviar a produção em benefício directo dos operários?

O princípio do trabalho assalariado impede que se confie nos operários para se submeterem às necessidades de uma produção que não lhes diz respeito. O mais alienado, o mais trabalhador, o mais servil dos assalariados não poderia sequer ser mantido neste declive escorregadio. O trabalhador não pode ser deixado à sua própria sorte no decurso da produção. Tem de ser tratado como um instrumento. Se lhes for permitido cuidar de si próprios, tomarão gosto por isso, enfrentando o capital que lhes nega o seu estatuto de seres humanos. A divisão capitalista entre produção e aprendizagem tem os seus limites.

É impossível dissociar completamente a produção, a educação e a experimentação. A produção, o trabalho mais estúpido, exige uma certa adaptação do trabalhador e a capacidade de fazer face a uma situação não planeada. Do mesmo modo, a educação mais abstracta tem de tomar a forma de certos "produtos", nem que seja um trabalho de exame. A necessidade de controlo externo repercute-se na produção. 44

Os alunos não são uma cera macia na qual se podem imprimir conhecimentos. Não aprenderiam nada se permanecessem completamente passivos. A aprendizagem não pode ser completamente separada da experimentação e da produção, mesmo que seja separada da esfera económica propriamente dita. A escola serve para enquadrar e limitar os conteúdos desta actividade e para a desligar da vida real. A educação funciona e perpetua-se graças aos princípios que reprime. O mesmo se aplica à aprendizagem da leitura ou à redacção de um ensaio. Esta última é a própria negação da comunicação. Os alunos devem aprender a exprimir-se por escrito, independentemente do que têm a dizer e a quem se dirigem. É um exercício completamente vazio. No entanto, se os alunos conseguirem escrever - e têm de o fazer - só o poderão fazer se colocarem alguma forma de comunicação. Tal como um operário que é obrigado a trabalhar só pode fazer o seu trabalho se participar nele até certo ponto. Ele nunca pode ser um mero executor, uma máquina.

O sistema de produção entrará em colapso se os trabalhadores deixarem de poder experimentar, ajudar e aconselhar-se mutuamente. A organização hierárquica do trabalho só pode sobreviver se as suas regras forem constantemente desrespeitadas. Impõe um quadro incontornável a estas ilegalidades e à actividade espontânea dos operários para evitar que se desenvolvam e se tornem verdadeiramente perigosas e subversivas.

V DINHEIRO E ESTIMATIVA DE CUSTOS

O comunismo é um mundo sem dinheiro. Mas o desaparecimento do dinheiro não significa o fim de qualquer estimativa de custos. As sociedades e as acções humanas, passadas e futuras, são obrigadas a enfrentar este problema, quer utilizem ou não signos monetários. Os critérios escolhidos para estas estimativas variam evidentemente em função do carácter profundo da sociedade.

O DINHEIRO

Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, quando as mercadorias se tornaram a forma geral de produto, o dinheiro aparece para todos como uma necessidade, embora nem todos tenham a mesma quantidade dele ou o utilizem da mesma forma. É quase tão necessário à vida humana e quase tão natural como o oxigénio. Será que podemos sobreviver sem dinheiro? Tanto os ricos como os pobres têm de sacar da carteira para satisfazer as suas necessidades mais essenciais ou os seus caprichos mais triviais.

O lugar objectivo, mas limitado, que o dinheiro ocupa é igualado pelo lugar subjectivo e fantástico que ocupa na consciência social. Toda a riqueza acaba por ser equiparada à riqueza monetária pelos servos da economia. O que não pode ser pago parece perder todo o valor, mesmo que seja o mais essencial dos bens da vida: o ar, a água, a luz do sol, os espermatozóides e as bolas de sabão. Paradoxalmente, esta era está a chegar ao fim, mas no sentido em que a economia triunfante está ocupada a dar a tudo um valor de mercado, a engarrafar água e a armazenar esperma. 45

Enquanto o cidadão comum se contenta em observar a omnipresença e a omnipotência do dinheiro e tenta tirar partido dos favores desta divindade caprichosa, os economistas ocupam-se em glorificá-la. O dinheiro não só é indispensável na sociedade actual - uma verdade baseada na experiência quotidiana e infelizmente incontestável - como é indispensável a qualquer vida social minimamente civilizada. A circulação do dinheiro é para o corpo social o que a circulação do sangue é para o corpo humano. A história do progresso é a história do progresso do dinheiro, desde a concha até ao cartão de crédito. Queres livrar a sociedade do dinheiro? Só podes ser um atrasado mental, um defensor do regresso à troca directa. É de notar, de passagem, que o capitalismo não só não eliminou o tão criticado sistema de trocas, como o reinventa constantemente, nomeadamente no comércio internacional.

O dinheiro torna-se um véu que acaba por ocultar a realidade económica. Já não há moinhos, engenheiros, esparguete... mas dólares ou rublos. A ilusão de que o controlo do dinheiro, da sua emissão, circulação e distribuição, corresponde a um controlo profundo desse conjunto de valores de uso que é a economia, está a instalar-se. Daí os retrocessos.

O dinheiro é muitas vezes contestado, mas o que está em causa não é tanto a sua existência como a parcimónia com que entra na carteira. Quanto mais é criticado, mais é exigido. Se quisermos quebrar o bezerro de ouro e erradicar a idolatria, é melhor termos bolsos fundos para sermos eficazes. É possível escolher entre o vício do trabalho, o risco de assalto, os perigos da lotaria...

Apesar dos economistas, o dinheiro é uma coisa estranha. Isso é evidente, desde que deixemos de nos concentrar na sua inegável utilidade económica e nos concentremos na sua utilidade humana.

Tentemos ser ingénuos.

Como é que é possível, por que magia infernal, que a riqueza, a possibilidade de satisfazer necessidades, se tenha materializado no dinheiro? Se tivesse de assumir uma forma particular para se manter visível para nós e nos recordar dela, poderia, seguindo o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ter escolhido o pão e o vinho, que são coisas úteis e agradáveis. Mas não! Preferiu tomar a forma de ouro e prata, dois dos metais mais raros e inúteis. Pior ainda, hoje em dia, o dinheiro só está disponível para o comum dos mortais sob a forma de papel.

A única necessidade do dinheiro é a troca. Desaparecerá com o desaparecimento da troca.

É monstruoso querer abolir o dinheiro preservando a troca ou querer que a troca seja finalmente igual. No início do século XIX, os socialistas ricardianos propunham que as mercadorias fossem trocadas directamente em função da quantidade de trabalho consagrada à sua produção. Em 1919, os bolcheviques Bukharin e Preobrazhensky propagavam ilusões semelhantes: 46

"Desde o início da Revolução Socialista, o dinheiro perdeu gradualmente o seu valor. Todas as empresas nacionalizadas, como a empresa de um único grande patrão... têm um fundo comum e já não precisam de comprar ou vender em troca de dinheiro. A troca sem dinheiro é assim gradualmente introduzida. O dinheiro foi assim retirado do domínio da economia popular. Mesmo para os camponeses, o dinheiro perdeu lentamente o seu valor e foi substituído pela troca directa... A abolição do dinheiro foi ainda mais incentivada pela emissão de grandes quantidades de papel-moeda pelo Estado... Mas o golpe decisivo será dado ao dinheiro pela introdução de livros de trabalho e pelo pagamento dos operários por meio de produtos." (O ABC do Comunismo).

Houve tentativas de desmonetizar, pelo menos parcialmente, a economia. As transacções entre empresas foram traduzidas apenas em operações contabilísticas. Não deu em nada, nem muito famoso, nem muito comunista.

SAUDAÇÕES

No mundo comunista, as mercadorias circularão sem que o dinheiro tenha de circular no sentido inverso. O equilíbrio não será estabelecido ao nível da família ou da empresa: o que sai em mercadorias corresponde à entrada de dinheiro e vice-versa. Será estabelecido directamente a nível mundial e será medido directamente em termos de satisfação das necessidades.

Evidentemente, o fim da troca não significa que as crianças deixarão de poder trocar berlindes e quadros, ou elogios amorosos. As trocas limitadas continuarão em pequena escala. Especialmente no início, complementarão a rede de distribuição geral e remediarão a sua rigidez.

A melhor indicação de que o segredo do dinheiro não reside na sua natureza material é o facto de os padrões monetários terem mudado com o tempo e o lugar. O sal e o gado podem ter desempenhado esse papel. Os metais preciosos, e o ouro em particular, acabaram por ser seleccionados com base na sua própria inutilidade. Em tempo de escassez, o ouro não pode ser retirado da circulação para ser consumido. Quando o ouro é retirado da circulação para ser entesourado ou utilizado como ornamento, é com base no seu valor económico. As suas qualidades, e sobretudo a sua raridade particular, fizeram dele a mercadoria preferida num certo nível de desenvolvimento económico. Nos primeiros tempos do sistema mercantil, o sal era utilizado como moeda devido à sua utilidade e ao facto de se encontrar concentrado em determinados locais. Era o objecto de circulação por excelência.

Actualmente, o dinheiro tende a desmaterializar-se. Já não é garantida pelo valor do seu meio, mas pelo banco e pelo sistema financeiro que a controlam e manipulam. Não deixa de ser um meio de troca, mas torna-se sobretudo um instrumento ao serviço do capital. Isto permite recuperá-lo e utilizá-lo da melhor forma possível para financiar investimentos, para dar crédito ao capital.

Destruir o dinheiro não significa queimar as notas, confiscar ou dissolver o ouro. Estas medidas podem ser necessárias por razões simbólicas e psicológicas, para desorganizar o sistema. 47

Mas não são suficientes. O dinheiro reaparecerá sob outras formas se a necessidade e a possibilidade de dinheiro persistirem. O trigo, as sardinhas enlatadas, o açúcar... podem tornar-se meios de troca e até de salário. "Fazes este trabalho, dão-te dez quilos de açúcar com os quais podes comprar carne, álcool ou um chapéu de palha". O problema é, antes de mais, a luta pela produção, pela organização, contra a escassez. Depois, a aplicação de medidas dissuasivas e repressivas contra aqueles que procuram aproveitar o período de conversão para praticar o mercado negro. O ouro e outros materiais preciosos seriam requisitados pelas autoridades revolucionárias, eventualmente para serem trocados por armas ou alimentos com sectores não controlados.

O dinheiro é a expressão da riqueza, mas da riqueza de mercado. Não é a satisfação directa das necessidades, mas o meio de as satisfazer. Por conseguinte, é também a barreira que separa os indivíduos das suas próprias necessidades.

As aspirações das pessoas são um reflexo das coisas e dos bens que as confrontam. Ter necessidades e satisfazê-las significa querer e poder comprar e consumir. Neste jogo, só podemos ser enganados. A riqueza, a verdadeira felicidade, só pode ser e deve continuar a ser uma miragem inatingível.

LEI DO VALOR

O dinheiro é utilizado para efectuar trocas. Mas o dinheiro também significa medida. O que o dinheiro mede na troca, o preço de uma mercadoria, tem origem fora da esfera da troca. Como se estabelece o equilíbrio no sistema capitalista entre o que é produzido e o que é consumido? Entre o esforço e o benefício? Como é que estas escolhas se tornam mais racionais?

O problema está em cada mercadoria individual. É tanto o valor de uso como o valor de troca. O valor de uso é o benefício que é suposto trazer. O consumidor deve apreciá-lo directamente. O valor de troca, expresso em termos de preço, corresponde à despesa necessária para compensar esse benefício. Despesas monetárias para o comprador, mas sobretudo e inicialmente despesas de mão de obra.

O preço de um bem é determinado pelas forças do mercado, pela oferta e pela procura. Mas, para além disso, refere-se ao custo de produção, que se decompõe no trabalho imediatamente fornecido e no trabalho contido nos materiais utilizados para a produção.

Cada mercadoria exprime assim a necessidade de um equilíbrio entre a despesa e o ganho social, que se reflecte na necessidade de equilíbrio financeiro das empresas e das famílias. A necessidade de equilíbrio, mas não o equilíbrio em si! O preço de um bem só corresponde, de forma distorcida, à quantidade de trabalho real efectivamente despendido e mesmo à quantidade de trabalho socialmente necessário.

O equilíbrio não se dá ao nível da mercadoria em particular, mas ao nível do sistema como um todo. E aqui este equilíbrio é antes uma espécie de desequilíbrio. 48

O preço de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho que contém? Sim e não. Sim, porque o preço tende a variar em função dos ganhos de produtividade, porque um produto que requer o dobro do tempo de outro é susceptível de custar o dobro, porque a massa global de trabalho determina o valor global da mercadoria. Não, porque não podemos estabelecer uma relação absoluta e simples entre cada mercadoria e o trabalho despendido. Devido aos caprichos do mercado. Isto porque, se o preço de uma mercadoria fosse efectivamente determinado pelo trabalho efectivamente despendido, quanto mais baixa fosse a produtividade, quanto mais preguiçosos fossem os operários, mais cara seria a mercadoria! Na realidade, quem tem preços de custo elevados é penalizado e não favorecido. Os vencedores são aqueles que poupam nos custos de produção e na mão de obra. Isto acontece porque a formação dos preços é afectada pela tendência para igualar as taxas de lucro.

O que é feito da lei do valor trabalho, herdada dos economistas clássicos, que afirma que o valor das coisas económicas é determinado pelo trabalho? Esta lei é uma lei geral que determina a evolução geral do sistema através da formação dos preços. O capital desenvolve-se e distribui-se em função das economias de tempo de trabalho que pode realizar. Tal como um rio, mesmo que o seu caminho não seja o mais curto, mesmo que se perca em becos sem saída, mesmo que faça desvios, acaba por seguir cegamente o seu declive natural, eliminando os obstáculos à medida que avança. A expectativa de lucro que leva o capitalista a investir aqui ou ali, a escolher esta técnica ou aquela maquinaria, longe de contrariar esta tendência, é apenas o caminho tortuoso através do qual ela se impõe a ele.

No fim de contas, a lei do valor exprime não tanto a ligação entre a mercadoria e o seu preço, por um lado, e o trabalho criador, por outro, mas a sua dissociação. Quando o trabalho se torna valor, isso significa que a obra de arte se liberta do trabalho e do trabalhador e flutua no espaço económico de acordo com as suas próprias regras. Todas as mercadorias, agora autónomas e concorrentes, acabam por se medir umas às outras através da troca e do dinheiro. A lei do valor, cujo desenvolvimento está ligado à troca e ao seu domínio sobre a actividade humana, desaparece com o comunismo.

O que é que acontece com o equilíbrio global entre despesas e receitas do sistema? Este equilíbrio é um desequilíbrio. Do ponto de vista do valor, a sociedade produz mais do que gasta. O excedente acumula-se. Sem ele, o capital não seria capital. Marx mostrou que existe uma mercadoria especial que tem o dom de produzir mais valor do que a sua produção exige. Isto explica porque é que o capital em movimento aumenta em vez de permanecer o mesmo de transação para transação.

E quanto ao equilíbrio global entre despesas e receitas dentro do sistema? Este equilíbrio é um desequilíbrio. Do ponto de vista do valor, a sociedade produz mais do que gasta. O excedente acumula-se. Sem este capital não haveria capital. Marx mostrou que havia uma mercadoria especial que tinha o dom de produzir mais valor do que a sua produção exigia. Isto explica por que o capital em movimento aumenta em vez de permanecer igual a si mesmo de transação para transação. Essa mercadoria é a força de trabalho, o seu preço inferior ao valor que ela gera é o salário. A diferença é o valor acrescentado. O operário não vende o seu trabalho no que é falsamente chamado de “mercado de trabalho”, mas sim a sua capacidade de trabalhar, parte do seu tempo. O trabalho não é uma mercadoria, não tem valor. É a base do valor. Ela própria, diz Engels, não tem mais valor do que a gravidade tem o peso. 49

Quando o capital sai da esfera da circulação para entrar no covil do capitalista, ele aumenta a partir do trabalho não remunerado do operário sem que a lei do valor seja desprezada, sem que o lucro surja de qualquer fraude ou distorção das regras de troca. Cada capital-mercadoria pode ser decomposto em capital constante, que corresponde à depreciação dos materiais e máquinas utilizadas, em capital variável, que corresponde aos salários, ou em mais-valia ou valor acrescentado, que corresponde ao trabalho não remunerado. O dinheiro carrega uma profunda mistificação. Esconde a natureza original da despesa que verdadeiramente gerou o produto. Por trás da riqueza, mesmo da riqueza comercial, está a natureza e o esforço humano. O dinheiro parece produzir juros, para torná-los pequenos. A única fonte de valor, por mais comercializável que seja, e melhor ainda, precisamente porque é comercializável, é o trabalho.

É claro que os economistas mais servis atribuem um pequeno local de trabalho como fonte de riqueza, juntamente com o capital e a terra. Contudo, a mistificação não é sequer parcialmente abolida. Não é para trabalhar como tal que se concede esse favor, é para trabalhar como contrapartida pelo salário. Não é o dinheiro que é trazido de volta ao trabalho, mas, pelo contrário, o trabalho que é trazido de volta ao dinheiro através dos salários.

GRATUITIDADE

Do desaparecimento do dinheiro na sociedade comunista somos muitas vezes tentados a concluir que já não haverá problemas de custos para resolver, que já não será necessário estimar o valor das coisas.

Este é um erro fundamental.

Uma coisa é que qualquer bem ou serviço seja gratuito. Que não custa nada é outra. A ilusão vem directamente do funcionamento do sistema de mercado. Somos levados a equiparar custo e pagamento. Vemos apenas o pagamento, o gasto monetário. Esquecemos o dispêndio de esforços e materiais que está na origem do produto.

Tanto para o capitalismo como para o comunismo, a gratuidade não significa ausência de despesas. A diferença entre a gratuidade comunista e a gratuidade capitalista é que esta última é apenas uma falsa gratuidade. O pagamento não é inexistente, é simplesmente diferido ou transferido. O facto de a escola e a publicidade serem gratuitas não significa que estejam fora do sistema de mercado e que o consumidor não seja, em última análise, o pagador. Mercadoria gratuita é muito perversa. Significa consumo imposto ou semi-imposto, dificuldade em escolher e recusar o que lhe é “oferecido”.

Na nova sociedade o custo das coisas deve ser conhecido e, se necessário, calculado. Não por mania contábil ou para evitar enganos que se tornaram inúteis. Isto implicará ter em conta o gasto causado para saber se é justificado e reduzi-lo se possível. É necessário avaliar o impacto positivo ou negativo que a satisfação de uma necessidade ou a implementação de um projecto provoca no ambiente humano e natural. 50

Será que uma agulha ou um carro justificam o tempo e o esforço dedicados à sua produção e as desvantagens associadas à sua utilização? É melhor montar uma unidade de produção neste ou naquele local? Essa produção justifica a redução dos stocks limitados de minerais? Não podemos deixar isso ao acaso ou à intuição. É fácil compreender que tudo isso envolve estimativa, cálculo e previsão.

Se mantivermos a noção de custo tão carregada de economia é porque não se trata simplesmente de uma questão de escolha e medição, de um processo intelectual, mas de gasto físico. Qualquer que seja o nível técnico alcançado, haverá actividades dispendiosas e tarefas mais difíceis que outras. Que tudo se tornasse fácil e indiferente seria algo triste e mais estranho a uma sociedade comunista do que a outra.

A mercadoria tem dupla face: valor de uso e valor de troca. Eles parecem cair em duas ordens irredutíveis.

Valor de uso, a utilidade é qualitativa. O usuário compara e avalia o que mais lhe agrada, um avião ou uma laranja. A escolha não pode ser independente da situação e das necessidades concretas.

O valor de troca é quantitativo. As mercadorias são todas avaliadas e encomendadas de forma objectiva e de acordo com um único padrão, seja um avião ou uma laranja.

O comunismo não é tanto um mundo onde um valor de uso é perpetuado, finalmente libertado do valor de troca que o parasita, mas um mundo onde o valor de troca é negado e se torna novamente valor de uso. Vantagem e desvantagem estão na mesma ordem de coisas e não estão mais unidas e separadas costas com costas. O valor deixa de ser valor para reaparecer como uma despesa concreta e diversificada. O trabalho deixa de ser fundamento e garantia de valor. Já não existe um padrão único que permita comparações quantitativas entre tudo, excepto despesas concretas e trabalhos, diferentemente difíceis, que devem ser levados em consideração. Ao deixar de ser o suporte do valor e ser unificado pelo processo de troca, o trabalho deixa de ser TRABALHO. “A economia burguesa é uma economia dual. O indivíduo burguês não é um homem, mas uma casa de negócios. Queremos destruir todas as casas comerciais. Queremos eliminar a economia dupla e criar uma economia única, que a história já conhecia na época em que o troglodita saiu para colher tantos cocos quantos tivesse companheiros na caverna, tendo as mãos como único instrumento.” (Bordiga, Propriedade e Capital)

Haverá de graça porque o “presente” substituirá a venda. Quem realiza esta ou aquela tarefa com o objectivo de se satisfazer directamente ou também de ser útil aos outros pagará directamente pelo esforço realizado.

Isso é muito novo? Não, pois ainda hoje ninguém pensaria em cobrar o preço da saliva por uma discussão. Numa conversa não trocamos um certo tempo de fala ou uma certa quantidade de decibéis, esforçamo-nos para dizer o que temos a dizer porque acreditamos que temos que dizer. O orador ou ouvinte não lhe deve nada em troca da sua atenção. A esperança de uma resposta, o risco de enfrentar a incompreensão, o silêncio, a mentira fazem parte do jogo, não são a expectativa de pagamento nem o risco do mercado. Na vida quotidiana, a fala não é uma mercadoria, falar não é trabalho. 51

O que ainda se aplica hoje à fala, quando não é gravada e distribuída como mercadoria, aplicar-se-á amanhã a toda a produção. A estimativa de custos não estará mais separada do esforço a ser realizado. O pré-requisito, o primeiro passo do cálculo será o impulso que conduzirá a esta ou aquela actividade. Um livro ou um sapato serão “presenteados” como as palavras podem ser hoje. A dádiva implica reciprocidade até certo ponto, a palavra pede a resposta, mas este não é mais o processo anónimo e antagónico da troca.

TEMPOS DE TRABALHO

Tendo o economista oficial da burguesia inglesa Ricardo defendido no início do século XIX que o valor de um produto dependia da quantidade de trabalho necessária à sua produção, não faltaram pessoas para exigir que o operário recebesse a totalidade do valor do seu produto. O lucro foi moralmente condenado como roubo. O problema do socialismo é o da remuneração, da remuneração justa.

Um comunista americano F. Bray sobe mais alto. Ele vê na troca igualitária não a solução, mas um meio de preparar a solução que é a comunidade de bens. É necessário um período de transição em que ninguém que ganhe mais do que o valor do seu trabalho possa ficar muito rico. Todos receberão nas lojas o equivalente em vários objectos ao que produziram de outra forma. O equilíbrio será mantido entre produção e consumo.

Em “Miséria da Filosofia”, Marx homenageia Bray, mas também o critica. Ou mesmo a troca igualitária leva de volta ao capitalismo: “Sr. Bray não vê que esta relação igualitária, este ideal correctivo, que ele gostaria de aplicar ao mundo, é em si apenas um reflexo do mundo actual, e que é, portanto, completamente impossível reconstituir a sociedade numa que seja apenas uma sociedade embelezada. À medida que a sombra volta a ser corpo, percebemos que esse corpo, longe de ser a tão sonhada transfiguração, é o corpo actual da sociedade. Ou terminamos com a troca: “O que hoje é o resultado do capital e da competição dos operários entre si, será amanhã, se eliminarmos a relação do trabalho com o capital, o facto de uma convenção baseada na razão da soma de forças produtivas à soma das necessidades existentes. Mas tal convenção é a condenação da troca individual..."

Sem querer recorrer à troca, certos revolucionários, Marx e Engels em primeiro lugar, compreenderam a necessidade imperiosa de resolver o problema dos custos e da sua contabilização na sociedade futura. Eles procuraram um padrão para estimar e comparar despesas.

Regularmente o padrão proposto tem sido a quantidade de trabalho. Esta quantidade é medida pelo tempo, às vezes corrigida pela intensidade. Qualquer investimento da empresa pode assim ser reduzido a um determinado gasto de tempo. A laranja e o avião já não correspondem a uma determinada quantidade de moeda, mas a um determinado número de horas de trabalho. Apesar das suas diferenças de natureza, eles podem ser comparados na mesma escala. 52

Essa maneira de fazer as coisas parece lógica. O que pode haver de comum entre os diferentes bens senão o trabalho que eles contêm? Foi aqui que Marx começou, em O Capital, a descobrir o trabalho como fonte de valor. Que outro padrão encontrar?

Marx e Engels adoptaram esta concepção sem se prenderem a detalhes práticos. Outros procuraram desenvolvê-lo mais detalhadamente, baseando-o numa contabilização precisa das horas de trabalho que permite avaliar o valor de cada bem.

Pela nossa parte, não mencionámos um “além do trabalho” e depois apressámo-nos miseravelmente a medi-lo através do tempo de trabalho quando se trata de enfrentar as duras realidades práticas.

A teoria de medir bens ou prever investimentos pela quantidade de trabalho é falsa. Deve ser radicalmente rejeitada. Isto não é uma disputa sobre método, mas um problema fundamental que diz respeito à própria natureza do comunismo.

A medição por trabalho permanece economicista. Ela quer o fim da lei do valor, mas não vê tudo o que isso implica. A sociedade capitalista tende a perpetuar-se ao mesmo tempo que se livra da divisão de classes e do valor de troca!

Queríamos resolver um problema com dois aspectos. A primeira é a da remuneração dos operários. A segunda, mais geral, diz respeito à distribuição das forças produtivas no campo social.

Como distribuir bens de consumo sem dinheiro? Como podemos recompensar de forma justa o operário com base no esforço realizado?

Sobre este assunto, Marx retoma o ponto de vista de Bray em “A Crítica ao Programa de Gotha”. Isso livra-o dos seus lados irritantes. Num período transitório em que o princípio “a cada um segundo as suas necessidades” ainda não pode ser aplicado, a remuneração dependerá do trabalho prestado. Dependerá e não será igual porque parte do que este trabalho representa terá que ir para um fundo social para ser destinado à produção de bens produtivos, à ajuda aos desamparados... O operário não pode tocar no produto integrante do seu trabalho. Além disso, os vouchers que atestam a quantidade de trabalho prestado pelo operário que não circula na bolsa são cortados pela raiz.

Isso significa que precisamos manter contas. “...o trabalho, para servir de medida, deve ser calculado em função da duração ou da intensidade, caso contrário deixaria de ser um padrão de medida.” (Crítica...)

Para Marx, o problema da remuneração é incidental e limitado à fase inferior do comunismo. Pelo contrário, a questão da distribuição das forças produtivas é fundamental e permanente.

Numa sociedade comunista “o capital monetário desaparece primeiro, ao mesmo tempo que a farsa das transacções (económicas) que se segue. O problema reduz-se simplesmente à necessidade de a sociedade calcular antecipadamente a quantidade de trabalho, de meios de produção e de meios de subsistência que pode, sem o menor prejuízo, atribuir a empresas (a construção de caminhos-de-ferro, por exemplo) que não fornecem nem meios de produção, nem meios de subsistência, nem efeito útil de qualquer espécie, por um longo período, um ano ou mais, ao mesmo tempo que exige que trabalho e meios de produção e subsistência sejam retirados da produção total”. (Capital, II) 53

Calcular a quantidade de trabalho necessário não significa, contudo, que a lei do valor possa ser perpetuada enquanto o capital monetário desaparece. Na verdade, a quantidade de trabalho é distribuída de acordo com as necessidades. Em “Miséria da Filosofia”, Marx escreve: “Numa sociedade futura, onde o antagonismo de classes tivesse cessado, o uso não seria mais determinado pelo tempo mínimo de produção; mas o tempo de produção que seria dedicado a um objecto seria determinado pelo seu grau de utilidade.

A lei do valor é apenas uma expressão particular e mercantil de uma regra mais geral que se aplica a toda a sociedade: "na realidade, nenhum tipo de sociedade pode impedir que a produção seja regulada, de uma forma ou de outra, pelo tempo de trabalho disponível da empresa . Mas, enquanto esta fixação do horário de trabalho não se realizar sob o controlo consciente da sociedade - o que só pode ser feito sob o regime da propriedade comum - mas através do movimento dos preços das mercadorias, a tese apresentada com tanta precisão em Les Annales Franco-Allemandes permanece inteiramente válida.” Isto é o que Marx escreveu a Engels em 8 de Janeiro de 1868. Qual foi a tese apresentada por este último? “Eu disse já em 1844 (...) que esta avaliação do efeito útil e do dispêndio de trabalho é tudo o que, numa sociedade comunista, poderia sobreviver do conceito de valor da economia política. Mas estabelecer esta tese cientificamente, como vemos, só se tornou possível graças ao Capital de Marx.” (Anti-Dühring)

O que Marx e Engels nos dizem sobre a sociedade comunista – e vemos que falam sobre isso! — decorre directamente da sua análise da sociedade capitalista. O seu design atrai as suas qualidades, mas também os seus defeitos.

As qualidades são para mostrar que os problemas de distribuição do consumo e remuneração do trabalho não são fundamentais. É o modo de produção que determina o modo de distribuição. Afirmar contra as boas almas que o operário não poderá receber a totalidade do produto, do seu trabalho, amplia directamente uma análise do capitalismo onde mostramos que o valor de uma mercadoria abrange, além do salário e da mais-valia , o capital constante. Devemos produzir os instrumentos de produção. O capitalismo e o comunismo são sociedades equipadas, ao contrário das sociedades anteriores.

O capitalismo e o comunismo também estão a mudar as sociedades.

Não podemos contar com experiências imemoriais. Nem tudo é resolvido antecipadamente pelo uso passado, possivelmente corrigido pelo bom senso. A estimativa de custos não é tanto um problema de contabilidade posterior, mas sim um problema de previsão. Neste ponto fundamental haverá um certo retrocesso entre os comunistas depois de Marx. Alguns conselheiros reduzirão a questão à fotografia mais precisa possível da realidade e dos movimentos económicos.

A passagem seguinte mostra como, para Marx, a sociedade actual e a sociedade futura devem resolver o MESMO problema, a primeira graças ao capital monetário, o crédito, a segunda, prescindindo dele. “... operações bastante extensas e de longo prazo resultam em adiantamentos de capital monetário mais importante, por mais tempo. 54

Nessas esferas, a produção depende, portanto, dos limites dentro dos quais o capitalista individual possui capital monetário. Esta barreira é quebrada graças ao crédito e ao sistema associativo que o acompanha, por exemplo, as sociedades por acções. As perturbações no mercado da prata irão, consequentemente, paralisar tais negócios, enquanto estas, por sua vez, causarão perturbações no mercado da prata. Com base na produção socializada, é necessário determinar em que escala estas operações, que durante um tempo bastante longo extraem força de trabalho e meios de produção sem proporcionar durante esse tempo qualquer efeito útil sob a forma de produto, poderão ser realizadas sem prejudicar os ramos de produção que não se limitam, continuamente ou várias vezes ao ano, à extracção de força de trabalho e meios de produção, mas também fornecem subsistência e meios de produção. Na produção socializada, tal como na produção capitalista, os operários em sectores com períodos de trabalho relativamente curtos apenas adquirirão produtos, sem fornecer outros produtos em troca, por períodos de tempo relativamente curtos; por outro lado, em sectores com longos períodos de trabalho, levarão produtos continuamente durante um período bastante longo, antes de devolverem algo. Esta circunstância resulta, portanto, das condições objectivas do processo de trabalho considerado, e não da sua forma social.

Marx e Engels colocam o comunismo demasiado como uma extensão do capitalismo. Esta é a falha deles.

Mantêm a separação burguesa entre a esfera da produção e a esfera do consumo. O Manifesto já distingue entre propriedade colectiva dos meios de produção e apropriação pessoal de bens de consumo. Juramos aí que só queremos socializar o que já é propriedade comum e social: os instrumentos de produção capitalista. Na Crítica ao Programa de Gotha continuamos a opor-nos ao consumo individual e familiar proporcional ao tempo de trabalho prestado e ao consumo produtivo e social. Não nos detemos em como este último será gerido.

Há confusão entre o método de distribuição dos produtos e a sua natureza como “bens de consumo” ou instrumentos de produção. De um lado estão os indivíduos e do outro a sociedade concebida de forma abstracta. Existem indivíduos isolados, em grupos, em comunidades que se enfrentam e se organizam.

Na realidade, quando desaparece o Estado ou o líder empresarial como representante do “interesse geral”, desaparece a Sociedade que se opõe ao indivíduo. Só existem homens isolados, em grupos, em comunidades que se organizam desta ou daquela forma. Um indivíduo pode receber uma máquina-ferramenta e um comité de bairro algumas toneladas de batatas.

A separação entre a força de trabalho, os indivíduos separados, por um lado, e o capital social e colectivo, por outro, desaparece. A necessidade de remuneração durante um período de transição não pode ser invocada para a manter. Pelo contrário, é a defesa desta necessidade que é em Bray ou em Marx o reflexo dos limites de uma época, da imaturidade do comunismo.

Apesar das observações críticas e relevantes, Marx continua dominado pelo fetichismo do tempo. Ou ele faz disso um instrumento de medição económico, ou se o torna um instrumento de medição extra-económico: “A verdadeira riqueza significa, de facto, o desenvolvimento da força produtiva de todos os indivíduos. A partir daí, não é mais o tempo de trabalho, mas o tempo disponível que mede a riqueza.” (Grundrisse)

O tempo de trabalho é a base do tempo livre. O reino da liberdade só pode basear-se no reino da necessidade. 55

O erro é não continuar a ver necessidade, sacrifício, produção na nova sociedade. O erro é juntar tudo isto, afixar o rótulo “tempo de trabalho” a ser reduzido se possível e opor-lhe geralmente ao tempo livre. Marx diz na Crítica do Programa de Gotha que o trabalho um dia se tornará a necessidade primária. A fórmula não deixou de ser explorada de forma odiosa pelos líderes estalinistas. De qualquer forma, há uma contradição. O trabalho na sociedade comunista torna-se uma despesa ou uma satisfação? Devemos, portanto, reduzir o tempo de trabalho ao mínimo ou, pelo contrário, produzir o máximo de trabalho possível para satisfazer a procura? Somente na sociedade capitalista o trabalho pode aparecer como a necessidade primária, como o único meio de satisfazer os outros. Só aí ele pode ser odiado e exigido ao mesmo tempo.

FANTÁSTICO

É uma coisa fantástica de medir pelo tempo de trabalho.

Querer medir qualquer actividade produtiva pelo tempo que ela requer é querer medir e comparar todos os líquidos apenas pelo seu volume. É claro que qualquer actividade leva um certo tempo, assim como qualquer líquido ocupa um certo volume. Isto não é sem importância. Uma garrafa de um litro de água também pode conter um litro de vinho. Mas quem se atreveria a deduzir disto que uma garrafa de água vale em todas as circunstâncias uma garrafa de vinho, álcool, xarope de granadina ou ácido clorídrico. Isto só pode ser válido do ponto de vista restrito de quem os armazena.

O tempo é a única linguagem objectiva em que o esforço criativo do servo ou do operário pode ser expresso, do ponto de vista do explorador. Significa medição externa, controle e antagonismo. A duração e a intensidade da actividade superam a sua natureza e o seu particular árduo que tende a tornar-se indiferente. A subjectividade do que é vivenciado é sacrificada em benefício da objectividade da medição. A criação e a vida estão sujeitas à produção e à repetição.

A medição pelo tempo é anterior ao sistema de mercado. Em vez de fornecer esta ou aquela quantidade deste ou daquele produto, o explorado coloca uma certa parte do seu tempo à disposição do explorador. Daí as tarefas dos tempos feudais. O processo é notavelmente desenvolvido com o sistema Inca. Aqui está um grande império agrário unificado por uma burocracia onde o dinheiro é desconhecido.

Os serviços são prestados sob a forma de dias de trabalho passados ​​​​nesta ou naquela área. Isto requer uma contabilidade cuidadosa.

Nas comunidades camponesas ou aldeãs, um faz o dia da colheita para o outro e vice-versa. O camponês e o ferreiro trocam os seus produtos com base no tempo de produção. 56

A actividade da criança é avaliada como uma proporção da actividade do adulto. Podemos perceber nessas práticas a origem do uso do tempo como padrão universal e até mesmo da submissão do planeta à economia comercial. Mas apenas a origem. Com estas práticas marginais trata-se mais de ajuda mútua do que de troca. As actividades medidas são da mesma natureza ou praticamente comparáveis. A medição por tempo não é independente do conteúdo medido.

Foi com o duplo desenvolvimento do sistema mercantil e da divisão do trabalho que a medição pelo tempo começou a adquirir o seu carácter fantástico. Torna-se desvinculado do conteúdo da actividade à medida que esta se diversifica.

O movimento acentua-se quando a troca entra na esfera da produção. A medição por tempo está a desenvolver-se em linha com a tendência de economia de tempo de trabalho. Você tem que produzir o máximo possível no menor tempo possível. A possibilidade de medição pelo tempo não é independente da compressão da actividade humana no menor volume temporal possível. Não só o trabalho produz a mercadoria, mas a mercadoria produz trabalho através do despotismo fabril.

Ao fazê-lo, a medição pelo tempo já não aparece na sua ingenuidade, fica velada atrás do dinheiro e é justificada pelas necessidades financeiras. Os ideólogos burgueses, especialmente aqueles que afirmam ser S. Marx, projectam este fetichismo do tempo e da produção em toda a história humana. Nada mais é do que uma luta constante para ganhar tempo. Se os selvagens permaneceram selvagens é porque dominados pela sua baixa produtividade não encontraram o tempo necessário para acumular excedentes. O tempo é escasso, devemos espremer a actividade mais densa possível.

Longe de pensar apenas em poupar tempo, os selvagens preferem concentrar-se nos meios mais eficazes de desperdiçá-lo. Frequentemente, eles têm um carácter indiferente. Além de algumas ferramentas de caça, eles pouco se preocupam em deixar de lado as suas propriedades.

No século XVIII, Adam Smith renunciou a basear o valor no tempo de trabalho no que diz respeito aos tempos modernos. Mas ele vê esse valor do trabalho em ação nessas sociedades primitivas, onde as coisas ainda não se complicaram.

Ele imagina que os caçadores querem trocar os seus diferentes jogos. Com que base poderão fazê-lo senão com base no tempo de trabalho, com base no tempo necessário para capturar os animais? Isto pressupõe uma mentalidade económica e de troca onde reinam as regras de partilha e os laços recíprocos.

Admitamos, porém, que a troca já exista ou que os nossos selvagens tenham decidido gastar racionalmente as suas forças para adquirir carne ao menor custo. Eles construirão o seu sistema com base no tempo de trabalho necessário?

Existem prazeres e riscos na caça sobre os quais o tempo gasto nada diz. Qual é o valor de uma comparação entre o leão e o antílope com base na duração da caçada, independentemente da diferença de risco? Algumas vezes a caça pode ser mais lenta mas mais segura, menos cansativa, menos perigosa, menos ou mais cruel. 57

Será que eles persistiriam em praticar esse método de medição, não é mesmo? É muito difícil avaliar com precisão o tempo que leva para matar este ou aquele animal. Ao caçar sistematicamente a carne mais rentável deste ponto de vista restrito, corremos o risco de alterar rapidamente a situação e o tempo de caça necessário. De qualquer forma, muitas vezes vamos caçar veados e trazemos coelhos. Não adianta programar o que não pode ser programado.

Iremos dizer-nos que isto já não se aplica aos nossos tempos civilizados e educados, que a caça é uma actividade produtiva muito particular? Devemos desiludir-nos. É a omnipresença da troca que nos esconde a realidade. A medição do tempo de trabalho não ultrapassa os perigos, os riscos humanos e o esgotamento de recursos. Estes problemas não são específicos dos selvagens, mas de todas as sociedades. Reprimidas pela lógica do capital, elas ressurgem com força.

A medição por tempo leva em conta apenas indirectamente as repercussões sobre o meio ambiente e a dificuldade da actividade. Podemos utilizá-lo com o comunismo, traduzindo para a sua linguagem a modificação ou destruição de uma paisagem, o esgotamento de uma mina, a produção de oxigénio de uma floresta? As vantagens ou desvantagens adicionais de uma produção seriam estimadas pelo tempo de trabalho virtualmente poupado ou virtualmente gasto. É ir além do capitalismo no absurdo, querendo aberta e conscientemente reduzir valores de uso, qualidades a valores de trabalho. Como avaliar o valor de uma paisagem, devemos considerar os gastos necessários para reconstruí-la cuidadosamente? A esse preço, não seria mais lucrativo muita coisa.

Para estimar o valor diferente de dois períodos iguais de trabalho cujos riscos ou dificuldades são diferentes, devemos compará-los na mesma escala? Uma hora de alvenaria custaria tanto quanto uma hora e meia de carpintaria. Ou estimamos que a diferença corresponde ao dispêndio de tempo necessário para cuidar do pedreiro, lavar a sua roupa, etc., ou desistimos de reduzir tudo a um dispêndio de tempo de trabalho, mas então como estabelecer os coeficientes que expressam as diferenças de valor ou dificuldade que existam entre as obras. Além disso, por que querer estabelecer coeficientes objectivos quando essas diferenças dependem das condições e do ritmo da actividade e do gosto dos participantes?

Deixe os operários enlouquecerem e os defensores da medição do tempo ou da remuneração baseada nas horas de trabalho correm o risco de se verem sobrecarregados. Assim que a actividade deixar de ser comprimida, mudará a sua natureza e expandir-se-á. A quantidade e o carácter da produção não podem mais ser avaliados com base na duração do trabalho consumido. Quem fica pouco tempo ainda produzirá o suficiente, quem passa o dia ali fará pouco. Se a remuneração fosse baseada no tempo trabalhado, teria de exigir guardas sérios ou tornar-se-ia rapidamente um incentivo à preguiça.

Que os operários concordem em garantir uma determinada produção ou dedicar um certo número de horas por dia às tarefas produtivas é uma questão de organização prática que não está directamente ligada à determinação do custo daquilo que produzem. Numa fábrica podemos gastar o dobro do tempo que noutra para fabricar objectos cujo custo será o mesmo. 58

Certamente podemos falar da distribuição social do tempo de trabalho disponível para a comunidade. Mas não devemos esquecer que o tempo não é um material que possa ser distribuído ao acaso. São homens que irão para este ou aquele lugar, cuidarão desta ou daquela tarefa. A partir do momento em que o tempo disponível não for extraordinariamente escasso e destinado à satisfação de necessidades absolutamente necessárias, haverá tarefas mais urgentes que outras, homens com mais pressa que outros.

Do capital devemos dissociar o preço, o gasto da força de trabalho e o que ela traz, o trabalho que não tem valor. Esta dissociação perde o sentido com o comunismo. Não podemos mais separar força de trabalho e trabalho, o homem e a sua actividade.

Isto significa antes de mais nada que não haja mais valor acrescentado, mesmo que seja apropriado para a comunidade, obtemos uma nova forma de excedente social. Não podemos mais falar de acumulação, nem de expansão que não seja em magnitude física. Falar de acumulação socialista é absurdo, mesmo que a certa altura produzamos mais aço ou bananas do que antes, mesmo que dediquemos mais tempo social à produção. Esses movimentos não se traduzem mais em valor ou mesmo em tempo gasto.

Isto significa então que o trabalho que não tem valor no capitalismo adquire valor no comunismo. Este valor que ele adquire não é moral nem comercial. Não significa elogiar o trabalho mas, pelo contrário, expressar a sua superação.

O trabalho, fonte de valor, é invariante. Nós o salvamos, mas a sua identidade não está em causa. Com o comunismo, esta ou aquela actividade já não se distingue da dor vivida pelos homens que a praticam. Nem todo o trabalho tem o mesmo custo humano. Trata-se de desenvolver os mais baratos.

Na sociedade capitalista, se deixarmos o ponto de vista do capital para nos concentrarmos no do operário, o trabalho também tem um custo. Esta posição é preferível a esta ou aquela outra. À noite sentimos o seu cansaço ou a sua irritação. Mas, em última análise, as diferenças são pequenas. O trabalho é sempre considerado mais ou menos tempo perdido. Há pouco esforço para calcular o tédio ou a deterioração da saúde. Para o operário o preço de toda essa merda é o salário. Sabemos que isto é uma mistificação e que o salário não é determinado pelo esforço realizado ou pelo tédio vivido.

A superioridade do comunismo é não estar satisfeito com a satisfação das necessidades de “consumo”. Aborda a transformação das actividades produtivas, se quisermos condições de trabalho. A escolha dos investimentos não é feita principalmente com base na economia de tempo de trabalho, ainda que a rapidez de execução possibilitada possa desempenhar um papel. Ao produzir as condições em que a actividade acontecerá, trata-se de privilegiar as mais agradáveis. Determinar as condições da actividade não significa determinar a actividade, o comportamento dos próprios produtores. 59

O produtor permanece no controle da sua acção, mas age sob certas condições, de acordo com certas restricções sobre as quais podemos agir.

A produção pelos homens de instrumentos e do quadro de produção permite esta transformação da actividade humana. O desenvolvimento da tecnologia pode caminhar numa direcção mais ou menos favorável aos produtores. Este ou aquele tipo de máquina ou conjunto de máquinas permite que quem a utiliza se canse menos, fique menos dependente de um ritmo de produção. Podemos desenvolver sistematicamente as características que permitem aos homens serem tão livres quanto possível no processo de produção.

Que ninguém nos diga que os gostos pessoais e a subjectividade nos impedem de objectivar qualquer escolha. Existem constantes gerais. Então não afirmamos que os critérios devam ter um âmbito universal. Eles irão variar de acordo com os tempos e situações. Os homens se consultarão para determinar o que é melhor. As diferenças de gosto e o desejo de experimentar podem levar ao desenvolvimento de caminhos diferentes baseados num objectivo semelhante.

A estimativa de custos não pode ser reduzida à necessidade de equilibrar “receitas e despesas”. O equilíbrio deve ser concebido como um equilíbrio dinâmico. A partir das condições deixadas pelo capitalismo, trata-se de orientar um determinado tipo de desenvolvimento. Será justificado o custo incorrido para construir tal unidade produtiva, tal ambiente de vida? A automação de tal unidade de produção justifica os esforços necessários para fabricar máquinas automáticas? A lógica da economia do tempo de trabalho que organiza a construção das situações no mundo capitalista dá lugar a outra lógica. Lógica que não é mais externa aos homens que a implementam. A humanidade organiza e domina a construção das situações de acordo com as suas necessidades. Nesse sentido, torna-se situacionista.

ELEVADOR OU ESCADA ?

Por trás da noção económica de custo devemos encontrar a realidade mais quotidiana e mais banal que ela acaba por esconder. Todos se questionam se o que estão a fazer vale a pena ou não. O resultado esperado justifica a despesa ou o risco? Existem formas menos dispendiosas, ou seja, mais agradáveis, de obter um resultado semelhante ou suficientemente satisfatório?

Se esse tipo de questão fosse da economia, só existiriam economistas ou gestores. Trata-se, na verdade, de problemas económicos e financeiros que constituem um caso particular e bastante bizarro de um problema mais geral.

A avaliação espontânea e ingénua dos custos precedeu em muito o advento do capitalismo. Subsiste ao lado da esfera económica, embora as nossas escolhas devam ter constantemente em conta as necessidades financeiras. O que o caracteriza é que é realizado sem desvios monetários e não se reduz a critérios temporais. 60

 

Em última análise, a avaliação de custos não é prerrogativa da humanidade. O pombo que hesita em vir bicar as sementes que lhe são oferecidas experimenta à sua maneira. Que ele se engane sobre os riscos e vá parar na panela não muda nada. A estimativa não exclui necessariamente erros.

A escolha da ave é mais uma questão de instinto e hábito do que qualquer outra coisa. Com os seres humanos passamos para outro nível.

O indivíduo que se encontra ao pé de um edifício, que deve chegar a um determinado andar, que pode escolher entre o elevador e as escadas, depara-se com um problema de custos. Talvez ele passe uma hora a pensar, talvez faça a sua escolha mecanicamente, sem sequer pensar nisso.

O problema é simples se o reduzirmos às três soluções disponíveis: o elevador, as escadas ou o abandono. Torna-se complicado se levarmos em consideração os elementos que intervêm conscientemente ou não na tomada de decisões. Qual é o piso a alcançar? Ele é mesmo conhecido? O nosso homem está com boa saúde? Velho ? Fatigado? Pessoa perneta? Qual a altura dos degraus? A inclinação das escadas? A velocidade e frequência do elevador?

A urgência do processo?

A decisão tomada não será económica. Será subjectiva, directa e vinculada a uma situação concreta. Não é monetária. Não se trata de saber qual a solução que terá de pagar mais, desde que o elevador não seja, por acaso, cobrável e se entenda que em qualquer caso alguém pagou pelo seu funcionamento. A velocidade de execução pode desempenhar um papel na escolha, pode talvez tornar-se decisiva, mas isso não está ligado à situação. A economia de tempo prevalecerá se infelizmente nos depararmos com um bombeiro. Talvez ele preferisse usar a sua grande escada.

Como podemos aplicar à economia aquilo que permanece precisamente fora da esfera económica? Este é um falso problema. O verdadeiro problema é precisamente se podemos ir além da economia, dissolvendo-a como uma esfera separada.

Trata-se de acabar com a economia. Isto não se tornou possível porque de repente descobrimos que poderíamos substituir os métodos actuais por processos mais simples e directos. Paradoxalmente, é o desenvolvimento da economia, a socialização da produção, a formidável interdependência das empresas, o desenvolvimento de métodos de previsão e cálculo económico que permitem esta ruptura.

No futuro, os princípios que nortearão as nossas escolhas serão tão simples e transparentes como aqueles que praticamos constantemente. Isso envolverá redução de esforços, dores e despesas. Este não será o objectivo em si da vida social, mas uma tendência dentro e dependente dos projectos implementados. Talvez nos imponhamos tarefas muito difíceis e muito perigosas, mas esforçar-nos-emos por torná-las mais fáceis. Uma equipa de montanhistas pode enfrentar um cume difícil sem concordar em fazê-lo com as mãos nuas. Princípios simples nem sempre significam métodos e soluções fáceis. As dificuldades advirão da própria natureza e complexidade dos problemas a resolver. Talvez surjam também da inadequação dos métodos de cálculo ao objecto do cálculo ou da dificuldade na determinação dos critérios de escolha. 61

O risco de erro, a necessidade de se satisfazer com aproximações não condena nada. Em qualquer caso, isto não constituirá um retrocesso em relação à fase actual.

O que hoje é válido para a utilização da escada ou do elevador será válido amanhã para a sua produção e instalação. As restricções objectivas entre as quais o usuário se move não serão mais determinadas economicamente.

É melhor construir uma escada, um elevador, ambos, ou não construir nada? Estas questões implicam toda uma série de outras. Vale a pena subir? Essa necessidade é tão importante e tão frequente que justifica o gasto necessário para gerar a escada, o elevador, a corda ou o pontapé no rabo que permite chegar ao andar desejado? Podemos inverter a perspectiva. Deveríamos construir edifícios altos dado o custo dos elevadores? Pelo contrário, dado o prazer que este fabrico de elevadores proporciona, deveríamos aumentar o número de arranha-céus?

A lista de perguntas a fazer é praticamente infinita. Isto parece desanimador. Na realidade, perguntaremos apenas a um pequeno número deles. Muitos são descartados pelo simples bom senso. Os nossos montanhistas não poderão precisar de elevador para a sua expedição. Qualquer decisão é tomada com base numa situação concreta onde um monte de questões foram resolvidas a priori pelos factos. O hábito prega-nos peças, mas também nos evita complicações. Há uma boa chance de que o homem que estava ao pé do prédio se tenha baseado nisso. A estimativa de custos assume toda a sua importância quando nos deparamos com uma nova situação, quando iniciamos um novo processo produtivo. O problema de fabrico e instalação do elevador e da escada é provavelmente um problema comum que é realizado com base em elementos conhecidos. Um caso ligeiramente especial ou novo será tratado como uma modificação de uma situação mais clássica. Existe uma hierarquia de soluções. Quando decidirmos iniciar a construção de um edifício, o custo dos meios de subida, aproximadamente conhecidos, será provavelmente secundário. Uma vez tomada a decisão geral, será necessário construir a escada, o elevador ou ambos. As restantes escolhas estarão relacionadas com a natureza e qualidade do material. Estas escolhas, mais uma vez, não serão feitas em termos absolutos, mas sim com base nos produtos e técnicas efectivamente seleccionados e desenvolvidos nesta área. Cada escolha tende a identificar a solução óptima, mas cada escolha é feita de acordo com um certo número de restricções. O óptimo corre o risco de ser um compromisso entre os interesses dos diferentes grupos envolvidos.

O fim da divisão da economia em empresas concorrentes não significa que toda a produção social formará apenas um único todo coordenado onde cada actividade seria imediatamente subserviente a outra, onde haveria apenas um interesse comum e onde a estimativa dos custos seria feito directamente em nível global. Por razões humanas e técnicas, os produtores dividir-se-ão em grupos cujos interesses deixarão de ser antagónicos, mas cujas opiniões poderão divergir. Mesmo que os indivíduos mudem de uma ocupação para outra, de uma oficina ou estaleiro de obras para outro, mesmo que os grupos não sejam permanentes, a divisão no tempo e no espaço persistirá. 62

A construção de um edifício envolve a entrada em acção de diferentes ofícios. Podemos imaginar que com o comunismo o arquitecto se tornou operário, pedreiro ou pintor. Isto não evitará, especialmente se a construção for grande, a divisão dos homens em equipas separadas e o trabalho em fases separadas. Os construtores serão obrigados a recorrer a contribuições externas. Eles podem precisar procurar ajuda e aconselhamento. Acima de tudo, precisarão obter máquinas e materiais.

Estes produtos vindos de fora, como podemos saber e ter em conta o seu custo? Os construtores podem procurar facilitar as coisas para si próprios no que diz respeito à distribuição e utilização dos seus próprios pontos fortes e habilidades. Mas quando têm de recorrer a stocks que eles próprios não acumularam, já não vale a pena. Porém, um material que seja mais fácil de utilizar ou que traga mais satisfação aos usuários da edificação poderá ser rejeitado dado o seu custo de fabrico. Em cada situação, a vantagem obtida deve justificar o gasto para evitar desperdícios.

Os produtos ou mesmo os processos de implementação devem ter um custo objectivamente conhecido. É com base neste custo que os usuários farão uma escolha racional.

Isso significa que cada produto terá uma etiqueta na qual estará escrito o seu “preço”. Será que a dona de casa que faz o seu “mercado” se verá diante de couves ou cenouras acompanhadas de uma pista numérica?

Isto seria uma triste repetição da situação actual. Regra geral, todos levarão o que necessitam, desde que esteja disponível e não tenham conhecimento de um pedido mais urgente que o seu. O cálculo dos custos é antes de mais nada uma previsão e reflecte-se directamente na natureza e na quantidade dos bens oferecidos. Não há necessidade de um rótulo criptografado para exercer pressão, se não na carteira, pelo menos nas intenções do usuário.

Existem vários tipos de cimento que têm actualmente, e certamente continuarão a ter, custos de produção diferenciados. Seria estúpido usar cimento duas vezes mais caro que aquele que seria suficiente. Geralmente a natureza visível do produto ou as instrucções de uso que o acompanham são suficientes para determinar o uso desejável. Quando houver risco de confusão, bastará especificar nas instruções de uso a diferença de custo entre os diferentes produtos.

O trabalho morto actualmente pesa sobre o trabalho vivo, o passado sobre o presente. Com o comunismo, o custo de um produto não é a expressão de um valor a realizar, de um equipamento a depreciar. Isso significa que o custo de um objecto não representará necessariamente a despesa necessária. Nem mesmo uma despesa média necessária para todos os produtos do seu género.

Será atribuído a um produto o custo pelo qual ele pode ser substituído actualmente. Um aumento ou diminuição da produtividade não teria razão para resultar numa diferença entre o custo de produção e o preço de venda. Seria imediatamente registado como tal, inclusive para objectos fabricados anteriormente. Esta variação poderá resultar numa expansão da produção em causa, caso esta se torne mais rentável. O aumento dos investimentos não será baseado no lucro excedente. 63

Pode haver diferenças de custos na produção do mesmo produto ou de dois produtos similares. Essas diferenças podem advir do uso contínuo de processos de fabrico mais atrasados ​​que outros. Muitas vezes são determinados por condições naturais. Os rendimentos agrícolas variam muito; nem todas as minas são igualmente fáceis de explorar. Significa isto que serão atribuídos custos diferentes a produtos semelhantes ou que surgirá um custo médio válido para todos, como hoje tende a surgir um preço médio de mercado?

Será muito importante que as diferenças de custos sejam conhecidas. Mas isso não afectará os usuários desses produtos. Alguns não serão penalizados e outros serão beneficiados. Tentaremos simplesmente desenvolver os processos de produção mais vantajosos.

Se um aumento na produção significa uma queda na rentabilidade, isso não significa que deva necessariamente ser excluído. Em primeiro lugar porque esta queda na rentabilidade pode ser um fenómeno temporário e transitório. Depois porque devemos julgar a importância das necessidades a serem satisfeitas. Assim, quando se trata de produção alimentar, um aumento significa muitas vezes uma diminuição do retorno. Terras menos férteis são cultivadas. Isto não é motivo para recusar alimentar parte da população e exercer actividades onde a rentabilidade aumenta.

Os retornos decrescentes só podem ser assim no curto prazo. Semear num deserto não é um investimento muito promissor, mas muito significativo. A implementação de processos de irrigação e novos métodos agrícolas pode mudar muitas coisas. Num deserto tão queimado pelo sol, uma vez irrigado, tal exploração marinha corre o risco de prevalecer sobre terras tradicionalmente férteis.

O que parece inatingível hoje será possível amanhã. As técnicas modernas, em vez de beneficiarem a corrida armamentista, servirão para fertilizar os desertos.

A partir do momento em que a procura de um bem aumenta, corre-se o risco de levar a uma redução ou aumento do custo das novas unidades a produzir. Uma diminuição tenderá a aumentar a procura por este produto. Se, pelo contrário, houver um aumento, é uma questão de saber quando o custo começa a tornar-se proibitivo. Neste caso é necessário determinar se é o último pedido que deve ser rejeitado ou, pelo contrário, se deve ser satisfeito abandonando ou reduzindo outros pedidos.

CÁLCULO

A partir do momento em que abordamos a implementação de produções ou projectos complexos, quando certas decisões determinam cadeias de outras decisões, devemos ser capazes de prever e calcular para seleccionar os processos menos dispendiosos. O custo muitas vezes deve ser estimado com base no longo prazo. Um ganho no momento ou a falta de estudo podem ter consequências dispendiosas para o futuro.

Ao escolher esta ou aquela bitola dos trilhos, estamos a comprometer-nos de uma forma difícil de reverter. Neste caso, como em muitos 64

Para outros, a falta de previsão no início pode posteriormente levar a condições de utilização muito menos racionais.

Trata-se também de determinar os coeficientes técnicos que ligam a produção de diferentes produtos. A produção de tal material ou objecto implica necessariamente a produção e o dispêndio de outros bens de acordo com uma determinada proporção.

Isso envolve antecipar possíveis gastos e simular a conclusão de um projecto. Estas previsões podem referir-se a projectos consideráveis ​​pelos meios que mobilizam, pela duração do seu progresso, pelas contingências que envolvem.

Suponhamos que os homens tenham a ambição de alcançar, explorar e possivelmente estabelecer-se num planeta virgem. Você não pode embarcar em tal operação por capricho. É preciso estimar as possibilidades e planear os gastos.

A primeira estimativa da validade do assunto será dada pelo número de indivíduos que concordam em participar ou apoiá-lo. Este número será determinado pela impressão de seriedade que o projecto e os seus apoiantes transmitirão.

Uma vez iniciado o projecto, escolhas terão que ser feitas e essas escolhas serão compatíveis entre si. Deveríamos concentrar a exploração em veículos automáticos ou em embarcações tripuladas? Deveríamos preferir uma atmosfera de ar ou oxigénio para essas embarcações? Estas questões são hoje questões técnicas sobre as quais pesam restricções financeiras ou políticas. Com o comunismo existem apenas questões técnicas que são também questões humanas. O debate sobre veículos automáticos, tripulados ou habitáveis, diz respeito ao nível de ciência, ao conforto que pretendemos proporcionar aos cosmonautas, aos esforços de construção, ao futuro de cada projecto...

As escolhas feitas condicionam-se mutuamente. Porém, não é necessário que tudo esteja decidido e planeado logo no início. As primeiras decisões orientam o que se segue sem definir tudo detalhadamente. O importante é que em cada fase a escolha feita seja, se possível, a melhor e que não conduza a um beco sem saída. O número de decisões a tomar é enorme, mas não são tomadas todas de uma vez e podem ser feitas correcções.

Porquê complicar a vida com todas essas histórias? Com o capitalismo tudo isto se resolve automaticamente.

Nada poderia estar mais longe da verdade. Não é porque os custos se transformam em preços monetários e o mercado sanciona o comportamento das empresas que tudo é automático. A nível geral existe planeamento e previsão, o que também se aplica a empresas ainda maiores.

Nem todas as operações são imediatamente sancionadas pelo mercado. Esta sanção representa a etapa final de um conjunto de despesas e decisões.

Se possível, devemos antecipar a decisão do mercado. As empresas poderosas já não fazem com que os seus preços dependam directamente das flutuações do mercado, mas tendem a calcular e impor um preço óptimo.

Este preço não é necessariamente aquele que permitirá a venda de mais bens ou mesmo maximizará o fluxo de caixa no curto prazo. Pode ser definido de acordo com uma estratégia global. Nos países orientais os preços começam a ser determinados por meios matemáticos. 65

Tanto no Oriente como no Ocidente, as empresas tendem a libertar-se do mercado para impor a sua estratégia através dos seus preços. Esta não é uma tendência fundamentalmente nova. Hoje é acentuado pelo poder dos grupos, pela possibilidade técnica de individualizar um produto, pelo desenvolvimento de métodos de cálculo económico. A concorrência e o mercado não são abolidos. Os seus efeitos são simplesmente retardados e a batalha entre os monopólios não se relaciona directa e exclusivamente com o nível de preços.

O importante é que se desenvolvam métodos de estimativa e previsão, dentro da sociedade e das empresas capitalistas, que possam ser utilizados de forma mais sistemática com o comunismo. O desenvolvimento dos computadores foi acompanhado por toda uma gama de pesquisas matemáticas destinadas a representar e formalizar a realidade para lidar com problemas de escolha, simulação e estratégia económica. Mesmo quando não se trata mais de levar em consideração e satisfazer critérios financeiros, esta pesquisa pode ser utilizada e desenvolvida.

Normalmente, as empresas não dependem do mercado para organizar a produção de bens da forma mais racional possível. O mercado é uma sanção ao comportamento, mas não um guia preciso e técnico para esse comportamento.

“Então, imaginemos um industrial que gostaria de fabricar o máximo de caixas cilíndricas com chapas metálicas. Se estiver acompanhado de um engenheiro, ele poderá calcular imediatamente a relação altura/diâmetro garantindo o melhor aproveitamento do metal: essa relação vale 1,103. Caso contrário, o nosso industrial adoptará valores “aleatórios”. Mas se ocorrer concorrência entre várias empresas, aquelas que escolherem os piores valores ficarão arruinadas. E, portanto, de forma puramente experimental, os fabricantes serão levados a reter – sem saber porquê – coeficientes cada vez mais próximos de 1,103.” (O romance da vida, A. Ducrocq).

A racionalização “científica” estende-se à própria organização da produção e distribuição. A pesquisa operacional complementa o hábito e o bom senso.

Já em 1776, o matemático Monge comprometeu-se a estudar sistematicamente a organização menos dispendiosa dos trabalhos de escavação e aterro. Isso também levou a contribuições puramente matemáticas.

Aplicada às operações militares durante a Segunda Guerra Mundial, a investigação operacional continuou a desenvolver-se graças ao poder dos computadores electrónicos. É utilizado para problemas de competição e reacções entre adversários, fenómenos de espera, gestão de stocks, previsão de desgaste e substituição de equipamentos, simulação, etc.

Já não se trata de uma simples contabilidade, mas de deduzir da análise do passado e do presente o que poderá acontecer e o que será desejável. 66

COMPARAÇÕES

Tanto no comunismo como no capitalismo, para estimar custos e escolher as melhores soluções é preciso poder comparar. Como comparar?

Enquanto houver uma moeda, ou seja, um equivalente universal, tudo é simples, pois qualquer bem deve poder ser avaliado de acordo com este padrão único. Existe uma relação quantitativa entre todos os produtos. A partir do momento em que queremos prescindir do dinheiro e até da medição pela quantidade de trabalho, em que base podemos assentar a comparação? O que mais podemos encontrar que seja comum a todos os bens, que os torne comparáveis ​​entre si?

Não existe outro padrão único e universalmente válido. Então vamos ficar sem ele. Isto não impedirá comparações. Estas comparações serão qualitativas e basear-se-ão em critérios diferentes e variáveis. Deixarão de ser realizadas com base numa referência abstracta e universal. Eles permanecerão apegados a situações e objectivos concretos.

O que é fantástico é que diferentes bens podem ser equivalentes entre si, independentemente da sua própria natureza. Podemos compreender que os alimentos podem ser comparados com base no seu conteúdo proteico, no seu peso, na sua frescura. Mas estes diferentes critérios não permitem definir uma equivalência geral.

A necessidade de equivalência geral não pode ser dissociada da necessidade de troca. Todas as coisas devem poder ser comparadas de um ponto de vista universal porque se tornaram bens trocáveis, valores económicos. É precisamente isto que deve desaparecer e que o sonho ou pesadelo de medir o tempo de trabalho gostaria de salvar, disfarçando-o.

Mesmo sob o reinado do capital, nem todas as comparações podem ser reduzidas a comparações de valor. Os bens permanecem valores de uso. O julgamento do comprador diz respeito ao preço, mas também à utilidade e qualidade do produto.

Quando uma dona de casa vai às compras e escolhe entre alface e um ramo de rabanete, ela fá-lo com base no gosto do genro, na refeição do dia anterior, na aparência do produto e no espaço que sobra na cesta. .. O preço só é realmente decisivo quando dois produtos idênticos têm valores diferentes.

A multiplicidade de critérios que entram em jogo não impede a dona de casa de fazer comparações e escolher. O seu julgamento é subjectivo. Não é universalmente válido. Isto não significa que seja irracional no que diz respeito à situação a que se refere. Quando se trata de escolher entre vários processos de fabrico, será certamente necessário chegar a um acordo mais geral. A escolha será menos subjectiva no sentido de que terá que se libertar do clima do momento, onde as suas consequências serão mais duradouras.

Actualmente acontece que as avaliações puramente monetárias não são decisivas ou são corrigidas por outras. Os riscos de variações significativas em determinados preços ao longo do tempo e as necessidades políticas frustram as visões financeiras. Consideremos a questão das centrais nucleares. Ao lado dos argumentos económicos, existem pontos de vista opostos no custo ecológico, social ou político. 67

Falamos, muitas vezes de má-fé, sobre eficiência energética, problemas com transportes e armazenamento de resíduos, independência nacional e criação ou redução de empregos.

Na sociedade comunista já não é necessário reduzir qualquer comparação a uma escala universal. Basta saber determinar as possibilidades realmente oferecidas e privilegiar aquelas que dão resultados mais rápidos, aquelas que são mais seguras, menos perigosas...

O importante é determinar no trabalho um conjunto de critérios relevantes e com base nesses critérios comparar directamente as soluções possíveis entre si. Não se trata tanto de quantificar, mas de ordenar os critérios e as soluções. É o significado relativo e qualitativo que predomina.

Não dependemos de calculadoras para resolver tudo. Mas elas serão necessárias e utilizáveis. “Desenhadas inicialmente para operações contábeis e de gestão a posteriori, também utilizadas para cálculos científicos, há muito (dez anos, talvez...) são consideradas instrumentos destinados a fornecer resultados quantitativos. Esta personagem é transformada. Graças aos métodos de investigação operacional, e mais especialmente aos de simulação, a acumulação de números conduz a um resultado qualitativo: já não estamos interessados ​​nos números exactos, mas no seu significado relativo, do qual depende a orientação da selecção. Assim, as calculadoras tornam-se meios de gestão de previsões.” (Pesquisa Operacional, Faure, Boss e Le Garff)

O que deve ser simplificado e universalizado não são tanto os factores de decisão que entram em jogo, mas sim os processos de resolução, os programas que permitirão processar um conjunto de dados. Num certo sentido, quanto maior o número de critérios, mais precisa será provavelmente a representação da realidade. Podemos imaginar o que suscitaria um debate sobre a importância a dar às diferentes fontes de energia. Entraria em jogo uma quantidade significativa de dados, só poderíamos usar um único critério concordando em mutilar a realidade. As escolhas devem ser feitas a nível mundial com base em factores gerais, mas também a nível local com base nos diferentes recursos e necessidades das regiões.

O comunismo não exclui escolhas e comparações puramente quantitativas. Permanecem válidos quando um único critério de selecção é suficiente em função da natureza dos produtos envolvidos, ou seja, quando se trata de aumentar ou reduzir uma determinada produção. Assim é quando a poupança nas despesas corresponde a uma poupança quantitativa na utilização de um material considerado para o mesmo uso, como é o caso das latas. Mas mesmo aí esta poupança não deve ser considerada como uma poupança de tempo de trabalho, mas simplesmente de quantidade de material. O facto de resultar numa redução da duração da actividade produtiva é simplesmente uma consequência possível.

Não deveríamos temer este frenesi comunista de racionalização? Não corre o risco de aderir ao frenesim capitalista da exploração? 68

Hoje a racionalização e a exploração estão confusas. O homem tende a ser visto como um objecto do qual se pode obter o máximo possível. Estamos a desenvolver métodos desumanos que não estão sujeitos a restricções técnicas: velocidades infernais, trabalho em duas ou três equipas. A racionalização capitalista, seja brutal ou suave, é sempre feita mais ou menos contra os homens. É por isso que sempre permanece fundamentalmente irracional. A racionalização comunista não pretende impor um ritmo de trabalho. Tenderá inerentemente a aumentar a liberdade e a satisfação humanas. A tomada de decisões e a implementação não serão feitas externamente aos gostos e hábitos das pessoas envolvidas. Existem constrangimentos técnicos e necessidades de produção que irão influenciar o ritmo e a duração da actividade. Mas isto já não terá nada a ver com a rentabilidade do capital humano.

VI PARA LÁ DA POLÍTICA

O comunismo não é um movimento político. Ele é o crítico do Estado e da política.

A intenção dos revolucionários não é conquistar e usar o poder do Estado, mas sim com o motivo oculto de destruí-lo. O Partido do Comunismo não se apresenta como um partido político e não pretende competir com estas organizações.

Com o estabelecimento da comunidade comunista, toda a actividade política como actividade distinta e busca do poder pelo poder desaparece. Já não existe a economia de um lado: a esfera da necessidade e a política do outro: a esfera da liberdade.

FIM DO ESTADO

O culto ao Estado é fundamentalmente anti-comunista. Nasce e paradoxalmente fortalecido por todos os defeitos, todos os fracassos, todos os conflitos que a sociedade capitalista gera. Ele é o salvador supremo. O último recurso da viúva e do órfão. Aliás, e embora se afirme acima das classes, e se apresente como o garante do interesse geral contra os excessos particulares, cuida da defesa da propriedade e dos privilégios.

Houve um tempo em que a burguesia ascendente manifestava sentimentos anti-estatais. Hoje ela só fica de mau humor. Acabou o tempo em que os revolucionários burgueses afirmavam que as pessoas mais felizes eram as pessoas sem Estado. A ascensão do perigo proletário, o desenvolvimento de imperialismos concorrentes, a escala das crises económicas mostraram a importância de ter uma máquina estatal poderosa e, antes de tudo, um bom aparelho de repressão.

Os partidos políticos competem para conquistar, em nome do povo, esta máquina estatal que apresentam como um instrumento neutro. Os leninistas proclamam, portanto, o carácter de classe do Estado e a impossibilidade de controlá-lo através de uma simples vitória eleitoral. Deduzem disto a necessidade do seu desmantelamento, mas depois será substituído por um “Estado operário”.

É um mérito dos anarquistas terem mantido um anti-estatismo fundamental.

Porém, ainda mais do que contra o dinheiro, todos têm o dever de protestar contra o Estado. Protestamos contra o peso da administração, o peso dos impostos, a arrogância da polícia, a ambição dos políticos, a estupidez dos eleitores... Mas o desaparecimento do Estado ultrapassa os limites da imaginação. E é isto que nos propomos, sem imaginação, levar ao poder.

O Estado tem intervindo cada vez mais abertamente na vida social nas últimas décadas. O advento do estalinismo e do fascismo foram apenas etapas mais visivelmente marcadas neste processo. Onde alguns acreditavam ver o Estado a tornar-se popular, devemos ver a acentuação do controlo do Estado sobre as populações.

Note-se em particular a aquisição ou integração no aparelho estatal das organizações de defesa e de solidariedade dos operários. Através de vários meios de segurança social, as estruturas sindicais submeteram-se ao Estado. Isto permite-lhes agir mais ou menos como grupos de pressão. As suas declarações de independência e oposição não devem enganar. É o papel deles. Obviamente esta integração da luta e esta formalização do parceiro social foram apresentadas como grandes vitórias para a classe operária. As lutas dos operários beneficiam uma camada de especialistas em protestos e resultam numa maior institucionalização das organizações “operárias”. Muitas vezes, estas “conquistas” nem sequer resultam numa redistribuição de recursos para os grupos mais desfavorecidos, mas contribuem para extrair deles mais dinheiro. Apesar do que os sindicatos e os governos afirmam hipocritamente.

O crescente controlo estatal não deve ser visto apenas como um enfraquecimento do proletariado. Pelo contrário, corresponde à necessidade de controlar o poder crescente. Esta nacionalização compensa a fragilidade das sociedades modernas. Mas ela mesma não escapa desta fragilidade. A fiscalização estatal da população só é possível com a cumplicidade desta população. A revolução antipolítica mostrará a natureza, em última análise, superficial deste quadro.

Ao contrário dos políticos de todos os lados, os revolucionários têm o cuidado de não invocar a responsabilidade do Estado assim que surge um problema. Destacam sistematicamente a autonomia e a auto-organização da classe proletária. Invocar a fraqueza do proletariado para justificar o recurso ao Estado é justificar e postular esta fraqueza como eterna.

A sociedade revolucionária terá órgãos de coordenação e centralização. Muitas vezes, permitirá até uma centralização mais avançada e mais global do que a permitida pelo capital. Mas não necessitará de um Estado onde o poder esteja concentrado, de toda esta maquinaria para reprimir, identificar, controlar, educar. A administração das coisas substituirá o governo dos homens. 70

O problema está numa fase insurreccional e intermédia de não recriar um Estado, garantindo ao mesmo tempo funções administrativas e repressivas e, portanto, de Estado. Aqueles que não querem resolver este problema, como os anarquistas, só podem ser traídos pelos estatistas ou forçados a tornarem-se eles próprios estatistas. A participação de ministros anarquistas na junta governamental durante a Revolução Espanhola mostrou o que isto poderia alcançar.

A solução para o problema, para esta contradição, foi delineada pelas insurreições proletárias desde a Comuna de Paris. É o conselho operário, a organização conselhista da vida social.

OS CONSELHOS OPERÁRIOS

A Comuna de Paris já tinha dado uma primeira ideia do que poderia ser um governo operário.

Em 1905, os operários russos rebeldes desenvolveram a forma do Soviete.  Este órgão formado por delegados de fábrica tinha como objectivo inicial coordenar a luta. Gradualmente transformou-se num órgão administrativo que tende a substituir a administração oficial. Uma parte, até mesmo das forças policiais, ficou sob o controlo do Soviete de Petrogrado. A sua existência terminou com a prisão dos seus deputados pelas forças czaristas.

Em 1917 fizemos isso de novo, com maior participação dos soldados. O golpe bolchevique de Outubro de 1917 foi realizado em nome do poder soviético. Ele confiou nos Sovietes, onde os bolcheviques controlavam as comissões militares e obtiveram a maioria dos votos em Petrogrado e Moscovo. Esta vitória foi o começo do fim. Com o refluxo da revolução, a guerra civil, o fortalecimento do partido e da administração bolcheviques, os sovietes viram-se gradualmente esvaziados do seu conteúdo. A resistência final do Soviete na base naval de Kronstadt foi esmagada em 1921 pelo Exército Vermelho liderado por Trotsky, o antigo presidente do Soviete de Petrogrado.

As insurreições proletárias do século XX fizeram ressurgir regularmente a forma soviética. Após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, foram formados conselhos operários na Hungria, Alemanha e Itália. Durante a Guerra Civil Espanhola, assistimos à proliferação de comités de operários e camponeses. Na Hungria, em 1956, os delegados das fábricas formaram o Conselho Operário da Grande Budapeste. Na Polónia, em 1971, os operários insurgentes dos portos do Báltico organizaram-se novamente desta forma.

A palavra conselho abrange, na verdade, formas bastante diversas de organização, mesmo que eliminemos a co-gestão ou as organizações de gestão operária que não são de forma alguma revolucionárias. Isto vai desde o comité de fábrica ou de bairro até ao soviete que administra uma grande cidade ou região. É um erro querer colocar estas organizações umas contra as outras, de modo a atribuir apenas o rótulo de “conselho operário” a algumas delas.

Não somos a favor deste ou daquele tipo de conselho. Somos pela organização consultiva da sociedade. Isto envolve e requer vários

níveis de organização que se complementam e se apoiam. O que é mau, e o que tem acontecido regularmente, é que um nível vence. 71

O comité de fábrica pode ser reduzido a uma simples função de controle dos operários ou à pura gestão de uma unidade de produção. A falta de sovietes propriamente ditos em Espanha e na Catalunha, apesar do florescimento dos comités de base, deixou o campo aberto ao Estado republicano e aos políticos. Daí o dilema anarquista.

O Soviete, separado das suas bases, pode transformar-se numa espécie de Estado regional ou parlamento operário. Deixa de ser um órgão activo e anti-político para se tornar o campo de batalha dos partidos políticos.

O que dá ao conselho operário o seu carácter revolucionário, o que lhe dá um conteúdo anti-político, é antes de tudo o facto de ser directamente a emanação das massas activas. É constituída por uma pirâmide de comités que se geram mutuamente sem que o topo possa acreditar-se independente da base.

Os comités não são simples assembleias eleitorais que delegam poder de baixo para cima. Cada nível está repleto de funções práticas. Cada comité é uma comunidade activa. Ele delega ao nível superior o que não consegue resolver sozinho. Ele não abre mão da sua soberania. Os delegados respondem perante os seus mandantes, são responsáveis ​​e revogáveis.

O conselho operário não reproduz em si as divisões entre os poderes legislativo, executivo e judiciário. Ele encarrega-se de unificar e concentrar essas diferentes funções nas suas mãos. Mesmo que estabeleça regras, ele age sobretudo de acordo com a situação, sem se esconder atrás de um arsenal de leis formais.

O conselho operário constitui-se como um tribunal para resolver conflitos, para julgar, decidir e punir. Esta acção é feita com base numa situação concreta. O que julgamos não é a gravidade da culpa, mas os danos e riscos objectivos para a revolução e a sociedade.

O conselho não vê a sua legitimidade garantida por eleições democráticas que o tornariam o ungido do povo. Ele não é o representante das massas. Ele são as massas organizadas. Indivíduos e grupos que assumem tarefas específicas não são necessariamente eleitos. Mas quando envolvem todo o conselho, são responsáveis ​​perante as suas assembleias gerais. O conselho não pretende ser a expressão de toda a sociedade para além dos conflitos que o afectam. É um órgão de classe e de luta. Isto implica um mínimo de acordo dentro dele. Ele não pode tolerar diferenças que o paralisariam.

Podemos ver no conselho operário uma forma ultraditatorial ou ultrademocrática. Ele é as duas coisas e outras coisas ao mesmo tempo. É ultraditatorial no sentido de que apenas afirma ser responsável perante si mesmo e de espezinhar os princípios sacrossantos da divisão de poderes. É ultrademocrático no sentido de que permite o debate e a participação das massas nunca antes alcançados com o Estado mais democrático.

Acima de tudo, o conselho operário já não é um órgão político. Já não separa o cidadão do indivíduo social. Nisso está além da ditadura ou

da democracia, que são os dois lados da política. Mesmo que utilize processos ou formas ainda democráticas ou ditatoriais. 72

O conselho não é o instrumento da democracia popular nem o instrumento da ditadura do proletariado. Estas expressões não conseguem caracterizar a fase de ruptura entre o capitalismo e o comunismo.

Os conselhos operários do passado estiveram muito abaixo, salvo alguns raros momentos, do programa que estamos a traçar. Têm sido gerenciais, burocráticos, meticulosos, argumentativos, incapazes de ter uma perspectiva condizente com a sua própria natureza. Eles morreram por causa disso. Isto não prova que a forma conciliar seja inútil, mas antes que foi traçada num terreno ainda demasiado árido.

Em 1956, o Conselho Operário da Grande Budapeste, que administrava toda a região, apelou ao seu próprio suicídio com o restabelecimento da democracia parlamentar.

Os conselhos operários do passado tiveram, no entanto, o mérito de existir. Eles demonstraram a capacidade dos trabalhadores de cuidar da sua própria vida, de assumir o comando e administrar fábricas e cidades. Estão ligados aos movimentos formidáveis ​​pelos quais os operários derrubaram, pelo menos temporariamente, a burguesia e os burocratas. Se ocultamos e distorcemos estas experiências é porque não queremos que o proletariado repita o que fez na Catalunha, na Polónia, na China, sem mestres e fazendo bem por isso.

A contra-revolução, inclusive na União Soviética, nunca foi capaz de aceitar isto. Que os conselhos demonstrem moderação é uma coisa, que a contra-revolução seja moderada em relação a eles é outra.

As melhores manifestações dos conselhos operários ocorreram quando tiveram que responder rápida, clara e duramente aos seus inimigos. São forjados directamente como a organização da luta. O programa deles pode ser limitado, mas eles sabem disso. Outras vezes ficam atolados na administração, à espera. A sua única razão de existência parece ser a vacância do poder burguês. Vemos o desenvolvimento de magníficas construções organizacionais. Mas isto é feito no vácuo, fora dos imperativos de uma luta.

A aparente ausência de perigo leva às piores ilusões.

O conselho aparece mais como a resposta dos operários ao vazio deixado pela burguesia do que como um nível de organização imposto pela radicalidade da própria luta.

Somos a favor dos conselhos operários. Mas somos contra a ideologia conselhista. Esta ideologia não vê nos conselhos um momento da revolução mas sim o seu objectivo. O socialismo é a substituição do poder da burguesia pelo poder dos conselhos, da gestão capitalista pela gestão operária. O fracasso ou a vitória da revolução é uma questão de organização. Onde os leninistas apostam tudo no partido, os conselhistas apostam tudo no conselho.

Os conselhos operários serão o que fizerem. A sua única hipótese de vitória é empreender e ser a organização da comunização.

Para os comunistas, a revolução não é uma questão de organização. O que determina a possibilidade do comunismo é um certo nível de

desenvolvimento das forças produtivas e da classe proletária. Existem problemas organizacionais, mas não podemos colocá-los independentemente do que organizamos, das tarefas que nos propomos. As regras organizacionais são neutras? Essas questões são puramente técnicas? Certamente que não. A escolha deles é de grande importância. Alguns são adaptados e promovem a acção comunista. Outros atrapalham73.

Mas é uma grave ilusão acreditar que a apresentação de certas regras, especialmente sobre o controlo dos delegados, é suficiente para evitar a burocratização, as mentiras e a divisão. Os burocratas são profissionais na organização como uma organização separada. Gostam de enfatizar os pré-requisitos para a acção, os mecanismos democráticos, em vez da acção em si. Regras meticulosas e inadequadas, mesmo formalmente antiburocráticas, correm o risco de facilitar a sua tarefa. Enquanto os conselhos se desenvolverem e não puderem mais ser liquidados facilmente e os piores inimigos da revolução reivindicarão ser conselhistas para melhor superar os conselhos. Tentarão fazer do país um campo fechado para as suas peripécias, para excluir os revolucionários. Contra o comunismo, os enfeites do velho mundo não hesitarão em renomear-se como conselhos.

Do carácter muitas vezes anti-comunista dos concílios do passado, não podemos deduzir que o seu tempo acabou? Não é toda a institucionalização contra-revolucionária?

Não vemos instituições nos conselhos operários. A revolução, queira ou não, encontrará problemas de administração, de manutenção da ordem, de unificação de tendências opostas. Será ainda necessário governar, se não os homens, pelo menos alguns homens. Podemos considerar que o saque é uma reacção saudável à provocação e à escassez comercial. Pode desempenhar um papel benéfico numa fase de ruptura: libertação e afundamento da mercadoria. Mas não podemos institucionalizar a pilhagem, tornando-a o modo normal de distribuição comunista de produtos. É impossível deixar todos os produtos em distribuição gratuita. Há que organizar, distribuir, restringir. Esta é a tarefa dos conselhos.

À medida que a escassez de bens diminui e a contra-revolução recua, os conselhos perderão o seu carácter estatal. Eles não serão excluídos. Eles misturar-se-ão à vida social.

Recusar conselhos por purismo é, quando estes aparecem de acordo com necessidades reais, colocar-se fora do processo revolucionário. É melhor participar na sua criação, no seu funcionamento, na sua possível dissolução dependendo da luta e do equilíbrio de poder entre revolução e contra-revolução.

A participação nos conselhos não significa que os revolucionários devam desistir de agir e organizar-se de forma autónoma. Os conselhos são organizações de massa. Daí um certo peso, daí um ritmo de radicalização mais lento do que o de certas fracções da população. A evolução dos conselhos será parcialmente determinada pelo que acontece ao seu lado. O que terá de ser combatido e sabotado são os conselhos corporativistas, as organizações de gestão, os grupos neo-sindicais ou neo-políticos que querem confiscar a organização da vida social em benefício de uma minoria. Não podemos considerar como soviete um órgão que preservaria a produção de mercadorias, ou que constituiria uma força policial, que exigiria o retorno dos patrões... 74.

O Conselho é necessário quando se trata de administrar um território. Desaparece quando esta necessidade desaparece temporariamente dependendo de um certo equilíbrio de poder ou definitivamente devido à consolidação do comunismo. Dependendo de uma situação revolucionária, os grupos podem intervir e reunir stocks de bens sem serem capazes ou quererem assumir a responsabilidade pela sua produção e distribuição numa base permanente. É uma questão de saber quando temos meios para passar deste tipo de acção pontual e selvagem para a administração directa de uma área. A vantagem é que podemos utilizar melhor os nossos recursos para alimentar a população ou liderar a luta. A desvantagem é que nos tornamos um alvo. A partir do momento em que aceitamos este risco, surge o problema da organização consultiva desta área. O problema da constituição de um poder revolucionário. Este poder, mesmo que deva procurar o mais amplo apoio e participação das massas, não procura ser fundado democraticamente, por exemplo através da organização de eleições.

A DEMOCRACIA

O que há de mais belo sob o céu do que a democracia: o poder do povo soberano? Por mais que o termo capitalismo possa ser embaraçoso, o de democracia desperta apoio. Todos são a favor da democracia, seja ela coroada ou republicana, burguesa ou popular. Se criticamos os seus adversários é por não serem suficientemente democráticos.

Qualquer pessoa que se levante contra a democracia só pode, na melhor das hipóteses, sentir nostalgia das antigas monarquias absolutas. Em geral preferimos dar-lhe o infame rótulo de fascista. Os mais teimosos são muitas vezes os marxistas e marxistas-leninistas que esquecem o que os pais fundadores disseram sobre a democracia, que querem mascarar o seu gosto pelo poder e pela ditadura... Hipocritamente, alguns nostálgicos cheios de culpa pelo Estalinismo irão censurar-nos por sermos Estalinistas.

A democracia parece ser a antítese do despotismo capitalista. Quando sabemos bem que na verdade uma minoria está no comando, fingimos opor-nos a ela com o poder derivado do sufrágio universal.

Na verdade, o capitalismo e a democracia estão ligados. A democracia é a folha de parra do capital. Os valores democráticos, longe de serem subversivos, são a expressão idealizada das tendências reais e menos nobres da sociedade capitalista. Os comunistas não pretendem alcançar a trilogia “liberdade, igualdade, fraternidade” mais do que “trabalho, família, pátria”.

Como é possível, se a democracia é filha do capital, que a ditadura e o capitalismo coexistam tantas vezes? Por que é que a maioria das pessoas vive sob regimes autoritários? Como é que mesmo nos países democráticos o seu funcionamento é constantemente dificultado?

Os valores e aspirações democráticas são consequência da natureza dissolvente do capital. Correspondem ao fim da integração do indivíduo

numa comunidade e numa rede de relacionamentos fixos.75

Correspondem também à necessidade de manter uma comunidade idealizada, de resolver conflitos, de limitar os confrontos para o bem de todos. A minoria acata as decisões da maioria.

A democracia não é uma simples mentira, uma ilusão vulgar. Extrai o seu conteúdo de uma realidade social dilacerada da qual parece ser a reunificação. Na aspiração democrática existe uma procura de comunidade, um desejo de respeitar os outros. Mas a base sobre a qual se enraíza e pretende desenvolver-se impede-o de ter sucesso.

A democracia ainda é muitas vezes demasiado perigosa para o capital ou, pelo menos, para certos interesses estabelecidos. É por isso que ela constantemente vê limites impostos a si. Com algumas excepções, estes limites e mesmo a simples ditadura são apresentados como vitórias da própria democracia. Qual o tirano que não pretende governar, se não pelo povo, pelo menos para o povo?

A democracia, que em períodos de calma pode parecer uma boa forma de amortecer as lutas operárias, é descaradamente abandonada assim que a defesa do capital o exige. Há sempre alguns intelectuais e políticos que se surpreendem ao verem-se sacrificados tão facilmente no altar dos interesses dos poderosos.

Democracia e ditadura são formas opostas, mas não são formas estranhas. A democracia, na medida em que implica a submissão da minoria à maioria, é uma forma de ditadura. Uma junta de ditadores deve recorrer a mecanismos democráticos para decidir.

Às vezes esquecemos que o fascismo, o nazismo e o estalinismo combinaram procedimentos terroristas e eleições regulares para se imporem. Gostavam de colocar as grandes massas, os tribunais populares, contra os punhados de “traidores”, “anti-patriotas”, “anti-partido”.

O comunismo não é inimigo da democracia porque seria amigo da ditadura e do fascismo. Ele é o inimigo da democracia porque é o inimigo da política. Dito isto, os comunistas não são indiferentes ao regime sob o qual vivem. Preferem adormecer tranquilamente à noite, sem se perguntarem se não será esta noite que alguém virá tirá-los da cama e levá-los para a prisão.

A crítica ao Estado não deve substituir a crítica à política. Algumas pessoas atacam a máquina estatal, mas é para melhor salvar a política. Assim como alguns educadores criticam a escola por generalizar a pedagogia para todas as formas de relações sociais. Para os leninistas tudo é político. Por trás de cada manifestação do capital, eles veem uma intenção, um desígnio. O capital torna-se o instrumento de um projecto político ao qual outro projecto político deve opor-se.

A política é o domínio da liberdade, da acção, da manobra em relação à inevitabilidade económica. A economia, o campo de produção de bens, é dominada pela necessidade. A evolução e as crises económicas aparecem como fenómenos naturais que escapam ao controlo do homem.

A esquerda está acostumada a enfatizar as possibilidades da política, a direita nas necessidades da economia. Falso debate. 76

A política aparece cada vez mais como uma cópia da vida económica. Durante certo período, conseguiu desempenhar um papel de compromisso e aliança entre camadas sociais.

Hoje a importância da política como intervenção na economia aumentou. Mas, ao mesmo tempo, a esfera política perdeu a sua autonomia. Existe agora apenas uma política de capital que a direita e a esquerda são forçadas a adoptar independentemente dos interesses específicos da sua base social.

Se o Estado parece ser uma instituição aproximadamente delimitável, a política nasce e renasce em todos os poros da sociedade. Embora resulte na acção de uma determinada camada de activistas e políticos, baseia-se e encontra eco no comportamento de cada pessoa. É isto que o fortalece e dá a impressão de que qualquer solução social só pode ser política.

A política surge e baseia-se na dissociação entre decisão e acção e nas separações que colocam os indivíduos uns contra os outros. A política aparece primeiro como esta busca permanente de poder que anima os homens na sociedade capitalista. A própria democracia e o despotismo parecem ser as únicas formas de resolver problemas entre as pessoas. A introdução da democracia nos casais ou nas famílias é vista como uma nova etapa do progresso humano. Acima de tudo, exprime, talvez da forma menos má, a perda da unidade profunda que pode unir os seres humanos.

O comunismo não separa decisão e execução. Não há mais divisão entre dois grupos ou mesmo dois momentos distintos e hierárquicos. Fazemos o que temos que fazer ou o que decidimos fazer sem nos colocarmos o problema de saber se somos maioria ou minoria. Noções que pressupõem a existência de uma comunidade formal.

O princípio da unanimidade reina no sentido de que aqueles que fazem algo inicialmente concordam e onde o acordo fornece a base e a possibilidade de acção conjunta. O grupo não existe de forma independente e anterior à acção. Não se divide na votação e depois se reunifica através da submissão de um partido a outro partido. Constitui-se na e através da acção e capacidade das pessoas de se identificarem e compreenderem o ponto de vista dos outros.

Não se trata de rejeitar sistematicamente todos os votos e propostas da minoria para a maioria. São formas técnicas às quais não podemos atribuir um valor absoluto. A minoria pode ter a verdade. É possível que a maioria ceda à minoria, dada a importância do que está em jogo para esta minoria. O comunismo é o advento da liberdade? Sim, se quisermos dizer que os homens terão mais escolhas do que agora, que poderão viver de acordo com os seus gostos.

O que rejeitamos é a filosofia que se opõe ao livre arbítrio e ao determinismo. Esta separação reflecte a oposição do homem e do mundo, do indivíduo e da sociedade. Expressa o desenraizamento do indivíduo e a sua incapacidade de compreender as suas próprias necessidades para satisfazê-las. Ele pode escolher entre mil empregos, entre mil hobbies, entre mil amores, e ser influenciado de mil maneiras porque nada realmente o preocupa. Sem certeza habita isso. 77

Ele duvida de tudo, antes de tudo de si mesmo. Ao fazer isso, ele está pronto para suportar tudo e muitas vezes acredita que escolheu. A liberdade apresenta-se como a roupagem filosófica da miséria. A dúvida como expressão da liberdade de pensamento quando significa confusão, a incapacidade do homem de se situar no seu mundo. No decurso da revolução o homem perde as suas cadeias mas, tornando-se finalmente ele próprio, encontra-se acorrentado simultaneamente aos seus desejos e às necessidades do momento. Ele apaixona-se novamente e começa a conhecer-se novamente. O extraordinário clima de alegria e tensão das insurreições está ligado ao sentimento de que tudo é possível e conjuntamente de que o que fazemos deve imperativamente ser feito. Não há mais necessidade de hesitar e ser jogado entre actividades insignificantes. As restricções subjectivas e objectivas fundem-se.

O CIRCO ELEITORAL

Se você ataca a democracia, dir-nos-ão as mentes subtis, é porque você sabe que isso o condenaria.

Não temos ilusões. É certo que com o sistema a funcionar normalmente seríamos fortemente derrotados. O nosso programa poderá não ser considerado desagradável pela maioria dos eleitores, mas certamente seria considerado impraticável. Somente negando-se como eleitores é que poderiam começar a ver a possibilidade da sua realização.

Se a política é a arte do possível, como dizem, estamos fora desta possibilidade.

Senhores, eleitoralistas e democratas, estão prontos para questionar a população sobre certas questões e levá-las em consideração? Vocês, que são os lacaios do capital, estão prontos para organizar um referendo para saber se devem ou não manter o capitalismo? Há uma infinidade de perguntas que você nunca fará. Elas são eliminadas antecipadamente por serem irrealistas. Você decide o que é possível e o que não é. Isso ainda não é suficiente para si. Os seus programas e previsões realistas nunca devem ser aplicados.

O Estado vive graças aos impostos dos cidadãos. É gerido graças ao seu voto. Se a sua política fosse aprovada e apoiada directamente pela aceitação ou recusa do pagamento de impostos por parte dos indivíduos, correria o risco de perder muitos apoiantes. Ao pagar, o cidadão tem a impressão de estar a ser enganado. Quando vota, ele que, de outra forma, apenas tem de manter a boca fechada, fica lisonjeado por a sua opinião ser procurada.

Há uma dissociação entre, por um lado, a gestão real do sistema e as camadas de funcionários que dele cuidam e, por outro lado, a política partidária, a política espectáculo.

A democracia eleitoral serve para esconder o facto de que decisões importantes escapam aos eleitores e até aos políticos. A realidade política e eleitoral está cada vez mais impregnada de mercadorias. A democracia parece ser um reflexo directo do mundo económico. O eleitor já não é nem cidadão, mas consumidor de programas e ideologias. O espectáculo da política e os seus momentos privilegiados que são as eleições devem ser denunciados pelo que são: uma forma entre outras de fazer o povo esquecer que não são nada. 78

Às vezes as pessoas acreditam na palavra dos mentirosos. Por eleições rejeitadas ou pelo que lhes parece uma vitória eleitoral, começam a rebelar-se. Isso não faz mais parte da realidade eleitoral.

Não defendemos a participação nas eleições e muito menos a abstenção. Quando os proletários votam, eles têm, se não estão certos, pelo menos as suas razões. Este ritual só parecerá verdadeiramente ilusório, ridículo e lamentável quando todas as condições de vida começarem a transformar-se verdadeiramente. Entretanto, tem o seu lugar no resto da gama.

Numa organização comunista pode muito bem haver eleições. Delegados são designados. Mas as eleições já não parecem ser um momento especial. O funcionário eleito não tem autorização. Cumpre uma função entre outras e não é mais sagrada do que qualquer outra. Ao designar uma determinada pessoa ou equipa ou aprovar a sua acção posteriormente, o grupo de base apenas dá garantias quanto à aplicação do seu programa. O que importa não é o procedimento de designação, mas a acção efectivamente executada.

A constituição de conselhos de trabalhadores não exige uma consulta eleitoral geral como pré-requisito. Não se trata de libertar uma área para organizar eleições que só seriam reconhecidas como válidas pelos organizadores, como é costume. Sobre este assunto temos o mau exemplo da Comuna de Paris.

Mesmo que neste tipo de situação as eleições pudessem ser seriamente organizadas, isso apenas dissociaria a decisão e a acção e traria de volta os profissionais políticos. As eleições exigem que os eleitores sejam listados e mapeados.

O estabelecimento de uma administração através de eleições pressupõe a existência desta administração! Não é o poder e o Estado que nascem das eleições, mas sim o contrário.

Organizações revolucionárias de massas serão formadas e fortalecidas de acordo com tarefas práticas. Elas surgirão da acção de uma minoria. Não vamos ver de repente 51% da população a correr em direcção ao mesmo objectivo ao mesmo tempo. Esta minoria activa distinguir-se-á pelo facto de não organizar o resto da população, mas tender a envolvê-la na resolução dos problemas de todos. O seu sucesso dependerá da sua capacidade de envolver bem mais de 51% da população.

O comunismo não pode ser estabelecido através de um golpe. Tendo contra si o poder do Estado e os seus instrumentos de repressão, o comunismo só poderá vencer se conseguir desenvolver a participação mais ou menos activa de uma grande parte da população e isolar uma pequena minoria como adversária.

A revolução proletária, ao quebrar as cadeias do trabalho assalariado, permitirá e exigirá a participação das massas sem comparação possível com a das revoluções políticas burguesas. Mesmo quando essas revoluções eram revoluções populares. Estas revoluções populares que os democratas afirmam ser não foram decididas democraticamente. Em 1789, se tivéssemos dado a escolha aos franceses, eles teriam votado a favor da revolução? Na realidade, foi a partir do carácter ultrapassado dos privilégios dos nobres que surgiu uma fracção da população. Impulsionada pelos sucessos e consequências das suas ações, ela gradualmente chegou ao fim de um sistema podre. 79

O Partido Comunista só liderará a esmagadora maioria da população quando o comunismo aparecer como o meio imediato de resolver os problemas da vida quotidiana. A revolução não surge porque um número suficiente de pessoas se torna revolucionário. As pessoas tornam-se revolucionárias porque a revolução aparece, porque lhes parece possível e necessário viver de forma diferente.

Hoje, quando todos os elementos da estrutura social se apoiam, o desaparecimento do dinheiro parece impossível. Aqueles que o defendem parecem bons sonhadores. Enquanto os mecanismos de mercado falharem, continuar a depender do dinheiro para o abastecimento parecerá uma acrobacia imbecil. Unir-nos-emos ao comunismo não por ideologia ou mesmo por desgosto por uma sociedade moribunda, mas por uma simples necessidade vital. Teremos então de nos defender contra oportunistas incapazes de ter perspectivas de longo prazo que procurarão tirar vantagens imediatas e pessoais da situação.

Porquê, se considerarmos que a revolução deve contar com a participação mais ampla possível, não nos declararmos democratas? Talvez isso envergonhasse alguns dos nossos adversários e talvez nos ganhasse alguns amigos. Mas precisamente, não somos políticos, uma manifestação superficial é mais embaraçosa do que útil. Precisamos ser claros para podermos reunir e orientar os nossos apoiantes em bases sólidas. Quanto aos nossos verdadeiros adversários, não queremos facilitar-lhes as coisas, mas em qualquer caso, eles não se importam com o que realmente dizemos e queremos. Ou não compreendem, ou caluniam, mesmo que isso signifique escolher algumas ideias dos revolucionários para iluminar o seu programa.

A democracia seria o poder do povo, o poder de todos. A revolução comunista não pretende mudar a forma do poder nem entregá-lo ao povo. Ela quer tirar isso de todos.

O poder sempre precisa de legitimação externa a si mesmo. Deus pela monarquia, o povo pela democracia coroada ou republicana. As pessoas têm mais realidade do que Deus? Não, Deus é um personagem, uma encarnação repleta de humanidade, enquanto as pessoas tendem a ser uma pura abstracção da humanidade. Este povo que invocamos para apoiar o Estado é apenas o seu reflexo. Entre este povo em ideia, este povo político e o povo real, diverso, vivo, estúpido ou inteligente, que se manifesta na vida quotidiana, existe um mundo.

Não é a política que expressa e incorpora as ideias e desejos dos humanos, são estes que se tornam o suporte das opiniões políticas. Eles próprios tornam-se abstracções quando os eleitores ou activistas confessam estas opiniões. Porque é que os comunistas que querem pôr fim à exploração e às guerras não renunciam aos procedimentos coercivos e ditatoriais? 80

Acreditamos que as classes dominantes desistirão de utilizar estes meios? Acreditamos que num período de convulsão os Estados mais democráticos não porão de lado os seus belos princípios? Os ricos, os privilegiados e os mais liberais servidores da ordem talvez afirmem que estão a lutar pela democracia. Não apresentarão a defesa dos seus verdadeiros interesses. Mas há poucas hipóteses de lutarem democraticamente.

É com base numa situação de crise que é apropriado comparar métodos burgueses e métodos revolucionários. É hipócrita contrastar o comportamento dos Estados burgueses mais democráticos em tempos de paz com o comportamento dos revolucionários em tempos difíceis. Há todas as possibilidades de que, em tempos de crise, os revolucionários se mostrem mais humanos e mais democráticos do que os defensores da ordem.

A GREVE

A democracia está a ser negada com o desenvolvimento de greves e revoltas selvagens. O início da acção não depende de uma consulta democrática da base ou dos seus representantes.

Uma fracção dos operários, por serem mais combativos, menos alienados, colocados em condições mais favoráveis, rebela-se. Não há divisão entre decisão e execução, entre quem decide e quem executa.

O problema fundamental não é necessariamente conseguir que todos participem. A partir de uma posição-chave na produção você pode fazer o chefe ceder. Parar o trabalho pode ser o seu próprio objectivo, é apenas uma questão de respirar ou recusar-se a fazer um determinado trabalho. É possível que o desengate de uma alavanca provoque um desengate geral. Isto é o que vimos acontecer à escala nacional em Maio de 68.

A greve espalha-se. É aprovada pela grande maioria dos operários. A adesão é criada em acção e não terá havido consulta prévia de todos aqueles que serão afectados.

Se os operários tivessem tido que decidir democraticamente sobre a conveniência de iniciar as hostilidades, talvez tivessem desistido. O exemplo de um pequeno número ter-lhes-á mostrado a brecha para a qual se devem precipitar, o medo da gestão e o possível sucesso. Serão dominados pelo clima de luta e solidariedade e mais capazes de superar o sentimento de desânimo e de resignação que o desamparo diário gera.

Suponhamos que a greve foi decidida durante uma consulta. Provavelmente teria sido diferente. Chega de ofensivas imprevistas dos operários. O adversário teria sido informado sobre a natureza, forma, escala e objectivos do movimento. A organização teria precedido a acção e desestimulado iniciativas. Os grevistas teriam permanecido mais ou menos passivos e, com excepção de uma minoria de sindicalistas ou organizadores, estranhos à sua greve. Quando os operários começam a radicalizar-se, o momento democrático apresenta-se cada vez mais como o momento da recuperação. Trata-se de votar na recuperação. Os burocratas, especialistas em negociação, estão a recuperar a vantagem. A democracia torna-se a expressão da renúncia. Ela visivelmente se torna o que já era aos 81 anos basicamente.

O recurso à única assembleia geral soberana para lutar contra a burocratização não é suficiente. A assembleia pode tornar-se o local privilegiado de manipulação, a reunião em massa de indivíduos separados e impotentes, o suporte para conversas confusas e inúteis.

As assembleias gerais são necessárias. Você deve ser capaz de fazer um balanço, avaliar os seus pontos fortes, controlar e exigir responsabilização dos delegados e comissões especializadas. Mas a assembleia não deve aparecer como o momento em que tudo está suspenso, em benefício do qual o resto da realidade é despojado.

O PARTIDO

À medida que a crise do capital se aprofunda e torna mais visível a futilidade das soluções capitalistas para esta crise, um partido comunista está a reformar-se entre a população.

A formação do partido não é a causa que determina a crise. Não é o pré-requisito para o ataque ao capital. O seu desenvolvimento quantitativo e qualitativo é, pelo contrário, extremamente dependente do surgimento desta crise. Ele procurará orientar e facilitar o resultado.

O partido não é uma reunião constituída segundo uma doutrina formada que se expandiria sem que a sua natureza mudasse. O partido não existe, está constituído. Aos poucos ele emerge, ganha contornos e conteúdos mais claros. A sua natureza torna-se mais clara e o número dos seus membros aumenta à medida que surgem possibilidades de ruptura com o sistema.

Contudo, a constituição do partido não é um fenómeno novo e indeterminado. O partido, tal como nasce num determinado período histórico, é o ressurgimento de um movimento que escapa a esses limites temporais. O partido moderno reconecta-se com um partido cuja realidade e até memória foram apagadas pela contra-revolução. Fora dos períodos de insurreição, quando o comunismo só consegue afirmar-se de forma tímida e descontínua, o partido em sentido estrito está condenado a permanecer uma fracção minúscula e negligenciada da população. Ao lado dos comunistas conscientes, há muitos comunistas inconscientes que manifestam exigências revolucionárias através do seu comportamento. O partido, no sentido lato daqueles que se mostram mais ou menos conscientemente comunistas com base no aumento de oportunidades, não é visível. A sua imagem não se concretiza no espetáculo reinante. No entanto, o seu poder é sentido no próprio nível deste espetáculo. Publicitários e políticos que colocam o seu lixo são ecos distorcidos das suas esperanças. A burguesia e os burocratas tremem diante desta ameaça ainda sem nome e sem rosto.

É contraditório afirmar ser comunista num mundo que reprime o comunismo por todos os meios. Os comunistas não são super-homens que já vivem de forma diferente dos seus pares. Eles não escapam da pobreza ambiental. Para transformar as suas próprias vidas, a sua consciência teórica tem pouco peso. 82

É essencial e, em qualquer caso, inevitável que apareçam comunistas conscientes e se encarreguem de compreender e preparar a revolução comunista. Mas não podemos opor-nos aos comunistas conscientes e aos comunistas inconscientes. O que importa é ver como e porquê a consciência comunista se desenvolve como uma necessidade prática.

Certamente há pessoas que se autodenominam revolucionárias. A produção destes “revolucionários” não é independente da ascensão da crise. A maioria deles não são comunistas e nem sabem o que são e o que querem. O desejo de revolução apresenta-se como o último e mais vazio desejo possível nesta sociedade. É uma abstracção separada das necessidades e esperanças concretas. O “revolucionário” pode falar de tudo, apaixonar-se por questões de estratégia, mas é incapaz de definir o que aspira. Se fala das transformações a serem feitas, a sua perspectiva é dominada pela questão do poder. A sociedade a construir baseia-se numa nova distribuição de poder. O que “queremos” é poder popular, poder operário, poder estudantil, poder municipal (+ eletrificação ou automação!), poder das pessoas sobre as suas próprias vidas, poder para poder...

Pelo contrário, a maioria daqueles que serão revolucionários quando a revolução corresponder a necessidades e possibilidades concretas não sentem a necessidade de se auto-denominarem revolucionários.

Só numa fase de confronto aberto, quando existe a possibilidade de comunização do corpo social, é que o partido pode deixar de ser apenas a reunião de opiniões comuns ou o produto de acções esporádicas. Pode finalmente tornar-se uma comunidade de acção.

Quando o proletariado participa como um todo na revolução, o partido não se confunde com a classe. Ele não afirma ser o proletariado ou representá-lo. É a fracção mais lúcida e determinada. Co-existe, colabora ou entra em conflito com outras fracções mais moderadas ou subservientes aos aparelhos e ideologias burguesas.

Podemos caracterizar a sua acção numa frase: Crie a situação que torne impossível qualquer retrocesso.

É normal que surjam oposições entre a acção dos comunistas e o comportamento das massas. Isto não é um sinal de antagonismo fundamental. O partido não tem de eliminar organizações e movimentos de massas. Os conselhos e outros comités de base não têm de eliminar o partido. Se uma destas duas coisas acontecesse, significaria necessariamente o fim e a derrota da revolução. Esta visão de antagonismo é um legado da revolução russa e da onda conselhista da década de 1920. Tem apenas um defeito: considerar como comunistas organizações que não o eram.

O partido lutará pelos conselhos porque esta luta não pode ser separada daquela pelo comunismo. Mesmo que neste ou naquele ponto ou modo de organização os comunistas se encontrem em desacordo com as massas.

O próprio partido, que não é uma organização ou pior uma instituição unificada a partir de cima, organizar-se-á em modo conselhista. É o encontro daqueles que se colocam para além das tarefas e interesses imediatos da defesa do todo o movimento. 83

Deve indicar as fortalezas a serem desmanteladas, concentrar forças em pontos estratégicos e propor soluções.

Não há nenhuma organização que possa dizer que é o partido. Ele nunca se identifica com nenhuma seita ou organização de massa. Os apoiantes do comunismo manifestam-se pelo que fazem e não pela pertença a um grupo limitado. As formas organizacionais não precisam ser fixadas ou unificadas antecipadamente. Elas serão descobertas durante o movimento.

VII INSURREIÇÃO E COMUNIZAÇÃO

A comunicação da sociedade não ocorrerá de forma gradual e calma, mas de forma abrupta e insurreccional. Não será uma viagem tranquila para a qual as forças complacentes se reunirão gradualmente.

A insurreição e a comunização estão intimamente ligadas. Não haverá primeiro uma insurreição e depois, possibilitada por esta insurreição, a transformação da realidade social. O processo insurreccional retira a sua força da própria comunização. Entre o capitalismo e o comunismo não existe algum tipo de modo de produção misto e intermediário. O período de transição, ou melhor, o período de ruptura é caracterizado pela contradição entre métodos absolutamente comunistas, por um lado, e por outro, uma realidade ainda impregnada de mercantilismo. É nesta fase que uma sociedade de abundância e liberdade deve enfrentar problemas de escassez e poder. Deve liquidar os efeitos humanos e materiais de uma era de escravatura e neutralizar as forças que lhe permanecem ligadas.

A VIOLÊNCIA

O uso da violência, para atingir os seus fins, é o que distinguiria os revolucionários dos reformistas.

A oposição entre revolucionários e reformistas não tem tanto a ver com estratégia e método, mas sim com a natureza da transformação a ser realizada. Daí surge obviamente uma diferença de método.

A história distinguiu dois tipos de reformistas: os suaves e os duros.

Os reformistas suaves, os social-democratas e os parlamentares, acreditam que os seus ajustamentos podem ser feitos com suavidade. Muitas vezes têm razão na medida em que as suas ilusões se relacionam com a profundidade das reformas que podem aplicar. Todos os dias e nos quatro cantos do mundo provam que os interesses vigentes concordam em não reprimir aqueles que não os ameaçam. Estes reformistas suaves tornam-se por vezes duros, mas a sua dureza é exercida principalmente contra o proletariado.

Ao lado deles estão os verdadeiros linha-dura, isto é, os estalinistas e similares. Essas pessoas pensam que são revolucionários. O seu objectivo é dominar o Estado e controlar a economia, substituindo os líderes existentes. Eles não têm nenhum interesse em subestimar a capacidade de resposta dos seus adversários. O seu sucesso e até a sua pele estão em jogo. 84

E os revolucionários?  

A revolução comunista é uma tremenda convulsão social. Envolve confrontos e violência. Mas se a revolução é um acto de força, o seu problema essencial não é um problema de violência e a condição do seu sucesso não é essencialmente uma questão de força militar.

Isto porque a revolução não é uma questão de poder. Não disputamos o Estado ou a economia com quem está no poder. Graças às posições que ocupa na economia, o comunismo poderá minar as bases e desarmar a contra-revolução, especialmente a militar. Ele evitará o confronto directo tanto quanto possível.

A revolução comunista não faz da violência o problema central porque visa dar vida ao que já existe e não forçar um projecto a tornar-se realidade.

Tanto quanto fanáticos e fetichistas da violência, opomo-nos aos pacifistas. Por mais que possamos e devamos adoptar métodos não violentos, inclusive em relação aos militares, não podemos aceitar a ideologia não violenta. Esta ideologia carrega e depende de ilusões educacionais. Assume que todas as pessoas podem ser educadas na não-violência e podem mobilizar-se friamente. Quer acções de massa mas não vê que os problemas de informação e coordenação colocados por este tipo de acção e resposta não podem ser resolvidos sem a possibilidade de violência. A não-violência sistemática pressupõe que haja um consenso entre os adversários para respeitar certas regras e, antes de tudo, uma liberdade mínima de informação.

A não-violência é mais eficaz como método defensivo. Os seus limites aparecem na hora de tomar a iniciativa e neutralizar os seus inimigos.

Quanto mais a revolução se erguer com força e lucidez, quanto mais ela impõe e apresenta as suas opções como irreversíveis, mais será capaz de reunir os hesitantes e neutralizar os adversários. Compreender o papel limitado mas essencial da violência pode evitar erros com resultados sangrentos.

O proletariado não pode renunciar à obtenção, fabrico e utilização de armas. Se as armas nem sempre estão espalhadas pela sociedade, os materiais utilizados para fabricá-las são frequentes e em grandes quantidades. É fundamental identificá-los e preparar-nos para a sua possível utilização, armar-nos e preparar armadilhas que farão com que os nossos inimigos paguem caro pelas suas intervenções. O que é ridículo e vergonhoso é pressionar as pessoas a formarem grupos de auto-defesa e a equiparem-se com armas ou facas para defenderem as suas fábricas e bairros contra tanques ou aviões.

Não podemos prever o curso de futuras insurreições, mas podemos defender uma estratégia antecipadamente e durante o movimento. Esta estratégia baseia-se na própria natureza da revolução comunista e nos pontos fortes de cada indivíduo. 85

Os burgueses e os burocratas dependem do exército. A força do proletariado está na sua posição económica.

O exército é vulnerável, mas não tanto do ponto de vista militar, mas sim devido à sua dependência da economia. Depende cada vez mais directamente dele para obter armas, munições, alimentos e transporte. Inclui operários e técnicos. Para travar a guerra, e a guerra moderna é dispendiosa, a administração deve seguir-se e o país deve funcionar. A contra-revolução militar deve ser atacada na sua rectaguarda económica. É crucial que um exército nacional não possa reprimir noutros lugares porque a paz social seria mantida a nível interno.

Os militares conhecem o risco que correriam se tivessem de compensar as “falhas” dos operários no campo da produção. O exército não pode organizar a economia contra os operários. Ela prefere ter um oponente bem definido e da mesma natureza que ela a ter que realizar tarefas que lhe são estranhas, ficando presa nelas e ali se dispersando.

O EXÉRCITO

É comum imaginar a revolução como um confronto entre dois exércitos. Um às ordens dos privilegiados e dos exploradores, o outro ao serviço dos proletários. A revolução é reduzida a uma guerra. A questão é a tomada do poder e o controle dos territórios. Esta é uma visão perigosamente falsa. Baseia-se na memória das batalhas das guerras civis russa e espanhola, bem como nas guerras de libertação nacional.

Mesmo que neste ou naquele momento, nesta ou naquela circunstância, a acção revolucionária tome um rumo militar: intervenções de comandos, ataques aéreos... isto não mudará nada na natureza profunda e no carácter global do conflito.

Ver a revolução como um confronto entre exércitos vermelhos e brancos não seria comunista, mas também seria estúpido, dada a desproporção das forças militares presentes. Oferecer uma guerra ao capital seria entrar no seu jogo.

O exército e a polícia constituem o último bastião do capital. A sua acção pode exprimir-se directamente pela destruição dos homens e das coisas, mas também pela criação e manutenção de uma situação de escassez susceptível de desenvolver o egoísmo, o medo e outros velhos reflexos. Isto colocaria as populações necessitadas contra os revolucionários causadores de problemas e tenderia a reavivar os mecanismos comerciais.

O exército pode ser usado para operar e controlar determinados sectores estratégicos da economia.

Pela sua natureza hierárquica que elimina a discussão e a contestação em favor da obediência e da disciplina, pela sua função e pela sua ideologia patriótica o exército tende a ser um órgão conservador.

Mas a contra-revolução militar tem falhas.

A impressão de segurança e o sentimento de direito que os soldados retiram do seu gueto e dos seus encantos correm o risco de serem rapidamente prejudicados se não conseguirem justificar-se e fortalecer-se no confronto com um exército oponente num campo de batalha bem definido. Devemos impedir que o exército funcione como um exército, opor-lhe a fluidez dissolvente do comunismo. Trata-se de paralisar, contaminar, dividir, deslocar as forças militares. 86

As nossas intervenções armadas devem acompanhar de perto a nossa acção de destruição e reconstrução social. O uso da violência não deve tornar-se uma actividade autónoma e auto-justificável. Serve para bloquear e desbloquear situações directamente baseadas na comunização que lhe dá a sua justificação mas também a sua força.

Nunca seremos suficientemente cautelosos durante ou antes de uma fase insurreccional de violência separada, de terrorismo. Os revolucionários encontram-se presos numa espiral de luta e resposta da qual o comunismo acaba por estar ausente. Quando a violência se torna violência para o comunismo e já não acompanha o comunismo, quando é esvaziada do seu conteúdo imediato, isto permite todas as provocações. É fácil cometer assassinatos ou ataques e atribuir a culpa aos revolucionários.

Através da transformação imediata e radical da organização social, devemos puxar o tapete aos pés dos militares, privando-os de algo para defender. O exército é um instrumento, não pode fazer tudo sozinho como organização de violência. Você pode fazer qualquer coisa com uma baioneta, excepto sentar-se nela.

Há um preconceito na esquerda favorável aos intelectuais e desfavorável aos militares. Quando se trata de revolução, pensamos naturalmente que a primeira ficará do lado dela e a segunda contra ela. De um lado a inteligência, do outro a força cega.

A história mostrou o elemento de erro que estes preconceitos contêm. Desde a Comuna de Paris, onde o Coronel Rossel se aliou aos insurgentes e foi fuzilado por isso, e onde os escritores progressistas G. Sand e E. Zola cuspiram nesses mesmos insurgentes, parte das forças armadas tem sido regularmente transferida para o lado da insurreição. e uma parte não menos notável da intelectualidade levantou-se contra ela.

A revolução é assim que quando ocorre às vezes assusta quem a quis e encanta quem a temia.

O exército forma um corpo bastante autónomo cujos valores são em parte estranhos aos valores propriamente burgueses e mercantis. A classe burguesa não é capaz, tal como a classe feudal, de se encarregar da sua própria defesa. Ela repassa para o exército ou para a polícia. Mesmo que alguns dos líderes do exército identifiquem completamente os seus interesses com os da classe dominante, existe, no entanto, uma contradição latente entre os interesses e o comportamento dos militares e os da burguesia.

Não devemos acreditar que o exército ou parte do exército se aliará espontânea e facilmente à revolução. Isto só pode acontecer dependendo do desenvolvimento da revolução e da sua penetração no exército. O exército tornar-se-á revolucionário na medida em que, sob a pressão dos soldados e oficiais, a omnipotência da hierarquia será posta em causa e a obediência cega será condenada. 87

Os revolucionários não devem fazer concessões ao militarismo. Devemos mostrar aos militares que não lutam em seu próprio nome e muito menos em nome da Nação. Deve ser demonstrado que os seus ideais são minados pelo movimento de capitais. Devemos também mostrar que os militares, enquanto homens e com as suas próprias capacidades e qualidades, têm o seu lugar no movimento comunista.

O nosso objectivo é a destruição do exército. Devemos esperar que isso possa ser alcançado com o menor número possível de confrontos com os militares. Pouco a pouco, os grupos armados recém-formados ou integrados perderão o seu carácter próprio ao participarem em tarefas produtivas e em conselhos operários.

A revolução não deve compreender mal a sua força e perder as possibilidades de integração nas suas forças, transformando-as em órgãos de repressão da velha sociedade. O policia pode estar muito disposto a servir o que não lhe parece mais uma subversão, mas sim uma nova autoridade. Podemos até esperar que alguns não queiram mais ser lacaios.

Em qualquer caso, os revolucionários e os proletários não devem deixar o monopólio das armas a outros. Esta questão de armar o proletariado será um teste para avaliar o valor de reunir soldados para a revolução.

VINGANÇA

Os revolucionários não têm gosto por sangue nem espírito de vingança. As insurreições passadas mostram que os insurgentes são geralmente responsáveis ​​por pouco do derramamento de sangue. A esperança apaga o ressentimento.

Foi a contra-revolução que massacrou, prendeu, deportou. O sangue foi derramado durante os combates, mas muitas vezes também depois, quando a vitória militar foi alcançada. Fúria assassina nascida do terror dos ricos. A reacção deve esmagar as forças opostas. A revolução parece-lhe residir nos revolucionários. Eles devem, portanto, ser destruídos.

O espírito de vingança pode ter desempenhado um papel nas insurreições dos operários. Mas o que é isso se compararmos a sua acção com a repressão de Versalhes, do Kuomingtang em 1927, dos franquistas...

As insurreições operárias foram muito menos vingativas do que as revoltas camponesas anti-feudais. Isto ocorre porque a revolução não é um acto de desespero. A destruição de propriedades e as represálias contra as pessoas são muitas vezes obra daqueles que não sabem como escapar à pobreza e se contentam em aniquilar aquilo que encarna a opressão.

Vingar-se não seria apenas mesquinho, seria estúpido. Condenar antecipadamente com base no passado é fortalecer os nossos adversários no seu medo e determinação. Não é criar inimigos entre aqueles que, com ou sem razão, pensam ter algo pelo que se censurar. É encorajar o acerto pessoal de contas.

Devemos oferecer aos nossos adversários a oportunidade de mudar de lado. Os princípios comunistas não ditam por si só um modo de conduta uniforme. Pelo contrário, implicam que a diversidade de personagens, situações e passados ​​daqueles que participam na revolução podem ser expressados. Melhor, implicam que se os nossos adversários conseguirem cegar-se a si próprios, para não vermos mais em nós mesmos nada além de “vermes vermelhos”, devemos, pela nossa parte, continuar a reconhecer um ser humano no pior dos nossos inimigos. Sem qualquer ilusão sobre a natureza humana.

Seria estúpido alienar médicos, engenheiros, agricultores quando muitos deles estarão dispostos a juntar-se a nós sem que façamos concessões ao mito do especialista, à hierarquia do trabalho, à propriedade. Isto significa que, por vezes, os conselhos terão de proteger determinadas situações adquiridas. Isto irá contra a igualdade, mas irá pressionar algumas pessoas, dando-lhes ainda algo que valorizam. Aos médicos pode ser garantida a utilização da sua residência e do seu equipamento profissional desde que não emigrem e que tratem quem dele necessita. Essa segunda casa localizada no campo pode retornar ao seu legítimo proprietário, um parente ou amigo, sem admitir que as pessoas possam ter duas casas e outras ficarem num bairro da lata.

Por outro lado, quem procura preservar privilégios ou aproveitar a situação para encher os bolsos deve saber que não poderá beneficiar da piedade das suas vítimas.

Quanto mais confiantes estiverem os conselhos revolucionários, mais serão capazes de estabelecer regras claras, mais serão capazes de transformar rapidamente a realidade e menos violência será necessária.

RECONVERSÃO

Comunizar não significa expulsar os patrões das empresas e das fábricas para se agarrarem a elas, mas começar por fechar grande parte delas.

A fronteira entre a contra-revolução e a revolução passará entre aqueles que em nome da pátria, da democracia, da autogestão, dos conselhos operários, de Cristo Rei ou do creme de chocolate empurrarão os operários-consumidores a agarrarem-se às suas prisões e às suas drogas e aqueles que pressionarão para reduzir massivamente e reconverter radicalmente a produção. Tratar-se-á de reduzir a poluição e de romper o mais rapidamente possível com a brutalização do trabalho e a pseudo-abundância mercantil. Ficar na sua fábrica, mesmo para a gerir você mesmo, é congelar a situação em benefício da contra-revolução. Quer esta atitude seja professada por workaholics (viciados no trabalho – NdT), por sindicalistas ingénuos ou por capitalistas malandros que esperam poupar tempo, o resultado é o mesmo.

Os revolucionários serão provavelmente acusados ​​por todos estes bons apóstolos de quererem perturbar a produção e baixar o nível de vida do povo.

Nesta redução da produção não deveríamos ver qualquer fascínio pela austeridade. Os sacrifícios exigidos serão muito menores do que os exigidos por outra solução. Uma falsa solução que serviria apenas para evitar uma ruptura decisiva com o passado e para imobilizar as forças necessárias à luta. Falsa solução que reunirá todos aqueles que têm medo de ver desaparecer as bases do seu poder: sindicalistas convictos, pequenos e grandes dirigentes, políticos, administradores, patrões... 89

Só interrompendo a produção de uma miríade de produtos inúteis, inúteis ou nocivos e quebrando a divisão entre empresas poderemos concentrar forças para produzir em abundância os produtos essenciais ou necessários. Será necessário realizar pesquisas e iniciar a implantação de novas produções. A comunização, portanto, não significa apenas desmonetização, mas também rápida transformação da produção. As duas coisas estão intimamente ligadas.

Operários, assalariados, professores serão convidados a ir para onde forem verdadeiramente úteis. Estas mudanças basear-se-ão, antes de mais, no desgosto espontâneo das massas pelo seu trabalho e na revelação das suas capacidades. Não serão realizados sob a égide de um centro director, mas surgirão de uma infinidade de iniciativas diversas. Isso não significa desordem e desleixo. Toda a revolução envolve um elemento de incerteza, caos e desperdício. É importante reduzi-lo ao mínimo. Esta é particularmente a tarefa dos mais radicais. Não somos contra a ordem, nem contra a disciplina, nem contra a organização, nem mesmo contra a autoridade. Teremos de denunciar e combater aqueles que confundem revolução com bordel com a mesma determinação com que atacamos os estatistas cujo jogo eles jogam.

A reconversão deve, em primeiro lugar, garantir a satisfação das necessidades mais básicas. Então terá de favorecer, em vez da criação de certos produtos, a criação das ferramentas e máquinas necessárias ao seu fabrico. Este material será difundido entre a população e permitirá que todos façam o que gostariam que outros fizessem.

Aqui estão algumas indicações sobre as possíveis mudanças dependendo dos principais sectores económicos. Nenhuma dessas transformações faz sentido por si só. O perigo de fazer propostas concretas é que elas podem ser utilizadas contra o comunismo. Mas não devemos esquecer que os revolucionários não podem contentar-se em afirmar princípios gerais e que devem, dependendo de uma situação específica, propor soluções concretas.

Energia: Haverá uma redução significativa na produção de energia. Esta redução decorre naturalmente do encerramento de parte da indústria que consome a maior parte desta energia. Talvez, de qualquer forma, se tornasse obrigatório devido à dificuldade em garantir o abastecimento de petróleo, gás e carvão.

A distribuição de energia será transformada. Parte do que era utilizado directamente pela indústria poderia ser transferido para o consumo doméstico: aquecimento, iluminação, alimentação de pequenas máquinas.

Implementaremos gradativamente novas fontes de energia. Será necessário desenvolver aquilo que menos polui e que poupa recursos limitados, como os combustíveis fósseis. Poderíamos encorajar a produção descentralizada e intermitente para uso local. Em qualquer caso, isto não significa que o comunismo se oponha fundamentalmente à energia nuclear. Precisamos simplesmente de garantias sérias sobre as condições de produção e os requisitos de utilização. No curto prazo, a água, o vento e o sol parecem preferíveis. 90

Transportes: Os transportes desperdiçam energia, poluem, criam desigualdades sociais... Mais uma vez, haverá uma redução e uma racionalização significativas que serão possíveis através da requalificação do espaço. As pessoas conseguirão evitar viagens muito longas. Elas terão menos oportunidades de se mover contra a sua vontade. Horários mais livres permitirão evitar aglomerações nos mesmos horários e nos mesmos veículos. A produção dos automóveis actuais pode geralmente ser interrompida. A quantidade de automóveis em circulação, utilizados de forma mais racional, permite aguardar o desenvolvimento e o fabrico de máquinas menos miseráveis. Alguns dos veículos poderiam ser utilizados como táxis, com ou sem motorista, ou utilizados para missões públicas.

A grande maioria dos carros provavelmente continuará a ser usada de forma privada. Isto permitirá preservar hábitos tradicionais e interessar os utilizadores no bom funcionamento daquilo que lhes continuará a pertencer. Esta adesão pode ser limitada por determinadas condições de utilização que visam restringir e eliminar a circulação em determinados locais e permitir a melhor utilização e preenchimento possível.

O comboio e outros meios de transporte guiados devem ser incentivados e desenvolvidos. É ainda aqui que se encontram a melhor segurança, a melhor eficiência energética e a menor utilização possível do solo. Estas máquinas rápidas e confortáveis ​​poderão ser complementadas por veículos mais lentos, mais individuais e flexíveis na utilização, que serão equipados com motores não poluentes.

Entretanto, podemos continuar a produzir camiões, bicicletas, scooters e bons sapatos.

Para reduzir a necessidade de viagens, especialmente no que diz respeito a contactos rápidos de longa distância, será necessário desenvolver uma boa rede telefónica ou de videofone. Isso permitirá que muito mais pessoas do que hoje entrem em contacto a um custo muito menor. O avião é um aparelho barulhento e poluente para empresários e turistas ocupados. O seu uso é difícil de generalizar para todos. Será, portanto, necessário eliminá-lo ou reduzi-lo a determinados casos particulares.

Para viagens de longa distância, por que não trazer os grandes navios de volta à moda, modernizando-os? A sua produção daria origem a uma concorrência saudável. Em qualquer caso, existirão outros meios de transporte de um continente para outro. Para isso não há necessidade de supersónico.

Imprensa: Este é um sector cuja importância revolucionária é fácil de compreender. Quem controlará a imprensa?

Durante os períodos de insurreição, os trabalhadores controlavam regularmente o conteúdo dos jornais que imprimiam. Tudo começará de novo, não importa o que aconteça com os defensores da liberdade de imprensa, que muitas vezes são apenas defensores da liberdade do dinheiro. Mas isto não é o suficiente. A imprensa terá que se transformar. Deixará de ser o reflexo contemplativo da realidade.

A revolução permitirá a liberdade de expressão impossível hoje. Uma grande quantidade de pequenas máquinas de impressão pertencentes a empresas e administrações será disponibilizada a todos. 91

Amanhã qualquer livro ou texto não será publicado e distribuído com base no acordo de uma editora. Será apoiado directamente e impresso primeiro por aqueles que nele estiverem interessados. O seu sucesso dependerá, portanto, da coragem do seu autor e do apoio prático que encontrará.

Hoje, uma parte considerável do custo de um livro deve-se à sua distribuição e promoção publicitária. A vantagem do comunismo é óbvia. Podemos até aceitar, para salvar as florestas, que jornais ou textos circulem ou sejam publicados.

O comunismo, ao mesmo tempo que promove a expressão escrita, oral ou audiovisual de todos, deverá permitir reduzir as despesas da sociedade em papel e tinta.

O que será da literatura? Não há dúvida de que se transformará e que a actividade romântica perderá gradualmente a sua necessidade. Não haverá mais, mesmo que continuemos a lidar com a ficção, um mundo de livros oposto ao mundo real. Talvez com o tempo, a comunicação escrita perca importância e tenda a desaparecer.

Construção: A indústria da construção passará por mudanças. Isso não significa que os pedreiros ficarão desempregados. A construção é uma das poucas actividades que não diminuirá.

No entanto, terão de ser tomadas medidas para limitar ou proibir mais radicalmente a construção em cidades e subúrbios sobrelotados. Mas as pessoas que se deslocam para fora destes centros urbanos terão de ser acomodadas. Casas e edifícios de todos os tipos terão de ser iniciados. Será também necessário demolir e organizar a recuperação de materiais.

Ali, como noutros lugares, mas talvez ainda mais rapidamente, o profissionalismo será prejudicado. Quem quiser ter uma casa nova terá que colocar a mão na massa. Serão ajudados por aqueles que, através da formação ou da experiência, os conhecem melhor.

Aqueles que estiverem mal alojados serão imediatamente transferidos para apartamentos e residências que, seja qual for o motivo, sejam gratuitas. A suspensão do pagamento de rendas e despejos será naturalmente uma das primeiras manifestações da revolução. Vestuário: Não podemos transformar tudo de uma vez. Teremos que continuar a produzir com base nos materiais e máquinas existentes. As transformações certamente poderiam ser feitas com bastante rapidez no sentido da qualidade e da solidez.

Um certo número de modelos de roupas e sapatos pode ser produzido em grande número. Paralelamente, desenvolveremos a produção de tecidos e pequenas máquinas para que as próprias pessoas possam fazer o que precisam. Isso permitirá que os produtos sejam adaptados ao gosto das pessoas. Isto permitirá que a distribuição dos recursos dependa dos esforços directamente prestados. Alimentação: A industrialização de produtos alimentares resultou geralmente numa deterioração da qualidade destes produtos. O comunismo deve aumentar o mais rapidamente possível a quantidade de alimentos produzidos, alterar a sua distribuição, especialmente em benefício das populações subnutridas do Terceiro Mundo, e agir para melhorar a qualidade. 92

Serão introduzidas alterações na composição dos produtos. Será necessário excluir tudo o que seja prejudicial ou mesmo inútil e que sirva apenas para enganar o consumidor. A embalagem será simplificada.

Do ponto de vista agrícola, será necessário limitar e reduzir gradualmente a utilização de produtos químicos. Esta não é uma posição de princípio contra qualquer coisa química ou artificial, mas uma oposição à deterioração real e à falsificação dos produtos agrícolas.

A monocultura terá que dar lugar à policultura e à associação da agricultura e pecuária que permite a reciclagem e utilização de estrume e resíduos. Isto permite reduzir a importância das contribuições externas, que são de vital importância especialmente para os países não industrializados.

É melhor para as forças da sociedade investirem directamente no cultivo da terra, em vez de em fábricas de fertilizantes e produtos químicos. Mesmo que isso signifique desviar a atenção dos braços da agricultura, é melhor fabricar ferramentas e máquinas agrícolas. Este material terá de ser introduzido, em particular, na agricultura do Terceiro Mundo.

A investigação sobre a qualidade dos alimentos e os métodos agrícolas, que estão actualmente relativamente subdesenvolvidos, terá de ser alargada. Devemos seleccionar as melhores variedades de plantas, os métodos mais suaves para o solo e uma distribuição de culturas adaptada às necessidades alimentares. Na agricultura, como noutros lugares, há escolhas a fazer: devemos favorecer a produção de proteínas animais ou vegetais? Devemos preferir rendimento ou robustez?

Saúde: Os problemas de saúde são em grande parte causados ​​pelas condições de vida e de trabalho. O comunismo, ao revolucionar estas condições, fará muito pela saúde das populações.

A ênfase deve ser colocada nas medidas de higiene e prevenção. A produção de medicamentos será reduzida. Alguns produtos que são inúteis ou que atualmente parecem úteis serão removidos. Tal como acontece com as marcas de detergentes para a roupa, existem vários produtos para o mesmo produto farmacêutico. O custo da embalagem e da publicidade supera o custo do produto realmente activo. Tudo isso obviamente desaparecerá.

Trata-se de desprofissionalizar a medicina o mais rápido possível. Isto significa reintroduzir conhecimentos médicos e higiénicos perdidos na população. Viabilizar o uso de plantas medicinais. Isto significa formar uma fracção da população para que possa intervir clinicamente, num prazo bastante curto.

Educação: O período de insurreição e reconversão desenvolverá a necessidade de educação e aprendizagem. Como grande parte da população terá de mudar de actividade e como todos terão de aumentar as suas competências, será necessário aprender.

Esse aprendizado será feito em grande parte no trabalho. Todos devem compartilhar os seus conhecimentos com os seus companheiros.

A televisão e a rádio permitirão transmitir o que as pessoas necessitam a baixo custo. É fácil transmitir cursos de mecânica, agricultura, alvenaria que complementarão o aprendizado prático. 93

O que será dos professores? Não se trata de proibir o ensino, mas o facto de ser apenas professor deve ser desencorajado por todos os meios. Em qualquer caso, grande parte da cultura deixará de ser objecto de ensino em sentido estrito. No que diz respeito às crianças, não se trata de retirar à força a custódia dos professores que amam a sua profissão. Mas a partir do momento em que as actividades oferecidas às crianças se multiplicarem e deixarem de ser um fardo para os adultos que não estarão mais acorrentados ao trabalho profissional ou doméstico, será impossível que a escola se mantenha.

O corpo docente, para garantir o seu bem-estar, terá todo o interesse em dedicar-se, como todos os demais, às tarefas práticas. Se não o fizer, pagará directamente o custo. Não há dúvida de que a maioria dos professores que ensinam cada vez mais máquinas apreciarão um novo modo de vida que, em qualquer caso, não os impedirá de partilhar os seus conhecimentos com outros.

Religião: Alguns crentes de pouca fé afirmam que a revolução comunista faria desaparecer a religião. É duvidar do poder do Senhor para cuidar dos seus assuntos. Quanto a nós, deixamos isso para ele.

RUPTURA

Entre o capitalismo e o comunismo não existe uma fase de transição mas sim uma fase de ruptura onde os revolucionários devem procurar aplicar medidas irreversíveis.

Alguns lamentam a mercantilização e a industrialização de toda a vida social. Eles gostariam que as coisas mudassem, mas querem permanecer razoáveis. Eles apelam às autoridades locais ou às suas oposições oficiais para promover mudanças. Acima de tudo, eles gostariam que as coisas mudassem em ordem. Para eles, a irrupção das massas no cenário da história só pode levar à mais inextricável desordem.

Gostariam de desmercantilizar gradualmente a economia através do desenvolvimento de serviços públicos e de bens gratuitos. O trabalho assalariado seria reduzido e paralelamente desenvolver-se-iam novas actividades produtivas menos desumanas.

Os mais ousados ​​prevêem o eventual desaparecimento das mercadorias e do trabalho assalariado.

É sempre a mesma esperança de poder usar e amordaçar o capital. A mesma ilusão é propagada por aqueles que querem manter o emprego assalariado, eliminando as diferenças salariais ou fazendo com que o salário seja uma compensação justa pela penosidade do trabalho. O capital é fundamentalmente expansionista e imperialista. É por isso que tende a dominar toda a vida social. Um sector não mercantil que operasse paralelamente ao sistema de mercado seria rapidamente remercantilizado. Ou continuaria a ser uma actividade de lazer e um jogo completamente dependente do capital como o actual DIY, ou ganharia importância e a sua produção circularia e então reinventaria para si o capitalismo. Haveria decomposição interna e agressão externa. Os produtores “livres”, os artesãos de fim de semana  que continuariam a ser prisioneiros de um modo de vida burguês procurariam muito naturalmente obter rendimentos da sua produção paralela para complementar os seus rendimentos. 94

Deveríamos contar com o poder político para apoiar tal “revolução”? Isto significa esquecer a sua dependência da economia. É opor o totalitarismo de mercado ao totalitarismo de Estado.

Podemos contar com uma transformação de mentalidades? É acreditar que o mercantilismo é antes de tudo uma perversão da mente. As mentalidades serão o que a situação lhes permitir ser. Você não pode ter um pé no novo mundo enquanto mantém a mão na carteira.

Estas concepções reformistas nada compreendem sobre a necessidade de uma ruptura global e a natureza da actividade proletária revolucionária. Não vêem que é na situação e na actividade da classe dos despossuídos que se encontra o verdadeiro adversário do sistema comercial. Acreditamos que podemos tomar medidas contra o capital porque o consideramos como algo cujo poder deve ser limitado e não como uma relação social.

O capital pode divertir-se libertando a actividade humana e aparentemente desmercantilizando. Ele vende uma nova vida nos seus clubes de férias, nós pagamos para não ter que pagar. Os novos sistemas de pagamento tendem a evitar o contacto directo e opressivo com o dinheiro. Tudo isto demonstra a necessidade e a possibilidade do comunismo, mas também a natureza recuperativa, vampirista e mentirosa do capital.

O sistema de mercado é um todo. Ele será derrubado como um todo. Não podemos comunizar sectores cujo intercâmbio ligou intimamente um após o outro. Em qualquer caso, acreditamos que poderíamos limitar o âmbito de intervenção de uma insurreição? Precisamente as medidas “anti-mercado” que visam restringir temporariamente ou tornar menos visível a acção do capital só poderiam ter como objectivo dissuadir ou parar uma insurreição. Qualquer que seja a boa vontade ou mesmo a semi-compreensão daqueles que as propõem, elas só podem ser utilizadas para a contra-revolução.

Num período de insurreição, os revolucionários terão de se esforçar por denunciar medidas falsamente radicais e por acelerar o curso das coisas. Muitas vezes as suas acções serão denunciadas não francamente como sendo revolucionárias, mas como excessos por aqueles que se disfarçarão de revolucionários para melhor combater a revolução.

A solução para os problemas significativos que a ruptura repentina com a economia de mercado colocará dependerá sobretudo da organização consultiva da produção e distribuição de bens. A discriminação pela escassez de produtos não será mais estabelecida pelo dinheiro, mas nesta fase intermediária pelos conselhos e comités de “consumidores” que garantirão a distribuição de acordo com o melhor aproveitamento possível. O perigo é acreditar que poderíamos estabelecer um sistema misto para evitar dificuldades.

Os conselhos terão de resolver problemas difíceis, mas são a única força capaz de os resolver.

Para capacitar e apoiar a organização conselhista será necessário que a ala em marcha da revolução concentre as suas forças em certos pontos

estratégicos. Terá que destruir o que permitiria a sobrevivência ou o reinício do antigo sistema. 95

O sistema bancário e financeiro deve ser destruído nas suas bases materiais. Será necessário atacar estabelecimentos e queimar livros contábeis, papéis e arquivos. Qualquer coisa que se assemelhe a um meio de pagamento terá que ser exterminada.

Será necessário paralisar a máquina estatal. Isto não significa tanto desferir um ataque frontal ao centro do sistema, mas sim destruir os seus múltiplos tentáculos. O estado tem ramificações em todos os lugares. Esta é a sua força e a sua fraqueza.

Teremos de enfrentar tudo o que permite o controlo das pessoas, sobretudo documentos de identidade de todas as categorias. Será necessário procurar arquivos estatais ou privados. Além de alguns itens de interesse revolucionário ou histórico, arquivos e documentos administrativos de todos os tipos terão de ser destruídos.

A tomada de posse das prisões e a libertação de presos, incluindo presos políticos, estarão na agenda. Isso não tranquilizará as pessoas boas. Todo o submundo durante a noite na calçada. As prisões não estão cheias de bandidos horríveis e assassinos horríveis?

Na verdade, a maioria dos prisioneiros são proletários que queriam escapar da sua condição atacando mercadorias e propriedades. A maioria deles não são pequenos santos ou revolucionários generosos. Mas a razão dos seus ataques desaparece com o desaparecimento do sistema actual. A esmagadora maioria deles será capaz de colocar o seu talento ao serviço da revolução.

E o submundo? Geralmente os gangsters não estão atrás das grades. Às vezes até reprimem com a cumplicidade da polícia. Os assassinos ? Muitas vezes eles têm a lei do seu lado. Alguns estão até à frente de estados.

A libertação dos prisioneiros excluirá os canalhas e os notórios contra-revolucionários. O fim das mercadorias e a organização de milícias armadas ajudarão a reduzir o número de elementos do mal.

Estas diferentes medidas não podem ser realizadas em qualquer contexto e em qualquer equilíbrio de poder. Mas são uma necessidade imperativa para revolucionários e anti-estatistas.

Os comités responsáveis ​​pela distribuição de mercadorias poderão procurar mobilizar pequenos comerciantes e gestores e utilizar as suas instalações. Se estas categorias sociais mostrarem a sua capacidade de reconversão, tanto melhor. Se resistirem e procurarem continuar a ser donos dos seus stocks e das suas lojas, teremos de prescindir deles. Se os bens que possuem forem importantes e necessários, terão de ser apreendidos. Em qualquer caso, a sua potência é limitada porque basta cortar o fornecimento na fonte.

A publicidade poderia ser reconvertida em anti-publicidade. Isto implicará fornecer informações sobre as características e fabrico dos produtos, o estado das reservas e incentivar a moderação. 96

INTERNACIONALISMO

A revolução será mundial.

Não é um imperativo moral: todos os homens são iguais e irmãos e têm direito a isso.

A revolução será mundial porque o próprio capital é uma realidade mundial. Destruiu comunidades humanas, separou indivíduos, tornou todos concorrentes de todos os outros. Mas no mesmo movimento ele reuniu e unificou a raça humana sob o seu controle. Hoje e pela primeira vez na história desde Adão e Eva há uma coincidência entre a unidade genética e a unidade social das espécies.

O nascimento da ideia nacional e dos estados nacionais é fruto directo do desenvolvimento capitalista, da destruição de grupos tradicionais, da padronização através da troca e da desigualdade no crescimento. Mas se o capital se abriga atrás das fronteiras, não se deixa aprisionar aí. O seu desenvolvimento imperialista e anónimo sempre tendeu a conquistar e unificar os mercados. São diferentes países e áreas que foram sucessivamente locais privilegiados de acumulação de capital antes de se recusarem a dar lugar a outros.

A contemporaneidade viu esse movimento acelerar. Houve mundialização das relações de mercado e acentuação das desigualdades. A colonização, as guerras mundiais, o desenvolvimento de novos centros de acumulação, a constituição de novos Estados nacionais mais ou menos fantoches foram etapas deste movimento. A multiplicação de nações e estados não impediu a unificação, mesmo a nível político. Os estados pequenos são subservientes aos estados mais fortes. Agruparam-se em blocos militares e zonas económicas. Criaram instituições mundiais e forças de intervenção.

Ainda mais notável é a internacionalização do comércio e a criação de empresas multinacionais que acelerou a unificação política e privou os Estados de grande parte do seu poder económico. Estas empresas gigantes são mais ricas do que muitas nações. Elas têm uma visão mundial das coisas. Procuram produzir e vender onde é mais rentável, sem se preocuparem com fronteiras.

A troca padroniza a vida em todo o mundo e é o mesmo tipo de cereais, edifícios, ensinamentos que encontramos em todo o lado. A cor local preservada ou acrescentada é um argumento publicitário contra turistas e tradicionalistas. Nada ilustra melhor esta gadgetização da ideia nacional do que as típicas decorações que aviões semelhantes transportam pelo mundo. Aqui comemos à francesa, lá encontramos gueixas japonesas... e em quase todo o lado piratas aéreos palestinianos.

Diante de tudo isso, os revolucionários obviamente não clamam pela defesa ou restauração da pátria como faz um bando de idiotas e demagogos. Também não apoiamos movimentos regionalistas ou neo-nacionalistas que defendem a criação de novas pátrias mais legítimas. Ao invocar o direito à diferença e à autonomia, opomos o nacionalismo ao nacionalismo, o Estado ao Estado. Muitas vezes há, no início, uma reacção saudável contra o estatismo, a padronização e a desigualdade de desenvolvimento do mundo contemporâneo. A única solução possível é o fim do capital e de todos os seus Estados. 97

O comunismo não é inimigo da pátria, se por amor à pátria entendemos o apego dos homens à região, à paisagem, aos costumes, ao modo de vida local. Não queremos ressuscitar o paroquialismo, mas somos contra o nivelamento dos países e dos seus habitantes. Os defensores da pátria são muitas vezes apenas os defensores do Estado. A sua nostalgia quer ignorar o que destrói os valores que defendem.

O nacionalismo, paradoxalmente, desenvolveu-se à medida que o conhecimento e o apego do homem ao seu ambiente se deterioravam. Valoriza não uma comunidade real, mas a imagem de uma comunidade reflectida no estúpido fetichismo da bandeira ou do herói nacional. Os nossos tempos tornam todas essas bugigangas cada vez mais obsoletas. Os sentimentos que cristaliza são cada vez mais desvinculados da realidade ou hipócritas.

A maioria dos líderes que exaltam a ideia nacional contrabalança-a. As classes dominantes e privilegiadas demonstraram repetidamente quão pouco valorizam o patriotismo. O interesse nacional só é válido quando corresponde ao interesse do capital. Enquanto surgir uma ameaça proletária e as classes dominantes dos diferentes países se apressarem a reconciliar-se.

A revolução será mundial porque os problemas que terá de resolver serão mundiais. A interpenetração de diferentes economias torna impossível avançar sozinho. Em qualquer caso, se a revolução se desenvolver num único país terá que enfrentar a acção da contra-revolução externa. Mas esta interdependência, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a simultaneidade dos choques económicos e políticos tornarão a revolução mais contagiosa do que nunca. Cada Estado, ao fazer de polícia noutros locais, deve temer a pressa em casa. Quanto mais rapidamente a insurreição se generalizar, mais difícil será a repressão.

A fome e a poluição não têm causas locais, mesmo que os seus efeitos sejam bem localizados. A revolução deve estabelecer regras universais para a protecção da natureza. A agricultura deve ser organizada para satisfazer as necessidades de todas as populações.

Isto não significa que os países ricos e industrializados terão de se esgotar ou que os países pobres continuarão dependentes de áreas privilegiadas.

Cada região terá de encontrar formas particulares de organização e desenvolvimento, dependendo dos seus problemas e dos seus recursos e do tamanho do seu proletariado. Tanto quanto possível, será necessário sobreviver com recursos locais. Contudo, sobretudo no início, será necessário organizar transferências de equipamentos e técnicos para ajudar os mais desfavorecidos a sair o mais rapidamente possível da terrível pobreza. Se necessário, será necessário reduzir ou transformar o consumo alimentar em determinadas regiões para ajudar outras. Os comunistas estarão sempre na vanguarda da luta contra o egoísmo local.

Os países subdesenvolvidos podem ser comunizados apesar da fraqueza do seu desenvolvimento. A possibilidade do comunismo é estabelecida numa escala mundial. 98

O que importa não é tanto o desenvolvimento quantitativo das forças produtivas, mas o seu desenvolvimento qualitativo. Um certo nível técnico e científico gerará abundância quantitativa no curto prazo. A actual predominância dos países industrializados servirá o alvorecer do comunismo, apoiando as forças proletárias locais para liquidar o capital em todo o lado.

Como podemos promover transformações comunistas em países onde predominam as populações agrárias? Não haverá necessidade de repetir a acumulação primitiva. O comunismo não se consolidará como o capitalismo, derrubando as estruturas sociais tradicionais. Pelo contrário, poderá apoiar-se nestas estruturas, livrando-as dos seus aspectos mais negativos, encontrando comunidades camponesas de base sob o parasitismo e o feudalismo.

Isto não impedirá o desenvolvimento paralelamente às actividades modernas. Dentro destas comunidades podem ser introduzidas tecnologias: equipamentos agrícolas ligeiros, sensores de energia, métodos contraceptivos, cuidados médicos... Não há incompatibilidade absoluta entre o equilíbrio comunitário tradicional e o uso de técnicas simples de usar. Actualmente há casos em que populações primitivas sabem utilizar técnicas modernas. A verdadeira desvantagem é antes a desintegração destas comunidades sob a acção do capital.

É quase certo que as populações envolvidas e as estruturas sociais evoluirão. Mas este desenvolvimento não terá inicialmente sido uma destruição de pessoas e uma negação de valores comunitários.

Podemos confiar na classe operária para estabelecer a solidariedade mundial? Os operários não são frequentemente racistas?

Muitas vezes os operários são racistas. Racista para com os estrangeiros e especialmente para com os trabalhadores imigrantes ou minorias raciais. Vimos governos da “classe operária” mostrarem-se mais racistas, especialmente quando se trata de imigração, do que governos burgueses. Muitas vezes são os empresários que são a favor da imigração e da abolição de leis discriminatórias.

O racismo da classe operária corresponde antes de tudo a uma atitude do oprimido que não consegue escapar à sua condição e fica feliz por poder sentir-se superior ao seu cão, a um polícia ou a um imigrante. É a expressão de um verdadeiro interesse de classe, da classe operária como mercadoria. O intelectual pode divagar sobre a fraternidade humana. O operário, especialmente o operário não qualificado, sabe muito bem que o estrangeiro é antes de tudo o concorrente no mercado de trabalho. O racismo aberto ou latente surge da incapacidade de reconhecer que é o capital que se opõe aos assalariados. Esta incompreensão não é a expressão de uma simples deficiência intelectual. Corresponde à impotência. A compreensão e a capacidade de transformar a realidade andam de mãos dadas. Quando o proletariado se levanta e se unifica, o racismo entra em colapso. Não há necessidade de esperar até a grande noite para ver. Nas lutas parciais, operários de diferentes origens rejeitam preconceitos e desconfianças. 99

VIII PROLETARIADO E COMUNISMO

O comunismo é a negação da condição proletária pelos próprios proletários. O proletariado e o comunismo são realidades íntima e contraditoriamente ligadas. Se os dissociarmos, não poderemos compreender o que são o movimento comunista e a revolução, nem mesmo o que é o proletariado.

LENINE

Lenine, seguindo Kautsky, disse que os proletários só eram capazes, através das suas próprias forças, de se elevarem a uma consciência sindical. Eles só conseguem pensar em vender-se mais caro e não em revolucionar a sociedade. Lenine estava errado. Os proletários são incapazes de alcançar uma consciência clara dos seus interesses económicos. Os proletários são mercadorias, mas também são comerciantes pobres. Na luta e na negociação, os proletários mostram constantemente que não sabem o que querem e que confundem as realidades económicas e humanas.

Isto é uma inferioridade porque quando se trata de defender os seus interesses económicos, o proletariado é muito menos eficaz do que a burguesia. Mas não podemos julgar o proletariado segundo um padrão burguês.

Lenine tem razão ao enfatizar a descontinuidade entre a consciência sindical e a consciência revolucionária. A segunda não é a exacerbação da primeira. Eles estão de costas um para o outro. Mas a consciência revolucionária, e para nós é a consciência comunista, não tem de ser importada do exterior, não é o produto dos intelectuais enquanto estrato social. O ponto de vista de Lenine não é estúpido, como acreditam alguns defensores do povo, mas apenas reflecte um movimento aparente. Movimento que contradiz imediatamente um período de revolução.

O proletariado mostra diariamente que já está além da economia. A sua ineficácia, as suas ilusões ingénuas são o lado negativo e temporário da sua humanidade. Na luta e independentemente da natureza necessariamente limitada das suas reivindicações, manifesta de muitas maneiras e através de muitos lapsos de língua a sua humanidade e a sua aspiração ao comunismo.

O que importa não é o que o proletariado é ou parece ser quando trabalha, quando marcha no 1º de Maio, quando responde às sondagens de opinião. A sua situação fundamental exigirá e já exige que ele se comporte de forma comunista.

Em tempos normais, o proletário, para sobreviver, deve procurar compensar esta privação fundamental pelos mil meios que lhe são oferecidos. Existem interesses, pátrias, drogas no show. Ele tenta viver novamente através do poder da sua empresa ou do seu sindicato. O capital não pode abolir a prostituição generalizada, mas pode distrair aqueles que se prostituem. Proporciona um bálsamo ao permitir “realizar-se” e ficar preso a bens e imagens. 100

O proletariado não é a encarnação positiva do comunismo dentro do capitalismo. Nem está permanentemente e por toda a eternidade integrado no sistema que drena o seu suor e a sua vida. A sua realidade é fundamentalmente contraditória. Ele parece integrado, mesmo que gagueje sobre o comunismo. De repente, uma violação se forma. Ele corre para dentro dele e amplia-a. As consequências das suas acções empurram-no para a frente. Ele descobre a sua força e faz o que nunca ousou sonhar em fazer.

BURGUESES E PROLETÁRIOS

O que é o proletariado? Onde começa e onde termina? Qual é a sua importância numérica?

Sobre a importância numérica da classe operária em sentido estrito, foram feitas avaliações baseadas em estatísticas oficiais. Representa uma pequena parte da população mundial já que o seu tamanho pode ficar entre 200 e 250 milhões de indivíduos. Obviamente, este número não é o de todos os proletários, na medida em que exclui as famílias destes operários e muitos empregados proletarizados, mesmo na indústria, não são contabilizados. Em qualquer caso, a importância numérica da classe operária, que já é enorme se a compararmos com a da burguesia, não é suficiente para explicar a sua real importância. Acrescentemos que esta importância, ao contrário da tese que os sociólogos de vanguarda tentam defender, é crescente.

Mas tal como a burguesia, o proletariado não é algo que possamos tocar, delimitar e quantificar com precisão. Isto não diminui a sua realidade, mesmo que os sociólogos não consigam compreendê-la na sua rede académica.

Não podemos reduzir o proletariado a uma imagem padronizada: o indigente em farrapos, o operário de macacão, o portador da bandeira vermelha. Só em situações específicas é que os seus limites se tornam claros.

Tal como definimos a burguesia como casta, pelos seus privilégios e pelos seus tiques, pela sua dificuldade de acesso em vez de a definirmos como classe, pela sua função nas relações de produção, também reduzimos o proletariado a uma categoria sócio-profissional ou a um acréscimo de categorias socio-profissionais.

A partir daí é fácil mostrar que é difícil, senão impossível, compreender o que é o proletariado. Isso realmente existe? O progresso técnico e a segurança social não fizeram com que desaparecesse? A luta de classes, se concordarmos em dar-lhe alguma importância, fica reduzida a uma forma de conflito entre outras. Mulheres e homens, jovens e velhos, moradores das cidades e do campo às vezes discutem. Por que não seria o mesmo entre operários e patrões?

Os nossos sociólogos criticam Marx, que inventou a luta de classes, por não saber o que é uma classe social. Ele contradiz-se, ora fala do campesinato como uma classe e ora o divide em classes opostas.

Que os camponeses podem por vezes ser considerados como uma classe única porque têm interesses e ilusões comuns, porque agem de forma

no mesmo sentido, uma vez que estes mesmos camponeses podem ser divididos em pobres e ricos, em agricultores e proprietários de terras, isto está além da compreensão de um sociólogo. Ele não pode saber que uma classe não é definida, tanto do ponto de vista intelectual como do ponto de vista prático, independentemente da actividade pela qual constitui uma classe. Não existem classes independentes da luta de classes. 101

Reduzir uma classe a uma categoria socio-profissional é dar-se a ilusão de ciência e de rigor. Na verdade tudo depende dos critérios mais ou menos arbitrários que escolhemos para dividir o corpo social. Acima de tudo, está a objectivar a realidade.

Tudo é trazido de volta ao lugar que o capital atribui aos homens. Fotografamos uma certa divisão: intelectuais, operários, moradores de bairros degradados (ou de lata), ganhadores de salário mínimo. Não vemos nem o que dá origem a estas situações, nem a possibilidade de superá-las.

Na melhor das hipóteses, “classes” restantes, imaginamos que uma prevalece sobre a outra. Assim, no Ocidente a burguesia domina enquanto nos países orientais o proletariado estabeleceu a sua ditadura. Para nós, o proletariado não pode ser definido independentemente da sua luta contra o capital, isto é, também independentemente do comunismo.

Isso não significa que classe seja o conjunto de pessoas que lutam pela mesma causa. Neste caso, o burguês que simpatiza com a evolução transformar-se-ia num proletário e o varredor reaccionário tornar-se-ia num banqueiro. O anti-capitalismo, isto é, o comunismo, pode tornar-se uma causa para alguns, mas pela sua natureza não é uma causa. É uma actividade ligada a uma situação social particular.

O proletariado é aquela fracção da população que produz capital enquanto está separada da sua posse e gestão. O pesadelo da auto-gestão é fazer com que os proletários desempenhem a função de burgueses. Se esta quimera se concretizasse, ainda não haveria abolição das classes. A burguesia e o proletariado co-existiriam contraditoriamente num único todo. O mesmo na sua máquina seria inimigo do mesmo no conselho de administração.

De vez em quando acontece que os filhos dos burgueses vão arruinar a sua saúde na fábrica e que os operários fazem crescer os seus bens às custas de alguns azarados. Não há nada nisso que signifique uma abolição das classes.

A linha divisória entre gestores e escravos do capital é estrita. Acontece que algumas pessoas têm um pé de um lado da fronteira e o outro do outro lado. Eles terão que balançar para um lado ou para outro.

Deveríamos tornar concreta a linha divisória? Podemos compreendê-lo na atitude em relação ao dinheiro. É claro que os burgueses e os proletários distinguem-se pela quantidade de dinheiro que passa pelos seus dedos. Mas isto não é o suficiente. Mais fundamentalmente, o proletário vê o dinheiro: dinheiro. Para ele representa um certo número de bens. Para a burguesia, o dinheiro é capital monetário. O dinheiro é usado para ganhar mais dinheiro. Nós investimos e, que maravilha, produz pequeninos. É isto que liga, através dos tempos, o burguês medieval e o gestor moderno. Hoje também existe hipocrisia. 102

Para compreender a classe burguesa, devemos acrescentar os laços familiares e as restricções sociológicas que fazem dos filhos ou esposas dos burgueses membros da burguesia.

Na vida económica e nas empresas, a fronteira passa entre aqueles que têm acesso ao conhecimento e às decisões financeiras, não necessariamente técnicos e funcionários financeiros, e outros. Há quem saiba que uma empresa está temporariamente presa a dinheiro destinado a ganhar dinheiro. Há quem, a grande maioria, o veja antes de tudo como uma fábrica e um comércio de valores de uso.

Anexar um indivíduo a uma determinada classe às vezes é difícil. Um tal executivo superior, um tal engenheiro ou, porque não, um tal operário pode, através das suas origens familiares, das suas possibilidades de promoção, das suas amizades, das suas funções de comando, dos seus bens ou das suas propriedades, ser capturados pela classe dominante. Pelo contrário, os pequenos especuladores estão ligados por mil ligações à classe dominada.

Do ponto de vista da revolução é importante não rejeitar inicialmente os proletários de luxo para o campo burguês. O engenheiro ligado à burguesia e mais ainda os seus colegas que não têm nem o seu salário, nem o seu papel de liderança, nem as suas ligações, podem sentir a contradição entre os seus interesses profissionais e humanos e os limites impostos pelas finanças. Isto pode levá-los ao comunismo, a um mundo onde os projectos técnicos escapam à ditadura do valor de troca.

Os seus conhecimentos e habilidades são necessários. Tenha cuidado, no entanto, com aqueles que podem ficar do lado da revolução porque vêem a sua condição tornar-se proletária e esperam ingenuamente recuperar a autoridade.

Em tempos normais e particularmente fora do processo de produção a situação pode parecer vaga. A sociedade parece ser composta de partículas individuais que vagueiam numa direção ou outra. Os operários e os burgueses parecem desaparecer para se tornarem nada mais do que eleitores iguais ou consumidores mais ou menos ricos. Assim que irrompe um conflito, quando surge uma revolução, as partículas juntam-se em torno de pólos antagónicos.

O proletariado não é uma massa indiferenciada. Certos estratos sociais, certos indivíduos desempenham um papel propulsor dependendo do seu lugar na produção e das suas próprias qualidades. Eles mais ou menos ajudam a classe a formar uma classe.

Alguns grupos sociais estão mais agitados do que outros ou proclamam o seu descontentamento mais alto. Você tem que ter cuidado com as aparências. Um grupo que é mais turbulento que outro pode acabar por não ser muito revolucionário. Ele move-se por motivos que são muito pessoais para ele. Ele arrasa porque o seu status está a deteriorar-se. Mas ele não atinge os fundamentos da sociedade. Talvez ele fique mais assustado com a visão da revolução do que com a do capital.

Quem parece mais integrado, mais tranquilo porque é mimado pelo sistema pode acordar e ir directo ao assunto. O poder e a confiança que a sua situação lhes proporciona pode permitir-lhes atacar o capital sem concessões. 103

Não podemos considerar a evolução dos indivíduos e dos estratos sociais independentemente da profundidade do conflito e da situação geral. Certas camadas sociais, como estudantes, intelectuais, executivos, só podem elevar-se a uma consciência corporativista ou, pior, pseudo-revolucionária. À medida que o comunismo se desenvolve e estas camadas, dependendo da falta de autonomia que as caracteriza, radicalizar-se-ão. Não tendo poder e interesses reais para defender, só os poderão encontrar unindo-se e apoiando os operários.

Poderá a imensa massa de camponeses do Terceiro Mundo participar na revolução comunista? Ela faz parte do proletariado? Sim, mas não dependendo do seu grau de pobreza. Faz parte do proletariado tanto mais quanto a influência do capital na sua existência é mais directa.

Mesmo que não seja uma assalariada, ela tende a juntar-se à classe dos assalariados devido à crescente influência da economia de mercado sobre todas as pessoas e recursos. A ofensiva dos proletários empregados ajudá-la-á a encontrar o inimigo e as soluções.

O emprego assalariado é, de certa forma, a relação de exploração ideal para o capital. No entanto, não podemos equiparar proletários e assalariados. Já demonstrámos que as relações esclavagistas foram integradas no universo capitalista, alterando assim o seu conteúdo. Muitos pequenos proprietários estão directamente sujeitos à exploração capitalista e muitas vezes são mais oprimidos do que os operários. Os gestores de grandes empresas recebem salários. No entanto, tudo os torna burgueses. Eles definem o seu próprio salário e esse salário é apenas uma parte do seu rendimento real.

Algumas profissões desenvolvem atitudes revolucionárias mais do que outras. A questão depende, em particular, do grau de identificação que existe entre o operário e a sua posição. Algumas pessoas ficam presas no jogo e não conseguem afastar-se do trabalho que realizam. Ou que este trabalho, como o dos educadores, se torne a sua própria ferramenta. Questionar o seu papel profissional envolve questionar-se a si mesmo. Ou que o produto do seu trabalho não é um produto e contribui directamente para o funcionamento do seu negócio.

Em ambos os casos existe o risco de desenvolver uma ideologia que justifique a sua função profissional e as suas contradições. Os mais alienados acabam a acreditar que graças às suas próprias capacidades ou à utilidade geral do seu trabalho estão a revolucionar a sociedade.

Os operários mais lúcidos são muitas vezes aqueles que não se sentem ligados à empresa ou à tarefa que desempenham. Este é o caso da maioria dos operários.

Pelo seu lugar na produção, pela solidariedade que gera, pelas suas qualidades humanas, os operários estarão no centro da revolução comunista. O operário americano ou soviético, mesmo que sobreviva mais facilmente do que o mendigo indiano e mesmo que seja mais corrupto, também está em melhor posição para reconhecer a natureza da opressão que pesa sobre ele e pôr-lhe fim.

É tradicional negar à classe operária o seu papel central na revolução.

Destacamos a sua ausência nas lutas de libertação nacional que, no entanto, conduziram a estados marxistas. 104

A ênfase é colocada na ausência de consciência revolucionária da grande massa de operários nos países ricos e nas vantagens que retiram do sistema.

A outras categorias sociais é confiado o papel que os operários parecem incapazes de cumprir. As revoluções do século XIX teriam sido obra de artesãos. No século XX, os intelectuais leninistas assumiram o poder. Nos países do terceiro mundo são os camponeses.

Se olharmos seriamente para as coisas, vemos que os operários têm estado regularmente no centro das tentativas de transformar radicalmente a realidade. São criticados por não terem intervindo em revoluções que eram de facto burguesas. Quando intervieram, a sua acção foi relegada para segundo plano para realçar a de grupos sociais que no início ou no final se mostraram menos que comunistas. Destacamos e exageramos esta ou aquela característica dos proletários que se revoltaram para mostrar que eram operários duvidosos ou marginais, camponeses, pequeno-burgueses, soldados, bandidos disfarçados de operários.

Os modernistas substituem um proletariado gentrificado por novas categorias. A revolução seria obra dos jovens porque ainda não estão domesticados, das mulheres porque estão mais próximas da vida, dos hippies e outras pessoas marginalizadas porque estão fora do sistema, dos negros porque amam a música e têm ritmo no sangue ... Outros não veem mais a necessidade de favorecer uma determinada categoria. O capital é uma força desumana da qual todos são vítimas, por isso é a humanidade como espécie que deve surgir. Já não existe burguesia e proletariado, ou há muito pouco.

Quando destacamos este ou aquele grupo social ou categoria de idade ou género, fazemo-lo em virtude dos valores que estes grupos deveriam deter. Não há tanto uma mudança na escolha do sujeito revolucionário, mas um reconhecimento implícito da realidade tal como ela é. Os jovens seriam revolucionários como jovens, as mulheres como mulheres, enquanto o proletariado que inclui os jovens e as mulheres é revolucionário na medida em que já não pode ser o proletariado. O proletariado não é um grupo social. É um movimento. Ele é o que ele se torna. Existe de acordo com suas possibilidades de auto-destruição.

Não estamos a dizer que os jovens, as mulheres, as pessoas com deficiência de guerra... não tenham interesses específicos e que não possam transformar a realidade. Simplesmente, a menos que actuem como proletários, só poderão defender os seus interesses como jovens, mulheres, inválidos de guerra dentro de uma determinada realidade. A revolução proletária dá-lhes os meios, sem se negarem, para irem além das suas exigências categóricas, para as superarem. São os jovens, as mulheres, os enfermos que agem, mas já não o fazem pela juventude, pela feminilidade ou pelo seu oposto, pelos benefícios do Estado e pela consideração dos cidadãos. E os intelectuais?

De certa forma, a revolução exige que os proletários se tornem intelectuais. Eles precisam de ser capazes de ir além da sua situação imediata. É sabido que durante as insurreições vemos serem discutidas nas ruas questões que antes eram prerrogativas dos filósofos.

A revolução também significa o fim dos intelectuais como categoria social separada. Se os intelectuais participarem na revolução, não poderão fazer isso apenas negando a sua condição. Ao reconhecer que estão mutilados. Eventualmente, medidas terão de ser tomadas para impedir que alguém continue a ser um intelectual e nada mais. 105

Aos intelectuais é frequentemente atribuído um papel privilegiado como portadores de consciência. Por si só, a consciência não é nada e nada pode fazer. Os nossos intelectuais, que muitas vezes acreditaram que poderiam alcançar uma compreensão geral e objectiva das coisas, têm estado regularmente a reboque dos poderes estabelecidos. Estiveram sujeitos às piores ilusões e apoiaram, claro, com pensamento crítico, a pior sujidade. Prontos para desculpar tudo em nome da Razão, da História, do Progresso.

As exigências dos intelectuais são mais adequadas para comover os corações burgueses do que as dos operários. Quão mais nobre é pedir liberdade de expressão do que pedir pão. O intelectual parece ser o defensor do interesse geral. O operário parece egoísta e com os pés no chão.

Contudo, as reivindicações proletárias são mais profundas do que as dos intelectuais. Eles especializam-se em reivindicar formas vazias. Quando os operários exigem, ou melhor, impõem a liberdade de expressão é porque têm algo a dizer. Caso contrário, é de relativamente pouco interesse para eles. A sua capacidade de não dissociar forma e conteúdo, de não lutar por nada, é o sinal do comunismo. O problema com os intelectuais é que muitas vezes é do vento que eles obtêm o seu rendimento.

Os jovens são frequentemente os mais activos nas revoluções. Pode haver causas biológicas, mas a sua situação social é suficiente para explicá-la. Mesmo aqueles que vêm de camadas privilegiadas estão menos ligados aos interesses estabelecidos. Você tem que esperar para herdar! A sociedade capitalista fetichiza a juventude e a renovação, mas distancia os jovens de posições de responsabilidade e propriedade. Eles encontram-se mais disponíveis.

Ao lado dos jovens, por vezes destacamos os marginalizados. Eles não vivem como toda gente, talvez sejam o futuro? Aqui, novamente, há uma incapacidade de compreender que a revolução pode e deve surgir do próprio coração do sistema. Há uma incapacidade de compreender dialecticamente o que é o proletariado. Existe uma ilusão sobre o grau de independência dos marginalizados em relação ao sistema. Terá o próprio capital abolido as classes sociais ao acelerar a revolução? Há muito que se afirma que a revolução burguesa finalmente permitiu que todos os homens fossem iguais.

A divisão da sociedade em classes está a ir bem. Talvez nunca tenha sido tão acentuado, ainda que tais meios nunca tenham sido utilizados para fazê-lo esquecer.

Certamente o capital é uma força impessoal. Certamente todos sofrem os seus efeitos em maior ou menor grau. Pobres burgueses que se esgotam no trabalho, discutem com os filhos, respiram um ar nocivo! Os efeitos do capital, alguns têm mais que outros a possibilidade de remediá-los. A diferença nas condições de vida cresceu consideravelmente hoje. As possibilidades de diversificação dos produtos e de desenvolvimento do comércio fizeram com que determinados segmentos da população tivessem um nível e uma qualidade de vida muito diferentes e superiores aos dos seus contemporâneos. Talvez a burguesia não seja a mais feliz. Eles podem pelo menos deixar de ser burgueses. O oposto não é possível para os trabalhadores rodoviários. Se mesmo os burgueses não estão satisfeitos com o seu modo de vida, esta é mais uma razão para abolir esta classe e a sua sociedade. 106

A burguesia não desfila. Ela deixa isso para alguns novatos. Não é do seu interesse exibir muito o estilo de vida que leva no abrigo das suas dachas e seu plágio particular. Os proletários têm o hábito de sobrestimar os rendimentos das camadas sociais próximas deles e sobrestimar os dos verdadeiros burgueses.

Mesmo que a burguesia tivesse um estilo de vida austero e frugal, isso não faria com que desaparecessem como classe. O que importa primeiro é a sua função económica e social. O seu rendimento está obviamente directamente ligado a isso. Parte do seu consumo, inclusive nos países ocidentais, é combinado com despesas empresariais. Viajamos, jantamos, divertimo-nos por e em nome da nossa empresa.

O capital tende, e hoje mais do que nunca, a desgastar a identidade dos grupos sociais. Tanto para a burguesia como para a classe operária. O eleitor, o consumidor estão fora da classe. O prazer que advém da compra não está mais ligado ao status, mas ao dinheiro impessoal. Esta negação capitalista das classes prepara a sociedade sem classes. Mas, por sua vez, é negado pela necessidade económica, que tende a dar prioridade ao rendimento e a funções separadas.

A luta pelo comunismo não é uma luta por uma classe específica, mas uma luta pela humanidade. Mas esta luta está ligada àqueles a quem é negada toda a humanidade. A revolução não será unânime e é perigoso fazer as pessoas acreditarem nisso. Talvez alguns burgueses se juntem ao movimento, isto não mudará o facto de que os interesses da burguesia e do comunismo são contraditórios. O proletário ganhará imediatamente com a revolução quando a burguesia tiver sido despojada. O comunismo diz respeito à espécie humana, mas há homens que conseguem identificar o seu interesse imediato num período de ruptura com os da espécie, outros não.

À ESPERA DE GODOT

O que propõem os revolucionários enquanto esperam pela grande noite?

Não temos uma solução milagrosa para passar o tempo nem um comportamento ideal para defender. Os comunistas estão presos como os outros no melaço capitalista e não podem implementar uma estratégia pura e universal que ignore interesses, capacidades e condições particulares. Em qualquer caso, não oferecemos às “massas” o que recusaríamos para nós mesmos, e vice-versa. Só podemos ver diferenças de comportamento.

Não somos puristas e aceitamos mesmo melhorias limitadas, se forem reais. Isto já demonstra rigor numa altura em que falamos de uma grande vitória quando somos pagos com vento.

Não somos puristas e concordamos em agir a nível popular com pessoas que não têm as nossas opiniões, desde que as perspectivas de acção sejam claras. 107

É importante ser flexível a nível prático, a fim de tirar partido de situações em mudança e de circunstâncias imprevistas. É preciso saber comprometer-se e, acima de tudo, reconhecer os compromissos que faz. Não temos receitas para fornecer e temos pena de quem precisa delas. Sem controle remoto.

Quem age com a obsessão da recuperação se recupera inicial e radicalmente. O sectarismo é antes de tudo uma forma de se proteger contra as próprias incertezas. Pelo contrário, quando temos certezas profundas e não ideológicas, podemos inovar, improvisar, compor sem nos sentirmos ameaçados na nossa pureza. O erro? Não é reprimindo firmemente a verdade contra si mesmo que a preservamos.

Esta flexibilidade pragmática deve ser acompanhada de uma grande rigidez e até, para assustar os “espíritos livres”, de um dogmatismo doutrinário. Esclarecimento teórico e garantia são essenciais. Você tem que saber para onde está a ir e divulgá-lo.

A nossa era é de comportamento rígido e pensamento gelatinoso. É romper com isso. As ideias só têm interesse se fornecerem parâmetros de referência suficientemente fiáveis. Pergunta clássica: devemos participar em sindicatos? Tudo depende das circunstâncias e das pessoas envolvidas. Mas os sindicatos estão integrados! ? Este pode ser um motivo para participar. Ou aproveitamos as vantagens que isso proporciona às organizações sindicais. Ou demonstramos os limites dessas vantagens. Eventualmente ficamos vazios e a contradição entre o conteúdo revolucionário e a forma sindical vem à tona.

Se a participação nos sindicatos for aceitável, a conquista dos aparelhos para endireitá-los num sentido revolucionário deve ser rejeitada.

Na luta, assim que surgirem possibilidades de organização de uma forma mais ampla e menos especializada, os sindicatos devem ser rejeitados. A forma sindical pode ser utilizada em situação de retirada, mas não deve impedir o desenvolvimento e aprofundamento da luta. A acção da classe e para a classe não deve ser oposta à acção da e para uma organização de especialistas em reivindicações e negociação. Em qualquer caso, é certo que enquanto os operários continuarem a ser mercadorias cujo preço deve ser negociado, os aparelhos sindicais manterão uma razão de existir.

Não é renunciando aos combates limitados que nos preparamos para a luta final. Não é desconsiderando as questões salariais que avançamos na abolição do emprego assalariado. A irredutibilidade económica demonstra a capacidade de resistência e pode tornar-se perigosa para o sistema ameaçado no coração, ou seja, na caixa registadora. Ai daqueles que querem distrair os proletários destas questões com fumo e espelhos ideológicos. Desistir de lutar porque “o jogo não vale o esforço” é muitas vezes apenas a expressão de uma passividade mais geral.

Estaremos a cair na armadilha da eficiência pela eficiência, no economicismo? Não, mas acreditamos que a acção colectiva tende a trazer à tona o seu próprio conteúdo. É por isso que poderes de todos os tipos procuram amordaçá-lo.

Apoiantes da pressão e da reacção mais imediata e variada possível por parte da classe, somos muito cautelosos com objectivos de protesto dissociados das possibilidades imediatas e do equilíbrio de poder. Igual e

especialmente quando se trata de um programa de transição ao estilo trotskista. Estas representações, que visam unificar e esclarecer o proletariado, apenas bloqueiam a sua visão. 108

Por mais que seja correcto lutar, e da forma mais generalizável possível, pela redução do tempo de trabalho, também não é saudável estabelecer objectivos em termos de horas de trabalho semanais ou de idade de reforma. Estamos apenas a assumir o controle, apenas internalizando as limitações e separações capitalistas. A escolha é entre o tempo de trabalho e o tempo livre, a condição de presidiário ou a previdência aos idosos. Canalizamos a luta. O comunismo latente é esterilizado.

A única perspectiva defensável é o comunismo. Não é uma abstracção distante, mas a solução humana para todos os problemas. Trata-se de tornar manifesto o sentido do movimento proletário, de mostrar o poder à sua disposição.

Muitas vezes lutas não declaradas: absentismo, abrandamento das cadências, sabotagem, perucas e roçadas... são as mais eficazes. Nós não os fetichizamos. O capital pode tolerá-los e fazer deles uma válvula de segurança. Eles não podem substituir uma luta mais geral. Mas mantêm o moral combativo, desenvolvem a iniciativa e proporcionam satisfação saudável e imediata.

Trata-se de popularizar meios de acção que, ao mesmo tempo que pressionam imediatamente os exploradores, anunciam o mundo comunista. Muitas vezes é possível, secretamente, mas também de forma massiva e aberta, distribuir produtos gratuitamente e operar serviços. Os trabalhadores dos correios poderão deixar de carimbar a correspondência e os ferroviários poderão deixar de verificar os bilhetes. Se os trabalhadores mais empenhados forem despedidos, ainda existem oportunidades de sabotagem para os reintegrar.

A nossa estratégia pode ser expressa da seguinte forma: menos disparate, menos espetáculo, mas que a classe operária utilize os diversos meios à sua disposição para ganhar respeito e se preparar para o futuro. Um protesto um pouco menos sério e um pouco mais de sorrisos e satisfação.

Numa escala histórica, a revolução comunista é iminente. Não estamos a escrever para as gerações futuras.

Ao afirmar isto sabemos bem que muitos revolucionários já o proclamaram e se enganaram. Subestimamos regularmente as possibilidades de adaptação do sistema. Parece-nos que hoje, como reacção, estamos a fazer o contrário. Não será a última carta do capital a ancorar no cérebro de todos a imagem do seu poder e da sua imortalidade?

Tendo desenvolvido a maquinaria até ao limiar da automatização, tendo unificado o planeta, está no auge da sua potência, mas também atingiu os seus limites históricos. Já não consegue responder à destruição do tecido social e à deterioração do ambiente que provoca. Ele não consegue mais eliminar o excesso de gordura. É o seu próprio poder, a sua concentração que se transforma em fraqueza.

A crise da civilização económica tornou-se gradualmente mais clara como uma crise económica. Apenas faça backup das coisas! Mas a fase actual não pode ser reduzida a um período de dificuldades económicas. 109

Para sair da crise, temos de aumentar a taxa de mais-valia e corrigir a falta de rentabilidade do capital. Existem muitos obstáculos técnicos, ecológicos e humanos. Isto só pode acontecer através de lutas e grandes convulsões. O proletariado já mostra de mil maneiras que não deixará que as coisas aconteçam sem ele. Ele também mostra que não está pronto para aderir a uma solução reformista. Uma solução que só poderia consistir em garantir a sua cumplicidade para derrotá-lo e enterrá-lo de uma forma pior que o estalinismo e o fascismo.

IX O DEVIR HUMANO

O comunismo não é prisioneiro do futuro. Ele surge dentro do próprio capitalismo. A actividade que os proletários desenvolvem quando negam espontânea e muitas vezes inconscientemente a sua condição é comunista.

O comunismo apresenta-se antes de tudo, tanto como teoria como como prática, como uma antecipação. Desde as suas origens apresenta-se como uma solução, mais ou menos viável, mas imediata para os males do velho mundo. A utopia não é uma escória a ser eliminada. Pelo contrário, é o sinal característico do comunismo. Estamos mais seguros na ciência do futuro do que na do presente. Mas o futuro corrói o presente.

O comunismo é, obviamente, uma etapa na história humana, um novo mundo. Mas não é sobretudo uma forma social dada, mas um movimento privilegiado de humanização da espécie.

HISTÓRIA

No nível teórico, o comunismo surge com o renascimento das ideias renascentistas. Em 1516, o inglês Thomas More publicou a sua “Utopia” em Louvain. Em 1602 o dominicano Campanella escreveu “A Cidade do Sol”. Ele estava então na prisão por ter instigado uma conspiração anti-espanhola na Calábria. Trata-se de descrever um mundo onde o dinheiro, a propriedade e a divisão de classes desapareceram e apresentá-lo como uma alternativa ao mundo actual. Mais ainda, Campanella e outros que se inclinam para o comunismo não são proletários nem sequer rebeldes. Pelo contrário, são mentes brilhantes e vanguardistas que namoriscam com os poderes existentes ou que são caçados pela sua independência ou inconformismo.

No entanto, ao mesmo tempo, com a Guerra dos Camponeses e Thomas Munzer, o comunismo começou a materializar-se. Aterroriza os príncipes, a burguesia e os reformadores religiosos como Lutero que exclamaram: “Infelizmente pessoas equivocadas que vocês são! É a voz de carne e osso que chega aos seus ouvidos.”

“Confundiram fé com esperança: não é natural acreditar quando não se tem nada? Ora, o que era sério é que a santa esperança que os animava, eles pretendiam realizá-la não num outro mundo, depois da morte, mas nesta terra, e o mais rápido possível.” (A Revolução dos Santos 1520-1536, G. d’Aubarède 1946) 110

“Mas com os anabatistas daquela época, não se tratava apenas de religião. A sua doutrina minou os fundamentos de toda a ordem social, das propriedades, das leis, dos magistrados.” (...)

(...) “Quanto às casas particulares, cada um se adaptou como quis. Um deles foi transportado para um hotel que, anteriormente, residia sob o telhado de palha. Os servos dos nobres e do clero apropriaram-se sem escrúpulos do que pertencera aos seus senhores.

O palácio episcopal, os arquivos, os títulos, os privilégios, todos os papéis foram saqueados. De que serviriam essas ninharias na nova Sião, cujos fundamentos eram a liberdade evangélica e a igualdade fraterna? (Jean Bockelson, M.Baston 1824)

“Muitas pessoas não têm consciência de que o comunismo já entrou no domínio da história como um facto prático, que se provou, que triunfou durante alguns anos e tomou uma posição violenta em algumas províncias, não durou mais de trezentos anos.

Eram os mesmos pretextos de agora, quase as mesmas tendências, a implementação dos mesmos processos de acção, mas com um meio adicional poderoso, uma alavanca de imensa força, a forma religiosa e mística em que os poderosos revolucionários da época se envolveram. .” (Estudos históricos sobre o comunismo e as insurreições no século XVI, Arnoul, 1850)

Traços da tendência para o comunismo podem ser encontrados mais atrás no tempo, mesmo antes do desenvolvimento do capitalismo. É a velha aspiração de recuperar a abundância e a comunidade perdidas.

As primeiras tentativas práticas do comunismo moderno basear-se-ão nos restos do comunismo primitivo que terão sobrevivido ao desenvolvimento das sociedades de classes.

O comunismo moderno inspira-se nos antigos defensores da comunidade de bens: Platão, que a defendeu à moda aristocrática para os membros da classe alta; os primeiros cristãos que puseram em comum os seus bens segundo o espírito evangélico.

No entanto, mesmo inspirando-se e ligando-se ao passado, o comunismo moderno inova.

O comunismo apresenta-se como um adversário da sociedade existente e quer substituí-la. Thomas More dedica a primeira parte da sua obra à denúncia dos infortúnios actuais e à descoberta das suas causas. Ele observa a devastação causada pelo desenvolvimento do capital.

O comunismo já não é um estado de espírito ou uma forma de viver através da partilha de recursos. É uma solução mundial e social, um modo de organizar a produção.

Thomas More apresenta um navegador, Hythlodeus, que visitou as ilhas imaginárias da Utopia. Hythlodée olha para a nossa sociedade: “Meu querido More”, diz ele, “para lhe contar o fundo do meu pensamento, onde todos medem tudo de acordo com o dinheiro, nesses países, é pouco quase impossível que a justiça e a prosperidade reinem em públicos romances. Este homem muito sábio (Platão) viu que só existe um e único caminho para a salvação pública, nomeadamente a igualdade, que não me parece possível quando os bens pertencem a indivíduos... Estou, portanto, convencido de que os bens não podem ser distribuídos de forma justa e razoável, que os assuntos dos homens não podem ser geridos de forma feliz, se não eliminarmos completamente a propriedade .” 111

More denuncia os danos causados ​​pelo desenvolvimento da propriedade fundiária e do capitalismo fundiário que afugenta os camponeses para a criação de ovelhas; “As suas ovelhas são tão gentis, tão fáceis de alimentar com pouco, mas que, pelo que me disseram, estão a começar a ser tão gananciosas e tão indomáveis ​​que até devoram os homens.” Ele denuncia a impotência da política e a distância que separa necessariamente os bons preceitos da sua aplicação prática.

Na Utopia as coisas são diferentes. “Cada pai vem buscar tudo o que precisa e leva sem pagamento, sem remuneração de qualquer espécie. Por que recusar algo a alguém, já que tudo existe em abundância e ninguém teme que o próximo peça mais do que necessita? Porquê pedir demais, quando sabemos que nada será recusado? O que o torna ganancioso e voraz é o terror de perder..."

“Em todos os outros lugares”, escreve ele, “aqueles que falam do interesse geral pensam apenas no seu interesse pessoal; ao passo que onde não se tem nada de próprio, todos estão seriamente preocupados com os assuntos públicos, uma vez que o bem particular se confunde realmente com o bem geral...

Na Utopia..., onde tudo é de todos, não pode faltar nada a ninguém, uma vez cheios os celeiros públicos. Pois a fortuna do Estado nunca é distribuída injustamente neste país; não vemos nem pobres nem mendigos, e embora ninguém tenha nada próprio, todos são ricos...

Não é iníqua e ingrata a sociedade que esbanja tantos bens àqueles que chamamos de nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou aos artesãos de luxo que só sabem lisonjear e servir prazeres frívolos? Quando, por outro lado, não tem coração nem pensamento para o lavrador, o carvoeiro, o operário, o carroceiro, o trabalhador, sem os quais não haveria sociedade. No seu egoísmo cruel, ela abusa do vigor da sua juventude para extrair deles o máximo de trabalho e lucrar; e assim que enfraquecem sob o peso da idade ou da doença, quando lhes falta tudo, Ela esquece as suas muitas vigílias, os seus muitos e importantes serviços, recompensa-os deixando-os morrer de fome.

More conclui o seu livro assim: “Há uma série de coisas entre os utópicos que desejo ver estabelecidas nas nossas cidades. Desejo isso mais do que espero.” E a palavra utopia designa na linguagem quotidiana um sonho irrealizável. E ainda...

E, no entanto, pouco mais de um século depois, aconteceria uma experiência notavelmente próxima do sonho de More. É muito raro um projecto social ser executado com tanta fidelidade. 112

O COMUNISMO GUARANI

No ano da publicação de “Utopia” os espanhóis entraram e começaram a conquistar o Paraguai: o país dos índios Guarani. O nome Paraguai designa no século XVI um território maior que o actual Paraguai e pátria dos Guaranis, portanto a experiência da qual vamos falar estava localizada fora dos limites do Paraguai moderno.

Sob a égide dos jesuítas, várias centenas de milhares de índios viveriam, cultivariam a terra, extrairiam e forjariam metais, fundariam estaleiros, dedicar-se-iam às artes, sem dinheiro, salários e propriedade privada. A república guarani duraria cerca de um século e meio, depois deteriorar-se-ia com a expulsão dos jesuítas e os ataques dos espanhóis e portugueses. Este grupo constituía na sua época o país industrialmente mais avançado da América Latina. Os contemporâneos questionariam e argumentariam sobre a natureza e o âmbito da experiência que alimentaria o socialismo europeu. Alguns vê-lo-ão como uma tentativa de vanguarda, outros irão minimizá-lo ou reduzi-la a um obscuro empreendimento jesuíta. Com o tempo, este caso foi considerado demasiado jesuítico ou demasiado comunista para atrair a atenção.

Os documentos citados por Clovis Lugon, papista e estalinófilo, permitem-nos formar uma opinião mais precisa (La République des Guaranis, Éditions Ouvrières 1970).

“Nada me pareceu mais bonito do que a ordem e a forma como é assegurada a subsistência de todos os habitantes do povo. Quem faz a colheita é obrigado a transportar todos os grãos até aos armazéns públicos; há pessoas designadas para vigiar essas lojas, que mantêm um registo de tudo o que recebem. No início de cada mês, os oficiais responsáveis ​​pela administração dos cereais entregam aos chefes de distrito a quantidade necessária para todas as famílias do seu distrito, e estes distribuem imediatamente às famílias, dando a cada uma mais ou menos, conforme para isso é mais ou menos numeroso. » (R.P Florentin, Viagem às Índias Orientais...)

A maior parte do trabalho era feita em comum e os índios não pareciam tentados pela propriedade privada. Eles só criavam galinhas ou um cavalo. Para fazê-los evoluir para a propriedade privada, foram distribuídos lotes individuais, mas no dia em que os índios tiveram que cuidar desses lotes eles ficaram “o dia inteiro deitados na rede...” (P. Sepp)

“O Padre Cardiel, que deplora, como foi dito, a persistência do sistema comunista, por sua vez fez todo o possível para levar os Guaranis à propriedade privada, e antes de tudo ao sentido do interesse e do lucro individual, encorajando-os a cultivar produtos valiosos no lote com o objectivo de vender o excedente. Ele admite francamente o seu fracasso e declara que só encontrou três exemplos em que indivíduos tiraram do seu lote um pouco de açúcar ou algodão para vender. No entanto, um desses três indivíduos era um mulato convertido.” (Lugon) E o Padre Cardiel acrescenta: “Nos vinte e oito anos em que me encontrei entre eles como pároco ou companheiro, não encontrei outro exemplo entre tantos milhares de índios. »

Todos os índios eram obrigados a participar de tarefas manuais e ali passavam apenas um tempo limitado: um terço ou metade do dia. 113

“Há por toda a parte oficinas de douradores, pintores, escultores, ourives, relojoeiros, serralheiros, carpinteiros, marceneiros, tecelões, fundições, numa palavra, de todas as artes e de todas as profissões que lhes possam ser úteis.” (Charlevoix). “Só encontraríamos tantos mestres artesãos e artistas numa grande cidade europeia.” (Garech). “Eles fazem relógios, desenham planos, gravam mapas geográficos.” (Sepp). Segundo Charlevoix, os Guaranis “têm sucesso como que por instinto em todas as artes em que se aplicaram... Vimo-los fazer os órgãos mais compostos pela única inspeção que deles fizeram, bem como esferas astronómicas, tapetes no estilo turco e o que é mais difícil de fabricar.” E «assim que as crianças têm idade suficiente para poderem começar a trabalhar, levamo-las às oficinas e colocamo-las naquelas para as quais parecem ter mais inclinação, porque estamos convencidos de que a arte deve guiar-se pela natureza. .”

Os índios também fabricavam sinos, as suas armas de fogo, canhões e munições. As gráficas possibilitaram a produção de livros em diversas línguas, principalmente em guarani. Os índios estavam organizados militarmente; “Poderíamos mobilizar imediatamente mais de trinta mil índios, todos a cavalo” e capazes de “empunhar um mosquete e também brandir um sabre... para lutar ofensiva ou defensivamente, tal como qualquer europeu”. (Sepp).

O Padre d'Aguilar, superior geral da República, escreveu: “O que se poderia opor a vinte mil índios que se compararam às melhores tropas espanholas e portuguesas, diante das quais os mamelus já não se atrevem a mostrar-se, que por duas vezes expulsaram os Portugueses da colónia do Santíssimo Sacramento, e que durante tantos anos respeitaram todas as nações infiéis que os cercam. (Citado por Charlevoix).

Segundo Charlevoix não havia “nem ouro nem prata, excepto para decorar os altares”. “A população obtinha alimentos sem dinheiro nem moedas. Esses ídolos da ganância, diz Muratori, são absolutamente desconhecidos para eles... O valor das mercadorias foi expresso em "pesos" e "reais", de forma puramente fictícia. Era uma forma de fixar o valor relativo das mercadorias correntes... Além da troca e da moeda fictícia do peso, existia uma moeda "real" composta por certos bens de uso geral que eram aceites por todos como pagamento, mesmo sem necessidade ou uso imediato. (Chá, tabaco, mel, milho).

O preço correspondia normalmente ao valor real das mercadorias, ou seja, à quantidade de trabalho necessária à sua produção, sem qualquer aumento em benefício de intermediários inexistentes. O preço relativo de uma determinada mercadoria era naturalmente influenciado pela sua escassez ou abundância. (Lugão)

As transações de “redução” em “redução” cabiam à comunidade. “As estatísticas indicavam regularmente o volume de reservas e as necessidades de cada redução, era fácil prever as trocas. O padre consultava o corregedor e o mordomo para determinar o tipo e a quantidade de mercadorias a serem importadas e exportadas. (Lugão)

Seria isto um comunismo autêntico?

O comunismo guarani não era comunismo puro. Havia o espírito atrevido dos jesuítas, a homenagem prestada à coroa de Espanha e o estabelecimento do seu serviço das forças militares Guarani, a persistência do escambo, etc. Mas não estamos à procura de pureza. 114

Não foram os jesuítas que trouxeram o comunismo aos guaranis. Eles encontraram-no lá e tiveram que conviver com isso. Alguns regozijaram-se, achando-o coerente com o espírito evangélico, outros, por gosto ou sob pressão externa, procuraram reduzi-lo. Os jesuítas permitiram a enxertia de técnicas e conhecimentos ocidentais num comunismo primitivo inerradicável. Eles permitiram que os grupos Guarani se unissem num todo substancial.

Este comunismo era suficientemente forte para despertar desconfiança e ser atacado. Os Jesuítas desempenharam um papel bastante prejudicial, sujeitos a uma autoridade externa à comunidade Guarani, ao semear confusão e desunião entre os índios quando os espanhóis e portugueses atacaram as “reduções” orientais em 1754-56. “Os Padres das reduções receberam do General da Companhia, Ignace Visconti, “a ordem estrita de se submeterem ao inevitável e de levarem os índios à obediência”. (Lugão). Os índios ameaçaram directamente lutar, mas foram finalmente esmagados. Em 1768 os Jesuítas foram expulsos. As intervenções anti-Guarani continuaram e arruinaram a experiência. A fraqueza do comunismo Guarani foi que inicialmente não era um comunismo revolucionário e não foi formado através do confronto.

Em 1852, Martin de Moussy escreveu: “este estranho regime, este comunismo tão criticado, com uma aparência de razão talvez, a melhor prova de que convinha aos índios, é que os sucessores dos jesuítas se viram forçados a continuá-lo quase até ao presente e que a sua destruição, despreparada por medidas inteligentes e paternas, não teve outro resultado senão lançar os índios na miséria... actualmente, os seus últimos herdeiros lamentam amargamente este regime, imperfeito sem dúvida, mas tão bem adaptado aos seus instintos e à sua moral.

Lugon, que deseja absolutamente fazer dos jesuítas os importadores do comunismo, escreve novamente: “No dia seguinte à destruição de Entre-Rios, os sobreviventes reorganizaram-se sob a direcção de três chefes assistidos por um conselho, inteiramente de acordo com a tradição recebida do Jesuítas. A população desta colónia foi estimada em 10.000 pessoas entre 1820 e 1827. A comunidade de propriedades foi totalmente restaurada.

Nas reduções ocorridas no Paraguai moderno, o regime comunista foi oficialmente abolido em 1848 pelo ditador López. Os Guaranis que ainda permaneciam nesta região foram nesta época legalmente despojados dos seus prédios e propriedades. Eles foram abandonados para vegetar em reservas estabelecidas à maneira norte-americana.”

A República dos Guarani não é o único exemplo do encontro entre o comunismo índio e o Ocidente. Houve algumas outras de menor importância: a República Chiquite no sudeste da Bolívia, a República dos Moxes no norte da Bolívia, o grupo dos Pampas...

Os comunistas de Munzer ou do Paraguai foram mais longe na criação de uma forma social intermediária entre o comunismo primitivo e o comunismo superior do que os comunardos e os outros proletários dos

tempos modernos. 115

Haveria regressão ao longo do tempo? Foi o poder do capital e a consequente degradação do sentido social dos indivíduos que se opuseram ao comunismo. Não há regressão, mas sim um ciclo que está a ser completado e que verá o comunismo ressurgir, mas desta vez no centro do mundo capitalista.

Isto talvez seja incompreensível para quem vê a história como um processo linear e contínuo. Não há regressão nem antecipação, mas progresso perpétuo do inferior para o superior. Mas por que é que então a indústria moderna se desenvolveu a partir do atraso feudal europeu e não a partir das grandes fábricas de tecelagem incas, e não a partir das artes e técnicas chinesas? Porque esta indústria só pôde ser introduzida após um período de decadência?

Ao lado e seguindo este comunismo de envoltório religioso, embora iconoclasta entre os insurgentes alemães ou Campanella que quer o fim da família, um comunismo naturalista e anti-religioso desenvolver-se-á na esteira das revoluções burguesas.

NIVELADORES

Na Inglaterra, após a Revolução de 1648, desenvolveu-se uma corrente favorável ao comunismo dentro do partido dos “niveladores”. Várias obras comunistas apareceram nesta época. Defende a obrigação de trabalho para todos e a distribuição gratuita de bens.

Os contactos com sociedades não ocidentais alimentam reflexões filosóficas. Em 1704 Gueudeville publicou os “Diálogos ou entrevistas entre um selvagem e o Barão de La Houtan”. O indiano seria superior ao europeu porque desconhece a distinção entre o meu e o seu.

Em 1755 Morelly publicou o seu “Código da Natureza”. Ele afirma que o homem não é cruel nem mau. É preciso romper com o “desejo de ter” e a propriedade: “Tire a propriedade, o interesse cego e impiedoso que a acompanha, tire todos os preconceitos, os erros que os sustentam, não há mais resistência ofensiva ou defensiva entre os homens”. , não existem mais paixões furiosas, nem ações mais ferozes, nem mais noções, nem mais ideias de mal moral.”

Apesar de sua confiança na natureza humana, Morelly consegue, contraditoriamente, definir as leis que regem a vida das pessoas nos mínimos detalhes. O vestuário, o casamento, o divórcio, a educação dos filhos, o pensamento e até os devaneios são estritamente regulamentados.

O comunismo de Morelly influenciará notavelmente o revolucionário Gracchus Babeuf, que será executado em 1797 após o fracasso da conspiração Equals.

Foi fundamentalmente correcto considerar que o comunismo corresponde à natureza humana; que é o estado natural da espécie. Isto não acontece porque o homem é espontaneamente bom ou moral, não porque as sociedades se sucedem sem modificar uma natureza humana inalterável. Simplesmente classes, propriedade, troca, o Estado impõe-se como necessidades sociais, portanto também humanas, mas são apenas necessidades momentâneas que correspondem à passagem de uma forma social  comunista para outra. 116

O comunismo não é imposto. Surge constantemente, mesmo que só possa desenvolver-se em determinados momentos. Vimos que uma manifestação espontânea e tipicamente humana como a fala permanece comunista, pelo menos ao nível da forma. Na sua própria compreensão, o comunismo continua a ser muito mais simples e transparente do que o capitalismo: a forma social dominante. Isto porque é ainda hoje uma realidade mais imediata. Quando ridicularizamos a riqueza burguesa baseada na monopolização e expressa pelo dinheiro, e fazemos papel de ingénuos, é porque podemos confiar imediatamente numa concepção comunista de riqueza que existe no Estado.

Seremos criticados por sermos simplistas ou ingénuos. Até certo ponto estas são virtudes que cultivamos. Bem-aventurados os simplórios, porque deles é o reino dos céus; e não só este. O comunismo é criticado não por ser incompreensível e inaceitável, mas por ser ingénuo, por não ter em conta a realidade que pretende derrubar. Lutam contra o comunismo porque sabem que não é assim tão ingénuo e que existem os meios para o seu sucesso.

A teoria é uma necessidade. É necessária num mundo onde a realidade humana escapa aos homens. Mas se a teoria serve apenas para complicar as coisas, para reforçar a tela que separa os homens da sua humanidade, então é melhor abster-se. A teoria revolucionária não é como a teoria da relatividade. Ela fala de uma realidade na qual estamos imersos. A complexidade e a distância que procura reduzir, num movimento que é, portanto, ele próprio comunista, não estão ligadas a razões físicas, mas a razões humanas e humanamente modificáveis.

Somos tentados a drogar-nos com a teoria e assim recusar a vida, ou a recusar a teoria e a drogar-nos com a experiência. A falta de vida, o distanciamento dos mecanismos que organizam a vida humana não conduzem a um desejo necessariamente activo de compreensão, mas a uma busca frenética por imagens e possibilidades de identificação. O que importa não é compreender e assim colocar-se na possibilidade de transformar a realidade, mas encontrar os responsáveis, os culpados, os belicistas e os ladrões de trabalho. Só graças a esta procura de concretude e de imagens é que o sistema e os seus gestores têm conseguido concentrar o ódio popular contra este ou aquele grupo social. A esta necessidade pervertida de experiência devemos opor explicações, mas sobretudo a própria vida. Não pode curar viciados em drogas com palavras.

Morelly observa: “Infelizmente, é verdade que seria quase impossível formar tal república nos nossos dias.” Os utópicos não compreendem o movimento que pode levar ao comunismo. Nesta altura o proletariado ainda mal aparecia como uma força autónoma. Mas as descrições utópicas já manifestam a necessidade histórica do comunismo e fazem dele uma exigência imediata de acordo com a sua natureza profunda.

O futuro não é um ponto externo à realidade que vivemos. Ele é esta realidade, é a sua superação. O comunismo está aqui e noutros lugares, hoje e amanhã, a minha subjectividade e o desenvolvimento objectivo de  forças produtivas. 117

Não podemos, sem nos desviarmos, opor-nos ao comunismo como utopia e como movimento histórico. Um dos grandes méritos dos utópicos é não terem alimentado quaisquer ilusões quanto à possibilidade histórica do seu projecto.

Mais tarde vieram reformadores comunistas como Cabet e Owen, que tentaram transformar as suas ideias em realidade criando pequenas comunidades ou instituições que eram “comunistas” ou tinham objectivos comunistas.

A força do utópico é que ele não se concentra em construir uma representação da evolução, em deduzir o que virá do que é. Ele antecipa directamente. Ataca radicalmente, isto é, ao nível humano, os problemas que o capital levanta e revela. Problemas com os quais a humanidade um dia será forçada a lidar.

Como utopia, o comunismo afirma-se na sua descontinuidade com o presente. Foi concebido como um novo equilíbrio mundial.

A isto opomos um determinismo de má qualidade que reduz a evolução a um processo contínuo onde cada fase é a extensão ou produção por desmoldagem da fase anterior. O utópico é reduzido a um sonhador ou a um racionalista místico. Não compreendemos a sua abordagem e o seu ponto de partida como parte do movimento em questão.

O comunismo é uma expressão da implantação historicamente permitida e ordenada das capacidades da espécie humana. É o estado natural da espécie. Mas esta natureza é produzida historicamente. A própria história apenas ordena e repete os mesmos materiais, sem ficar parada ou descrever um círculo fechado.

A fase intermédia das sociedades de classes, que tende a negar o homem, fazendo do homem um instrumento, só foi possível e necessária pelas características específicas e geneticamente inscritas da espécie. É a capacidade humana de se adaptar, mas também de resistir, de usar ferramentas, mas também de ser usada como uma ferramenta que não se volta contra a humanidade. Esta fase, ao gerar o capitalismo e a maquinaria, assinou a sua própria sentença de morte.

SOCIALISMO CIENTÍFICO

No século XIX o antagonismo entre a burguesia e o proletariado veio à tona. O comunismo tenderá menos a pretender basear-se na razão ou na filosofia em geral. Ele quer inserir-se e praticamente transformar a realidade. A primeira tendência a surgir é aquela que quer começar a criar ilhas comunistas e a expandir-se pelo exemplo, possivelmente com o acordo dos poderosos deste mundo. A segunda tendência é a do comunismo revolucionário e insurreccional. Em França, será associado em particular ao nome de Blanqui: “O comunismo, que é a própria Revolução, deve proteger-se da aparência da utopia e nunca separar-se da política. Ele estava fora disso anteriormente. Está bem no centro disso hoje. Ele nada mais é do que seu servo... No dia em que a mordaça sair da boca do trabalho, será para entrar na do capital.” 118

Blanqui vê o comunismo já em acção, embora de certa forma um pouco generoso em nossa opinião, no mundo capitalista: “O imposto, o próprio governo, são comunismo, do pior tipo, com certeza, e ainda assim absolutamente necessário... Associação , ao serviço do capital, torna-se um tal flagelo que não será tolerado por muito tempo. É privilégio deste princípio glorioso poder fazer apenas o bem.” (Comunismo, futuro da sociedade, 1869)

O comunismo, ao ligar-se abertamente à luta do proletariado, dá um passo decisivo, mas também se perverte. Gradualmente deixa de ser uma exigência imediata. Torna-se um projecto, uma missão, um estádio histórico isolado do presente. Esvaziado do seu conteúdo para os “niveladores” e os “partilhadores”, poderá tornar-se no século XX um hábito para o capital.

O “socialismo científico” foi uma forma de racionalizar o afastamento histórico do comunismo. No século XIX, a classe operária pode agir de forma autónoma, mas o comunismo não é possível. Ao propor preconceitos políticos e fases de transição, Bray, Marx ou Blanqui permitiram todas as recuperações.

O que falta no famoso “Manifesto Comunista” é precisamente o comunismo. Aí encontramos uma apologia à burguesia, uma análise das lutas de classes, medidas de transição. O comunismo raramente é falado e bastante mal.

O “Manifesto” foi escrito para a “Liga dos Justos” que se tornou a “Liga dos Comunistas”. Antes da chegada de Marx e Engels, a doutrina desta associação de artesãos e trabalhadores alemães na imigração era bastante vaga. Weitling, seu fundador e teórico, era do tipo místico. Marx e Engels fazem progressos inegáveis, mas provocam um recuo numa afirmação ingénua mas mais positiva e ainda mais justa do comunismo.

Em Junho de 1847, o Congresso da Liga definiu as suas intenções no Artigo I dos Estatutos: “A Liga visa suprimir a escravidão humana através da divulgação da teoria da comunidade de propriedade e, o mais rapidamente possível, através da sua aplicação prática.”

Em Novembro de 1846/Fevereiro de 1847 o Comité Director escreveu às secções “Vocês sabem que o comunismo é um sistema segundo o qual a Terra deve ser o bem comum de todos os homens, segundo o qual todos devem trabalhar, “produzir”, de acordo com suas capacidades , e desfrutar, “consumir”, de acordo com suas forças...”

O Artigo I dos novos Estatutos, escritos por Marx e Engels, enfatiza os problemas do poder e da dominação e define o comunismo negativamente: "O objectivo da Liga é a queda da burguesia, a dominação do proletariado, a supressão da velha sociedade burguesa baseada em antagonismos de classe, e a fundação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada”.

Em “Gritos de angústia da juventude alemã” (1841), Weitling define o seu comunismo cristão assim: “O problema que ele (Cristo) colocou a si mesmo foi a fundação de um império sobre toda a terra, a liberdade para todas as nações, a comunidade de bens e de trabalho para todos aqueles que professam o império de Deus. E é precisamente isto que os comunistas de hoje adoptaram novamente..." 119

“Há comunistas que o são sem saber: o agricultor trabalhador que partilha o seu pedaço de pão integral com o trabalhador faminto é comunista; o artesão trabalhador que não sequestra os seus trabalhadores e que lhes paga proporcionalmente ao produto do seu trabalho comunitário, é um comunista; o rico que usa o seu excedente para o bem da humanidade sofredora é um comunista.” Comunismo e caridade são praticamente confundidos. Marx iria reagir com razão e vigor contra esta confusão. Mas no “Manifesto Comunista” os comunistas já não são definidos pelo seu comunismo. Eles são simplesmente os mais resolutos dos proletários e aqueles que têm a vantagem de uma compreensão clara do progresso do movimento proletário: os possuidores da teoria. No final do século XIX e início do XX, e apesar da raiva de Marx contra a social-democracia, especialmente antes do Congresso de Gotha em 1875, o comunismo foi esvaziado do seu verdadeiro conteúdo. Só manterá o seu significado profundo para um punhado de anarquistas.

Em 1891, Paul Reclus, para justificar a “recuperação individual”, isto é, o roubo, deu em “La Révolte” esta curta e boa definição de comunismo: “A actividade de vida com que sonhamos também está longe do que chamamos hoje de trabalho e o que chamamos de roubo: pegaremos sem pedir e isso não será roubo, usaremos as nossas faculdades e a nossa actividade e isso não será trabalho..."

Com a onda revolucionária que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e na esteira da Revolução Russa, as tendências marxistas e comunistas reapareceram. Há indícios de comunismo entre os bolcheviques. Noivas que rapidamente se tornarão pervertidas e desaparecerão com o declínio da revolução mundial e o envolvimento nos problemas russos.

É com razão que denunciámos o papel contra-revolucionário inicial dos bolcheviques, é com razão que mostrámos o carácter burguês do trabalho teórico e prático de Lenine. Mas é estúpido querer culpar os bolcheviques pelo fracasso da revolução operária na Rússia. Os bolcheviques são antes um caso específico de exemplo em que um punhado de homens conseguiu influenciar o curso da história até ao extremo das possibilidades revolucionárias. Os seus adversários, mesmo de esquerda, geralmente apenas tiveram de se opor às perspectivas humanistas e democráticas.

O contraste é impressionante entre a magnitude da onda revolucionária e a fraqueza da afirmação comunista.

Na Alemanha e na Holanda em particular, os “esquerdistas” denunciam o capitalismo de Estado no regime russo. A isto opõem-se um comunismo baseado na gestão dos operários. Devemos-lhes a ênfase na acção autónoma das massas e dos conselhos operários. Com o refluxo da revolução, esta corrente, expressa em particular pelo KAPD, fragmenta-se em pequenas seitas, quando deveria ter reunido centenas de milhares de operários.

Este gerencialismo operário também será usado por anarquistas e anarco-sindicalistas. O comunismo é reduzido à auto-organização dos produtores.

Foi em Itália que a esquerda de Bordiga, que dominou o PCI na sua fundação, melhor restaurou a doutrina comunista. Ela posiciona-se contra a participação nas eleições, recusa frentes comuns com a social-democracia, critica a ilusão democrática. 120

Destaca a abolição do emprego assalariado e da economia mercantil. Particularmente após a Segunda Guerra Mundial, Bordiga desenvolveu a sua análise da contra-revolução capitalista na Rússia e a sua concepção do comunismo. Não construímos o comunismo, destruímos o mercantilismo.

Apesar da sua profundidade, o Bordigismo não consegue libertar-se da sua matriz leninista. O seu radicalismo e a sua perspicácia perdem-se nos piores impasses.

Após a Segunda Guerra Mundial, foi apenas muito gradualmente que o comunismo teórico renasceu. A prosperidade e a boa saúde do capital não ajudam. Depois de relembrar o seu passado, de forma bastante má, ele tenta ir além dele. Desenvolve-se à medida que a crise social, e depois económica, do capital começa a tornar-se novamente visível.

Depois de enfrentarem as críticas aos países orientais e à burocracia, os situacionistas desenvolveram uma teoria da sociedade moderna baseada na mercadoria e no “espectáculo”. Eles denunciam a pobreza moderna. Por mais relevante que a sua análise possa muitas vezes ser, ela permanece na superfície das coisas. Prisioneira no seu estilo e conteúdo do efeito espectáculo que denuncia e reflecte.

Os situacionistas produzem uma crítica social brilhante e corrosiva, mas não uma teoria do capital, da maquinaria que sustenta o espectáculo e da revolução. Eles não abordam a questão da comunização senão aplaudindo a negação imediata da mercadoria: saque ou incêndio, ou afundando-se no conselhismo: Pelo poder absoluto dos conselhos operários nos quais tudo está suspenso. Ferozes inimigos do bolchevismo, como ele, fizeram da revolução uma questão de organização.

A doutrina comunista deve centrar-se na descrição do futuro e especialmente no processo de comunização. É isto que devemos debater, unir ou, pelo contrário, dividir. Não se trata de fugir do presente, mas de vivê-lo e julgá-lo à luz do futuro. O comunismo é actual e podemos imediatamente opor as suas perspectivas à cola capitalista.

O protesto, se não conduz a perspectivas positivas e, portanto, mostra a sua falta de profundidade, torna-se um meio de entrar na miséria sob o pretexto de denunciá-la. Seguindo os palhaços e os cantores, os ideólogos passam a alimentar-se da própria decomposição do sistema. Se pudermos perdoar tudo àqueles que nos fazem rir, não poderemos perdoar nada. Maneira definitiva de esconder as possibilidades gigantescas e inexploradas que se abrem para a humanidade: Maneira definitiva de extinguir a esperança nos corações dos oprimidos!

Com o tempo, a ideia e a luta comunistas ressurgiram continuamente. Porém, só se transformam gradativamente ao se recuperarem, o capitalismo obriga-nos a ir além. Hoje que o capitalismo generalizou a propriedade pública e o trabalho nos campos de concentração, o comunismo está para além da oposição entre apropriação individual e colectiva. Tudo já não se baseia na questão da propriedade. O comunismo não oscila entre um naturalismo associal e um moralismo ou regulacionismo exasperado. 121

A fase marxista também não deve ser poupada. O comunismo foi considerado um modo de produção que sucedeu ao capitalismo. É ao mesmo tempo mais e algo diferente de uma forma social. É o movimento, presente no capitalismo que o reprime, através do qual a actividade humana rompe os seus constrangimentos e finalmente floresce!

A ACTIVIDADE COMUNISTA

O comunismo é antes de tudo actividade. Primeiro, porque surge dentro do capitalismo antes de poder derrubá-lo. Primeiro, porque no mundo comunista a actividade humana e as funções vitais não são prisioneiras das formas sociais geradas. A organização das tarefas já não tem de estar congelada nas instituições. O comunismo surge positivamente dentro do capitalismo. Mas afirma-se como o reverso da negação. O comunismo como actividade é ao mesmo tempo negação e antecipação. Não existem dois momentos sucessivos. Quanto mais a actividade se opõe ao capital, mais tende a atrair o comunismo; e vice versa.

Portanto, não se trata de forma alguma de construir ilhas de comunismo dentro do capitalismo. Se a actividade tende a construir, ela destrói-se do ponto de vista comunista.

Não existem necessidades comunistas que exijam satisfação fora do sistema. Mesmo que exista comunismo sob as necessidades, quando elas aparecem não conseguem dissociar-se das suas possibilidades de realização, mesmo imaginárias, no sistema. A incapacidade do capitalismo de satisfazer desejos leva à sua superação e à superação dos desejos que permite.

Nem vemos o comunismo como Weitling no sentido moral ou com Blanqui na ascensão do glorioso princípio de associação. Se for comunismo, é comunismo negativo, que não deve ser confundido com mau comunismo. É a ascensão do movimento de desapropriação capitalista.

Despossuídos dos instrumentos de produção, privados do poder sobre o seu trabalho, separados uns dos outros, mas confrontados e animados por um enorme poder produtivo, reunido em grandes massas, os proletários vêem o comunismo inscrito negativamente na sua situação. Eles não têm, mesmo que possuam a sua caixa de ferramentas, quaisquer interesses particulares a defender. A sua privação enfrenta o poder e a riqueza social que animam. Isto é o que faz do proletariado a classe do comunismo. Os proletários não podem reapropriar-se aos poucos dos meios de produção. Eles precisam compartilhá-los.

Mas o fundamental não é tanto, mesmo que as coisas estejam indissociavelmente ligadas, o movimento de reapropriação e partilha de bens, mas a nova actividade que se desenvolve, a reapropriação da vida, o nascimento de novas relações, a inversão da relação de dominação entre homens e objectos. 122

Certamente o comunismo, a comunidade humana, é uma fase de desenvolvimento histórico, um determinado modo de produção. Os antagonismos que opunham grupos e interesses humanos desaparecem.

Mas não podemos compreender o comunismo se fizermos dele um objectivo ou um movimento finalizado, desligado da actividade que o produz. Ao submeter a actividade ao objectivo, os meios aos fins, apenas projectamos na história a dominação do capital mercadoria sobre a actividade humana, que ele aprisiona na forma de trabalho. O objectivo, o resultado, a forma social comunista deve ser considerada como uma necessidade da actividade que procura assegurar e reproduzir as suas condições de existência.

A comunidade está na sociedade por vir, na unificação do planeta, no fim da divisão da economia em empresas, numa solução mundial e social. Mas aqueles que não o vêem em acção na actividade espontânea dos proletários, na negação imediata e particular do racismo e das mentiras, não conseguem compreender nada sobre isso.

A relação entre a actividade imediata e o mundo vindouro é central. A universalidade do comunismo está contida na particularidade das situações.

Se a universalidade pode surgir do particular é porque este particular é ele próprio produto da lógica universal, unificadora e privativa do capital.

Aqueles que não compreendem a ligação são forçados a apelar para um falso universal: o partido (proletário!), o Estado (proletário!), ou mesmo o proletariado, mas como uma abstracção ou representação. Considera-se que este falso universal esconde o princípio activo face a uma pasta social inerte. O instrumento e seu objecto. Mente transformando ou cavalgando na matéria.

A consciência comunista só se generaliza quando a sociedade é abalada até aos seus alicerces. Mas na vida que ressurge tudo já está lá, inclusive a consciência que deixa de ser o reflexo passivo de representações e situações congeladas. A consciência ideológica é transformada em consciência prática. Nisso ela já é comunista.

Quanto mais profunda a luta, mais os participantes se veem limpos dos preconceitos e das mesquinharias que os habitavam. A sua consciência é desvendada e eles lançam um olhar novo e surpreso sobre a realidade e a existência que levam.

Esta presença do comunismo não é o monopólio da luta no sentido estrito do termo: um confronto claro e declarado entre trabalho e capital. Manifesta-se ao longo da vida social e muitas vezes abandona essas lutas ritualizadas, fixas e enfadonhas que já não existem.

A verdadeira comunidade humana sempre envolve uma contradição com o capital. Tende a tornar-se uma luta aberta ou é destruída e recuperada para se tornar uma imagem a aderir à realidade. A influência crescente do capital sobre a vida reprime e torna cada vez mais impossível toda a humanidade, todo o amor, toda a criação e toda a verdadeira investigação. Os homens tornam-se carcaças vazias que vagueiam sem vida ao ritmo do capital. A revolta, a reacção devem então assumir um carácter cada vez mais humano. A essa humanidade contraditória ao capital, fase precisa do futuro da espécie, chamamos de comunista. Este rótulo é necessário enquanto este tornar-se humano não pode pretender representar e abranger todas as manifestações humanas, uma vez que permanece antagónico ao capital. 123

O comunismo é possível porque o capital não pode transformar os homens em robôs. Mesmo que ele robotize a sua existência, ele não pode prescindir da sua humanidade. A actividade mais integrada e servil prospera na participação, na criação, na comunicação e na iniciativa, mesmo que não consiga florescer. A necessidade e a expectativa de salário não são suficientes para manter o operário a funcionar. Ele precisa de outras motivações, precisa colocar o seu próprio esforço nisso. A forma de trabalho não pode eliminar o carácter genérico e humano da actividade do operário.

Vimos (cap. IV) que sob separações a vida se perpetua e mantém a sua unidade: É impossível dissociar completamente produção, educação e experimentação. A produção, o trabalho mais estúpido, exige uma certa adaptação do operário e capacidade de enfrentar uma situação não planeada. Da mesma forma, a educação mais abstracta deve materializar-se através de determinados “produtos”, ainda que apenas uma prova. A necessidade de controle externo recai sobre a produção...

O sistema de produção entraria em colapso se os operários não pudessem mais experimentar, ajudar-se uns aos outros, aconselhar-se uns aos outros. A organização hierárquica do trabalho só pode sobreviver se as suas regras forem constantemente desrespeitadas. Impõe um quadro intransponível a estas ilegalidades e à actividade espontânea dos operários para evitar que se desenvolvam e se tornem verdadeiramente perigosas e subversivas. Quando se abre uma brecha ou surge um conflito, esta actividade tenta tornar-se autónoma e desenvolver a sua própria lógica.

Ao lutar, o proletário nega-se imediatamente como assalariado, como escravo, como robô. Por mais limitado que seja o reaparecimento da vida e da acção, a opressão capitalista já é posta em causa nos seus fundamentos.

O proletário que não passava de uma engrenagem começa a escolher novamente, a comprometer-se, a correr riscos. Ele recupera o controle dos seus movimentos. Os seus olhos abrem-se, a sua inteligência descongela. A seriedade opressiva, o cinzentismo que cerca os homens nos campos de trabalhos penais e o universo civilizado e mercantilizado estão em colapso. Tudo se torna possível novamente.

A revolta como busca de prazer e eficiência já está além do trabalho. O seu salário está directamente na alegria que desperta e nos resultados que proporciona.

A actividade selvagem do proletariado é reprimida assim que ultrapassa um certo limiar. Mais comumente, é recuperado e digerido em estado morto. Portanto, não só o comunismo é o produto do capitalismo, mas o capitalismo é o produto do comunismo. Se insistirmos neste comunismo latente ou hesitante não é para o fetichizar. Ele só pode ser ele mesmo superando-se e afastando-se da órbita capitalista. Reconhecer a sua importância não é de forma alguma ajoelhar-se diante de uma espontaneidade que se recusa a organizar-se, a disciplinar-se e a tornar-se ofensiva. 124

O capital recupera de acordo com a sua natureza profunda. Em essência, ele é um vampiro. É aconselhável, portanto, não se surpreender com este ou aquele aspecto mais espetacular. As lutas operárias, apesar da oposição que suscitaram, serviram para que o sistema se transformasse e concretizasse as suas potencialidades, permanecendo sempre ele mesmo. As lutas salariais e políticas, ou os resultados salariais e políticos, abalaram o sistema e permitiram-lhe modernizar-se. A luta consegue ser esterilizada na base. A greve, a manifestação, a ocupação das fábricas tendem a ser uma asneira. Já não procuramos ferir o capital, mas alertá-lo para o desconforto, para expressar descontentamento. No auge da alienação, a greve já não aparece sequer como um meio de pressão, mas como um sacrifício para aqueles que a fazem. A importância do seu sacrifício prova a seriedade do seu protesto. A guerra social é substituída pelo desfile.

ACTIVIDADE E PROGRAMA

O ponto de vista da actividade é o do comunismo. Não se trata de negar a necessidade de a actividade se corporificar, de se objectivar e de se apoiar naquilo que gera e transforma.

Pelo contrário, o capital só considera a actividade do ponto de vista da coisa produzida. É por isso que, contra todas as evidências, ele equipara o trabalho e especificamente a actividade humana. A actividade só pode ser levada a sério tendo em conta o seu contributo imediato e positivo. Positivo dependendo do capital.

Este desejo de considerar apenas o impacto imediato esconde a natureza antecipatória da luta dos operários: “Em vez de olhar para o que os operários fazem, os ideólogos burgueses tentam imaginar o que os operários gostariam de obter. Vemos na actividade proletária, no máximo, apenas um factor de ruptura ou de modernização do sistema, nunca o esboço da sua superação.

Esta actividade não é levada a sério porque não produz. Seria puramente destrutivo e negativo. Como podemos imaginar que isso poderia animar um novo mundo? Na realidade, o carácter negativo da actividade comunista é determinado pelas oportunidades imediatas e pelo contexto capitalista. Só é negativo do ponto de vista do capital e não daqueles que o põem em movimento.

“Não devemos iludir-nos sobre a natureza destrutiva da actividade comunista à medida que emerge dos flancos do capitalismo. Já é produtor de uso. A sabotagem destrói o valor de mercado ao atacar o uso que pode ser feito de uma mercadoria, mas produz valor de uso para o trabalhador, pois permite-lhe ganhar tempo livre, para pressionar o patrão.” (Lordtown 72). Este carácter destrutivo desaparece mesmo quando o operário produz por conta própria à custa da sua empresa.

Ao fazer da actividade proletária revolucionária o pivô da nossa doutrina, podemos compreender a identidade e a descontinuidade entre a revolta contra o capital e o mundo vindouro. Vemos a unidade contraditória entre trabalho e actividade comunista. Podemos afirmar que o comunismo é antes de tudo uma transformação radical da actividade humana antes de ser uma modificação das formas sociais. Isto permite-nos rever as concepções tradicionais de avaliação de custos no mundo comunista. 125

Nos seus escritos juvenis, Marx consegue conceber o comunismo não apenas como um movimento, mas também como uma actividade. Infelizmente, à medida que ele desenvolve a sua concepção de desenvolvimento histórico, esta visão desaparece como um ponto de vista unitário. Marx torna-se o teórico comunista do capitalismo. Em ambos os sentidos da expressão. Por outro lado, analisa o capitalismo do ponto de vista da sua negação. Por outro lado, ele é um prisioneiro do capitalismo.

Obviamente Marx leva em consideração a actividade humana, como actividade revolucionária e como actividade produtiva; mas separadamente. No que diz respeito à revolução de 1848, ele mostra que a actividade proletária se alimenta da sua situação de classe e desenvolve a sua própria lógica. Nas suas obras económicas ele faz do trabalho a base e a medida do valor. Mas deduzir a actividade produtiva do produto recorre à assimilação entre a actividade produtiva humana e o trabalho. Ele não vê na actividade do proletariado revolucionário nada além do trabalho.

Se tudo está na actividade imediata do proletariado, por que ainda se preocupar com teoria e organização? Por que procurar reformular um programa?

Nem tudo está na actividade imediata do proletariado, mesmo que tudo deva estar ligado a ele, tudo deve ser colocado em perspectiva e em ressonância.

A actividade imediata só é comunista pela sua capacidade de se superar. O programa comunista é uma necessidade, mesmo que se encontre por enquanto separado de todo o proletariado. Não é externo ao seu movimento, é uma antecipação, um guia. A sua verdade reside na sua capacidade de ser dissolvida, isto é, realizada pela classe. É apenas o programa da actividade proletária.



Fonte: un-monde-sans-argent-le-communisme.pdf (wordpress.com)

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