Preâmbulo
"Em 1975,
com o meu amigo Dominique Blanc, actual vice-presidente do Kêrvreizh, publiquei
três brochuras intituladas "Un monde sans argent: le communisme" (Um
mundo sem dinheiro: o comunismo).
A primeira capa apresentava
o chefe índio Sitting Bull, que dizia: "Então a URSS não é comunista, mas
os Estados Unidos da América eram-no há alguns séculos!
A segunda capa
apresenta um pirata. Era um pagão bretão de Léon, que dizia: "A pilhagem é
uma reacção saudável ao merchandising provocador, mas não pode ser usada como
meio de distribuição de bens...".
O terceiro
retratava o meu avô paterno, Yves Tillenon, como um druida que declarava:
"O comunismo remonta à aurora dos tempos e é a tendência saudável para
reencontrar a antiga comunidade perdida...".
Publiquei-os de
1974 a 1976 como suplemento de : "Les Amis de 4 Millions de Jeunes
Travailleurs", a revista da O.J.T.R. (Organização dos Jovens Trabalhadores
Revolucionários, à qual aderi em 1972). Eram, na altura, a ala juvenil do PSU
de Michel Rocard".
~ Yann-Ber
Tillenon ~ 3
Robert Bibeau
UM MUNDO SEM DINHEIRO : O COMUNISMO (1975-1976)
Collectif Les Amis de 4 Millions de Jeunes Travailleurs
Ú
ÍNDICE
O que é o
comunismo ?
Ciência -
ficção ?
II COMUNISMO
OU CAPITALISMO ?
Cortar a manteiga
O modo de
produção capitalista
Propriedade
privada
O lucro
Salários e
industrialização
O Estado e o
capitalismo
A recuperação
Os selvagens
Marx e Engels
III FIM DA
PROPRIEDADE
O que é a
propriedade?
A questão agrária
Da escassez à
abundância
A transformação
dos produtos
IV PARA ALÉM
DO TRABALHO
Trabalho e
tortura
Ciência e
automatização
Sociedade de
classes e robotização
Remuneração
A preguiça
Divisão do
trabalho
Trabalho duro
O fim da
separação
Produção e
consumo
Produção e
educação 4
V DINHEIRO E ESTIMATIVA DE CUSTOS
O dinheiro
Os elogios
Lei do valor
Gratificação
Tempo de trabalho
Fantástico
Elevador ou
escadas
Cálculo
Comparações
VI PARA ALÉM
DA POLÍTICA
O fim do Estado
Os Conselhos Operários
A democracia
O circo eleitoral
A greve
O partido
VII INSURREIÇÃO
E COMUNIZAÇÃO
Violência
O Exército
Vingança
Reconversão
Ruptura
Internacionalismo
VIII PROLETARIADO
E COMUNISMO
Lénine
Burgueses e
Proletários
À espera de Godot
IX O DEVIR
HUMANO
História
Comunismo Guarani
Niveladores
Socialismo
científico
Actividade
comunista
Atividade e
programa 5
I O QUE É O COMUNISMO ?
O comunismo é a
negação do capitalismo. Um movimento produzido pelo próprio desenvolvimento e
sucesso do modo de produção capitalista, que acabará por o derrubar e dar
origem a um novo tipo de sociedade. Onde existe um mundo baseado no trabalho
assalariado e nas mercadorias, deve surgir um mundo onde a actividade humana
nunca mais será trabalho assalariado e onde os produtos dessa atividade
deixarão de ser objectos de troca. O nosso tempo é o tempo desta metamorfose.
Ela reúne os elementos da crise do capitalismo e todos os materiais necessários
para uma resolução comunista dessa crise. Tentaremos descrever os princípios do
comunismo, examinar como eles podem assegurar a vida futura da humanidade e
mostrar que eles já estão em acção diante dos nossos olhos.
CIÊNCIA -
FICÇÃO ?
Queremos ilustrar
como será o mundo de amanhã, a sociedade comunista dos nossos sonhos. Não se
trata, de forma alguma, de competir com a ficção científica ou com o
jornalismo, escrevendo uma reportagem sobre a vida das pessoas e dos animais no
futuro. Não dispomos de uma máquina do tempo.
Apesar do
interesse da questão, não podemos prever quem ganhará a guerra entre eles, as
calças ou o vestido, o caldo de legumes ou a sopa de ninho de andorinha. Em
última análise, não podemos sequer garantir que a humanidade terá um futuro.
Quem nos garante que não seremos dizimados por uma guerra atómica ou por um
cataclismo cósmico?
Dito isto, a
previsão do futuro continua a ser desejável e possível. O nosso objectivo é
descrever a sociedade comunista com base nas suas regras gerais de
funcionamento, sublinhando as diferenças entre ela e a sociedade actual. Temos
de mostrar que o amanhã pode ser algo mais do que um hoje melhorado ou
recondicionado.
Para não sermos
demasiado insípidos, entraremos por vezes em pormenores e daremos exemplos. Mas
não os levem demasiado a sério. Toda a gente pode imaginar outros. Nós podemos
rejeitar os nossos.
O futuro não é um
terreno neutro. O capital tende a ocupar e a subjugar todos os espaços sociais.
Não pode, como imaginam os escritores de ficção científica, organizar as trocas
das suas mercadorias e dos seus operários entre o passado e o futuro. Vinga-se
no domínio da publicidade e da ideologia. Somos convidados a viver o presente
no tempo do futuro, a comprar agora o relógio ou o carro de amanhã. As
concepções sucessivas, concorrentes e por vezes "anti-capitalistas"
de um futuro capitalista confundem o nosso presente.
Discutir a
organização comunista da sociedade é, apesar dos riscos de erro, começar a
levantar o manto de chumbo que paira sobre as nossas vidas.
A velha pergunta
dos reaccionários: "Mas o que é que vocês propõem em substituição? Não
somos mercadores de ideias. Não temos de lançar uma sociedade alternativa no 6
no mercado como se fosse um novo sabonete. O comunismo não é objecto de
comércio ou de política. É a sua crítica radical. Não é um programa proposto,
mesmo democraticamente, à escolha dos eleitores ou dos consumidores. É a
esperança das massas proletarizadas de não serem mais reduzidas ao estatuto de
eleitores ou consumidores. Aqueles que se colocam na posição de espectadores,
que querem poder julgar sem terem de se comprometer, excluem-se do debate.
Se é possível
falar de uma sociedade revolucionária, é porque ela está em gestação na
sociedade atual.
Algumas pessoas acharão as nossas teses loucas e ingénuas. Não esperamos convencer toda a gente. Se isso fosse possível, seria preocupante! Em todo o caso, há quem prefira arrancar os seus próprios olhos a reconhecer a verdade das nossas posições. A revolução proletária será a vitória da ingenuidade sobre uma ciência servil e seca. Que se acautelem aqueles que pedem manifestações. Arriscam-se a ser levados a cabo, não na calma dos laboratórios, mas com violência e de barriga para baixo. Antes de dizer o que é o comunismo, é preciso primeiro limpar o terreno. Temos de desmascarar as mentiras sobre ele e dizer o que o comunismo não é. Porque, embora o comunismo seja uma realidade muito simples, tão ligada à experiência quotidiana que é quase palpável, não têm faltado as mais enormes inverdades sobre ele. Isto é um paradoxo apenas para aqueles que não sabem que, na "sociedade do espetáculo", é precisamente o significado do quotidiano e do familiar que tem de ser reprimido.
II COMUNISMO
OU CAPITALISMO ?
De acordo com a opinião
popular, o comunismo foi originalmente uma doutrina desenvolvida no século XIX
pelos dois famosos irmãos siameses Karl Marx e F. Engels, e aperfeiçoada um
pouco mais tarde pelo fundador do Estado soviético, Lenine. Diz-se que foi
aplicada com diferentes graus de sucesso numa série de países, incluindo a
URSS, a Europa de Leste, a China e Cuba. É nesta linha que debatemos se a
Jugoslávia ou a Argélia têm ou não regimes socialistas, capitalistas ou mistos.
Quer nos tranquilizemos, quer nos lamentemos, não vamos exaltar os encantos
desse socialismo ou desse comunismo. Não vamos tomar o cinzento sombrio da
Europa de Leste ou as ilusões do culto da personalidade na China pelo futuro
radioso da humanidade.
LE FIL À COUPER LE BEURRE (SER INGÉNUO)
O comunismo não foi fundado por Marx, Engels ou Ramsés II. Pode ter havido um inventor brilhante na origem da faca de manteiga ou da pólvora. Não houve nenhum na origem do comunismo, tal como não houve na origem do capitalismo. Os movimentos sociais não são uma questão de invenção. 7
Engels e depois
Marx juntaram-se a um movimento que já estava bem consciente da sua existência.
Nunca afirmaram ter inventado a coisa ou a palavra. Não escreveram muito sobre
a sociedade comunista enquanto tal. Ajudaram o movimento e a teoria comunistas
a libertarem-se das brumas da religião, do racionalismo e da utopia.
Encorajaram os proletários a não confiarem nos projectos deste ou daquele
reformador ou nas revelações deste ou daquele homem iluminado.
Os verdadeiros
revolucionários não fetichizam as ideias de Marx e Engels. Sabem que elas são o
produto de uma época e que têm os seus limites. Os dois homens evoluíram e, por
vezes, contradizem-se mutuamente. Pode dizer-se que tudo está em Marx. Mas é
preciso ser capaz de o perceber!
Não pretendemos
ser marxistas. Mas negamos àqueles que se dizem marxistas o direito de se
apropriarem e falsificarem o pensamento dos seus ídolos. A prova da impotência
dos grandes homens perante os movimentos da história é-nos dada pela forma ignominiosa
como a obra de Marx e Engels foi distorcida para ser utilizada contra o
comunismo.
Há indivíduos
mais dotados e mais clarividentes do que a massa dos seus semelhantes. A
sociedade de classes cultiva essas diferenças. Elas reflectem-se no movimento
comunista. Não estamos a discutir se são os líderes ou as pessoas que fazem a
história. Estamos a dizer que a obra de Marx, como a de Fourier, Bordiga ou
qualquer outro porta-voz do comunismo, ultrapassa o simples ponto de vista de
um indivíduo. O comunismo não nega as diferenças de capacidades, não reduz os
teóricos a meros altifalantes das massas, mas, por outro lado, é o inimigo
amargo e permanente do carreirismo e do estrelato.
O comunismo não é
uma ideologia nem uma doutrina. Tal como existem actos comunistas, também
existem palavras, escritos e uma teoria comunista, mas a acção não é a
aplicação da ideia. A teoria não é um plano pré-estabelecido para uma luta ou
uma sociedade que deve ser implementado o mais eficazmente possível. O
comunismo não é um ideal.
Os países que se
proclamam marxistas-leninistas não são zonas onde os princípios do comunismo
foram mal aplicados por uma razão ou outra. São países capitalistas. O seu
regime tem as suas características particulares, mas é tão capitalista como qualquer
regime liberal. Pode mesmo dizer-se que um país como a Polónia ou a RDA é muito
mais capitalista do que muitos dos países menos industrializados do "mundo
livre". Nestes países "comunistas", certas tendências
espontâneas do capital são combatidas. Isto é feito para o bem do
desenvolvimento geral do capitalismo, e não é de modo algum uma
particularidade.
A planificação imperativa, a propriedade colectiva dos meios de produção e a ideologia proletária não são comunistas. São características do capitalismo que foram aqui acentuadas. Todas as características fundamentais do sistema e a lógica da acumulação de capital, rebaptizada de "acumulação socialista", estão aqui bem presentes. 8
O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
Considerar os
regimes marxistas-leninistas como socialismo ou comunismo é não compreender a
sua realidade e, acima de tudo, é mostrar que não sabemos o que é o
capitalismo.
Acredita-se que
ele se baseia no poder de uma classe particular, a burguesia, na propriedade
privada dos meios de produção, na busca frenética do lucro. Nenhum destes
aspectos é fundamental.
A burguesia é a
herdeira da antiga classe dos comerciantes. Tendo desempenhado durante muito
tempo um papel importante mas limitado nas sociedades de base agrária, a
burguesia mercantil começou a controlar os instrumentos de produção em vez de
meras mercadorias durante a Idade Média europeia. Entre eles, o trabalho
humano, que transformaram em mercadoria através do trabalho assalariado. Esta
foi a origem do capitalismo.
A burguesia está
no poder a partir do momento em que se torna a classe dominante, graças ao
poder das forças económicas e industriais que a apoiam e que tornaram obsoletas
as antigas formas de produção. Mas ela não pode fazer outra coisa senão
curvar-se às leis da sua economia. Enquanto detentor do capital, deve obedecer
a essa força que o impulsiona, o empurra e, por vezes, o leva à falência.
O indivíduo ou a
empresa particular têm espaço de manobra, mas não podem navegar contra a
corrente durante muito tempo. Nenhuma classe conseguiu, no passado, satisfazer
todos os seus caprichos utilizando o poder que parece estar à sua disposição. O
tirano mais incontestado só pode manter-se se conhecer os limites estreitos da
sua soberania real. É um erro tentar explicar os fenómenos sociais em termos de
poder. Isto aplica-se ainda menos ao capitalismo do que aos sistemas que o
precederam. A classe dos gestores do capital tem sido constantemente remodelada
pela própria acção do capital. O que é que o rico comerciante da Idade Média e
o gestor moderno têm em comum? As suas motivações e gostos são diferentes. Isto
é necessário para que possam desempenhar a mesma função em dois momentos
diferentes do desenvolvimento do capital. A classe dos senhores feudais era
identificada pela tradição e pela hereditariedade. Já não é o caso de uma
burguesia que se desfaz e se refaz através do sucesso, do casamento e da
falência.
A relação entre
escravo e mestre, servo e senhor, é uma relação pessoal. Pelo contrário, o
proletário moderno está mais ligado a um sistema do que a um patrão. O que o
prende não é uma fidelidade pessoal ou um constrangimento particular, é directamente
a necessidade de sobreviver, a ditadura das suas próprias necessidades. O
proletário, arrancado da sua terra e separado dos meios de produção, não tem
outra alternativa senão ir trabalhar como prostituta. É livre, maravilhosamente
livre. Pode até recusar-se a vender-se e morrer à fome, se assim o desejar.
Um burguês ou um político pode ir pessoalmente à falência. Na Rússia e na China, toda uma parte da classe burguesa internacional foi à falência. Foi substituída por uma burocracia. A burocracia não deve ser vista como uma classe radicalmente diferente! Um banqueiro ou um capitão de indústria 9
O
"comunista" assemelha-se mais ao seu adversário capitalista do que
este se assemelha ao seu "antepassado", não do século XV ou XVI, mas
de há 50 anos.
Se o capitalismo,
ocidental ou oriental, não pode ser explicado pelo poder da burguesia, o
comunismo ainda menos pode ser reduzido ao poder do proletariado. O seu advento
significa a autodestruição dessa classe.
A PROPRIEDADE
PRIVADA
A propriedade
privada dos meios de produção não é uma característica constitutiva do modo de
produção capitalista. Pertence à esfera jurídica. Sobrevive no Oriente com as
parcelas de terra dos camponeses. No Ocidente, foi mordiscada pela propriedade
pública. O Estado é frequentemente proprietário de grandes complexos
industriais. Ao serem nacionalizados, os correios e os caminhos-de-ferro não
perderam o seu carácter de capital. F. Engels viu nesta tendência do Estado
para se tornar proprietário das forças produtivas uma evolução geral que
relegaria o capitalismo privado para a antiguidade.
O desenvolvimento
do capitalismo moderno tende a dissociar cada vez mais a propriedade e a gestão
das forças produtivas. Não só os gestores das empresas nacionalizadas, mas
também os das grandes empresas privadas não são proprietários, ou são
proprietários apenas de uma fração ínfima do capital que controlam. As
necessidades de capital dos gigantes industriais excedem de longe o que uma
fortuna pessoal ou familiar poderia proporcionar. Operam com dinheiro fornecido
por uma massa de pequenos accionistas e aforradores que praticamente não têm
poder. A situação na Europa de Leste deve ser entendida à luz desta evolução
geral do capital.
O LUCRO
O capitalista
seria movido pela procura do lucro máximo. A expressão "lucro máximo"
não significa muito. Um patrão pode tentar, durante um dia, uma semana ou um
mês, pôr homens e máquinas a trabalhar ao máximo, se tiver a certeza de
encontrar saídas. É provável que se arrependa rapidamente de ter esgotado o seu
capital. O fracasso de uma tentativa deste género ocorreu na China com o
"grande salto em frente". O montante dos lucros gerados e, por
conseguinte, o rendimento dos accionistas e dos gestores, bem como a taxa de
crescimento económico, não são decididos livremente pelos capitalistas
todo-poderosos.
O que leva o capitalista a enriquecer ou a investir é o facto de ganhar dinheiro. Se não o fizer, por complacência ou por bondade, ou porque objectivamente já não é possível, a sua empresa será eliminada. Para o burocrata, o medo das sanções administrativas também entra em jogo. Nem na URSS nem na China se proclama que o lucro desapareceu. Pelo contrário, o lucro é procurado para o bem do povo, para construir o comunismo.
Tornou-se um
instrumento de medida económica ao serviço da planificação!
No Oriente como
no Ocidente, e como Marx demonstrou, o desenvolvimento do capitalismo não pode
ser explicado pela atracção do lucro. É exactamente o contrário. As noções de
lucro ou de renda fundiária não explicam o funcionamento do sistema. São as
categorias através das quais as classes dominantes tomam consciência das
necessidades económicas e são levadas a agir. Ao contrário dos humanistas de
esquerda que vêem, ou fingem ver, o lucro como o seu grande inimigo, os
revolucionários não estão iludidos. Não censuramos o sistema pela sua
imoralidade. Não nos agarramos a sectores arcaicos que já não são rentáveis.
O lucro
desaparecerá com a revolução. E sem demora! Até lá, desempenha, em certa
medida, um papel de protecção dos operários. Impõe limites à tirania do patrão.
Obriga-o a poupar material humano. Se fosse possível abolir o lucro preservando
o capital, a empresa média transformar-se-ia num campo de concentração e a sociedade
deslizaria para a barbárie total. O nazismo não é um acidente da história. É o
desencadear de forças que continuam a espreitar nas profundezas da civilização
do capital. O lucro impõe limites ao autoritarismo, à vontade de dominar e
esmagar que um sistema desumano gera.
Ataquemos o
lucro! Mas ataquemos também o conjunto de uma sociedade em que a própria vida
humana se tornou uma mercadoria.
TRABALHO
ASSALARIADO E INDUSTRIALIZAÇÃO
O modo de
produção capitalista assenta em dois pilares de solidariedade que o distinguem
dos modos de produção que o precederam. O primeiro desses pilares é o trabalho
assalariado. Os homens já tinham alugado o seu charme, a sua ligação política,
a sua capacidade militar e até a sua força de trabalho a outros homens. Mas tudo
isso permanecia marginal em agrupamentos sociais constituídos por pequenos
grupos entre os quais o dinheiro e os bens não circulavam muito. O
desenvolvimento do capitalismo significou a introdução efectiva do trabalho
assalariado na esfera da produção. Este tornar-se-á a forma geral de
exploração.
O segundo pilar é
a industrialização ou, mais amplamente, uma mudança na relação do homem com a
natureza e com a sua própria actividade. O homem já não se contenta em arranhar
o solo para viver. A partir de agora, transformam sistematicamente a natureza
numa escala crescente. O capitalismo é uma revolução ininterrupta dos modos de
produção. É o progresso da ciência e da razão face ao fatalismo e ao
obscurantismo. É o movimento que sucede ao imobilismo das sociedades agrárias.
O comunismo não
fará o tempo voltar atrás. O fim do trabalho assalariado não significa o
regresso à escravatura ou à servidão. A superação do processo de
"conquista da natureza" e da organização industrial do trabalho não
significa o regresso ao imobilismo do passado. O comunismo abandonará o
carácter agressivo e desordenado da acção do capital. O seu objectivo não é 11 destruir,
dividir e subjugar, mas agir globalmente sobre o mundo para o humanizar e o
tornar habitável. Para além da indústria, conciliará o útil e o agradável. A um
nível superior, redescobrirá a familiaridade perdida que unia o ser humano ao
seu ambiente.
O capitalismo não
começou a florescer numa bela manhã porque, de repente, nos apercebemos de como
podia ser eficiente. Não se trata de uma vitória do espírito. Foi estabelecido
no trabalho através de convulsões sociais que foram frequentemente cruéis e
irracionais. Provocou reacções de revolta. Teve de dar um passo atrás, para
voltar a avançar. A empresa foi buscar os seus empregados a uma massa de
camponeses que tinha anteriormente expulsado das suas casas e reduzido a
mendigos.
O movimento do
capital tem dois aspectos. Por um lado, é o desenvolvimento das forças
produtivas humanas e materiais e, por conseguinte, do valor de uso e da
utilidade. Por outro lado, é o desenvolvimento do valor da mercadoria. A
mercadoria já tinha esta dupla face. O capital continua a ser uma mercadoria,
mas é também um valor que tende a aumentar constantemente.
Durante muito
tempo, o capital esteve por baixo da mercadoria. Graças ao seu engenho ou à sua
astúcia, o comerciante pode possuir e explorar uma massa crescente de produtos.
O agiota pode fazer o mesmo, mas apenas com dinheiro. Mas estas formas
primitivas de capital não podem expandir-se indefinidamente. O valor permanece
parasitário e não cria os meios necessários para a sua acumulação. Só com a
apropriação e a fixação de um valor sempre crescente nos meios de produção é
que o capital pôde realmente florescer. Como um vampiro que se alimenta de
valor, isto é, de trabalho humano, tem de desenvolver a maquinaria e a
produtividade para atingir os seus objectivos. Para ele, estes são apenas meios
para atingir um fim. Para nós, é o que interessa. Este desenvolvimento técnico
assume muitas vezes formas desagradáveis: desemprego, armas mortíferas,
destruição da natureza, mas vai revolucionar a actividade humana e permitir-nos
sair da era bárbara das sociedades de classes.
O comunismo não
destrói o capital para recuperar a mercadoria original. A troca de mercadorias
é um elo e uma forma de progresso. Mas é um elo entre partes antagónicas.
Desaparecerá sem o regresso à troca directa, essa forma primitiva de troca. A
humanidade deixará de estar dividida em grupos e sociedades antagónicas.
Organizar-se-á para desenvolver e utilizar o seu património comum, para
repartir as tarefas e os prazeres. A lógica da partilha substituirá a lógica da
troca.
O dinheiro desaparecerá. O dinheiro não é um instrumento de medida neutro. É a mercadoria em que se reflectem todas as outras mercadorias. O ouro, a prata e os diamantes deixarão de ter qualquer valor para além daquele que deriva da sua própria utilidade. Como Lenine desejava, o ouro poderia ser reservado para a construcção de urinóis.
O ESTADO E O CAPITALISMO
No campo
"comunista", o dinheiro continua a circular sem perturbações. A
divisão por fronteiras e, dentro dessas fronteiras, a divisão da economia em
empresas, está viva e de boa saúde. O papel do Estado na economia 12 , que se
baseia juridicamente na propriedade pública das empresas, explica-se pela
natureza do capitalismo.
O Estado e a
mercadoria são velhos amigos. Os comerciantes querem que a sociedade seja
unificada, que os ladrões sejam perseguidos e que o dinheiro seja garantido. O
Estado e a burocracia encontraram na circulação de bens e pessoas o meio de se
desligarem do mundo agrícola.
O Estado moderno,
seja ele real ou republicano, é o produto da dissolução das estruturas feudais
pelo capital. Opõe-se a interesses particulares como representante do interesse
geral. É necessário ao capital porque o ajuda a ultrapassar as contradições e
oposições que o capital não pode deixar de provocar. A monarquia e a burguesia,
apesar dos momentos difíceis, apoiaram-se mutuamente face ao feudalismo. A
unificação política era necessária para o desenvolvimento das empresas
comerciais e industriais. A riqueza e as riquezas permitiram reforçar o poder
do Estado e dar-lhe autonomia. Muitas vezes, o Estado intervém directamente
para fornecer ou obter os capitais necessários a um determinado ramo da
indústria. Desenvolveu o arsenal jurídico necessário para desenvolver uma mão
de obra livre. Eliminou os antigos costumes e barreiras. Quando a burguesia
aparece directamente na cena política, já há muito que se tornou uma força
dominante e o Estado monárquico passou para o seu serviço.
Na Rússia e no
Japão, países que foram lançados na cena internacional num estado de sub-industrialização,
foi o próprio Estado que provocou e organizou o desenvolvimento do capitalismo.
Fê-lo para preservar as bases do seu próprio poder e para se dotar de armas
modernas. Ao colocar o capital ao seu serviço, estava simplesmente a curvar-se
perante a sua superioridade. A monarquia iniciava um processo que acabaria por
a destruir. As condições necessárias para este enxerto não existiam em todo o
lado. No Japão, teve êxito porque o Estado já era autónomo e o comércio se
tinha desenvolvido. A China falhou momentaneamente, tal como a maioria dos
outros países pré-capitalistas.
O Estado tem
muitas vezes de intervir para corrigir um capital que gosta de ser caprichoso e
que prefere instalar-se ali do que noutro lugar. Os regimes burocráticos apenas
acentuam esta tendência até um ponto nunca antes atingido.
Será que o
capitalismo oriental conduz a um crescimento mais harmonioso ou racional do que
o capitalismo ocidental? A pergunta não faz muito sentido. Se o fez, foi graças
às falhas do capitalismo tradicional. Se esse capitalismo tradicional é hoje
reimplantado em Moscovo ou em Leninegrado, isso deve-se às falhas do
capitalismo de Leste.
Onde a burguesia
se tinha desenvolvido lentamente através da economia, a burocracia conquistou o
poder político apoiando-se em forças sociais como o proletariado e o
campesinato. No entanto, foi o fruto da desintegração da sociedade tradicional
pelo capital internacional. A burocracia não teve escolha. Não podia, como
pretendia, instaurar o socialismo ou o comunismo. Também não podia restaurar e
fecundar o capitalismo tradicional. A burocracia não podia, como pretendia,
instaurar o socialismo ou o comunismo. Empiricamente, 13, encontrou um caminho
que se adequava à sua natureza e que lhe permitia acumular capital industrial à
custa do campesinato.
A burocracia é
uma força unificadora que permitiu a transferência autoritária de riqueza de um
sector da sociedade para outro. Modifica o desenvolvimento espontâneo do
capital a favor dos seus objectivos de poder e de permanência. Mas o capital
não é uma força neutra que pode ser usada para qualquer objectivo. A burocracia
planeia, domina. Mas o que é que ela planeia, o que é que ela domina? A
acumulação de capital. Reduz o mercado livre, combate um mercado negro que não
pára de renascer. Isto não é uma prova do seu anti-capitalismo, mas um sinal de
que a base natural do capital está viva e de boa saúde. O que diríamos de um
jardineiro que, por ter de arrancar ervas daninhas, afirma que as plantas que
cultiva já não são plantas!
Os próprios
governos ocidentais tiveram de intervir cada vez mais directamente na interacção
das forças económicas. Têm de ter uma política social e ocupar-se do
planeamento. A burocratização não é um fenómeno exclusivo da Europa de Leste.
Afecta os Estados democráticos e fascistas, bem como as grandes empresas
privadas. É simultaneamente o produto e o triste remédio para a crescente
atomização da sociedade.
De certa forma, é
incorreto falar de capitalismo burocrático ou de capitalismo de Estado na
Europa Oriental. Todos os capitalismos modernos são burocráticos e geridos pelo
Estado. O Estado, que detém a totalidade da indústria, não tem um controlo
absoluto sobre ela. O poder real e o poder legal não são a mesma coisa.
No capitalismo
liberal, o Estado pode utilizar forças populares, militares ou mesmo burguesas
para atacar uma determinada grande empresa. No entanto, isso não lhe permite
passar por cima das leis económicas. Queremos erguer-nos contra o poder dos
monopólios, mas não podemos regressar às pequenas empresas do passado.
Com o capitalismo
oriental, o Estado burocrático, por muito sedento de controlo que esteja, não
pode abolir as categorias de mercado e a concorrência entre empresas. Enquanto
existirem empresas separadas, elas competirão entre si, mesmo que os preços não
sejam livres.
Esta falta de
unidade não se limita à esfera económica. A própria burocracia está
constantemente dividida por lutas de facções e conflitos pessoais. Na ausência
de unidade, é preciso manter a imagem de unidade. O inimigo não é a
concorrência nas mãos do partido, mas o anti-partido.
O que a economia
ganha em eficiência com a burocracia, ela perde. As mentiras e a perda da
realidade permeiam o corpo social. A luta oculta substitui a concorrência
aberta.
Capaz de
organizar o arranque económico em condições ingratas, a burocracia está
atrasada em relação ao avanço tecnológico das sociedades liberais. 14
RECUPERAÇÃO
Que interesse têm
os capitalistas em serem chamados comunistas? Regra geral, os capitalistas não
gostam que lhes chamem capitalistas! Este nome tem uma origem precisa, ligada à
revolução russa. Chamar a si próprio comunista é afirmar que se dedicou à
classe operária em vez de reconhecer que a explora. Significa ser capaz de dar
um sentido humano ao desenvolvimento desumano do sistema: a construção do
comunismo. Noutros lugares, os projectos de uma "nova fronteira" ou
de uma "nova sociedade" são apresentados às massas!
Quando o capital
se proclama comunista, quando recupera o pensamento de Marx para o destilar nas
suas universidades para os intelectuais ou para entorpecer os operários nas
suas fábricas, está apenas a imitar um movimento que, na realidade, está a
realizar. O capital não cria, recupera. Alimenta-se da paixão e da iniciativa
dos proletários, por outras palavras, alimenta-se do comunismo. Não se pode
compreender muito do comunismo se não se compreender a natureza capitalista dos
países da Europa de Leste. A luta revolucionária não pode poupar o estalinismo,
que é um sistema e uma ideologia fundamentalmente anti-comunistas. O facto de
ele ter fortalezas no próprio seio da classe operária não nos deve abrandar,
mas, pelo contrário, encorajar-nos a não transigir.
Prestámos um
grande serviço ao estalinismo ao não o criticarmos como um sistema capitalista.
Os revolucionários, nomeadamente os anarquistas, reconheciam-no como comunista,
desde que pudessem associar-lhe o termo autoritário. Autoridade, eis o monstro!
A título de explicação, vejamos o carácter de Karl Marx.
Seguindo Trotsky,
o infeliz adversário de Estaline, os trotskistas desenvolveram interpretações
que são tão complicadas como imbecis. Uma base socialista e uma superestrutura
capitalista coexistiriam, pelo menos na União Soviética. Em todo o caso, nunca
compreenderam nada do comunismo. Nem Trotsky, que via o trabalho obrigatório
como um princípio comunista. Eles não são revolucionários, Trotsky é que era.
Mas ele nunca passou de um revolucionário burguês e de um burocrata infeliz.
Deixemos tudo isto para o seu intelectualismo, as suas querelas bizantinas e o
seu ridículo fetiche pela organização.
Os maoístas,
esses "místicos-estalinistas", reduzem tudo a uma questão de política
e de moral. A URSS tornou-se social-imperialista e talvez mesmo capitalista.
Felizmente, a China e a Albânia, sob a sábia direcção proletária de Mao, H.
Hodja e Bibi Fricotin, não foram contaminadas. O comunismo é o lucro e a
política ao serviço do povo! À medida que as ideias comunistas se difundem,
incluindo na URSS e na China, para responder às necessidades de um proletariado
que se está a tornar novamente revolucionário, estas seitas parecerão cada vez
mais rebuscadas! Estão a tentar desempenhar o papel da revolução no palco
político. Estão na vanguarda, mas na vanguarda do capital. Porque em tempos de
revolução são todos os palhaços políticos que tentam dar um ar revolucionário
para não serem derrubados. 15
Tornou-se uma tradição que a revolução seja combatida em nome da revolução. Os militantes estalinistas ou de esquerda que se extraviaram juntar-se-ão ao verdadeiro Partido Comunista. Alguns, menos cegos, reconheceram a divisão em classes sociais no capitalismo de Leste. Infelizmente, pensaram também reconhecer nele um modo de produção novo e superior. Isso foi um grande mérito de Estaline e da sua laia.
OS SELVAGENS
Não vemos nada de
comunista nos regimes que se dizem comunistas. Em contrapartida, vemo-lo onde
não estamos habituados a vê-lo. As sociedades primitivas que, suprimidas pela
"civilização", subsistem em regiões áridas ou inacessíveis são
comunistas, quer os seus membros vivam da caça e da recolha ou de uma
agricultura pouco sofisticada. A URSS não é comunista, mas os Estados Unidos da
América eram-no há alguns séculos! Não é nossa intenção fazer regressar a
humanidade a este estádio. Em todo o caso, seria muito difícil porque este
estado de coisas exige uma densidade populacional muito baixa. No entanto, é
importante reabilitar a humanidade primitiva e pré-histórica.
O índio era mais
feliz e, nalguns aspectos, mais civilizado do que o cidadão americano moderno.
Os homens das cavernas não morriam de fome. Actualmente, centenas de milhões de
seres humanos passam fome. O primitivo, como o Sr. Sahlins demonstrou, vive na
abundância. São ricos não porque acumularam riqueza, mas porque vivem como lhes
apetece. A sua pobreza aparente, a sua indigência, tem causado pena ao viajante
ocidental que, por vezes, paradoxalmente, se surpreende com a sua boa saúde
antes de lhe dar a varíola. Os povos primitivos não possuem praticamente nada.
Mas para aqueles que vivem da caça e da recolha, isso não é um obstáculo. A sua
indigência permite-lhes circular livremente e desfrutar das riquezas da
natureza. A sua segurança não se baseia em poupanças, mas no conhecimento e na
capacidade de utilizar o que o ambiente lhes dá. Passam menos tempo do que as
pessoas civilizadas a ganhar a vida. A sua actividade "produtiva" não
tem nada a ver com o tédio do escritório ou da fábrica. Felizes os Yir-Yiron da
Austrália que confundem trabalho e diversão na mesma palavra!
Existe uma
profunda diferença entre o comunismo do passado e o comunismo do futuro. Por um
lado, há uma sociedade que utiliza o seu ambiente ou sabe adaptar-se a ele; por
outro lado, há uma sociedade baseada na transformação contínua e profunda desse
ambiente. Em retrospectiva, o período entre estes dois comunismos parecerá uma
etapa dolorosa, mas relativamente curta, da história da humanidade. Pouca
consolação para aqueles que continuam imersos nela! 16
MARX E ENGELS
Marx e Engels
dedicaram-se a compreender o desenvolvimento da sociedade capitalista.
Prestaram pouca atenção à descrição do mundo futuro que tinha monopolizado os
esforços dos socialistas utópicos. Mas a crítica do capitalismo e a afirmação
do comunismo não podem ser completamente dissociadas. Uma verdadeira compreensão
do papel histórico do dinheiro e do Estado só pode ser obtida do ponto de vista
do seu desaparecimento. Se Marx e Engels não falaram mais da sociedade
comunista, foi sem dúvida paradoxalmente porque essa sociedade era mais difícil
de apreender, porque estava menos ao alcance da mão, mas também porque estava
mais presente nos espíritos revolucionários. Quando falavam da abolição do
trabalho assalariado no "Manifesto Comunista", eram compreendidos por
aqueles de quem faziam eco. Hoje é mais difícil imaginar um mundo livre do
Estado e da mercadoria, porque estes se tornaram omnipresentes. Mas, ao
tornarem-se omnipresentes, perderam também a sua necessidade histórica. O
esforço teórico deve substituir a consciência espontânea antes que se torne
inútil porque o que afirma se tornou banalidade. Marx e Engels foram talvez
menos bem sucedidos do que Fourier na compreensão da natureza do comunismo como
libertação e harmonização das paixões. Fourier, no entanto, não conseguiu
libertar-se do trabalho assalariado, insistindo, entre outras coisas, em que os
médicos deixassem de ser pagos em função das doenças dos seus clientes, mas em
função do estado de saúde da comunidade.
Marx e Engels, no
entanto, foram suficientemente claros ao afirmar que não podemos colocar nas suas
costas o peso da burocracia e das finanças dos países “comunistas”. Segundo
Marx, o dinheiro desapareceu imediatamente com o advento do comunismo e os
produtores deixaram de trocar os seus produtos. Engels fala do desaparecimento
da produção mercantil com o advento do socialismo. Que ninguém nos fale de um
erro juvenil, como toda a escória marxológica adquiriu o hábito de fazer.
Referimo-nos à “Crítica ao Programa de Gotha” e ao “Anti-Dühring”.
Estalinistas de
todos os tipos falarão de lixo no trabalho dos mestres. Cantarão uma estrofe
para que se saiba que são marxistas e não dogmáticos. Para eles, o dinheiro, o
capital, o Estado perderam o seu carácter burguês para se tornarem proletários.
Os mais ousados chegam a
dizer que, uma vez construído o comunismo, talvez nos consigamos livrar de todo esse lixo. Para outros, o comunismo
será simplesmente uma sociedade com um padrão de vida muito, muito elevado. Em
qualquer caso, o comunismo está perdido nas nuvens e a escada que leva a ele é
composta por uma infinidade de degraus que formam tantas etapas de transição.
É verdade que o
comunismo está a ser construído nos países orientais. Não o construímos nem
melhor nem mais conscientemente do que em qualquer outro lugar. Uma revolução
será necessária para fazê-lo nascer.
Esta concepção da construção do comunismo através de instrumentos económicos e sociais é tipicamente burguesa. Ela representa a coisa como a produção de um objecto manufacturado. Ela vê a sociedade como uma vasta fábrica. Ele acredita que o todo funciona como a parte. Trata-se de vontade, de projecto, de linha política... 17
O erro que estes
estalinistas cometem no caminho tem repercussões no resultado. Não se trata de
fazer desaparecer a economia empresarial, mas de fazer da economia um negócio
único. O desperdício de ter uma força policial desaparecerá. Fortalecer o
sentido moral através da educação “comunista” será suficiente para fazer
desaparecer o roubo e a subversão!
A melhor solução
é certamente a proposta pelo próprio José Estaline. Não conseguindo mudar as
coisas, mudemos as palavras. Como é que vocês esperam, explica o paizinho do
povo, que quem recebe salário seja empregado, pois através do Estado são donos
das empresas que os empregam. Você não pode ser o seu próprio funcionário! O emprego
assalariado foi, portanto, abolido na União Soviética. Se você sente que está a
receber um salário, se tem medo de ser demitido, é porque se está a iludir.
Felizmente a nossa pátria socialista tem centros de reabilitação e hospitais
psiquiátricos!
Estaline admite
que a produção de mercadorias e a divisão em empresas permanecem, mas não pode
ser capitalismo porque o que constitui o capitalismo é que os meios de produção
são propriedade de indivíduos. Tudo se resume a questões de definição jurídica.
Basta que o Estado se proclame comunista para que o seja.
Dado que Estaline
nos explicou tudo isto em “Os Problemas Económicos do Socialismo na U.S.S.R.”
aqueles que analisaram a questão não trouxeram nada de novo.
Podemos ver em
Mao Tse Tung ou em Fidel Castro partidários corajosos, políticos habilidosos.
Podemos considerar que os chineses comem mais que os indianos e têm menos
liberdades políticas que os japoneses. Mas tudo isto tem a ver com capitalismo.
III O FIM DA
PROPRIEDADE
O comunismo é o
fim da propriedade. A coisa é conhecida e gera muita preocupação. Alguns são
inteiramente justificados. Proprietários de grandes propriedades, numerosas
residências ricas... serão forçados a reduzir o seu estilo de vida. As fortunas
industriais e comerciais desaparecerão. Os que serão expropriados, mesmo que
hoje detenham grande parte da riqueza da sociedade, formam uma casta pequena e
bem definida. Geralmente não atacaremos as pessoas, agiremos de acordo com a
natureza dos bens. Tomaremos os castelos e deixaremos as cabanas, sejam elas
dos pobres ou dos ricos! As preocupações que se insinuaram nos cérebros dos
proletários e especialmente dos camponeses não são justificadas. O comunismo
não consiste em tirar dos oprimidos o pouco que lhes resta. 18
O QUE É QUE É A PROPRIEDADE ?
A questão não é
tão simples de resolver. Testemunhe a controvérsia entre Marx e Proudhon. Este
último afirmou que “propriedade é roubo”. Proudhon compreende claramente que a
origem da propriedade não é natural. É o produto de uma sociedade onde reinam
as lutas pelo poder, a violência e a apropriação dos esforços dos outros. Só que,
se dissermos que a propriedade é roubo, enquanto o roubo só é definido em
relação à propriedade, estaremos a andar em círculos. O problema tornou-se
ainda mais obscuro quando passamos da propriedade para a abolição da
propriedade. Deveriam todos os bens ser abolidos, quer se trate de meios de
produção ou de bens pessoais? Devemos agir selectivamente? Trata-se de
substituir a propriedade privada pela propriedade colectiva ou estatal? Será
uma questão de pôr fim radicalmente a toda a propriedade e como poderá ser
isso?
O comunismo
escolhe a última proposição. Não se trata de uma transferência de títulos de
propriedade, mas sim do desaparecimento da própria propriedade. Na sociedade
revolucionária não se pode “usar e abusar” da propriedade porque somos
proprietários dela. Não haverá excepção a esta regra. Um prédio, um alfinete,
um terreno não será mais de ninguém ou, se quiser, será de todos. A própria
ideia de propriedade será rapidamente considerada absurda.
Será então que
tudo será igual para todos? Será que o primeiro que chegar poderá desalojar-me,
despir-me, tirar-me o pão da boca, já que não serei mais dono da minha casa,
das minhas roupas ou da minha comida? Certamente que não, pelo contrário, a
segurança material e emocional de todos será reforçada. Simplesmente não será o
direito à propriedade que será invocado como protecção, mas directamente o
interesse da pessoa em questão. Todos devem poder alimentar-se quando têm fome
e quando lhes for conveniente, estar abrigados e vestidos. Todos deveriam poder
ter paz de espírito. Alguns ideólogos querem apenas ver a propriedade como a
extensão humana do território animal. Assim, a propriedade não é mais o facto
de uma determinada época ou mesmo de uma espécie particular, mas de todo um
ramo zoológico. Porém, nunca vimos uma raposa ou um urso alugar um território
do qual é proprietário ou habitar uma toca da qual é apenas o simples
inquilino! No entanto, isso é algo comum na nossa sociedade. É precisamente a
propriedade que permite dissociar uso e posse.
O facto de um bem
já não ser propriedade não dá qualquer indicação da utilização que dele se faz.
Mas precisamente o uso reduz-se ao uso. Uma bicicleta será usada para se
locomover e não apenas para o Sr. Dupont, o seu legítimo proprietário, se
locomover. Saber se por razões sentimentais ou emocionais os seres humanos ou
certos seres humanos precisam de um território fixo e de objectos aos quais
possam se apegar não é uma questão de propriedade. Os higienistas podem ficar
tranquilos: não sugerimos a partilha de escovas de dentes.
Opor-se ao individualismo e ao colectivismo, ao uso pessoal e social para tentar torná-los objecto de uma “escolha social” é de facto o cretinismo burguês. Deste ponto de vista, é absolutamente necessário ficar do lado da ferrovia contra o veículo individual. Os comunistas seriam pelas orgias colectivas e os burgueses pela masturbação! Nós não nos importamos 19
Este tipo de debate
só pode ser resolvido com base em circunstâncias práticas. Em todo caso, não
somos nós que acumulamos e despersonalizamos. Na situação actual, o direito à
propriedade constitui uma garantia contra a destruição da vida pessoal. Esta é
uma garantia muito insignificante. Não impede a passagem de ruído em edifícios
com isolamento acústico insuficiente. Ele não pode fazer muito em relação à
expropriação. O agricultor pode ser o proprietário da sua terra. Isso não
impediu que o campo ficasse despovoado. Hoje, a terra permanece em pousio, as
casas estão desabitadas, riquezas de todos os tipos são deixadas para trás.
Tudo isso seria muito necessário. Infelizmente, os proprietários não querem ou,
pior ainda, não podem usá-las ou transferi-las.
A noção de
propriedade cobre uma realidade, mas é também uma mistificação. Você pode ser
proprietário sem ser capaz de controlar verdadeiramente. A mentira é dupla. É
social e económica. Também diz respeito às relações entre os homens e a
natureza. Os direitos de propriedade são necessários para o capitalismo. A
troca exige que as coisas fiquem claras. Você tem que saber, quando está no
negócio, quem realmente tem os bens e quem não tem. Os costumes locais podem
resolver a questão de como organizar e usar as coisas. Assim que essas coisas
adquirem independência dos homens e podem passar de mão em mão, os costumes não
são mais suficientes. Apenas restos dela permanecem no campo: direitos de
passagem, abastecimento de água, colecta... As mercadorias e o capital precisam
de um conjunto de regras válidas, independentemente da natureza particular da
situação.
Na Idade Média, a
propriedade da terra no sentido moderno não existia. Num determinado domínio
exerciam-se os direitos dos servos, do senhor, do seu suserano da igreja... Até
ao século XIX um certo número de regras continuou a limitar o poder do
proprietário que só podia usufruir do primeiro corte de um prado , não tem o
direito de cercá-lo, deve permitir a respiga e o pastoreio ocioso.
No mundo da
igualdade burguesa, todos são proprietários livres. O camponês vem do seu
campo, o patrão da sua fábrica, o operário da sua força de trabalho. Não há
roubo, mas a pessoa enriquece e acumula desproporcionalmente ao que o seu
próprio trabalho deveria permitir. A propriedade oculta relatórios de
exploração.
Se o camponês que
se torna “agricultor” é proprietário da parcela que cultiva, está ainda assim
sujeito a preços cuja formação lhe escapa. Trabalhando constantemente, ele não
consegue enriquecer. A propriedade não explica o poder da empresa capitalista.
A empresa possui o capital fixo: edifícios, máquinas. Isto não tem em conta a
importância da riqueza que lhe passa pelos dedos e que constitui o seu volume
de negócios. A interpenetração da economia exige a limitação dos direitos de
propriedade. Na verdade, o que fazemos em casa corre o risco de ter
consequências infelizes para os nossos vizinhos. Você não pode descartar
impunemente os seus resíduos num rio só porque possui parte do banco.
A natureza
absoluta do direito à propriedade, é “inviolável e sagrado” segundo a
Declaração dos Direitos Humanos, não conta com força e 20
caprichos da
natureza. O proprietário mais determinado ficará indefeso se um vulcão entrar
em erupção na sua casa. Ele pode pedir ajuda à polícia, mas isso não fará com
que o intruso fuja. É uma regra geral que os objectos e fenómenos naturais não
obedecem aos nossos olhos e dedos.
Como observa Niño
Cochise, neto do grande Cochise, os homens brancos passam a vida a lutar pela
terra. Contudo, não são os homens que podem possuir a terra, mas, pelo
contrário, a terra que possui e nutre os homens. Ela acaba por enterrar todos
eles um dia ou outro.
A QUESTÃO
AGRÁRIA
A questão agrária
está intimamente ligada à solução do problema da propriedade. É uma questão
vital para a revolução. No passado, as insurreições operárias foram combatidas
por exércitos camponeses. O contrário também aconteceu, como no México. O
pequeno camponês sempre foi facilmente mobilizado pela contra-revolução em nome
da defesa dos seus sagrados direitos de propriedade.
Nos países
industrializados, o capital fez o trabalho que criticava os
"vermelhos" por quererem fazer. Expulsou a maior parte dos camponeses
das suas casas. Por conseguinte, já não pode contar com a sua massa assustada para
formar o exército da contra-revolução. No entanto, o abastecimento de géneros
alimentícios às cidades continua a depender do campo. O partido da ordem terá
sempre o prazer de utilizar esta situação como arma contra a revolução.
Quando os
trabalhadores agrícolas não são proprietários das terras que trabalham, mas são
simples camponeses ou empregados de grandes explorações, organizam-se para
continuar a ocupar-se da produção. Deixarão de ser responsáveis perante os seus
antigos patrões. A terra pertencerá a quem a cultivar! Se o seu antigo patrão
ou proprietário de terras quiser juntar-se a eles e ajudá-los com os seus
conhecimentos e a sua força, isso será bom. Só o pode fazer em pé de igualdade.
Quando a
propriedade e a exploração da terra coincidem, quando o agricultor tem poucos
ou nenhuns empregados, o problema deve ser abordado de forma diferente. Isto é
para o bem de toda a sociedade, que não pode passar facilmente sem agricultores
descontentes. É para o bem do camponês, cuja condição se proletarizou, que
depende do sistema capitalista para o seu abastecimento e escoamento, e que
deve compreender que tem tudo a ganhar com a revolução comunista.
O desenvolvimento
do capital foi contrário à agricultura. Induziu o trabalho e os recursos para a
indústria. O comunismo inverterá a maré. A agricultura é a sua menina de ouro,
porque diz directamente respeito à produção de alimentos e à preservação de um
ambiente habitável. Duas coisas que o capital negligenciou particularmente.
A propriedade,
familiar ou não, desaparecerá juntamente com o Estado e o sistema jurídico que
a garantia. O uso e o hábito de cultivar um determinado pedaço de terra
permanecerão e deverão mesmo ser garantidos pelas autoridades revolucionárias.
É nesta base que os camponeses poderão reagrupar-se ou, se preferirem,
continuar a cuidar das suas parcelas de forma isolada. É provável que, pelo
menos durante algum tempo, combinem os dois métodos. Cada um permanecerá ligado
à sua terra, mas ajudar-se-á mutuamente, mais do que actualmente, em certas
tarefas e na venda dos seus produtos. A herança, no sentido estrito,
desaparecerá, mas quem será mais qualificado e interessado em suceder a um
agricultor do que o seu filho? A regra geral será deixar os agricultores
organizarem a produção agrícola como entenderem. A coerção seria a pior solução
e a mais dispendiosa.
A colectivização
agrária praticada pelo capitalismo de Leste não tem nada a ver com o comunismo.
Não foi por razões ideológicas que se procedeu à colectivização, mas por razões
económicas e de classe. Tivemos de lutar contra o renascimento espontâneo da
burguesia no campo. Os camponeses ricos estavam a enriquecer à custa dos
camponeses pobres, praticando a usura. Isto criou um centro de acumulação de
capital usurário em concorrência com o centro industrial em que se baseava a
burocracia. Foi por isso que a colectivização agrária teve de ser imposta e
paga.
Era dispendiosa.
Inicialmente, na União Soviética, os camponeses resistiram, chegando mesmo a
dizimar o gado. A longo prazo, as consequências foram a estagnação da
produtividade agrícola devido à falta de interesse dos kolkhozianos. Esta
situação conduziu a uma política oscilante em relação às parcelas de terra
familiares. A colectivização contribuiu para manter os camponeses no campo,
retirando-os da pressão económica directa. Este facto conduziu a uma menor
pressão e concorrência no mercado de trabalho. A URSS conservou um número excepcionalmente
elevado de camponeses em comparação com o seu nível industrial. Carrega-o como
uma bola e uma corrente.
Ao renunciarmos à colectivização, estamos a renunciar à revolução e à comunização do campo? De modo algum! Muito pelo contrário! A revolução comunista é a liquidação da economia de mercado. Isto também diz respeito ao mundo rural.
O agricultor
deixará de receber dinheiro pelo seu esforço, se for trabalhador por conta de
outrem, ou pelos seus bens, se for trabalhador por conta própria. Ele fornecerá
gratuitamente à sociedade o excedente da sua produção. Em contrapartida, não
terão de pagar nada pelos bens necessários à sua subsistência e à sua actividade.
Deixará de ser movido pelo desejo ou pela necessidade de dinheiro. Será movido
directamente pelo interesse do seu trabalho, pelo amor do seu modo de vida ou
pelo desejo de ser útil.
O agricultor verá
a sua pena reduzida. Poderá recorrer a mão de obra externa para o ajudar. Isto
será possível graças ao encerramento de toda uma série de empresas mais ou
menos parasitárias e à redução da mão de obra na indústria e no sector
terciário. Será possível suspender temporariamente certos tipos de produção
aquando das grandes obras agrícolas para libertar mão de obra. Isto é
impensável actualmente.
Não é apenas a
produção que será transformada, mas também a distribuição. O trajecto entre o
agricultor e o consumidor será reduzido ao máximo. Os produtos serão
transportados directamente das explorações agrícolas para as cidades, pelos
próprios agricultores. Quando se vê a diferença entre o preço 22 e o preço pago
pelo consumidor, vê-se a vantagem desta simplificação.
Os agricultores
efectuarão o trabalho de cultivo e de criação de gado, sozinhos ou com ajuda.
Não o farão independentemente do resto da sociedade. Não lhes estamos a
prometer liberdade absoluta. A agricultura é e continuará a ser dependente de
outros sectores que não ela própria. A montante, tem os seus fornecedores de
adubos e de equipamentos agrícolas. A sua independência é, portanto,
necessariamente limitada neste domínio. Por outro lado, ocupa um lugar
demasiado importante para que todos aqueles que dela dependem deixem de a
observar.
Tomando um caso
extremo: se alguns agricultores deixarem as suas terras e o seu gado ao
abandono porque já não precisam de ganhar dinheiro, seria ingénuo pensar que
outros se deixarão morrer à fome. Numa tal situação, seria possível retribuir
cortando o abastecimento alimentar dos preguiçosos. Os agricultores devem poder
manter as suas terras e viver confortavelmente com elas. Mas não se pode
permitir que se tornem parasitas e, sobretudo, que monopolizem bens que outros
poderiam utilizar.
A superação do fosso entre a cidade e o campo faz parte do programa revolucionário. Mas isso só pode ser feito muito gradualmente, porque a separação está inscrita na pedra e no betão. Não se pode acenar com uma varinha mágica e deslocar arranha-céus ou florestas. No entanto, as medidas para o conseguir podem ser implementadas rapidamente. Por exemplo, a deslocação temporária ou permanente das populações urbanas para o campo, onde podem ser criados pequenos centros industriais que complementem e, se possível, se articulem com as actividades agrícolas. Muitas pessoas que só deixaram o campo com relutância ou que não gostam da cidade terão todo o gosto em regressar. As hortas individuais e comunitárias multiplicar-se-ão e alegrarão os subúrbios e mesmo os centros urbanos. Para o efeito, será possível limpar os passeios inutilizados pela redução do tráfego automóvel. Isto facilitará a reciclagem de alguns resíduos domésticos, reduzirá os custos de transporte e fornecerá à população legumes frescos. Um dos defeitos da agricultura capitalista é o facto de, tendo-se afastado do consumidor e dos seus resíduos, ter de compensar o desequilíbrio produzido por insumos químicos ou biológicos cada vez maiores. Nestas hortas, as crianças, os idosos e os doentes, actualmente excluídos da produção e muitas vezes condenados ao tédio, poderão ocupar-se e sentir-se úteis. Será um óptimo local de aprendizagem para os jovens que abandonaram a escola. Por fim, regenerará o ar poluído!
DA PENÚRIA À
ABUNDÂNCIA
O direito e o
sentimento de propriedade desaparecerão na sociedade comunista porque a
escassez desaparecerá. Deixará de ser necessário agarrarmo-nos a um objecto por
medo de que, se o largarmos por um momento que seja, deixemos de poder usufruir
dele.
Com que magia
pretendem realizar esta fantástica era de abundância? Ironizam os burgueses.
Não há magia nenhuma nisso. Nós vamos ser capazes de conjurar a abundância
porque ela já está lá debaixo dos nossos 23 pés. Não se trata de a fazer
nascer, mas simplesmente de a libertar. Foi o capital que tornou isso possível,
dobrando os homens e a natureza sob o seu jugo durante séculos. Não é o
comunismo que produzirá subitamente a abundância, mas o capitalismo que mantém
artificialmente a escassez.
O enorme aumento
da produtividade do trabalho pouco contribuiu até agora para mudar o destino do
proletariado. Teve mesmo efeitos nefastos. O poder do capital destruiu as
sociedades tradicionais do Terceiro Mundo sem dar às suas populações acesso ao
mundo industrial. Este facto, combinado com um crescimento demográfico
monstruoso, atirou uma grande parte da humanidade para a miséria total. O
estatuto de escravo assalariado tornou-se um verdadeiro patamar acima do de
vagabundo.
A energia nuclear
e a electrónica foram inicialmente utilizadas como armas. Felizmente, o
progresso científico fez-nos sair desses tempos bárbaros em que éramos
obrigados a ver aqueles que matávamos e, por vezes, até nos salpicávamos com o
seu sangue. Ugh! ! Mesmo os habitantes dos países "ricos", que
beneficiam deste aumento de produtividade, estão a ser enganados. Os aumentos
salariais e o aumento do consumo servem apenas para compensar a degradação das
suas condições de vida. O facto de se possuir mais coisas, ou coisas mais
sofisticadas do que antigamente, não significa que se viva melhor. O operário
tem um carro que o seu pai não tinha. Mas o seu local de trabalho e o campo de
fim de semana ficaram mais distantes. Perde em engarrafamentos o que ganhou em
tempo de trabalho e em cansaço nervoso o que perdeu em esforço físico. O que a
indústria concede com uma mão, as condições para o seu desenvolvimento já lhe
foram retiradas com a outra. Vangloria-se da qualidade dos seus remédios, mas
esquece-se de dizer que inocula a doença. Não é por acaso. A lógica da produção
comercial pressupõe a manutenção de condições de insatisfação. O remédio
precisa da doença. Na civilização, a escassez nasce da própria abundância, e a
sociedade caminha num círculo vicioso. O ser humano é cada vez mais reduzido ao
papel passivo de consumidor. O seu estado de morto-vivo é animado pela vida
artificial das mercadorias. A sua miséria torna-se o reflexo multicolorido da
felicidade exposta em cada montra e oferecida ao melhor preço.
Numa sociedade
comunista, os bens serão gratuitos. As bases da organização social serão livres
de dinheiro.
Como evitar que a
riqueza seja monopolizada por alguns em detrimento de outros? Depois de um
período de euforia, em que as pessoas se servirão das reservas existentes, não
haverá o risco de a nossa sociedade resvalar para o desperdício e a
desigualdade, antes de cair na desordem e no terror?
Estas
preocupações não são apenas as de alguns privilegiados que têm interesse em
manter o sistema. Exprimem também o ponto de vista dos oprimidos, amarrados
pelo medo de que as convulsões sociais agravem a sua situação. Quando a
tempestade chegar, não estarão os grandes mais bem equipados para a enfrentar
do que os pequenos?
Numa sociedade comunista desenvolvida, as forças produtivas serão suficientes para satisfazer as necessidades. O desejo frenético e neurótico de consumir e acumular desaparecerá. Será absurdo querer fazê-lo 24
Não haverá mais dinheiro para meter ao bolso, nem mais empregados para contratar. Porquê acumular latas de feijão ou próteses dentárias que não se vão usar? Nesta fase, se restar alguma forma de constrangimento, não será na distribuição dos produtos mas na sua própria natureza, na obrigação imposta por valores de uso específicos. Algumas possibilidades serão inevitavelmente escolhidas e outras rejeitadas na fase de fabrico.
Quando a sociedade
revolucionária emergir dos flancos do velho mundo, a situação será diferente.
As autoridades revolucionárias, os conselhos operários, terão de definir e
aplicar um certo número de regras que protejam contra o regresso dos hábitos e
dos mecanismos do mercado. Talvez seja necessário limitar o número de latas de
feijão ou de quilos de açúcar que cada pessoa pode ter em casa. É impossível
dizer exactamente quanto tempo durará esta fase. Ela vai variar de acordo com o
grau de pobreza de cada região. Dependerá da força e da determinação do partido
revolucionário. Uma guerra provocada pelo partido do capital, que causaria
danos à produção e aos transportes, só poderia prolongar esta fase de
transição. Se considerarmos apenas o período necessário para a reconversão
comunista das forças produtivas, ele pode ser muito curto. Basta ver a rapidez
com que a economia americana se transformou numa economia de guerra durante a
Segunda Guerra Mundial!
O comunismo transforma radicalmente o carácter de toda a produção e a natureza dos objectos produzidos. O desaparecimento do valor de troca repercute-se no valor de uso.
TRANSFORMAÇÃO
DOS PRODUTOS
As mercadorias no
mercado formam um conjunto extremamente hierarquizado. Não existe apenas um ou
alguns produtos para uma determinada necessidade, mas uma multiplicidade de
produtos da mesma marca ou de marcas concorrentes. O objectivo é,
evidentemente, satisfazer o público e responder às suas diferentes
necessidades. O cliente deve poder escolher! De facto, só tem a escolha que os
seus meios financeiros e a sua função social lhe permitem. Muitos produtos
satisfazem a mesma necessidade, mas diferem em termos de qualidade e de marca
própria. É o caso das panelas, por exemplo. Diferentes produtos podem ser
utilizados para diferentes fins. Mas estas diferentes utilizações não estão ao
alcance dos mesmos indivíduos. Pessoas diferentes fazem o seu trabalho em
aviões supersónicos e em bicicletas.
Esta hierarquização e diferenciação dos bens reflecte a concorrência entre grupos e a extrema desigualdade dos salários e das condições de vida no mundo capitalista. Deixou a sua marca no desenvolvimento industrial. As necessidades dos ricos desempenham um papel orientador. Bens como o automóvel perdem muito da sua qualidade de utilização quando deixam de ser privilégio de uma minoria e passam a ser propriedade de todos. 25
O comunismo não
se propõe vestir todos com o mesmo uniforme e dar-lhes a mesma papa. Mas vai
pôr fim a esta nociva diversificação e hierarquização dos produtos. Os novos
bens, ainda pouco numerosos, serão primeiro utilizados colectivamente ou pelos
primeiros que aparecerem.
No domínio do
vestuário, podemos imaginar que, por um lado, será produzido um número reduzido
mas suficiente de peças de qualidade para todos os tamanhos e todas as
utilizações habituais. A produção em massa será tão automática quanto possível.
Por outro lado, poderão ser abertas oficinas onde máquinas e tecidos poderão
ser postos à disposição de quem quiser fazer roupas diferentes para si ou para
os seus amigos.
A famosa
liberdade do consumidor não é limitada apenas pelo número de ecus (combinações
de produto – NdT). Pode pagar-se muito e mesmo assim ser-se enganado na
qualidade. Se não se tem muito dinheiro, é quase certo que se recebe uma peça
de lixo. O engano e a mercadoria andam de mãos dadas. É um passo curto do
comerciante ao vigarista. Não importa se a vantagem é aparente, e não importa
se é apenas aparente. O que outrora dependia da malícia do comerciante, o
capital faz agora praticamente uma regra permanente. Produz a própria
mercadoria. Pode, portanto, actuar no sentido de realçar a sua imagem em vez da
sua qualidade real. Chegámos a um ponto em que os engenheiros calculam e
determinam a deterioração necessária dos objectos. Não queremos entupir o
mercado com produtos que duram demasiado tempo!
Além disso,
quanto mais depressa o capital se transforma, quanto mais depressa volta a ser
dinheiro, para voltar a perdê-lo quando se torna um bem tangível, mais rende. É
reinvestido com um lucro acrescido. Esta tendência do capital leva-o a condenar
as reservas improdutivas. Tudo tem de andar depressa. Mesmo os seus
investimentos em edifícios e máquinas devem ser amortizados o mais rapidamente
possível: representam dinheiro imobilizado. O capitalista sacrifica as
possibilidades da técnica no altar da finança. Investe a curto prazo e não a
longo prazo. Reduzem a qualidade e aumentam o custo dos produtos porque
reduziram os investimentos nos meios de produção. A renovação rápida e as
alterações superficiais das gamas de produtos são preferidas às alterações
tecnológicas profundas do sistema de produção. O progresso técnico é
conseguido, como mostra a história do capitalismo, mas é conseguido através de
convulsões económicas e de enormes desperdícios.
Quando os
produtos da actividade humana deixarem de assumir a forma de capital, não
haverá razão para não constituir reservas. Elas garantirão a nossa segurança e
aliviarão as exigências da produção e dos transportes, actuando como um
amortecedor. A menos que a própria natureza dos produtos o imponha, a
necessidade de pressa constante desaparecerá. Será possível planear a longo
prazo e reunir forças para grandes investimentos a longo prazo. A tecnologia
será orientada para o fabrico de objectos duradouros. Actualmente, os custos de
deslocação das mercadorias são cada vez mais importantes e ultrapassam
frequentemente os custos de produção reais. Por custos de deslocação entendemos
não só o custo de deslocação 26, mas também os custos de embalagem, de
marketing, de publicidade, etc. Uma grande parte destes custos não depende da
natureza ou do local de utilização do produto. Trata-se da promoção do produto
enquanto produto. Desaparecerá.
Também se podem
fazer grandes poupanças nos custos de transporte. A crescente separação entre
os locais de produção e de consumo não é alheia ao carácter capitalista do
sistema. O transporte de mercadorias será simplificado. A multiplicidade de
empresas e de intermediários desaparecerá.
Os custos de
controlo e de vigilância do que pode ser roubado, e tudo o que tem a ver com o
pagamento, deixarão de ser necessários.
Neste novo mundo,
as pessoas não terão de pagar e contabilizar constantemente os alimentos, os
transportes e as diversões. Rapidamente perderão o hábito. Isto dar-lhes-á a
sensação de serem verdadeiramente livres. Sentir-se-ão em casa em todo o lado.
Como não está constantemente a ser controlado, não se sentirá tentado a abusar.
Não vale a pena mentir ou acumular quando se sabe que se terá o suficiente.
Pouco a pouco, o
sentimento de posse desaparecerá. Em retrospectiva, parecerá algo bizarro e
mesquinho. Porquê agarrar-se a um objecto ou a uma pessoa quando todo o
universo é seu?
O novo homem estará mais próximo do seu antepassado caçador-recolector, que confiava na natureza para lhe fornecer o suficiente para viver, gratuitamente e muitas vezes em abundância, e que não se preocupava com um amanhã sobre o qual não tinha qualquer controlo. O homem de amanhã terá como natureza o mundo que moldou, e a abundância nascerá das suas próprias mãos. Ele será autoconfiante porque terá confiança na sua força e conhecerá os seus limites. Será despreocupado porque saberá que o amanhã lhe pertence. E a morte? Ela existe. Mas não vale a pena chorar por algo que é uma questão de necessidade. O importante é saber saborear o momento.
IV PARA ALÉM
DO TRABALHO
O capitalismo tem
revolucionado constantemente os meios de produção, mas tem sido incapaz de
libertar e transformar verdadeiramente a actividade produtiva. O trabalho
industrial significa a alienação mais extrema. O proletário, de fato-macaco ou
camisa branca, está acorrentado à sua máquina ou à organização do seu trabalho.
Perdeu a liberdade de apreciação e a margem de manobra que restava ao artesão e
até ao servo e ao escravo. O carácter impessoal desta dominação não a tornou
mais suportável.
O trabalho separou-se do resto da vida. Domina a vida através do cansaço e da estupefacção que gera e do salário que proporciona. Com o controlo do capital moderno sobre o conjunto da vida social, toda a existência acaba por ser regida pelos princípios do trabalho. A lógica do rendimento e da produção rege o tempo "livre". Tudo deve ser racionalizado e rentabilizado, incluindo o prazer e o desperdício! Todos têm 27 anos
Todos são
cordialmente convidados a substituir o sistema no seu próprio condicionamento.
O comunismo é, antes de mais, uma transformação radical da actividade humana. Neste sentido, podemos falar de abolição do trabalho.
TRABALHO E
TORTURA
Se há uma palavra
que não é neutra, é trabalho.
Em francês e
espanhol, deriva da palavra latina trepalium, que designava um instrumento de
tortura que substituiu a cruz. Antes de assumir a sua simplificação moderna,
foi primeiro utilizada para designar um trabalho particularmente árduo e,
depois, um trabalho mineiro. Actualmente, o seu significado expandiu-se
consideravelmente, mas as suas fronteiras continuam a ser pouco nítidas. Como
que para lhe dar uma justificação natural, trabalho passou a designar fenómenos
físicos.
Em inglês, a palavra tem origem numa actividade camponesa concreta. O que caracteriza o termo trabalho é precisamente o seu carácter abstracto. Já não se refere a uma actividade específica, mas à actividade e ao esforço em si mesmos. Já não plantamos couves, tecemos tecidos ou tratamos de ovelhas, trabalhamos. Cada trabalho vale por outro. O que conta é o tempo que se dedica a ele e o salário que se ganha. Como dizia Marx: "O tempo é tudo, o homem não é nada: é, no máximo, a carcaça do tempo". Não é a palavra trabalho que estamos a atacar, mas a realidade odiosa que ela encobre. Pouco importa que o termo permaneça ou desapareça. Se quiser permanecer, terá de sofrer uma profunda mudança de significado.
Talvez acabe por
designar o auge do prazer! Na sociedade comunista, a actividade produtiva
perderá o seu carácter estritamente produtivo. A obsessão da produção e do
tempo perdido desaparecerá. O trabalho fundir-se-á no conjunto de uma vida
transformada.
Tal mudança significa
o fim da hierarquia, da divisão entre chefes e seguidores, da cisão entre
decisão e execução, da oposição entre trabalho manual e intelectual. O homem
deixará de ser dominado pelos produtos da sua actividade ou pelas suas
ferramentas. A subjugação da natureza ao processo produtivo e a sua
monopolização por grupos ou indivíduos desaparecerão.
Esta revolução
será acompanhada de uma evolução tecnológica. É a própria natureza do
desenvolvimento industrial que está em causa.
O carácter parasitário do capitalismo reflecte-se no facto de a vida social poder ser mantida através do encerramento de uma grande parte das empresas. A greve de Maio de 68 em França é um bom exemplo dos recursos de um país desenvolvido. Foi possível encerrar toda a indústria durante um mês sem grande impacto.
Pode haver falta
de pão durante uma revolução. Mas isso não pode ser atribuído a uma falta de
capacidade de produção. Deve-se a causas específicas. Isto não impediria de
modo algum o encerramento das indústrias parasitárias. Pelo contrário, tornaria
mais necessária a reconversão das forças para os sectores vitais. 28
Não podemos
decidir antecipadamente e em pormenor o que será ou não eliminado. Estamos
convencidos do papel sujo desempenhado pela indústria de guerra. Ela não terá
mais razão de existir numa sociedade comunista desenvolvida. No entanto, não
podemos decidir se ela deve ou não ser desenvolvida numa fase transitória!
Em todo o caso, as decisões não serão tomadas por comités de tecnocratas, mas directamente pelos operários envolvidos. A ameaça de perda de salário deixará de pesar na sua decisão!
Se alguns, por
corporativismo ou por razões menos declaradas, se agarrarem a tarefas inúteis
ou mesmo prejudiciais, serão responsabilizados perante todo o proletariado
comunista. O direito de propriedade ou de livre determinação não servirá de
pretexto para os polícias ou os financeiros que gostariam de ver perpetuada a
rotina do seu pequeno trabalho habitual!
Tudo o que serve
a finança e a máquina do Estado, que exige esforços árduos e significativos
para satisfazer necessidades secundárias, será eliminado ou, pelo menos,
profundamente transformado. Produtos ou "serviços" como o telefone e
a electricidade, actualmente utilizados pelas empresas, poderiam ser em grande
parte reorientados directamente para o consumo individual. Os edifícios e as
máquinas poderiam mudar de utilização.
Muitas
necessidades poderão ser satisfeitas com despesas sociais muito mais reduzidas.
Os transportes, por exemplo, basear-se-ão numa utilização mais racional dos
veículos individuais ou colectivos. Os condicionalismos de tempo serão muito
mais flexíveis. A necessidade de deslocação será menos frequente.
Algumas
actividades não desaparecerão verdadeiramente, mas serão profundamente
transformadas. Na medida do possível, a educação escapará ao controlo dos
especialistas. A impressão deixará de servir os grandes jornais diários e
passará a servir uma multiplicidade de pequenos boletins informativos.
O princípio não
será produzir por produzir e não lutar para manter a clientela, mas reduzir ao
máximo os trabalhos industriais fastidiosos e desinteressantes. O encerramento
dos sectores inúteis permitirá aligeirar e variar as tarefas produtivas que
continuam a ser necessárias. As forças sociais libertadas poderão assumir novas
actividades.
As crianças, os
estudantes, os idosos e as donas de casa poderão participar nas actividades
sociais na medida das suas capacidades, sem terem de competir no mercado de
trabalho.
Estas
transformações não são um luxo a que a revolução se deve permitir para atrair
os relutantes. São imediatamente necessárias para combater e concentrar forças
contra o partido do capital, que provavelmente ainda estará vivo durante algum
tempo. 29
CIÊNCIA E AUTOMAÇÃO
Todas estas
medidas dão-nos apenas uma vaga ideia do que se seguirá. O comunismo utilizará
a base material que lhe foi legada pelo velho mundo. Acima de tudo,
desenvolverá as realizações técnicas e científicas. Fá-lo-á rapidamente e
melhor do que o capital.
Está na moda
ficarmos extasiados com os progressos técnicos registados desde a última guerra
mundial. Na realidade, deveríamos espantar-nos com a lentidão com que as
descobertas científicas penetram na indústria. Antes de mais, a indústria
caracteriza-se pela inércia. Progride quando "acidentes" históricos a
obrigam a mudar de oferta ou de escoamento, modifica a sua base técnica quando
as taxas de juro baixaram para sair do marasmo económico.
A indústria actual
baseia-se no aperfeiçoamento de invenções e descobertas feitas há décadas. Por
exemplo, os veículos que se baseiam no motor de combustão interna e na energia
do petróleo, como os nossos automóveis de vanguarda, são verdadeiros fósseis em
termos de possibilidades científicas. A indústria não foi capaz de desenvolver
a automatização ou novas fontes de energia. Só o pode fazer se se tornar
rentável do seu ponto de vista restrito.
O comunismo pode
dar-se ao luxo de construir máquinas ou complexos industriais que não teriam
sido rentáveis do ponto de vista de uma empresa capitalista ou mesmo de um
Estado capitalista. Considerará que os progressos realizados valem a pena, não
em termos de vantagem imediata. Mesmo assim, poderá muitas vezes encontrar essa
vantagem imediata onde o capitalismo não a veria: melhoria da qualidade dos produtos,
interesse pela investigação, melhoria das condições de trabalho.
Do ponto de vista
do capitalismo, não é rentável fabricar um martelo pneumático silencioso
enquanto o preço da máquina não for igual ou inferior ao de um martelo
pneumático ruidoso. É indiferente que as economias realizadas se façam à custa
de incómodos evidentes. O facto de, uma vez desenvolvida a sua produção, o
martelo pneumático silencioso poder ser mais barato do que o martelo pneumático
ruidoso não pode ser tido em conta no momento do seu lançamento. Por que razão
há-de uma empresa arriscar a falência ou, pelo menos, fazer sacrifícios em nome
do progresso técnico ou do humanismo? O comunismo não vai simplesmente
substituir o capitalismo. Transformará a ciência e a técnica. De servos conscientes
ou inconscientes do inferno industrial, passarão a ser instrumentos de
libertação.
A ciência deixará
de ser um sector separado da produção.
O capital tem uma
necessidade vital de inovação. Não pode gerá-la directamente a partir do sector
produtivo. Este último deve manter-se calmo e a imaginação não deve correr
solta. Assim, a ciência desenvolveu-se por si só. Durante muito tempo,
permaneceu marginal, obra de amadores. O capital, com uma necessidade mais
premente dos seus serviços, teve de a tomar em mãos. Sob a égide do Estado e
das empresas, a ciência tornou-se um investimento. Burocratizou-se, sob o jugo
de mandarins e administradores. A liberdade criativa é mantida sob rédea curta.
30
Aos olhos do
público, a ciência é uma fada, boa ou má. O cientista é o feiticeiro tornado
assalariado. O que é o resultado de um pensamento crítico é visto como uma obra
de magia.
A ideologia da
produção recupera o que tinha de ceder à experimentação. A ciência aparece como
o sector em que se produz uma mercadoria especial: o conhecimento. O
conhecimento deixa de ser o resultado precário de uma investigação específica e
passa a ser um produto sagrado oferecido à contemplação de uma massa de
deficientes mentais.
É preciso
libertar a iniciativa e a experimentação e torná-las acessíveis a todos. A
ciência deve deixar de ser apanágio de uma casta de especialistas e voltar ao
gosto pelo risco e pelo jogo, ao prazer da descoberta.
A
"conquista" do espaço ilustrou as possibilidades da automatização e
da electrónica. Agora é preciso aplicar toda esta tecnologia para transformar a
nossa vida quotidiana. A automatização permite libertar o homem de tarefas
fastidiosas e confiar às máquinas o que é seu.
Os primeiros
passos em direcção a sistemas automáticos que, uma vez postos em funcionamento,
funcionam e se regulam sem intervenção remontam ao tempo dos faraós. Eram
utilizados para regular o Nilo. Nos tempos modernos, começam a florescer.
Começamos a ver "fábricas" automáticas. Em 1784, por exemplo, este
moinho perto de Filadélfia recebia o trigo e transformava-o em farinha sem
intervenção manual. A par das máquinas automáticas de produção, surgem as
máquinas de calcular. O telefone automático foi introduzido em 1881.
A automatização
existe há muito tempo. É apenas uma forma extrema de maquinismo. Foi a electrónica
que a tornou uma forma comum, se não a mais comum, de engenharia mecânica.
A electrónica
combinada com o controlo de grandes fontes de energia tornou possível agir à
distância e centralizar um grande número de operações.
A automatização
não é apenas a possibilidade de confiar às máquinas as tarefas que o homem
executa com relutância. É também, e talvez sobretudo, a possibilidade de fazer
coisas que de outra forma nunca teriam sido possíveis. Torna possíveis operações
que exigem reacções mais rápidas e cálculos mais complexos do que os que são
possíveis para os seres humanos. As máquinas podem funcionar em condições
impróprias para a vida. Sem a automatização, o desenvolvimento da energia
nuclear ou a descoberta do espaço seriam empreendimentos impossíveis.
Aqueles que
querem a revolução, mas não querem usar a ciência e a tecnologia amaldiçoadas,
estão num impasse. A destruição maciça do nosso ambiente não é certamente
independente das possibilidades técnicas, mas não podemos atribuir-lhes a
culpa.
A energia nuclear
e a tecnologia da informação podem ser muito perigosas. É um reflexo do seu
poder. Mas isso só condena a sociedade que as utiliza de forma imprudente ou
que as utiliza para reforçar o seu controlo sobre as pessoas.
Até agora, o
capital só automatizou em pormenor. Isso não significa que possa ficar por aí. 31
A lógica do
capital, a necessidade de manter ou recuperar uma taxa de lucro decente, deve
obrigá-lo a ir mais longe. Isto não significa que a generalização da
automatização seja compatível com a manutenção do sistema actual. O seu próprio
princípio é contrário à sobrevivência de uma sociedade de classes: torna o
proletário inútil. "A máquina automática... representa o equivalente
económico exacto do trabalho escravo". (N. Wiener) O ponto extremo do
desenvolvimento do maquinismo torna inúteis as máquinas humanas.
A solução é a
revolução comunista ou a destruição do proletariado, que seria reduzido a uma
camada de beneficiários da assistência social ou eliminado por completo. Os
profetas da desgraça prevêem esta última hipótese. O nosso optimismo não se
baseia no humanismo dos nossos dirigentes: A História demonstrou que o
genocídio não os assusta. Acreditamos simplesmente que eles são incapazes de
dominar a situação e de conduzir uma verdadeira política. Para o bem e para o
mal, não somos governados por super-homens com visões poderosas, mas por
imbecis, hábeis nas manobras mas incapazes de ter uma visão histórica dos
acontecimentos. Eles próprios são parcialmente rejeitados do processo
produtivo. O que é preciso é que o proletariado não se mostre demasiado
estúpido.
A força do
proletariado é imensa. A sua consciência dessa força é extremamente limitada. A
classe operária sempre derivou o seu poder do seu lugar no aparelho produtivo.
O início da automatização desse aparelho só veio reforçar esse poder. Pequenas
fracções de operários e técnicos detêm um enorme poder nas suas mãos. É
provável que as convulsões económicas lhes dêem o gosto de o utilizar.
A burguesia ou a burocracia não podem negar o proletariado sem se negarem a si próprias. Ela está acorrentada ao valor, isto é, ao trabalho humano que é a base desse valor. Não quer o progresso pelo progresso, mas pelo dinheiro. Se desenvolve o maquinismo, não é com o objectivo de se livrar dos operários demasiado indisciplinados. O proletariado não é simplesmente um instrumento da burguesia. É também a sua razão de ser. O capital (ou o trabalho) reduz o homem ao nível de uma máquina, mas não pode deixar de ser uma relação social entre classes.
SOCIEDADE DE
CLASSES E ROBOTIZAÇÃO
Todas a sociedade
de classes tendem a transformar os seres humanos em robôs, a reduzi-los a
objectos cujos corpos e inteligência podem ser utilizados. Quando uma parte da
sociedade já não trabalha para si própria, mas trabalha para alimentar outra
parte da sociedade, isso significa que tem de fazer um esforço suplementar, mas
sobretudo que a sua actividade muda de natureza. O que interessa ao senhor não
é o prazer ou o desprazer, a alegria ou a dor do escravo, mas a sua produção. A
sociedade de classes baseia-se na capacidade humana de produzir bens que podem
ser separados do produtor e utilizados por outros. O ser humano deixa de ser um
ser humano e passa a ser um instrumento. A própria capacidade humana de
construir ferramentas e de pensar antecipadamente a produção é virada contra
ele, transformando-o numa ferramenta! O explorador pode ser bom ou mau para o
explorado. Nem todos os sentimentos são excluídos. 32
Melhor ainda, os
sentimentos são necessários para lubrificar as rodas do sistema. Mas são um
produto secundário e limitado do sistema. O explorador pode ser bom, mas não
pode deixar de explorar. Pode ser sádico, mas não pode destruir o seu material
humano. No entanto, quando o capitalismo atinge este ponto de barbárie, é
movido pela necessidade económica. As classes dominantes do passado foram
enxertadas em comunidades camponesas. O capital desfez essas comunidades para
se submeter a um material humano mutilado e atomizado. Como uma mercadoria
entre mercadorias, o proletário confronta-se com os seus concorrentes mecânicos
no mercado dos "factores de produção". Nesta luta, a máquina vence
gradualmente e reduz o seu lugar no processo de produção.
O comunismo
inverte o carácter desta evolução. O homem deixará de competir com a máquina
porque deixará de ser um factor de produção.
A utilização
comunista da maquinaria significa a possibilidade de automatizar um número
muito grande de actividades. Isto não significa que a chave da questão social
esteja na automatização generalizada.
A abolição do
trabalho assalariado não é a substituição do homem pela máquina, mas a
transformação humana da actividade humana através das máquinas. Não se trata de
reduzir gradual ou brutalmente a semana de trabalho de quarenta horas para
zero, como propõem alguns pseudo-revolucionários. Um mundo em que uma indústria
inteiramente automática, trabalhando uma matéria inesgotável, fornecesse
imediatamente tudo o que é desejável, reduziria o homem a um estado vegetal. Seria
um universo gelado, sem aventuras, porque tudo o que nele acontecesse estaria
previamente programado.
Independentemente
da fé que deposita na ciência, este mito é profundamente capitalista. Considera
completa e natural a separação entre tempo de trabalho e tempo livre. Pretende
reservar o inferno da produção às máquinas e o paraíso do consumo aos seres
humanos. Dependendo do rigor com que se traça a linha, podemos acabar com um
clube de férias permanente ou com um feto generalizado.
O comunismo é o fim da separação entre tempo de trabalho e tempo livre, entre produção e consumo, entre o que se vive e o que se experimenta.
A REMUNERAÇÃO
O desaparecimento
do trabalho por conta de outrem é suficiente para abalar os alicerces da velha
sociedade. Desaparece a obrigação de trabalhar para sobreviver. O trabalho
deixa de ser um meio de ganhar a vida. Já não é um intermediário entre o homem
e as suas necessidades. É a satisfação directa de uma necessidade. Por isso,
deixa de ser trabalho. O impulso para agir deixa de aparecer como uma
necessidade exterior ao indivíduo e torna-se uma necessidade interior: o desejo
de se manter ocupado, o desejo de ser útil. A dissociação entre actividade e
remuneração, se por remuneração não entendermos o prazer que essa actividade
pode trazer em concreto, deve ser acompanhada de uma profunda transformação do
indivíduo.
Exige que os
indivíduos assumam a responsabilidade pelo que fazem. Exige o desenvolvimento
da iniciativa e da inteligência, o desaparecimento do egoísmo e da mesquinhez.
Tornou-se
habitual explicar todos os males da humanidade em termos da incorrigível
natureza humana. É um facto conhecido: o homem é um lobo para o homem. Isto não
explica nada, mas mostra o desprezo que o ser humano tem por si próprio.
Reflecte o fatalismo desenvolvido pelo capital, que reduz o ser humano ao papel
de espectador do seu próprio desenvolvimento.
Não é desejável
manter qualquer forma de remuneração durante um período transitório, como
propôs Marx, sob a forma de uma distribuição de cupões proporcionais às horas
trabalhadas. Se o desenvolvimento das forças produtivas torna possível a
revolução comunista, e ela é possível actualmente, a revolução comunista não
pode adiar a aplicação plena dos seus princípios. Um sistema de cupões para
remunerar e, portanto, obrigar o trabalho, ficaria aquém da revolta espontânea
dos oprimidos, de todos aqueles que se levantam sem esperar poder, dinheiro ou
recompensa. Contaria com a simpatia dos burocratas, dos gestores, de todos
aqueles que preferem controlar e obrigar os outros a agir. Um tal sistema
apenas restringiria aqueles que são a favor da acção e não conseguiria
conquistar os seus opositores. Se é preciso obrigar alguém a fazer alguma
coisa, preferimos o método do "pontapé no rabo". É mais franco e mais
eficaz.
Não somos
opositores irreconciliáveis da utilização de cupões. Seria absurdo permitir que
os diamantes fossem distribuídos livremente! Nestes casos, os cupões seriam
emitidos pelas autoridades competentes. No caso de bens relacionados com a produção,
o vale seria emitido por um conselho de fábrica. No caso de medicamentos raros
ou perigosos, seriam emitidos por hospitais ou médicos... Estes vales não serão
utilizados para efectuar pagamentos. Desempenharão o mesmo papel que uma
receita médica actualmente. A sua utilização será determinada pela natureza ou
raridade dos bens pelos quais são "trocados".
O maior número possível de bens, nomeadamente alimentares, deve ser tornado livre e gratuito sob a égide dos comités e conselhos revolucionários nas zonas que passaram para as mãos do partido revolucionário, ou pela força nas zonas que não foram libertadas. Este é o método de distribuição mais simples, mais barato e mais agradável. É o mais susceptível de popularizar o comunismo. É preferível aplicar esta regra geral, mesmo que isso implique uma repressão severa dos abusos, do que ficar atolado em controlos minuciosos e desagradáveis durante a distribuição.
A PREGUIÇA
Um tal programa
não favorecerá o desenvolvimento da preguiça? Se fosse possível abolir o
princípio da remuneração do trabalho mantendo o mundo tal como ele é, isso
seria certamente verdade. Mas o comunismo inverte todas as condições de vida e
de trabalho.
O espírito
revolucionário não é o espírito de sacrifício: todos se esquecem de si próprios
para servir a colectividade. Isso é que é maoísmo! 34
O comunismo
pressupõe um certo altruísmo, mas pressupõe também um certo egoísmo. Acima de
tudo, não opõe o amor do próximo ao amor de si próprio, pedindo que um esteja
ao serviço do outro. Não amamos os padres, tal como não amamos os
especuladores. O capitalismo faz com que os interesses do indivíduo e os da
colectividade estejam sempre em oposição: dar é renunciar.
O homem comunista
não será mais o homem da renúncia do que o da fatalidade. A transformação das
mentalidades não é uma questão de pedagogia. Não haverá uma imagem ideal a que
se conformar. Não haverá transformação das estruturas sociais, por um lado, e
transformação dos indivíduos, por outro. É o capitalismo que separa as coisas
desta forma. O proletariado desalienar-se-á a si próprio e só o poderá fazer
mudando o mundo e as suas condições de existência. Algumas semanas de revolução
destruirão décadas de condicionamento. A cobardia, a ganância e a debilidade
são o resultado de um determinado estado social. As cenouras, o bastão e a
educação só podem servir para os reprimir se a situação que os gera e lhes dá
uma certa utilidade não desaparecer. Com o comunismo, esses defeitos
desaparecerão porque já não corresponderão a nada.
Se houvesse
egoístas, preguiçosos incuráveis e incompetentes irremediáveis, isso não seria
necessariamente muito grave. O inimigo mais poderoso dessas pessoas não é a
repressão, mas o tédio. Eles fariam muita gente ceder. As pessoas são animais
sociais. É preciso muita coragem para suportar o facto de ser inútil na
comunidade em que se vive. Ainda hoje, o parasita e o egoísta têm de fingir
para bem dos outros e de si próprios. Com a abolição do trabalho assalariado,
será muito difícil iludir-se com a sua actividade. Cada um será julgado pelo
que realmente faz e não pelo tempo que gasta.
O comunismo não
exclui os conflitos entre indivíduos e entre grupos. Os aproveitadores
arriscam-se a ser chamados à responsabilidade. Se os aturamos e engordamos, é
porque queremos. Os comunistas não têm nada contra a preguiça saudável. A
sociedade revolucionária não é um lugar para se esgotar. Os preguiçosos só são
condenáveis se exigirem dos outros aquilo que recusam para si próprios. Os
corajosos não devem deixar-se enganar, mas não devem pretender impor os seus
gostos pessoais a toda a gente!
Se o trabalho
forçado for substituído por uma actividade apaixonada, a maior parte das causas
da preguiça sistemática desaparecerá. Desaparecerá também a irritação que o
trabalhador sente em relação ao preguiçoso, que muitas vezes não passa de
inveja disfarçada.
O preguiçoso de
hoje não será necessariamente o preguiçoso de amanhã. Alguns dos que labutam e
se esgotam sob o impulso do lucro precisarão da nossa benevolência. Outros, que
parecem incapazes de se mexer, despertarão e tornar-se-ão selvagens.
Na sociedade
comunista desenvolvida, a maquinaria dará ao homem um grande poder. Cada um
poderá escolher o seu próprio ritmo de vida. Um esgotar-se-á em aventuras
dispendiosas e gastará mais do que dá em troca à sociedade. O outro fará muito
pouco e, no entanto, será a sociedade que estará em dívida. Não haverá contas
de mercearia. 35
Uma vez desaparecido o interesse económico, não desaparecerá também o espírito de investigação e de invenção? Não se contentará toda a gente em fazer os seus pequenos trabalhos de rotina, mas nada mais? É um erro acreditar que a atracção pelo lucro e o espírito de investigação andam de mãos dadas. O empresário faz um pacto com a mentira e a ilusão. O cientista tem de as manter à distância. A ciência paga e a invenção paga, mas muitas vezes não são as mesmas pessoas que descobrem e embolsam. Mesmo no mundo capitalista, o motivo da paixão científica não é o dinheiro. A criatividade e a imaginação são aproveitadas para ganhar dinheiro.
DIVISÃO DO
TRABALHO
Se não nos
tornarmos preguiçosos, não haverá o risco de a nossa sociedade se afundar na
desordem? Mesmo que haja uma boa vontade geral, será ela suficiente para
resolver o problema da coordenação de todas as actividades? Não irão todos
apressar-se a fazer o trabalho mais agradável e deixar os outros para trás,
antes que as máquinas tenham tido tempo de o fazer? Em suma, cada um a fazer o
que lhe apetece, seria um desastre!
A ideia de que a
sociedade moderna é muito complexa e que essa complexidade é inevitável é muito
difundida. Não se trata de uma mera ilusão. Os indivíduos sentem-se perdidos na
selva capitalista. Não conseguem orientar-se e muito menos compreender como
tudo funciona. É um erro pensar que esta impressão se aplica a todas as
sociedades modernas. Não é necessariamente gerada pela multiplicidade de
operações e situações que constituem o todo social. Resulta da distância entre
a decisão e a coordenação, por um lado, e a acção, por outro.
Esta impressão de
complexidade e de permanente desorientação gerada pela sociedade capitalista
reflectiu-se nas descrições de um mundo socialista. Os socialistas acreditavam
que o principal problema a resolver na sociedade futura seria o da planificação
e da coordenação. Imaginaram uma "fábrica de planeamento" que faria o
ponto da situação da economia e determinaria os coeficientes técnicos que ligam
a produção de um produto à produção de outro: a quantidade de carvão necessária
para produzir uma tonelada de aço, por exemplo. Esta fábrica proporia
objectivos realizáveis e faria as revisões necessárias durante a execução. Os
problemas da sociedade futura são vistos essencialmente do ponto de vista da
gestão. (Chaulieu, Socialismo ou Barbárie, N° 22)
A sociedade
comunista terá de resolver muitos problemas técnicos complexos. Mas estas
questões não serão da responsabilidade de nenhum organismo em particular. Não
se trata de tentar prever as formas que a actividade humana assumirá, mas de
determinar o seu conteúdo. Não haverá necessidade de unificar ou gerir o que
não está separado. O produtor individual estará tão preocupado com a sua
própria actividade como com a sua ligação à totalidade das necessidades e
possibilidades gerais.
Numa sociedade
revolucionária, as relações entre as pessoas e entre os grupos de produtores
serão simples e transparentes. 36
O medo da concorrência que obriga ao secretismo desaparecerá. O importante não é que todos cheguem a uma ciência universal e que todos os cérebros sejam uma "fábrica de projectos" em miniatura. De que serve saber de onde vem o minério que me serve de garfo! O que importa é que a informação necessária circule e esteja disponível.
Numa sociedade
fluida onde o paroquialismo e o patriotismo corporativo desapareceram, onde as
pessoas são versáteis, os indivíduos e os grupos orientar-se-ão de acordo com
as necessidades da sociedade.
As necessidades
sociais não serão impostas de fora através de um gabinete central: um comité
ditatorial ou uma assembleia democrática. O indivíduo ou grupo não deve cumprir
a sua consciência da situação se imaginarmos essa consciência como um simples
reflexo de imperativos externos. É claro que agiremos de acordo com a nossa
consciência das necessidades e possibilidades sociais, mas não independentemente
dos nossos próprios gostos. Muitas vezes não haverá compromisso a ser feito.
Primeiro sentimos as nossas próprias aspirações como uma necessidade social.
Ficamos bastante tentados a remediar o que consideramos uma falta. Se tiver
dificuldade em obter vinho e me faltar, não precisarei necessariamente de ir
conhecer as curvas de produção num computador para saber que talvez deva ir
cuidar das vinhas!
O homem comunista
não separará o exercício dos seus gostos das suas repercussões sociais. Ele não
se apressará em tarefas que já foram realizadas. De qualquer forma, seria
estúpido pensar que todos serão padronizados e se deixarão levar pela moda para
as mesmas ocupações.
A consciência do
que será necessário para a sociedade será muito mais aguçada do que agora.
Todos poderão ser informados e compreender o que funciona e o que não funciona,
mesmo que não tenha repercussões directas para todos. Os computadores serão
instrumentos essenciais para a circulação e interpretação da informação.
A organização geral
da sociedade não necessita de um ou mais centros directores. Haverá talvez
pessoas que estarão mais particularmente preocupadas com a recolha de
informação, com o planeamento, mas não terão de desenvolver um plano no sentido
imperativo do termo. Planear é querer ligar o futuro ao presente!
A coordenação não
pode ser obra de uma determinada casta. Será realizado constantemente e em
todos os níveis da sociedade. Os homens, já não separados por mil barreiras,
consultar-se-ão espontaneamente.
Nem tudo será necessariamente
tranquilo. Os conflitos serão inevitáveis. Mas o problema da revolução não é
livrar a sociedade de todos os conflitos, gerar uma sociedade onde tudo seja
harmonizado a priori. Certamente serão eliminadas certas formas de conflito,
aquelas que opõem classes, nações... No mundo que queremos, as oposições têm
tanto lugar como os acordos. A harmonização e o equilíbrio serão desenvolvidos
através de debates e disputas.
A diferença
fundamental com a situação actual é que cada um só empenhará as suas próprias
forças na batalha. Não podemos evocar direitos abstractos desligados do mundo
das oposições e das relações de poder concreto. 37
Não será mais
possível recorrer a um órgão especial, como o exército ou a polícia, para que o
direito à sua causa seja reconhecido.
O comunismo fará
do conflito uma coisa normal e até necessária, desde que, obviamente, o
interesse na questão não seja menor que o dano causado. O capitalismo é
profundamente conflituoso. Baseia-se na oposição entre classes, nações e indivíduos.
Todos estão em oposição a todos. É para afastar esta realidade que pregamos o
amor feliz e a fraternidade. Há uma agressão monótona por toda a parte, mas a
imagem da paz deve reinar. Se alguma vez nos separarmos, não será em nome de
interesses particulares, mas para o bem da civilização, dos valores universais,
etc.
Não corremos o
risco de perder muito tempo em conversas e conflitos? Ao reduzir os problemas
de coordenação e ajustamento ao nível em que se encontram, corremos o risco de
ganhar alguns. A ideia de que o tempo é algo que pode ser perdido ou ganho é em
si bastante surpreendente.
Do ponto de vista comunista, o problema não pode ser reduzido a saber qual o método que poupa mais tempo. O que importa é como preenchemos esse tempo. Teremos ou não prazer e interesse em discutir e harmonizar, ou preferiremos simplesmente aplicar sem discussão as decisões de um comité director que terá planeado a ausência de confrontos? Os homens reaprenderão a conversar e a discutir de maneira agradável. As discussões tediosas serão limitadas pelo tédio dos interlocutores, mas também pelo simples facto de que tudo não fará sentido e continuarão a trazer o assunto à tona. Podemos confiar na experiência passada.
TRABALHO DURO
Existem tarefas
que são francamente dolorosas e desagradáveis. Podemos esperar reduzi-las
através de maquinaria, mas teremos de cuidar delas primeiro e não se diz que
tudo possa necessariamente ser eliminado.
Seria inaceitável
e certamente não aceite pelos interessados que este trabalho ingrato repousasse
sobre os mesmos ombros. Será necessário, portanto, organizar-se para que o
maior número possível de pessoas se revezem no cuidado dela. Será secundário
perdermos rentabilidade.
Numa fábrica ou
outro local de produção, podemos facilmente revezar-nos em posições
desagradáveis.
Ao nível da
sociedade como um todo, podemos pedir que estas tarefas ingratas também sejam
sujeitas a rotação. Estaremos em serviço de recolha de lixo durante uma
determinada parte do ano.
O trabalho árduo é muito menor se for a extensão e o preço de actividades prazerosas. Hoje, o trabalho está extremamente fragmentado e as necessidades de utilização “racional” da força de trabalho exigem que façamos aquilo para que estamos qualificados, deixando o resto para outros. Na sociedade comunista, o investigador poderá cuidar da limpeza das instalações que utiliza, o motorista poderá participar no asfaltamento das estradas e os mortos estarão em melhor posição para cuidar da escavação das suas sepulturas. 38
As actividades
desagradáveis serão
muito menos desagradáveis se aqueles que com elas lidam lhes dedicarem apenas uma pequena
parte do seu tempo e não tiverem a impressão, como acontece agora, de estarem a
elas acorrentados para o resto da vida. Acima de tudo, estas actividades podem
ocorrer numa atmosfera completamente diferente da actual: sem mais pequenos
chefes, sem mais obsessão pelo desempenho. A recolha de lixo poderia, por
exemplo, assumir um aspecto carnavalesco.
Muitas actividades
dolorosas tornam-se assim não por causa do seu próprio carácter, mas porque, em
nome da racionalização do trabalho, são feitas para serem realizadas em série
pelas mesmas pessoas. Estas transformações no ritmo, na distribuição e na
própria natureza do trabalho não serão obviamente programadas antecipadamente e
equilibradas a partir de cima. Elas serão realizadas no trabalho de acordo com
os desejos das pessoas envolvidas. Se num canteiro de obras houver alguém
apaixonado por carrinhos de mão ou qualquer outra tarefa geralmente impopular,
seria obviamente um absurdo fazê-lo abrir mão dos seus gostos.
Não somos fanáticos pela igualdade. Seria imbecil, quando faltam cirurgiões, condená-los ao trabalho de auxiliares de enfermagem. Este tipo de desigualdade só pode ser mitigado pelo desenvolvimento da versatilidade e pela reconversão profissional das pessoas para sectores verdadeiramente úteis.
O FIM DAS
DIVISÓRIAS
O comunismo
significa o fim das divisórias que compartimentam as nossas vidas.
A vida
profissional e a vida emocional deixam de se opor. Não há mais tempo para
consumir e tempo para produzir. Escolas, locais de produção, centros de lazer
não são mais universos distintos e estranhos. Eles desaparecem gradualmente com
o desaparecimento da sua função especializada. Dentro do processo produtivo, a
hierarquia e a divisão em segmentos da actividade humana estão a desaparecer.
Este será o fim desta situação em que o operário é o executor do projectista, o
projectista o executor do engenheiro, o engenheiro o executor das finanças ou
da administração.
Concluir essas
transformações levará tempo. Não podemos eliminar o nosso ambiente de vida, um
certo tipo de desenvolvimento tecnológico, hábitos humanos e deficiências com o
passar de uma esponja. Medidas neste sentido serão necessárias e farão sentir
os seus efeitos assim que a produção de mercadorias e o trabalho assalariado
forem abolidos.
A separação entre
a vida profissional, por um lado, e a vida real e familiar, por outro, está
ligada ao desenvolvimento do trabalho assalariado. O camponês viu-se arrancado
da sua terra e da sua família para ser integrado no mundo industrial. No
passado, a família constituía a unidade de vida e de produção. O marido e a
mulher, mas também os filhos e os idosos, participavam nos trabalhos da quinta
e dos campos. Todos consideravam as actividades úteis e dentro dos seus pontos
fortes.
Os reaccionários gostam de se fazer passar por defensores da família ameaçada. Estes idiotas recusam-se a ver que é precisamente a ordem que defendem que a reduz ao papel marginal que se tornou seu. 39
Laços familiares eram
elos de ajuda mútua a nível agrícola. Eles estendiam-se muito além do casal e
dos seus descendentes directos. Hoje a família nada mais é do que o lugar onde
os filhos são produzidos. E mesmo assim ! O seu papel económico é o de unidade
de consumo. A instituição fundamental, a célula básica da sociedade capitalista
desenvolvida, não é a família, é a empresa.
Não pretendemos
reerguer a velha família patriarcal para garantir a produção no lugar da
empresa capitalista. Os laços de sangue podem ter desempenhado um grande papel
no passado. Eles já não correspondem a muita coisa no mundo moderno.
Na sociedade
comunista, para realizar ou não uma actividade produtiva, as pessoas já não
serão reunidas pela força do capital. Elas associar-se-ão unidas pelo gosto
comum e pela afinidade. As relações entre as pessoas assumirão tanta
importância quanto a própria produção.
Não afirmamos que
os laços estrictamente românticos, por um lado, e as relações profissionais,
por outro, coincidirão. Será uma questão de escolha e sorte. Mas isso será
muito mais possível do que é actualmente.
Alguns querem ver
no comunismo a união de mulheres e crianças. Isso é estupidez.
Os
relacionamentos românticos não terão outra garantia senão o amor. Os filhos não
ficarão mais apegados aos pais pela necessidade de comer. O sentimento de
propriedade sobre as pessoas desaparecerá juntamente com o sentimento de
propriedade sobre as coisas. Isto é muito preocupante para quem não se imagina
a passar sem a garantia do polícia ou do padre. O casamento desaparecerá como
sacramento de Estado. A questão de saber se duas... ou três ou dez pessoas
querem viver juntas e até mesmo vincular-se por um pacto é só delas. Não temos
de determinar ou limitar antecipadamente as formas possíveis e desejáveis de ligação sexual. A castidade em si não
deve ser rejeitada. É uma perversão tão estimável quanto qualquer outra! O que
importa, além do prazer e da satisfação dos parceiros, é que os filhos cresçam
num ambiente que atenda às suas necessidades de segurança material e emocional.
Isto não é uma questão de moralidade.
Nos restos de uma
família corrompida pela mercadoria, a hipocrisia domina. Ou atribui ao amor o
que é apenas segurança económica, emocional ou sexual. As relações entre pais e
filhos chegaram ao fundo do poço. Sob o véu da afeição o desejo de explorar
responde ao desejo de possuir. A criança carrega as esperanças dos pais com
vidas fracassadas como uma bola e uma corrente. Ela deve brincar de cão amestrado,
ter sucesso na escola, ser sábio e calmo ou activo e cheio de iniciativa. Em
troca recebe um pouco de carinho ou mesada.
Assim como a família, refúgio de segurança e amor num mundo duro e hostil, não escapa à realidade comercial, também os negócios não escapam à afectividade. A aparente simpatia e aperto de mão escondem desprezo, rivalidade e exploração. Toda a gente é linda, toda a gente é fantástica, toda gente conversa, mas acima de tudo toda a gente se irrita.40
PRODUÇÃO E CONSUMO
A separação entre
produção e consumo surge como uma divisão natural entre duas esferas muito
distintas da vida social. Nada poderia estar mais longe da verdade. Isto tem um
duplo propósito.
Em primeiro
lugar, a fronteira entre o que se chama tempo de produção e tempo de consumo
está a mudar do ponto de vista histórico e a confundir-se do ponto de vista
ideológico. Em que categoria se enquadram a culinária e o desporto? Depende se
são feitos por profissionais ou amadores. O que é decisivo não é a própria
natureza da actividade: cozinhar é mais produtivo do que a triagem postal no
sentido de ser uma acção de transformação material, do que o facto de ser
assalariada ou não. Muitas actividades relacionadas com o consumo passaram para
a produção. O astronauta ou o paciente que respira oxigénio engarrafado, a dona
de casa que obtém café moído ou latas de comida participam nessa mudança de
limites.
A divisão entre
produção e consumo mascara a importância que o trabalho doméstico independente
mantém no mundo moderno. Dá uma aparência fixa e natural a uma demarcação
comovente e social.
Em segundo lugar,
qualquer acto de produção é também e necessariamente um acto de consumo. Nós
apenas transformamos a matéria de uma certa maneira e para um determinado
propósito. Ao mesmo tempo que destruímos ou se queremos consumir certas coisas
obtemo-las ou se queremos produzimos outras. O consumo é produtivo, a produção
é consumidora. Produção e consumo são duas faces inseparáveis da mesma moeda.
Os conceitos de
produção e consumo não são neutros. Não podemos dizer que sejam burgueses. Mas
a sociedade burguesa faz uso certo disso. Uma pereira não é burguesa porque
produz peras. A noção de produção assume um caráter ideológico porque por baixo
da ideia de geração e desapego escorregamos a de projecto e de consciência. Há
confusão entre as duas coisas. Tudo acaba por ser interpretado em termos de
produção. Uma galinha torna-se uma fábrica de ovos.
Mascaramos a
continuidade do ciclo pelo qual o homem primitivo ou civilizado, capitalista ou
comunista, modifica de maneira simples ou erudita, individual ou colectiva,
irreversível ou temporária, no geral ou no detalhe o mundo que o rodeia e se
transforma inseparavelmente. . O uso totalitário da noção de produção esconde a
inserção radical e a dependência dos seres humanos em relação ao seu ambiente e
às leis naturais. Interpretamos tudo em termos de dominação e uso. O homem
produtor consciente e mestre propõe-se a conquistar a natureza. A omnipotência
que a humanidade confiou à imagem divina ela atribui directamente à imagem que
tem de si mesma. O comunismo não é a vitória da consciência sobre a
inconsciência. Esta não é a fase em que, depois de se ter dedicado à produção
das coisas, o homem poderá finalmente produzir-se, assumindo de alguma forma o
lugar do criador divino. Querer que o homem se torne o seu próprio dono, assim
como ele é dono do objecto que molda, é querer reunir o separado sob o signo de
produção e, portanto, separação. 41
O produtor não
deixaria de ser um objecto, seria simplesmente o seu próprio objecto.
A divisão entre
produção e consumo desaparece devido à separação muito concreta, mas
arbitrária, do ponto de vista da natureza e da fisiologia, entre o tempo gasto
para ganhar dinheiro e o tempo gasto para gastá-lo.
Para o homem
comunista, consumir não se oporá a produzir porque não será antagónico cuidar
de si e cuidar dos outros. Isso porque ao produzir para os outros, ao gastar
para os outros, ele cria valores de uso que podem ser úteis para si mesmo. Por
um lado, não produziremos sapatos e, por outro, seremos obrigados a comprá-los
no mercado. Acima de tudo, a produção transformar-se-á e tornar-se-á criação,
poesia, despesa. O grupo ou indivíduo expressar-se-á por meio do que faz. Neste
aspecto, a revolução é a generalização da arte e a sua superação como sector
comercial e separado.
Continuando a
raciocinar do ponto de vista da oposição entre consumo e produção, podemos
dizer que encontrando satisfação e prazer (ou em contraponto insatisfação e
desprazer) no decorrer da sua actividade produtiva, o homem será um consumidor.
O computador ou a espátula que ele usa não terá um valor fundamentalmente
diferente do carro ou da comida que ele usa noutro momento.
O comunismo não é
absolutamente a produção finalmente colocada ao serviço do consumidor, tal como
o capitalismo não seria a ditadura da produção. Ao envolvermo-nos numa
atividade, adquiriremos um certo poder. Até certo ponto poderemos dispor do
fruto dos nossos esforços, dar ou recusar dar o que produzimos. Acima de tudo,
ao fornecer um determinado bem ou serviço e ao fazê-lo assumir uma determinada
forma, actuamos no campo de possibilidades da sociedade. A actividade dos
utilizadores será determinada pela dos produtores. Não há razão para estes
últimos abusarem de um poder que, em qualquer caso, não será um poder político
ou separado, mas a simples expressão da utilidade das suas ocupações.
O “consumidor” não poderá censurar o produtor pela imperfeição do que faz em nome do dinheiro que não lhe dará em troca, mas simplesmente criticá-lo não por fora, mas por dentro. O que estará em causa será o seu trabalho conjunto caso participem no mesmo empreendimento. Se alguém não estiver satisfeito com o que está a ser feito ou com o que não está a ser feito, não poderá invocar os seus direitos abstractos de consumidor. Ele terá apenas que destacar a sua própria capacidade de fazer melhor ou pelo menos destacar as suas próprias contribuições. A revisão será apaixonada e positiva. Não pode ser obra de quem quer tirar sarro mas prefere não se envolver.
PRODUÇÃO E EDUCAÇÃO
A separação entre
a vida produtiva, por um lado, e a educação, por outro, não é o resultado de
uma necessidade. A sua razão de ser não reside na importância crescente dos
conhecimentos a ingerir. Ou melhor, reside, mas é preciso compreender por que razão
é necessário que o conhecimento deixe de ser o fruto directo da experiência. 42
A base desta
cisão é que o proletário não deve poder ocupar-se de si próprio, do seu prazer
ou da sua formação, enquanto produz. Esta separação, indispensável à sobrevivência
do mundo económico, tem um custo muito elevado. Imobiliza nas escolas, nos
centros de formação profissional e nas universidades uma grande parte da
população, que poderia ser útil noutro lugar e divertir-se mais. Não permite
uma adaptação adequada das capacidades humanas às necessidades das actividades
a que deve conduzir. Esta formação na escola é completada por uma aprendizagem
no local de trabalho, muitas vezes efectuada de forma clandestina.
A escola é
apresentada como um serviço público que transcende as classes sociais. A sua
utilidade é incontestável. Quem teria a audácia de ser o apóstolo da
ignorância? Os espíritos esclarecidos atrevem-se a atacar o conteúdo da
educação. Acusam-no de ser arcaico, divorciado da vida, um factor de subversão.
Segundo os seus gostos, as crianças deveriam ser ensinadas a ler o Santo
Evangelho, o Manifesto Comunista ou o Kamasutra.
Os extremistas
começam a atacar a própria escola. Não em nome da sua eficácia nefasta, mas em
nome da sua ineficácia. Atacam a escola para salvar a pedagogia.
É preciso
aprender, e aprender sempre. Temos de engolir esta porcaria insípida a que
chamamos cultura. O mundo é tão complexo! Não entendes? Então é preciso ir
fazer uma reciclagem. Nunca as pessoas aprenderam tanto, nunca foram tão
ignorantes sobre as suas próprias vidas. Estão sobrecarregadas, desorientadas
pela massa de informação que sai das universidades, dos jornais e da televisão.
A verdade nunca emergirá da acumulação de conhecimento mercantilizado. É uma
forma morta de conhecimento, incapaz de compreender a vida porque a sua própria
natureza é estar desligada da experiência e da vivência.
É na escola que
se aprende a ler, a escrever e a fazer contas. Mas, acima de tudo, é na escola
que se aprende a desistir. Aprende-se a suportar o tédio, a respeitar a
autoridade, a ter sucesso contra os amigos, a esconder-se e a mentir. O
presente é sacrificado no altar do futuro.
O comunismo é a
descolonização da infância. Deixará de haver necessidade de uma instituição
especial para as educar. Estamos preocupados com a forma como as crianças vão
aprender a ler? Deveríamos preocupar-nos antes de sabermos como é que elas
aprendem a falar.
As escolas
dissociam e inculcam a dissociação entre o esforço ou a aprendizagem e a sua
necessidade. O importante é que as crianças aprendam a ler porque precisam de
aprender a ler, não para satisfazer a sua curiosidade ou o seu amor pelos
livros. O resultado paradoxal é que, embora tenha diminuído o analfabetismo,
sufocou ao mesmo tempo o gosto pela leitura e a verdadeira capacidade de ler na
maioria das pessoas. Numa sociedade comunista, as crianças aprendem a ler e a
escrever porque sentem a necessidade de aprender e de se exprimir. Como o mundo
da criança não está separado do resto da vida social, será um imperativo para
ela aprender. Fá-lo-á tão naturalmente como aprende a andar ou a falar. Não o
fará apenas por si própria sozinha. 43
Encontrará os
seus pais ou pessoas mais velhas que sabem mais do que ela para a ajudar. As
dificuldades com que se depara ser-lhe-ão úteis. Ao ultrapassá-las, ela
aprenderá a aprender. Não recebendo o conhecimento como um alimento pré-digerido
da mão de um educador, ela habituar-se-á a ver e a ouvir, tornando-se capaz de
desenvolver o conhecimento e de deduzir da sua experiência. Esta será a
vingança da experiência sobre a programação académica ou extracurricular dos
seres humanos.
As pessoas
partilharão as suas experiências e comunicarão os seus conhecimentos umas às
outras. Os lugares e os tempos que escolherem serão para sua própria
conveniência. A forma da relação não será determinada antecipadamente.
Dependerá do conteúdo da troca e do conhecimento recíproco dos intervenientes
sobre o assunto em questão. Se 10 ou 10.000 pessoas esperam saber o que uma
pessoa sabe, o mais simples será reinventar a aula.
O interesse moderno pela pedagogia reflecte o facto de não se poder impor um método a partir de um determinado conteúdo. Quando já não temos nada a dizer uns aos outros, quando o conteúdo do ensino se tornou permutável, então discutimos a forma de o dizer. É quando a sopa está má que nos interessamos pelo aspecto do prato.
O que aconteceria
no mundo da produção capitalista se, de repente, os operários tivessem de facto
o direito de experimentar e deixassem de ser julgados pela sua rentabilidade
imediata? Muito rapidamente correriam o risco de se esquecerem da razão pela
qual tinham sido contratados. Andariam à deriva de experiência em experiência.
Não tendo nada a ver com a produção, rapidamente abandonariam a busca do desempenho
em favor do seu próprio prazer. A alegria da descoberta e o entusiasmo da
liberdade substituiriam a rotina e a repetição. Os contactos que se
desenvolveriam entre os operários, sob o pretexto de melhorar a produção
através da troca de experiências, correriam o risco de tomar um rumo diferente.
Porque não ceder às alegrias da sabotagem colectiva, porque não organizar
jogos, porque não reorganizar ou desviar a produção em benefício directo dos operários?
O princípio do
trabalho assalariado impede que se confie nos operários para se submeterem às
necessidades de uma produção que não lhes diz respeito. O mais alienado, o mais
trabalhador, o mais servil dos assalariados não poderia sequer ser mantido
neste declive escorregadio. O trabalhador não pode ser deixado à sua própria
sorte no decurso da produção. Tem de ser tratado como um instrumento. Se lhes
for permitido cuidar de si próprios, tomarão gosto por isso, enfrentando o
capital que lhes nega o seu estatuto de seres humanos. A divisão capitalista entre
produção e aprendizagem tem os seus limites.
É impossível dissociar completamente a produção, a educação e a experimentação. A produção, o trabalho mais estúpido, exige uma certa adaptação do trabalhador e a capacidade de fazer face a uma situação não planeada. Do mesmo modo, a educação mais abstracta tem de tomar a forma de certos "produtos", nem que seja um trabalho de exame. A necessidade de controlo externo repercute-se na produção. 44
Os alunos não são
uma cera macia na qual se podem imprimir conhecimentos. Não aprenderiam nada se
permanecessem completamente passivos. A aprendizagem não pode ser completamente
separada da experimentação e da produção, mesmo que seja separada da esfera
económica propriamente dita. A escola serve para enquadrar e limitar os
conteúdos desta actividade e para a desligar da vida real. A educação funciona
e perpetua-se graças aos princípios que reprime. O mesmo se aplica à
aprendizagem da leitura ou à redacção de um ensaio. Esta última é a própria
negação da comunicação. Os alunos devem aprender a exprimir-se por escrito,
independentemente do que têm a dizer e a quem se dirigem. É um exercício
completamente vazio. No entanto, se os alunos conseguirem escrever - e têm de o
fazer - só o poderão fazer se colocarem alguma forma de comunicação. Tal como
um operário que é obrigado a trabalhar só pode fazer o seu trabalho se
participar nele até certo ponto. Ele nunca pode ser um mero executor, uma
máquina.
O sistema de produção entrará em colapso se os trabalhadores deixarem de poder experimentar, ajudar e aconselhar-se mutuamente. A organização hierárquica do trabalho só pode sobreviver se as suas regras forem constantemente desrespeitadas. Impõe um quadro incontornável a estas ilegalidades e à actividade espontânea dos operários para evitar que se desenvolvam e se tornem verdadeiramente perigosas e subversivas.
V DINHEIRO E
ESTIMATIVA DE CUSTOS
O comunismo é um mundo sem dinheiro. Mas o desaparecimento do dinheiro não significa o fim de qualquer estimativa de custos. As sociedades e as acções humanas, passadas e futuras, são obrigadas a enfrentar este problema, quer utilizem ou não signos monetários. Os critérios escolhidos para estas estimativas variam evidentemente em função do carácter profundo da sociedade.
O DINHEIRO
Com o
desenvolvimento da sociedade capitalista, quando as mercadorias se tornaram a
forma geral de produto, o dinheiro aparece para todos como uma necessidade,
embora nem todos tenham a mesma quantidade dele ou o utilizem da mesma forma. É
quase tão necessário à vida humana e quase tão natural como o oxigénio. Será
que podemos sobreviver sem dinheiro? Tanto os ricos como os pobres têm de sacar
da carteira para satisfazer as suas necessidades mais essenciais ou os seus
caprichos mais triviais.
O lugar objectivo,
mas limitado, que o dinheiro ocupa é igualado pelo lugar subjectivo e
fantástico que ocupa na consciência social. Toda a riqueza acaba por ser
equiparada à riqueza monetária pelos servos da economia. O que não pode ser
pago parece perder todo o valor, mesmo que seja o mais essencial dos bens da
vida: o ar, a água, a luz do sol, os espermatozóides e as bolas de sabão. Paradoxalmente,
esta era está a chegar ao fim, mas no sentido em que a economia triunfante está
ocupada a dar a tudo um valor de mercado, a engarrafar água e a armazenar
esperma. 45
Enquanto o
cidadão comum se contenta em observar a omnipresença e a omnipotência do
dinheiro e tenta tirar partido dos favores desta divindade caprichosa, os
economistas ocupam-se em glorificá-la. O dinheiro não só é indispensável na
sociedade actual - uma verdade baseada na experiência quotidiana e infelizmente
incontestável - como é indispensável a qualquer vida social minimamente
civilizada. A circulação do dinheiro é para o corpo social o que a circulação
do sangue é para o corpo humano. A história do progresso é a história do
progresso do dinheiro, desde a concha até ao cartão de crédito. Queres livrar a
sociedade do dinheiro? Só podes ser um atrasado mental, um defensor do regresso
à troca directa. É de notar, de passagem, que o capitalismo não só não eliminou
o tão criticado sistema de trocas, como o reinventa constantemente, nomeadamente
no comércio internacional.
O dinheiro
torna-se um véu que acaba por ocultar a realidade económica. Já não há moinhos,
engenheiros, esparguete... mas dólares ou rublos. A ilusão de que o controlo do
dinheiro, da sua emissão, circulação e distribuição, corresponde a um controlo
profundo desse conjunto de valores de uso que é a economia, está a instalar-se.
Daí os retrocessos.
O dinheiro é
muitas vezes contestado, mas o que está em causa não é tanto a sua existência
como a parcimónia com que entra na carteira. Quanto mais é criticado, mais é
exigido. Se quisermos quebrar o bezerro de ouro e erradicar a idolatria, é
melhor termos bolsos fundos para sermos eficazes. É possível escolher entre o
vício do trabalho, o risco de assalto, os perigos da lotaria...
Apesar dos
economistas, o dinheiro é uma coisa estranha. Isso é evidente, desde que
deixemos de nos concentrar na sua inegável utilidade económica e nos
concentremos na sua utilidade humana.
Tentemos ser
ingénuos.
Como é que é
possível, por que magia infernal, que a riqueza, a possibilidade de satisfazer
necessidades, se tenha materializado no dinheiro? Se tivesse de assumir uma
forma particular para se manter visível para nós e nos recordar dela, poderia,
seguindo o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ter escolhido o pão e o vinho,
que são coisas úteis e agradáveis. Mas não! Preferiu tomar a forma de ouro e
prata, dois dos metais mais raros e inúteis. Pior ainda, hoje em dia, o
dinheiro só está disponível para o comum dos mortais sob a forma de papel.
A única
necessidade do dinheiro é a troca. Desaparecerá com o desaparecimento da troca.
É monstruoso
querer abolir o dinheiro preservando a troca ou querer que a troca seja
finalmente igual. No início do século XIX, os socialistas ricardianos propunham
que as mercadorias fossem trocadas directamente em função da quantidade de
trabalho consagrada à sua produção. Em 1919, os bolcheviques Bukharin e
Preobrazhensky propagavam ilusões semelhantes: 46
"Desde o
início da Revolução Socialista, o dinheiro perdeu gradualmente o seu valor.
Todas as empresas nacionalizadas, como a empresa de um único grande patrão...
têm um fundo comum e já não precisam de comprar ou vender em troca de dinheiro.
A troca sem dinheiro é assim gradualmente introduzida. O dinheiro foi assim
retirado do domínio da economia popular. Mesmo para os camponeses, o dinheiro
perdeu lentamente o seu valor e foi substituído pela troca directa... A
abolição do dinheiro foi ainda mais incentivada pela emissão de grandes
quantidades de papel-moeda pelo Estado... Mas o golpe decisivo será dado ao
dinheiro pela introdução de livros de trabalho e pelo pagamento dos operários
por meio de produtos." (O ABC do Comunismo).
Houve tentativas de desmonetizar, pelo menos parcialmente, a economia. As transacções entre empresas foram traduzidas apenas em operações contabilísticas. Não deu em nada, nem muito famoso, nem muito comunista.
SAUDAÇÕES
No mundo
comunista, as mercadorias circularão sem que o dinheiro tenha de circular no
sentido inverso. O equilíbrio não será estabelecido ao nível da família ou da
empresa: o que sai em mercadorias corresponde à entrada de dinheiro e
vice-versa. Será estabelecido directamente a nível mundial e será medido directamente
em termos de satisfação das necessidades.
Evidentemente, o
fim da troca não significa que as crianças deixarão de poder trocar berlindes e
quadros, ou elogios amorosos. As trocas limitadas continuarão em pequena
escala. Especialmente no início, complementarão a rede de distribuição geral e
remediarão a sua rigidez.
A melhor
indicação de que o segredo do dinheiro não reside na sua natureza material é o
facto de os padrões monetários terem mudado com o tempo e o lugar. O sal e o
gado podem ter desempenhado esse papel. Os metais preciosos, e o ouro em particular,
acabaram por ser seleccionados com base na sua própria inutilidade. Em tempo de
escassez, o ouro não pode ser retirado da circulação para ser consumido. Quando
o ouro é retirado da circulação para ser entesourado ou utilizado como
ornamento, é com base no seu valor económico. As suas qualidades, e sobretudo a
sua raridade particular, fizeram dele a mercadoria preferida num certo nível de
desenvolvimento económico. Nos primeiros tempos do sistema mercantil, o sal era
utilizado como moeda devido à sua utilidade e ao facto de se encontrar
concentrado em determinados locais. Era o objecto de circulação por excelência.
Actualmente, o
dinheiro tende a desmaterializar-se. Já não é garantida pelo valor do seu meio,
mas pelo banco e pelo sistema financeiro que a controlam e manipulam. Não deixa
de ser um meio de troca, mas torna-se sobretudo um instrumento ao serviço do
capital. Isto permite recuperá-lo e utilizá-lo da melhor forma possível para
financiar investimentos, para dar crédito ao capital.
Destruir o
dinheiro não significa queimar as notas, confiscar ou dissolver o ouro. Estas
medidas podem ser necessárias por razões simbólicas e psicológicas, para
desorganizar o sistema. 47
Mas não são
suficientes. O dinheiro reaparecerá sob outras formas se a necessidade e a
possibilidade de dinheiro persistirem. O trigo, as sardinhas enlatadas, o
açúcar... podem tornar-se meios de troca e até de salário. "Fazes este
trabalho, dão-te dez quilos de açúcar com os quais podes comprar carne, álcool
ou um chapéu de palha". O problema é, antes de mais, a luta pela produção,
pela organização, contra a escassez. Depois, a aplicação de medidas dissuasivas
e repressivas contra aqueles que procuram aproveitar o período de conversão
para praticar o mercado negro. O ouro e outros materiais preciosos seriam
requisitados pelas autoridades revolucionárias, eventualmente para serem
trocados por armas ou alimentos com sectores não controlados.
O dinheiro é a
expressão da riqueza, mas da riqueza de mercado. Não é a satisfação directa das
necessidades, mas o meio de as satisfazer. Por conseguinte, é também a barreira
que separa os indivíduos das suas próprias necessidades.
As aspirações das pessoas são um reflexo das coisas e dos bens que as confrontam. Ter necessidades e satisfazê-las significa querer e poder comprar e consumir. Neste jogo, só podemos ser enganados. A riqueza, a verdadeira felicidade, só pode ser e deve continuar a ser uma miragem inatingível.
LEI DO VALOR
O dinheiro é
utilizado para efectuar trocas. Mas o dinheiro também significa medida. O que o
dinheiro mede na troca, o preço de uma mercadoria, tem origem fora da esfera da
troca. Como se estabelece o equilíbrio no sistema capitalista entre o que é
produzido e o que é consumido? Entre o esforço e o benefício? Como é que estas
escolhas se tornam mais racionais?
O problema está
em cada mercadoria individual. É tanto o valor de uso como o valor de troca. O
valor de uso é o benefício que é suposto trazer. O consumidor deve apreciá-lo
directamente. O valor de troca, expresso em termos de preço, corresponde à
despesa necessária para compensar esse benefício. Despesas monetárias para o
comprador, mas sobretudo e inicialmente despesas de mão de obra.
O preço de um bem
é determinado pelas forças do mercado, pela oferta e pela procura. Mas, para
além disso, refere-se ao custo de produção, que se decompõe no trabalho
imediatamente fornecido e no trabalho contido nos materiais utilizados para a
produção.
Cada mercadoria
exprime assim a necessidade de um equilíbrio entre a despesa e o ganho social,
que se reflecte na necessidade de equilíbrio financeiro das empresas e das
famílias. A necessidade de equilíbrio, mas não o equilíbrio em si! O preço de
um bem só corresponde, de forma distorcida, à quantidade de trabalho real efectivamente
despendido e mesmo à quantidade de trabalho socialmente necessário.
O equilíbrio não
se dá ao nível da mercadoria em particular, mas ao nível do sistema como um
todo. E aqui este equilíbrio é antes uma espécie de desequilíbrio. 48
O preço de uma
mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho que contém? Sim e não.
Sim, porque o preço tende a variar em função dos ganhos de produtividade,
porque um produto que requer o dobro do tempo de outro é susceptível de custar
o dobro, porque a massa global de trabalho determina o valor global da
mercadoria. Não, porque não podemos estabelecer uma relação absoluta e simples
entre cada mercadoria e o trabalho despendido. Devido aos caprichos do mercado.
Isto porque, se o preço de uma mercadoria fosse efectivamente determinado pelo
trabalho efectivamente despendido, quanto mais baixa fosse a produtividade,
quanto mais preguiçosos fossem os operários, mais cara seria a mercadoria! Na
realidade, quem tem preços de custo elevados é penalizado e não favorecido. Os
vencedores são aqueles que poupam nos custos de produção e na mão de obra. Isto
acontece porque a formação dos preços é afectada pela tendência para igualar as
taxas de lucro.
O que é feito da
lei do valor trabalho, herdada dos economistas clássicos, que afirma que o
valor das coisas económicas é determinado pelo trabalho? Esta lei é uma lei
geral que determina a evolução geral do sistema através da formação dos preços.
O capital desenvolve-se e distribui-se em função das economias de tempo de
trabalho que pode realizar. Tal como um rio, mesmo que o seu caminho não seja o
mais curto, mesmo que se perca em becos sem saída, mesmo que faça desvios,
acaba por seguir cegamente o seu declive natural, eliminando os obstáculos à
medida que avança. A expectativa de lucro que leva o capitalista a investir
aqui ou ali, a escolher esta técnica ou aquela maquinaria, longe de contrariar
esta tendência, é apenas o caminho tortuoso através do qual ela se impõe a ele.
No fim de contas,
a lei do valor exprime não tanto a ligação entre a mercadoria e o seu preço,
por um lado, e o trabalho criador, por outro, mas a sua dissociação. Quando o
trabalho se torna valor, isso significa que a obra de arte se liberta do
trabalho e do trabalhador e flutua no espaço económico de acordo com as suas
próprias regras. Todas as mercadorias, agora autónomas e concorrentes, acabam
por se medir umas às outras através da troca e do dinheiro. A lei do valor,
cujo desenvolvimento está ligado à troca e ao seu domínio sobre a actividade
humana, desaparece com o comunismo.
O que é que
acontece com o equilíbrio global entre despesas e receitas do sistema? Este
equilíbrio é um desequilíbrio. Do ponto de vista do valor, a sociedade produz
mais do que gasta. O excedente acumula-se. Sem ele, o capital não seria
capital. Marx mostrou que existe uma mercadoria especial que tem o dom de
produzir mais valor do que a sua produção exige. Isto explica porque é que o
capital em movimento aumenta em vez de permanecer o mesmo de transação para
transação.
E quanto ao equilíbrio global entre despesas e receitas dentro do sistema? Este equilíbrio é um desequilíbrio. Do ponto de vista do valor, a sociedade produz mais do que gasta. O excedente acumula-se. Sem este capital não haveria capital. Marx mostrou que havia uma mercadoria especial que tinha o dom de produzir mais valor do que a sua produção exigia. Isto explica por que o capital em movimento aumenta em vez de permanecer igual a si mesmo de transação para transação. Essa mercadoria é a força de trabalho, o seu preço inferior ao valor que ela gera é o salário. A diferença é o valor acrescentado. O operário não vende o seu trabalho no que é falsamente chamado de “mercado de trabalho”, mas sim a sua capacidade de trabalhar, parte do seu tempo. O trabalho não é uma mercadoria, não tem valor. É a base do valor. Ela própria, diz Engels, não tem mais valor do que a gravidade tem o peso. 49
Quando o capital
sai da esfera da circulação para entrar no covil do capitalista, ele aumenta a
partir do trabalho não remunerado do operário sem que a lei do valor seja
desprezada, sem que o lucro surja de qualquer fraude ou distorção das regras de
troca. Cada capital-mercadoria pode ser decomposto em capital constante, que
corresponde à depreciação dos materiais e máquinas utilizadas, em capital
variável, que corresponde aos salários, ou em mais-valia ou valor acrescentado,
que corresponde ao trabalho não remunerado. O dinheiro carrega uma profunda
mistificação. Esconde a natureza original da despesa que verdadeiramente gerou
o produto. Por trás da riqueza, mesmo da riqueza comercial, está a natureza e o
esforço humano. O dinheiro parece produzir juros, para torná-los pequenos. A
única fonte de valor, por mais comercializável que seja, e melhor ainda,
precisamente porque é comercializável, é o trabalho.
É claro que os economistas mais servis atribuem um pequeno local de trabalho como fonte de riqueza, juntamente com o capital e a terra. Contudo, a mistificação não é sequer parcialmente abolida. Não é para trabalhar como tal que se concede esse favor, é para trabalhar como contrapartida pelo salário. Não é o dinheiro que é trazido de volta ao trabalho, mas, pelo contrário, o trabalho que é trazido de volta ao dinheiro através dos salários.
GRATUITIDADE
Do desaparecimento
do dinheiro na sociedade comunista somos muitas vezes tentados a concluir que
já não haverá problemas de custos para resolver, que já não será necessário
estimar o valor das coisas.
Este é um erro
fundamental.
Uma coisa é que
qualquer bem ou serviço seja gratuito. Que não custa nada é outra. A ilusão vem
directamente do funcionamento do sistema de mercado. Somos levados a equiparar
custo e pagamento. Vemos apenas o pagamento, o gasto monetário. Esquecemos o
dispêndio de esforços e materiais que está na origem do produto.
Tanto para o
capitalismo como para o comunismo, a gratuidade não significa ausência de
despesas. A diferença entre a gratuidade comunista e a gratuidade capitalista é
que esta última é apenas uma falsa gratuidade. O pagamento não é inexistente, é
simplesmente diferido ou transferido. O facto de a escola e a publicidade serem
gratuitas não significa que estejam fora do sistema de mercado e que o
consumidor não seja, em última análise, o pagador. Mercadoria gratuita é muito
perversa. Significa consumo imposto ou semi-imposto, dificuldade em escolher e
recusar o que lhe é “oferecido”.
Na nova sociedade o custo das coisas deve ser conhecido e, se necessário, calculado. Não por mania contábil ou para evitar enganos que se tornaram inúteis. Isto implicará ter em conta o gasto causado para saber se é justificado e reduzi-lo se possível. É necessário avaliar o impacto positivo ou negativo que a satisfação de uma necessidade ou a implementação de um projecto provoca no ambiente humano e natural. 50
Será que uma
agulha ou um carro justificam o tempo e o esforço dedicados à sua produção e as
desvantagens associadas à sua utilização? É melhor montar uma unidade de
produção neste ou naquele local? Essa produção justifica a redução dos stocks
limitados de minerais? Não podemos deixar isso ao acaso ou à intuição. É fácil
compreender que tudo isso envolve estimativa, cálculo e previsão.
Se mantivermos a
noção de custo tão carregada de economia é porque não se trata simplesmente de
uma questão de escolha e medição, de um processo intelectual, mas de gasto
físico. Qualquer que seja o nível técnico alcançado, haverá actividades
dispendiosas e tarefas mais difíceis que outras. Que tudo se tornasse fácil e
indiferente seria algo triste e mais estranho a uma sociedade comunista do que
a outra.
A mercadoria tem
dupla face: valor de uso e valor de troca. Eles parecem cair em duas ordens
irredutíveis.
Valor de uso, a utilidade
é qualitativa. O usuário compara e avalia o que mais lhe agrada, um avião ou
uma laranja. A escolha não pode ser independente da situação e das necessidades
concretas.
O valor de troca
é quantitativo. As mercadorias são todas avaliadas e encomendadas de forma objectiva
e de acordo com um único padrão, seja um avião ou uma laranja.
O comunismo não é
tanto um mundo onde um valor de uso é perpetuado, finalmente libertado do valor
de troca que o parasita, mas um mundo onde o valor de troca é negado e se torna
novamente valor de uso. Vantagem e desvantagem estão na mesma ordem de coisas e
não estão mais unidas e separadas costas com costas. O valor deixa de ser valor
para reaparecer como uma despesa concreta e diversificada. O trabalho deixa de
ser fundamento e garantia de valor. Já não existe um padrão único que permita
comparações quantitativas entre tudo, excepto despesas concretas e trabalhos,
diferentemente difíceis, que devem ser levados em consideração. Ao deixar de
ser o suporte do valor e ser unificado pelo processo de troca, o trabalho deixa
de ser TRABALHO. “A economia burguesa é uma economia dual. O indivíduo burguês
não é um homem, mas uma casa de negócios. Queremos destruir todas as casas
comerciais. Queremos eliminar a economia dupla e criar uma economia única, que
a história já conhecia na época em que o troglodita saiu para colher tantos
cocos quantos tivesse companheiros na caverna, tendo as mãos como único
instrumento.” (Bordiga, Propriedade e Capital)
Haverá de graça
porque o “presente” substituirá a venda. Quem realiza esta ou aquela tarefa com
o objectivo de se satisfazer directamente ou também de ser útil aos outros
pagará directamente pelo esforço realizado.
Isso é muito
novo? Não, pois ainda hoje ninguém pensaria em cobrar o preço da saliva por uma
discussão. Numa conversa não trocamos um certo tempo de fala ou uma certa quantidade
de decibéis, esforçamo-nos para dizer o que temos a dizer porque acreditamos
que temos que dizer. O orador ou ouvinte não lhe deve nada em troca da sua
atenção. A esperança de uma resposta, o risco de enfrentar a incompreensão, o silêncio, a
mentira fazem parte do jogo, não são a expectativa de pagamento nem o risco do
mercado. Na vida quotidiana, a fala não é uma mercadoria, falar não é trabalho.
51
O que ainda se aplica hoje à fala, quando não é gravada e distribuída como mercadoria, aplicar-se-á amanhã a toda a produção. A estimativa de custos não estará mais separada do esforço a ser realizado. O pré-requisito, o primeiro passo do cálculo será o impulso que conduzirá a esta ou aquela actividade. Um livro ou um sapato serão “presenteados” como as palavras podem ser hoje. A dádiva implica reciprocidade até certo ponto, a palavra pede a resposta, mas este não é mais o processo anónimo e antagónico da troca.
TEMPOS DE
TRABALHO
Tendo o
economista oficial da burguesia inglesa Ricardo defendido no início do século
XIX que o valor de um produto dependia da quantidade de trabalho necessária à
sua produção, não faltaram pessoas para exigir que o operário recebesse a
totalidade do valor do seu produto. O lucro foi moralmente condenado como
roubo. O problema do socialismo é o da remuneração, da remuneração justa.
Um comunista
americano F. Bray sobe mais alto. Ele vê na troca igualitária não a solução,
mas um meio de preparar a solução que é a comunidade de bens. É necessário um
período de transição em que ninguém que ganhe mais do que o valor do seu
trabalho possa ficar muito rico. Todos receberão nas lojas o equivalente em
vários objectos ao que produziram de outra forma. O equilíbrio será mantido
entre produção e consumo.
Em “Miséria da
Filosofia”, Marx homenageia Bray, mas também o critica. Ou mesmo a troca
igualitária leva de volta ao capitalismo: “Sr. Bray não vê que esta relação
igualitária, este ideal correctivo, que ele gostaria de aplicar ao mundo, é em
si apenas um reflexo do mundo actual, e que é, portanto, completamente
impossível reconstituir a sociedade numa que seja apenas uma sociedade
embelezada. À medida que a sombra volta a ser corpo, percebemos que esse corpo,
longe de ser a tão sonhada transfiguração, é o corpo actual da sociedade. Ou
terminamos com a troca: “O que hoje é o resultado do capital e da competição
dos operários entre si, será amanhã, se eliminarmos a relação do trabalho com o
capital, o facto de uma convenção baseada na razão da soma de forças produtivas
à soma das necessidades existentes. Mas tal convenção é a condenação da troca
individual..."
Sem querer
recorrer à troca, certos revolucionários, Marx e Engels em primeiro lugar,
compreenderam a necessidade imperiosa de resolver o problema dos custos e da
sua contabilização na sociedade futura. Eles procuraram um padrão para estimar
e comparar despesas.
Regularmente o
padrão proposto tem sido a quantidade de trabalho. Esta quantidade é medida
pelo tempo, às vezes corrigida pela intensidade. Qualquer investimento da
empresa pode assim ser reduzido a um determinado gasto de tempo. A laranja e o
avião já não correspondem a uma determinada quantidade de moeda, mas a um
determinado número de horas de trabalho. Apesar das suas diferenças de
natureza, eles podem ser comparados na mesma escala. 52
Essa maneira de
fazer as coisas parece lógica. O que pode haver de comum entre os diferentes
bens senão o trabalho que eles contêm? Foi aqui que Marx começou, em O Capital,
a descobrir o trabalho como fonte de valor. Que outro padrão encontrar?
Marx e Engels
adoptaram esta concepção sem se prenderem a detalhes práticos. Outros
procuraram desenvolvê-lo mais detalhadamente, baseando-o numa contabilização
precisa das horas de trabalho que permite avaliar o valor de cada bem.
Pela nossa parte,
não mencionámos um “além do trabalho” e depois apressámo-nos miseravelmente a
medi-lo através do tempo de trabalho quando se trata de enfrentar as duras
realidades práticas.
A teoria de medir
bens ou prever investimentos pela quantidade de trabalho é falsa. Deve ser
radicalmente rejeitada. Isto não é uma disputa sobre método, mas um problema
fundamental que diz respeito à própria natureza do comunismo.
A medição por
trabalho permanece economicista. Ela quer o fim da lei do valor, mas não vê
tudo o que isso implica. A sociedade capitalista tende a perpetuar-se ao mesmo
tempo que se livra da divisão de classes e do valor de troca!
Queríamos
resolver um problema com dois aspectos. A primeira é a da remuneração dos operários.
A segunda, mais geral, diz respeito à distribuição das forças produtivas no
campo social.
Como distribuir
bens de consumo sem dinheiro? Como podemos recompensar de forma justa o operário
com base no esforço realizado?
Sobre este
assunto, Marx retoma o ponto de vista de Bray em “A Crítica ao Programa de
Gotha”. Isso livra-o dos seus lados irritantes. Num período transitório em que
o princípio “a cada um segundo as suas necessidades” ainda não pode ser
aplicado, a remuneração dependerá do trabalho prestado. Dependerá e não será
igual porque parte do que este trabalho representa terá que ir para um fundo
social para ser destinado à produção de bens produtivos, à ajuda aos
desamparados... O operário não pode tocar no produto integrante do seu trabalho.
Além disso, os vouchers que atestam a quantidade de trabalho prestado pelo operário
que não circula na bolsa são cortados pela raiz.
Isso significa
que precisamos manter contas. “...o trabalho, para servir de medida, deve ser
calculado em função da duração ou da intensidade, caso contrário deixaria de ser
um padrão de medida.” (Crítica...)
Para Marx, o
problema da remuneração é incidental e limitado à fase inferior do comunismo.
Pelo contrário, a questão da distribuição das forças produtivas é fundamental e
permanente.
Numa sociedade
comunista “o capital monetário desaparece primeiro, ao mesmo tempo que a farsa
das transacções (económicas) que se segue. O problema reduz-se simplesmente à
necessidade de a sociedade calcular antecipadamente a quantidade de trabalho,
de meios de produção e de meios de subsistência que pode, sem o menor prejuízo,
atribuir a empresas (a construção de caminhos-de-ferro, por exemplo) que não
fornecem nem meios de produção, nem meios de subsistência, nem efeito útil de
qualquer espécie, por um longo período, um ano ou mais, ao mesmo tempo que
exige que trabalho e meios de produção e subsistência sejam retirados da
produção total”. (Capital, II) 53
Calcular a
quantidade de trabalho necessário não significa, contudo, que a lei do valor
possa ser perpetuada enquanto o capital monetário desaparece. Na verdade, a
quantidade de trabalho é distribuída de acordo com as necessidades. Em “Miséria
da Filosofia”, Marx escreve: “Numa sociedade futura, onde o antagonismo de
classes tivesse cessado, o uso não seria mais determinado pelo tempo mínimo de produção;
mas o tempo de produção que seria dedicado a um objecto seria determinado pelo
seu grau de utilidade.
A lei do valor é
apenas uma expressão particular e mercantil de uma regra mais geral que se
aplica a toda a sociedade: "na realidade, nenhum tipo de sociedade pode
impedir que a produção seja regulada, de uma forma ou de outra, pelo tempo de
trabalho disponível da empresa . Mas, enquanto esta fixação do horário de
trabalho não se realizar sob o controlo consciente da sociedade - o que só pode
ser feito sob o regime da propriedade comum - mas através do movimento dos
preços das mercadorias, a tese apresentada com tanta precisão em Les Annales
Franco-Allemandes permanece inteiramente válida.” Isto é o que Marx escreveu a
Engels em 8 de Janeiro de 1868. Qual foi a tese apresentada por este último?
“Eu disse já em 1844 (...) que esta avaliação do efeito útil e do dispêndio de
trabalho é tudo o que, numa sociedade comunista, poderia sobreviver do conceito
de valor da economia política. Mas estabelecer esta tese cientificamente, como
vemos, só se tornou possível graças ao Capital de Marx.” (Anti-Dühring)
O que Marx e
Engels nos dizem sobre a sociedade comunista – e vemos que falam sobre isso! —
decorre directamente da sua análise da sociedade capitalista. O seu design
atrai as suas qualidades, mas também os seus defeitos.
As qualidades são
para mostrar que os problemas de distribuição do consumo e remuneração do
trabalho não são fundamentais. É o modo de produção que determina o modo de
distribuição. Afirmar contra as boas almas que o operário não poderá receber a
totalidade do produto, do seu trabalho, amplia directamente uma análise do
capitalismo onde mostramos que o valor de uma mercadoria abrange, além do
salário e da mais-valia , o capital constante. Devemos produzir os instrumentos
de produção. O capitalismo e o comunismo são sociedades equipadas, ao contrário
das sociedades anteriores.
O capitalismo e o
comunismo também estão a mudar as sociedades.
Não podemos
contar com experiências imemoriais. Nem tudo é resolvido antecipadamente pelo
uso passado, possivelmente corrigido pelo bom senso. A estimativa de custos não
é tanto um problema de contabilidade posterior, mas sim um problema de
previsão. Neste ponto fundamental haverá um certo retrocesso entre os
comunistas depois de Marx. Alguns conselheiros reduzirão a questão à fotografia
mais precisa possível da realidade e dos movimentos económicos.
A passagem
seguinte mostra como, para Marx, a sociedade actual e a sociedade futura devem
resolver o MESMO problema, a primeira graças ao capital monetário, o crédito, a
segunda, prescindindo dele. “... operações bastante extensas e de longo prazo
resultam em adiantamentos de capital monetário mais importante, por mais tempo.
54
Nessas esferas, a
produção depende, portanto, dos limites dentro dos quais o capitalista
individual possui capital monetário. Esta barreira é quebrada graças ao crédito
e ao sistema associativo que o acompanha, por exemplo, as sociedades por acções.
As perturbações no mercado da prata irão, consequentemente, paralisar tais
negócios, enquanto estas, por sua vez, causarão perturbações no mercado da
prata. Com base na produção socializada, é necessário determinar em que escala
estas operações, que durante um tempo bastante longo extraem força de trabalho
e meios de produção sem proporcionar durante esse tempo qualquer efeito útil
sob a forma de produto, poderão ser realizadas sem prejudicar os ramos de
produção que não se limitam, continuamente ou várias vezes ao ano, à extracção
de força de trabalho e meios de produção, mas também fornecem subsistência e
meios de produção. Na produção socializada, tal como na produção capitalista,
os operários em sectores com períodos de trabalho relativamente curtos apenas
adquirirão produtos, sem fornecer outros produtos em troca, por períodos de
tempo relativamente curtos; por outro lado, em sectores com longos períodos de
trabalho, levarão produtos continuamente durante um período bastante longo,
antes de devolverem algo. Esta circunstância resulta, portanto, das condições
objectivas do processo de trabalho considerado, e não da sua forma social.
Marx e Engels
colocam o comunismo demasiado como uma extensão do capitalismo. Esta é a falha
deles.
Mantêm a
separação burguesa entre a esfera da produção e a esfera do consumo. O
Manifesto já distingue entre propriedade colectiva dos meios de produção e
apropriação pessoal de bens de consumo. Juramos aí que só queremos socializar o
que já é propriedade comum e social: os instrumentos de produção capitalista.
Na Crítica ao Programa de Gotha continuamos a opor-nos ao consumo individual e
familiar proporcional ao tempo de trabalho prestado e ao consumo produtivo e
social. Não nos detemos em como este último será gerido.
Há confusão entre
o método de distribuição dos produtos e a sua natureza como “bens de consumo”
ou instrumentos de produção. De um lado estão os indivíduos e do outro a
sociedade concebida de forma abstracta. Existem indivíduos isolados, em grupos,
em comunidades que se enfrentam e se organizam.
Na realidade,
quando desaparece o Estado ou o líder empresarial como representante do
“interesse geral”, desaparece a Sociedade que se opõe ao indivíduo. Só existem
homens isolados, em grupos, em comunidades que se organizam desta ou daquela
forma. Um indivíduo pode receber uma máquina-ferramenta e um comité de bairro
algumas toneladas de batatas.
A separação entre
a força de trabalho, os indivíduos separados, por um lado, e o capital social e
colectivo, por outro, desaparece. A necessidade de remuneração durante um período
de transição não pode ser invocada para a manter. Pelo contrário, é a defesa
desta necessidade que é em Bray ou em Marx o reflexo dos limites de uma época,
da imaturidade do comunismo.
Apesar das
observações críticas e relevantes, Marx continua dominado pelo fetichismo do
tempo. Ou ele faz disso um instrumento de medição económico, ou se o torna um
instrumento de medição extra-económico: “A verdadeira riqueza significa, de
facto, o desenvolvimento da força produtiva de todos os indivíduos. A partir daí,
não é mais o tempo de trabalho, mas o tempo disponível que mede a riqueza.”
(Grundrisse)
O tempo de
trabalho é a base do tempo livre. O reino da liberdade só pode basear-se no
reino da necessidade. 55
O erro é não continuar a ver necessidade, sacrifício, produção na nova sociedade. O erro é juntar tudo isto, afixar o rótulo “tempo de trabalho” a ser reduzido se possível e opor-lhe geralmente ao tempo livre. Marx diz na Crítica do Programa de Gotha que o trabalho um dia se tornará a necessidade primária. A fórmula não deixou de ser explorada de forma odiosa pelos líderes estalinistas. De qualquer forma, há uma contradição. O trabalho na sociedade comunista torna-se uma despesa ou uma satisfação? Devemos, portanto, reduzir o tempo de trabalho ao mínimo ou, pelo contrário, produzir o máximo de trabalho possível para satisfazer a procura? Somente na sociedade capitalista o trabalho pode aparecer como a necessidade primária, como o único meio de satisfazer os outros. Só aí ele pode ser odiado e exigido ao mesmo tempo.
FANTÁSTICO
É uma coisa
fantástica de medir pelo tempo de trabalho.
Querer medir
qualquer actividade produtiva pelo tempo que ela requer é querer medir e
comparar todos os líquidos apenas pelo seu volume. É claro que qualquer actividade
leva um certo tempo, assim como qualquer líquido ocupa um certo volume. Isto
não é sem importância. Uma garrafa de um litro de água também pode conter um
litro de vinho. Mas quem se atreveria a deduzir disto que uma garrafa de água
vale em todas as circunstâncias uma garrafa de vinho, álcool, xarope de
granadina ou ácido clorídrico. Isto só pode ser válido do ponto de vista
restrito de quem os armazena.
O tempo é a única
linguagem objectiva em que o esforço criativo do servo ou do operário pode ser
expresso, do ponto de vista do explorador. Significa medição externa, controle
e antagonismo. A duração e a intensidade da actividade superam a sua natureza e
o seu particular árduo que tende a tornar-se indiferente. A subjectividade do
que é vivenciado é sacrificada em benefício da objectividade da medição. A
criação e a vida estão sujeitas à produção e à repetição.
A medição pelo
tempo é anterior ao sistema de mercado. Em vez de fornecer esta ou aquela
quantidade deste ou daquele produto, o explorado coloca uma certa parte do seu
tempo à disposição do explorador. Daí as tarefas dos tempos feudais. O processo
é notavelmente desenvolvido com o sistema Inca. Aqui está um grande império
agrário unificado por uma burocracia onde o dinheiro é desconhecido.
Os serviços são
prestados sob a forma de dias de trabalho passados nesta ou naquela área. Isto requer uma
contabilidade cuidadosa.
Nas comunidades
camponesas ou aldeãs, um faz o dia da colheita para o outro e vice-versa. O
camponês e o ferreiro trocam os seus produtos com base no tempo de produção. 56
A actividade da
criança é avaliada como uma proporção da actividade do adulto. Podemos perceber
nessas práticas a origem do uso do tempo como padrão universal e até mesmo da
submissão do planeta à economia comercial. Mas apenas a origem. Com estas
práticas marginais trata-se mais de ajuda mútua do que de troca. As actividades
medidas são da mesma natureza ou praticamente comparáveis. A medição por tempo
não é independente do conteúdo medido.
Foi com o duplo
desenvolvimento do sistema mercantil e da divisão do trabalho que a medição
pelo tempo começou a adquirir o seu carácter fantástico. Torna-se desvinculado
do conteúdo da actividade à medida que esta se diversifica.
O movimento
acentua-se quando a troca entra na esfera da produção. A medição por tempo está
a desenvolver-se em linha com a tendência de economia de tempo de trabalho.
Você tem que produzir o máximo possível no menor tempo possível. A
possibilidade de medição pelo tempo não é independente da compressão da actividade
humana no menor volume temporal possível. Não só o trabalho produz a
mercadoria, mas a mercadoria produz trabalho através do despotismo fabril.
Ao fazê-lo, a
medição pelo tempo já não aparece na sua ingenuidade, fica velada atrás do
dinheiro e é justificada pelas necessidades financeiras. Os ideólogos
burgueses, especialmente aqueles que afirmam ser S. Marx, projectam este
fetichismo do tempo e da produção em toda a história humana. Nada mais é do que
uma luta constante para ganhar tempo. Se os selvagens permaneceram selvagens é
porque dominados pela sua baixa produtividade não encontraram o tempo
necessário para acumular excedentes. O tempo é escasso, devemos espremer a actividade
mais densa possível.
Longe de pensar
apenas em poupar tempo, os selvagens preferem concentrar-se nos meios mais eficazes
de desperdiçá-lo. Frequentemente, eles têm um carácter indiferente. Além de
algumas ferramentas de caça, eles pouco se preocupam em deixar de lado as suas
propriedades.
No século XVIII,
Adam Smith renunciou a basear o valor no tempo de trabalho no que diz respeito
aos tempos modernos. Mas ele vê esse valor do trabalho em ação nessas
sociedades primitivas, onde as coisas ainda não se complicaram.
Ele imagina que
os caçadores querem trocar os seus diferentes jogos. Com que base poderão
fazê-lo senão com base no tempo de trabalho, com base no tempo necessário para
capturar os animais? Isto pressupõe uma mentalidade económica e de troca onde
reinam as regras de partilha e os laços recíprocos.
Admitamos, porém,
que a troca já exista ou que os nossos selvagens tenham decidido gastar
racionalmente as suas forças para adquirir carne ao menor custo. Eles
construirão o seu sistema com base no tempo de trabalho necessário?
Existem prazeres
e riscos na caça sobre os quais o tempo gasto nada diz. Qual é o valor de uma
comparação entre o leão e o antílope com base na duração da caçada,
independentemente da diferença de risco? Algumas vezes a caça pode ser mais
lenta mas mais segura, menos cansativa, menos perigosa, menos ou mais cruel. 57
Será que eles
persistiriam em praticar esse método de medição, não é mesmo? É muito difícil
avaliar com precisão o tempo que leva para matar este ou aquele animal. Ao
caçar sistematicamente a carne mais rentável deste ponto de vista restrito,
corremos o risco de alterar rapidamente a situação e o tempo de caça
necessário. De qualquer forma, muitas vezes vamos caçar veados e trazemos
coelhos. Não adianta programar o que não pode ser programado.
Iremos dizer-nos
que isto já não se aplica aos nossos tempos civilizados e educados, que a caça
é uma actividade produtiva muito particular? Devemos desiludir-nos. É a omnipresença
da troca que nos esconde a realidade. A medição do tempo de trabalho não
ultrapassa os perigos, os riscos humanos e o esgotamento de recursos. Estes
problemas não são específicos dos selvagens, mas de todas as sociedades.
Reprimidas pela lógica do capital, elas ressurgem com força.
A medição por
tempo leva em conta apenas indirectamente as repercussões sobre o meio ambiente
e a dificuldade da actividade. Podemos utilizá-lo com o comunismo, traduzindo
para a sua linguagem a modificação ou destruição de uma paisagem, o esgotamento
de uma mina, a produção de oxigénio de uma floresta? As vantagens ou
desvantagens adicionais de uma produção seriam estimadas pelo tempo de trabalho
virtualmente poupado ou virtualmente gasto. É ir além do capitalismo no
absurdo, querendo aberta e conscientemente reduzir valores de uso, qualidades a
valores de trabalho. Como avaliar o valor de uma paisagem, devemos considerar
os gastos necessários para reconstruí-la cuidadosamente? A esse preço, não
seria mais lucrativo muita coisa.
Para estimar o
valor diferente de dois períodos iguais de trabalho cujos riscos ou dificuldades
são diferentes, devemos compará-los na mesma escala? Uma hora de alvenaria
custaria tanto quanto uma hora e meia de carpintaria. Ou estimamos que a
diferença corresponde ao dispêndio de tempo necessário para cuidar do pedreiro,
lavar a sua roupa, etc., ou desistimos de reduzir tudo a um dispêndio de tempo
de trabalho, mas então como estabelecer os coeficientes que expressam as
diferenças de valor ou dificuldade que existam entre as obras. Além disso, por
que querer estabelecer coeficientes objectivos quando essas diferenças dependem
das condições e do ritmo da actividade e do gosto dos participantes?
Deixe os operários
enlouquecerem e os defensores da medição do tempo ou da remuneração baseada nas
horas de trabalho correm o risco de se verem sobrecarregados. Assim que a
actividade deixar de ser comprimida, mudará a sua natureza e expandir-se-á. A
quantidade e o carácter da produção não podem mais ser avaliados com base na
duração do trabalho consumido. Quem fica pouco tempo ainda produzirá o
suficiente, quem passa o dia ali fará pouco. Se a remuneração fosse baseada no
tempo trabalhado, teria de exigir guardas sérios ou tornar-se-ia rapidamente um
incentivo à preguiça.
Que os operários
concordem em garantir uma determinada produção ou dedicar um certo número de
horas por dia às tarefas produtivas é uma questão de organização prática que
não está directamente ligada à determinação do custo daquilo que produzem. Numa
fábrica podemos gastar o dobro do tempo que noutra para fabricar objectos cujo
custo será o mesmo. 58
Certamente
podemos falar da distribuição social do tempo de trabalho disponível para a
comunidade. Mas não devemos esquecer que o tempo não é um material que possa
ser distribuído ao acaso. São homens que irão para este ou aquele lugar,
cuidarão desta ou daquela tarefa. A partir do momento em que o tempo disponível
não for extraordinariamente escasso e destinado à satisfação de necessidades
absolutamente necessárias, haverá tarefas mais urgentes que outras, homens com
mais pressa que outros.
Do capital
devemos dissociar o preço, o gasto da força de trabalho e o que ela traz, o
trabalho que não tem valor. Esta dissociação perde o sentido com o comunismo.
Não podemos mais separar força de trabalho e trabalho, o homem e a sua actividade.
Isto significa
antes de mais nada que não haja mais valor acrescentado, mesmo que seja
apropriado para a comunidade, obtemos uma nova forma de excedente social. Não
podemos mais falar de acumulação, nem de expansão que não seja em magnitude
física. Falar de acumulação socialista é absurdo, mesmo que a certa altura
produzamos mais aço ou bananas do que antes, mesmo que dediquemos mais tempo
social à produção. Esses movimentos não se traduzem mais em valor ou mesmo em
tempo gasto.
Isto significa
então que o trabalho que não tem valor no capitalismo adquire valor no
comunismo. Este valor que ele adquire não é moral nem comercial. Não significa
elogiar o trabalho mas, pelo contrário, expressar a sua superação.
O trabalho, fonte
de valor, é invariante. Nós o salvamos, mas a sua identidade não está em causa.
Com o comunismo, esta ou aquela actividade já não se distingue da dor vivida
pelos homens que a praticam. Nem todo o trabalho tem o mesmo custo humano.
Trata-se de desenvolver os mais baratos.
Na sociedade
capitalista, se deixarmos o ponto de vista do capital para nos concentrarmos no
do operário, o trabalho também tem um custo. Esta posição é preferível a esta
ou aquela outra. À noite sentimos o seu cansaço ou a sua irritação. Mas, em
última análise, as diferenças são pequenas. O trabalho é sempre considerado
mais ou menos tempo perdido. Há pouco esforço para calcular o tédio ou a
deterioração da saúde. Para o operário o preço de toda essa merda é o salário.
Sabemos que isto é uma mistificação e que o salário não é determinado pelo
esforço realizado ou pelo tédio vivido.
A superioridade do comunismo é não estar satisfeito com a satisfação das necessidades de “consumo”. Aborda a transformação das actividades produtivas, se quisermos condições de trabalho. A escolha dos investimentos não é feita principalmente com base na economia de tempo de trabalho, ainda que a rapidez de execução possibilitada possa desempenhar um papel. Ao produzir as condições em que a actividade acontecerá, trata-se de privilegiar as mais agradáveis. Determinar as condições da actividade não significa determinar a actividade, o comportamento dos próprios produtores. 59
O produtor
permanece no controle da sua acção, mas age sob certas condições, de acordo com
certas restricções sobre as quais podemos agir.
A produção pelos
homens de instrumentos e do quadro de produção permite esta transformação da actividade
humana. O desenvolvimento da tecnologia pode caminhar numa direcção mais ou
menos favorável aos produtores. Este ou aquele tipo de máquina ou conjunto de
máquinas permite que quem a utiliza se canse menos, fique menos dependente de
um ritmo de produção. Podemos desenvolver sistematicamente as características
que permitem aos homens serem tão livres quanto possível no processo de
produção.
Que ninguém nos
diga que os gostos pessoais e a subjectividade nos impedem de objectivar
qualquer escolha. Existem constantes gerais. Então não afirmamos que os
critérios devam ter um âmbito universal. Eles irão variar de acordo com os tempos
e situações. Os homens se consultarão para determinar o que é melhor. As
diferenças de gosto e o desejo de experimentar podem levar ao desenvolvimento
de caminhos diferentes baseados num objectivo semelhante.
A estimativa de custos não pode ser reduzida à necessidade de equilibrar “receitas e despesas”. O equilíbrio deve ser concebido como um equilíbrio dinâmico. A partir das condições deixadas pelo capitalismo, trata-se de orientar um determinado tipo de desenvolvimento. Será justificado o custo incorrido para construir tal unidade produtiva, tal ambiente de vida? A automação de tal unidade de produção justifica os esforços necessários para fabricar máquinas automáticas? A lógica da economia do tempo de trabalho que organiza a construção das situações no mundo capitalista dá lugar a outra lógica. Lógica que não é mais externa aos homens que a implementam. A humanidade organiza e domina a construção das situações de acordo com as suas necessidades. Nesse sentido, torna-se situacionista.
ELEVADOR OU
ESCADA ?
Por trás da noção
económica de custo devemos encontrar a realidade mais quotidiana e mais banal
que ela acaba por esconder. Todos se questionam se o que estão a fazer vale a
pena ou não. O resultado esperado justifica a despesa ou o risco? Existem formas
menos dispendiosas, ou seja, mais agradáveis, de obter um resultado semelhante
ou suficientemente satisfatório?
Se esse tipo de
questão fosse da economia, só existiriam economistas ou gestores. Trata-se, na
verdade, de problemas económicos e financeiros que constituem um caso
particular e bastante bizarro de um problema mais geral.
A avaliação
espontânea e ingénua dos custos precedeu em muito o advento do capitalismo.
Subsiste ao lado da esfera económica, embora as nossas escolhas devam ter
constantemente em conta as necessidades financeiras. O que o caracteriza é que
é realizado sem desvios monetários e não se reduz a critérios temporais. 60
Em última
análise, a avaliação de custos não é prerrogativa da humanidade. O pombo que
hesita em vir bicar as sementes que lhe são oferecidas experimenta à sua
maneira. Que ele se engane sobre os riscos e vá parar na panela não muda nada.
A estimativa não exclui necessariamente erros.
A escolha da ave
é mais uma questão de instinto e hábito do que qualquer outra coisa. Com os
seres humanos passamos para outro nível.
O indivíduo que
se encontra ao pé de um edifício, que deve chegar a um determinado andar, que
pode escolher entre o elevador e as escadas, depara-se com um problema de
custos. Talvez ele passe uma hora a pensar, talvez faça a sua escolha
mecanicamente, sem sequer pensar nisso.
O problema é
simples se o reduzirmos às três soluções disponíveis: o elevador, as escadas ou
o abandono. Torna-se complicado se levarmos em consideração os elementos que
intervêm conscientemente ou não na tomada de decisões. Qual é o piso a alcançar?
Ele é mesmo conhecido? O nosso homem está com boa saúde? Velho ? Fatigado?
Pessoa perneta? Qual a altura dos degraus? A inclinação das escadas? A
velocidade e frequência do elevador?
A urgência do
processo?
A decisão tomada
não será económica. Será subjectiva, directa e vinculada a uma situação
concreta. Não é monetária. Não se trata de saber qual a solução que terá de
pagar mais, desde que o elevador não seja, por acaso, cobrável e se entenda que
em qualquer caso alguém pagou pelo seu funcionamento. A velocidade de execução
pode desempenhar um papel na escolha, pode talvez tornar-se decisiva, mas isso
não está ligado à situação. A economia de tempo prevalecerá se infelizmente nos
depararmos com um bombeiro. Talvez ele preferisse usar a sua grande escada.
Como podemos
aplicar à economia aquilo que permanece precisamente fora da esfera económica?
Este é um falso problema. O verdadeiro problema é precisamente se podemos ir
além da economia, dissolvendo-a como uma esfera separada.
Trata-se de
acabar com a economia. Isto não se tornou possível porque de repente
descobrimos que poderíamos substituir os métodos actuais por processos mais
simples e directos. Paradoxalmente, é o desenvolvimento da economia, a
socialização da produção, a formidável interdependência das empresas, o
desenvolvimento de métodos de previsão e cálculo económico que permitem esta
ruptura.
No futuro, os
princípios que nortearão as nossas escolhas serão tão simples e transparentes
como aqueles que praticamos constantemente. Isso envolverá redução de esforços,
dores e despesas. Este não será o objectivo em si da vida social, mas uma
tendência dentro e dependente dos projectos implementados. Talvez nos
imponhamos tarefas muito difíceis e muito perigosas, mas esforçar-nos-emos por
torná-las mais fáceis. Uma equipa de montanhistas pode enfrentar um cume
difícil sem concordar em fazê-lo com as mãos nuas. Princípios simples nem
sempre significam métodos e soluções fáceis. As dificuldades advirão da própria
natureza e complexidade dos problemas a resolver. Talvez surjam também da
inadequação dos métodos de cálculo ao objecto do cálculo ou da dificuldade na
determinação dos critérios de escolha. 61
O risco de erro,
a necessidade de se satisfazer com aproximações não condena nada. Em qualquer
caso, isto não constituirá um retrocesso em relação à fase actual.
O que hoje é
válido para a utilização da escada ou do elevador será válido amanhã para a sua
produção e instalação. As restricções objectivas entre as quais o usuário se
move não serão mais determinadas economicamente.
É melhor
construir uma escada, um elevador, ambos, ou não construir nada? Estas questões
implicam toda uma série de outras. Vale a pena subir? Essa necessidade é tão
importante e tão frequente que justifica o gasto necessário para gerar a
escada, o elevador, a corda ou o pontapé no rabo que permite chegar ao andar
desejado? Podemos inverter a perspectiva. Deveríamos construir edifícios altos
dado o custo dos elevadores? Pelo contrário, dado o prazer que este fabrico de
elevadores proporciona, deveríamos aumentar o número de arranha-céus?
A lista de
perguntas a fazer é praticamente infinita. Isto parece desanimador. Na
realidade, perguntaremos apenas a um pequeno número deles. Muitos são descartados
pelo simples bom senso. Os nossos montanhistas não poderão precisar de elevador
para a sua expedição. Qualquer decisão é tomada com base numa situação concreta
onde um monte de questões foram resolvidas a priori pelos factos. O hábito
prega-nos peças, mas também nos evita complicações. Há uma boa chance de que o
homem que estava ao pé do prédio se tenha baseado nisso. A estimativa de custos
assume toda a sua importância quando nos deparamos com uma nova situação,
quando iniciamos um novo processo produtivo. O problema de fabrico e instalação
do elevador e da escada é provavelmente um problema comum que é realizado com
base em elementos conhecidos. Um caso ligeiramente especial ou novo será
tratado como uma modificação de uma situação mais clássica. Existe uma
hierarquia de soluções. Quando decidirmos iniciar a construção de um edifício,
o custo dos meios de subida, aproximadamente conhecidos, será provavelmente
secundário. Uma vez tomada a decisão geral, será necessário construir a escada,
o elevador ou ambos. As restantes escolhas estarão relacionadas com a natureza
e qualidade do material. Estas escolhas, mais uma vez, não serão feitas em
termos absolutos, mas sim com base nos produtos e técnicas efectivamente
seleccionados e desenvolvidos nesta área. Cada escolha tende a identificar a
solução óptima, mas cada escolha é feita de acordo com um certo número de
restricções. O óptimo corre o risco de ser um compromisso entre os interesses
dos diferentes grupos envolvidos.
O fim da divisão da economia em empresas concorrentes não significa que toda a produção social formará apenas um único todo coordenado onde cada actividade seria imediatamente subserviente a outra, onde haveria apenas um interesse comum e onde a estimativa dos custos seria feito directamente em nível global. Por razões humanas e técnicas, os produtores dividir-se-ão em grupos cujos interesses deixarão de ser antagónicos, mas cujas opiniões poderão divergir. Mesmo que os indivíduos mudem de uma ocupação para outra, de uma oficina ou estaleiro de obras para outro, mesmo que os grupos não sejam permanentes, a divisão no tempo e no espaço persistirá. 62
A construção de
um edifício envolve a entrada em acção de diferentes ofícios. Podemos imaginar
que com o comunismo o arquitecto se tornou operário, pedreiro ou pintor. Isto
não evitará, especialmente se a construção for grande, a divisão dos homens em
equipas separadas e o trabalho em fases separadas. Os construtores serão
obrigados a recorrer a contribuições externas. Eles podem precisar procurar
ajuda e aconselhamento. Acima de tudo, precisarão obter máquinas e materiais.
Estes produtos
vindos de fora, como podemos saber e ter em conta o seu custo? Os construtores
podem procurar facilitar as coisas para si próprios no que diz respeito à
distribuição e utilização dos seus próprios pontos fortes e habilidades. Mas
quando têm de recorrer a stocks que eles próprios não acumularam, já não vale a
pena. Porém, um material que seja mais fácil de utilizar ou que traga mais satisfação
aos usuários da edificação poderá ser rejeitado dado o seu custo de fabrico. Em
cada situação, a vantagem obtida deve justificar o gasto para evitar
desperdícios.
Os produtos ou
mesmo os processos de implementação devem ter um custo objectivamente conhecido.
É com base neste custo que os usuários farão uma escolha racional.
Isso significa que cada produto terá uma etiqueta na qual estará escrito o seu “preço”. Será que a dona de casa que faz o seu “mercado” se verá diante de couves ou cenouras acompanhadas de uma pista numérica?
Isto seria uma
triste repetição da situação actual. Regra geral, todos levarão o que
necessitam, desde que esteja disponível e não tenham conhecimento de um pedido
mais urgente que o seu. O cálculo dos custos é antes de mais nada uma previsão
e reflecte-se directamente na natureza e na quantidade dos bens oferecidos. Não
há necessidade de um rótulo criptografado para exercer pressão, se não na
carteira, pelo menos nas intenções do usuário.
Existem vários
tipos de cimento que têm actualmente, e certamente continuarão a ter, custos de
produção diferenciados. Seria estúpido usar cimento duas vezes mais caro que
aquele que seria suficiente. Geralmente a natureza visível do produto ou as
instrucções de uso que o acompanham são suficientes para determinar o uso
desejável. Quando houver risco de confusão, bastará especificar nas instruções
de uso a diferença de custo entre os diferentes produtos.
O trabalho morto
actualmente pesa sobre o trabalho vivo, o passado sobre o presente. Com o comunismo,
o custo de um produto não é a expressão de um valor a realizar, de um
equipamento a depreciar. Isso significa que o custo de um objecto não
representará necessariamente a despesa necessária. Nem mesmo uma despesa média
necessária para todos os produtos do seu género.
Será atribuído a um produto o custo pelo qual ele pode ser substituído actualmente. Um aumento ou diminuição da produtividade não teria razão para resultar numa diferença entre o custo de produção e o preço de venda. Seria imediatamente registado como tal, inclusive para objectos fabricados anteriormente. Esta variação poderá resultar numa expansão da produção em causa, caso esta se torne mais rentável. O aumento dos investimentos não será baseado no lucro excedente. 63
Pode haver diferenças
de custos na produção do mesmo produto ou de dois produtos similares. Essas
diferenças podem advir do uso contínuo de processos de fabrico mais atrasados que outros. Muitas vezes são
determinados por condições naturais. Os rendimentos agrícolas variam muito; nem
todas as minas são igualmente fáceis de explorar. Significa isto que serão
atribuídos custos diferentes a produtos semelhantes ou que surgirá um custo
médio válido para todos, como hoje tende a surgir um preço médio de mercado?
Será muito
importante que as diferenças de custos sejam conhecidas. Mas isso não afectará
os usuários desses produtos. Alguns não serão penalizados e outros serão
beneficiados. Tentaremos simplesmente desenvolver os processos de produção mais
vantajosos.
Se um aumento na
produção significa uma queda na rentabilidade, isso não significa que deva
necessariamente ser excluído. Em primeiro lugar porque esta queda na
rentabilidade pode ser um fenómeno temporário e transitório. Depois porque
devemos julgar a importância das necessidades a serem satisfeitas. Assim,
quando se trata de produção alimentar, um aumento significa muitas vezes uma
diminuição do retorno. Terras menos férteis são cultivadas. Isto não é motivo
para recusar alimentar parte da população e exercer actividades onde a
rentabilidade aumenta.
Os retornos
decrescentes só podem ser assim no curto prazo. Semear num deserto não é um
investimento muito promissor, mas muito significativo. A implementação de
processos de irrigação e novos métodos agrícolas pode mudar muitas coisas. Num
deserto tão queimado pelo sol, uma vez irrigado, tal exploração marinha corre o
risco de prevalecer sobre terras tradicionalmente férteis.
O que parece
inatingível hoje será possível amanhã. As técnicas modernas, em vez de
beneficiarem a corrida armamentista, servirão para fertilizar os desertos.
A partir do
momento em que a procura de um bem aumenta, corre-se o risco de levar a uma
redução ou aumento do custo das novas unidades a produzir. Uma diminuição
tenderá a aumentar a procura por este produto. Se, pelo contrário, houver um
aumento, é uma questão de saber quando o custo começa a tornar-se proibitivo.
Neste caso é necessário determinar se é o último pedido que deve ser rejeitado
ou, pelo contrário, se deve ser satisfeito abandonando ou reduzindo outros
pedidos.
CÁLCULO
A partir do
momento em que abordamos a implementação de produções ou projectos complexos,
quando certas decisões determinam cadeias de outras decisões, devemos ser
capazes de prever e calcular para seleccionar os processos menos dispendiosos.
O custo muitas vezes deve ser estimado com base no longo prazo. Um ganho no
momento ou a falta de estudo podem ter consequências dispendiosas para o
futuro.
Ao escolher esta
ou aquela bitola dos trilhos, estamos a comprometer-nos de uma forma difícil de
reverter. Neste caso, como em muitos 64
Para outros, a
falta de previsão no início pode posteriormente levar a condições de utilização
muito menos racionais.
Trata-se também
de determinar os coeficientes técnicos que ligam a produção de diferentes
produtos. A produção de tal material ou objecto implica necessariamente a
produção e o dispêndio de outros bens de acordo com uma determinada proporção.
Isso envolve
antecipar possíveis gastos e simular a conclusão de um projecto. Estas
previsões podem referir-se a projectos consideráveis pelos meios que mobilizam, pela duração
do seu progresso, pelas contingências que envolvem.
Suponhamos que os
homens tenham a ambição de alcançar, explorar e possivelmente estabelecer-se
num planeta virgem. Você não pode embarcar em tal operação por capricho. É
preciso estimar as possibilidades e planear os gastos.
A primeira
estimativa da validade do assunto será dada pelo número de indivíduos que
concordam em participar ou apoiá-lo. Este número será determinado pela
impressão de seriedade que o projecto e os seus apoiantes transmitirão.
Uma vez iniciado
o projecto, escolhas terão que ser feitas e essas escolhas serão compatíveis
entre si. Deveríamos concentrar a exploração em veículos automáticos ou em
embarcações tripuladas? Deveríamos preferir uma atmosfera de ar ou oxigénio
para essas embarcações? Estas questões são hoje questões técnicas sobre as
quais pesam restricções financeiras ou políticas. Com o comunismo existem
apenas questões técnicas que são também questões humanas. O debate sobre
veículos automáticos, tripulados ou habitáveis, diz respeito ao nível de
ciência, ao conforto que pretendemos proporcionar aos cosmonautas, aos esforços
de construção, ao futuro de cada projecto...
As escolhas
feitas condicionam-se mutuamente. Porém, não é necessário que tudo esteja decidido
e planeado logo no início. As primeiras decisões orientam o que se segue sem
definir tudo detalhadamente. O importante é que em cada fase a escolha feita
seja, se possível, a melhor e que não conduza a um beco sem saída. O número de
decisões a tomar é enorme, mas não são tomadas todas de uma vez e podem ser
feitas correcções.
Porquê complicar
a vida com todas essas histórias? Com o capitalismo tudo isto se resolve
automaticamente.
Nada poderia
estar mais longe da verdade. Não é porque os custos se transformam em preços
monetários e o mercado sanciona o comportamento das empresas que tudo é
automático. A nível geral existe planeamento e previsão, o que também se aplica
a empresas ainda maiores.
Nem todas as
operações são imediatamente sancionadas pelo mercado. Esta sanção representa a
etapa final de um conjunto de despesas e decisões.
Se possível,
devemos antecipar a decisão do mercado. As empresas poderosas já não fazem com
que os seus preços dependam directamente das flutuações do mercado, mas tendem
a calcular e impor um preço óptimo.
Este preço não é
necessariamente aquele que permitirá a venda de mais bens ou mesmo maximizará o
fluxo de caixa no curto prazo. Pode ser definido de acordo com uma estratégia
global. Nos países orientais os preços começam a ser determinados por meios
matemáticos. 65
Tanto no Oriente
como no Ocidente, as empresas tendem a libertar-se do mercado para impor a sua
estratégia através dos seus preços. Esta não é uma tendência fundamentalmente
nova. Hoje é acentuado pelo poder dos grupos, pela possibilidade técnica de
individualizar um produto, pelo desenvolvimento de métodos de cálculo
económico. A concorrência e o mercado não são abolidos. Os seus efeitos são
simplesmente retardados e a batalha entre os monopólios não se relaciona directa
e exclusivamente com o nível de preços.
O importante é
que se desenvolvam métodos de estimativa e previsão, dentro da sociedade e das
empresas capitalistas, que possam ser utilizados de forma mais sistemática com
o comunismo. O desenvolvimento dos computadores foi acompanhado por toda uma
gama de pesquisas matemáticas destinadas a representar e formalizar a realidade
para lidar com problemas de escolha, simulação e estratégia económica. Mesmo
quando não se trata mais de levar em consideração e satisfazer critérios
financeiros, esta pesquisa pode ser utilizada e desenvolvida.
Normalmente, as
empresas não dependem do mercado para organizar a produção de bens da forma
mais racional possível. O mercado é uma sanção ao comportamento, mas não um
guia preciso e técnico para esse comportamento.
“Então,
imaginemos um industrial que gostaria de fabricar o máximo de caixas
cilíndricas com chapas metálicas. Se estiver acompanhado de um engenheiro, ele
poderá calcular imediatamente a relação altura/diâmetro garantindo o melhor
aproveitamento do metal: essa relação vale 1,103. Caso contrário, o nosso
industrial adoptará valores “aleatórios”. Mas se ocorrer concorrência entre
várias empresas, aquelas que escolherem os piores valores ficarão arruinadas.
E, portanto, de forma puramente experimental, os fabricantes serão levados a
reter – sem saber porquê – coeficientes cada vez mais próximos de 1,103.” (O
romance da vida, A. Ducrocq).
A racionalização
“científica” estende-se à própria organização da produção e distribuição. A
pesquisa operacional complementa o hábito e o bom senso.
Já em 1776, o
matemático Monge comprometeu-se a estudar sistematicamente a organização menos
dispendiosa dos trabalhos de escavação e aterro. Isso também levou a
contribuições puramente matemáticas.
Aplicada às
operações militares durante a Segunda Guerra Mundial, a investigação
operacional continuou a desenvolver-se graças ao poder dos computadores electrónicos.
É utilizado para problemas de competição e reacções entre adversários, fenómenos
de espera, gestão de stocks, previsão de desgaste e substituição de
equipamentos, simulação, etc.
Já não se trata
de uma simples contabilidade, mas de deduzir da análise do passado e do
presente o que poderá acontecer e o que será desejável. 66
COMPARAÇÕES
Tanto no
comunismo como no capitalismo, para estimar custos e escolher as melhores
soluções é preciso poder comparar. Como comparar?
Enquanto houver
uma moeda, ou seja, um equivalente universal, tudo é simples, pois qualquer bem
deve poder ser avaliado de acordo com este padrão único. Existe uma relação
quantitativa entre todos os produtos. A partir do momento em que queremos
prescindir do dinheiro e até da medição pela quantidade de trabalho, em que
base podemos assentar a comparação? O que mais podemos encontrar que seja comum
a todos os bens, que os torne comparáveis entre si?
Não existe outro
padrão único e universalmente válido. Então vamos ficar sem ele. Isto não
impedirá comparações. Estas comparações serão qualitativas e basear-se-ão em
critérios diferentes e variáveis. Deixarão de ser realizadas com base numa
referência abstracta e universal. Eles permanecerão apegados a situações e objectivos
concretos.
O que é
fantástico é que diferentes bens podem ser equivalentes entre si,
independentemente da sua própria natureza. Podemos compreender que os alimentos
podem ser comparados com base no seu conteúdo proteico, no seu peso, na sua
frescura. Mas estes diferentes critérios não permitem definir uma equivalência
geral.
A necessidade de
equivalência geral não pode ser dissociada da necessidade de troca. Todas as
coisas devem poder ser comparadas de um ponto de vista universal porque se
tornaram bens trocáveis, valores económicos. É precisamente isto que deve
desaparecer e que o sonho ou pesadelo de medir o tempo de trabalho gostaria de
salvar, disfarçando-o.
Mesmo sob o
reinado do capital, nem todas as comparações podem ser reduzidas a comparações
de valor. Os bens permanecem valores de uso. O julgamento do comprador diz
respeito ao preço, mas também à utilidade e qualidade do produto.
Quando uma dona
de casa vai às compras e escolhe entre alface e um ramo de rabanete, ela fá-lo
com base no gosto do genro, na refeição do dia anterior, na aparência do
produto e no espaço que sobra na cesta. .. O preço só é realmente decisivo
quando dois produtos idênticos têm valores diferentes.
A multiplicidade
de critérios que entram em jogo não impede a dona de casa de fazer comparações
e escolher. O seu julgamento é subjectivo. Não é universalmente válido. Isto
não significa que seja irracional no que diz respeito à situação a que se
refere. Quando se trata de escolher entre vários processos de fabrico, será
certamente necessário chegar a um acordo mais geral. A escolha será menos subjectiva
no sentido de que terá que se libertar do clima do momento, onde as suas
consequências serão mais duradouras.
Actualmente
acontece que as avaliações puramente monetárias não são decisivas ou são
corrigidas por outras. Os riscos de variações significativas em determinados
preços ao longo do tempo e as necessidades políticas frustram as visões
financeiras. Consideremos a questão das centrais nucleares. Ao lado dos argumentos
económicos, existem pontos de vista opostos no custo ecológico, social ou
político. 67
Falamos, muitas
vezes de má-fé, sobre eficiência energética, problemas com transportes e
armazenamento de resíduos, independência nacional e criação ou redução de empregos.
Na sociedade
comunista já não é necessário reduzir qualquer comparação a uma escala
universal. Basta saber determinar as possibilidades realmente oferecidas e
privilegiar aquelas que dão resultados mais rápidos, aquelas que são mais
seguras, menos perigosas...
O importante é
determinar no trabalho um conjunto de critérios relevantes e com base nesses
critérios comparar directamente as soluções possíveis entre si. Não se trata
tanto de quantificar, mas de ordenar os critérios e as soluções. É o significado
relativo e qualitativo que predomina.
Não dependemos de
calculadoras para resolver tudo. Mas elas serão necessárias e utilizáveis.
“Desenhadas inicialmente para operações contábeis e de gestão a posteriori,
também utilizadas para cálculos científicos, há muito (dez anos, talvez...) são
consideradas instrumentos destinados a fornecer resultados quantitativos. Esta
personagem é transformada. Graças aos métodos de investigação operacional, e
mais especialmente aos de simulação, a acumulação de números conduz a um
resultado qualitativo: já não estamos interessados nos números exactos, mas no seu
significado relativo, do qual depende a orientação da selecção. Assim, as
calculadoras tornam-se meios de gestão de previsões.” (Pesquisa Operacional,
Faure, Boss e Le Garff)
O que deve ser
simplificado e universalizado não são tanto os factores de decisão que entram
em jogo, mas sim os processos de resolução, os programas que permitirão
processar um conjunto de dados. Num certo sentido, quanto maior o número de
critérios, mais precisa será provavelmente a representação da realidade.
Podemos imaginar o que suscitaria um debate sobre a importância a dar às
diferentes fontes de energia. Entraria em jogo uma quantidade significativa de
dados, só poderíamos usar um único critério concordando em mutilar a realidade.
As escolhas devem ser feitas a nível mundial com base em factores gerais, mas
também a nível local com base nos diferentes recursos e necessidades das
regiões.
O comunismo não
exclui escolhas e comparações puramente quantitativas. Permanecem válidos
quando um único critério de selecção é suficiente em função da natureza dos
produtos envolvidos, ou seja, quando se trata de aumentar ou reduzir uma
determinada produção. Assim é quando a poupança nas despesas corresponde a uma
poupança quantitativa na utilização de um material considerado para o mesmo
uso, como é o caso das latas. Mas mesmo aí esta poupança não deve ser
considerada como uma poupança de tempo de trabalho, mas simplesmente de
quantidade de material. O facto de resultar numa redução da duração da
actividade produtiva é simplesmente uma consequência possível.
Não deveríamos temer este frenesi comunista de racionalização? Não corre o risco de aderir ao frenesim capitalista da exploração? 68
Hoje a racionalização
e a exploração estão confusas. O homem tende a ser visto como um objecto do
qual se pode obter o máximo possível. Estamos a desenvolver métodos desumanos
que não estão sujeitos a restricções técnicas: velocidades infernais, trabalho
em duas ou três equipas. A racionalização capitalista, seja brutal ou suave, é
sempre feita mais ou menos contra os homens. É por isso que sempre permanece
fundamentalmente irracional. A racionalização comunista não pretende impor um
ritmo de trabalho. Tenderá inerentemente a aumentar a liberdade e a satisfação
humanas. A tomada de decisões e a implementação não serão feitas externamente
aos gostos e hábitos das pessoas envolvidas. Existem constrangimentos técnicos
e necessidades de produção que irão influenciar o ritmo e a duração da
actividade. Mas isto já não terá nada a ver com a rentabilidade do capital
humano.
VI PARA LÁ DA
POLÍTICA
O comunismo não é
um movimento político. Ele é o crítico do Estado e da política.
A intenção dos
revolucionários não é conquistar e usar o poder do Estado, mas sim com o motivo
oculto de destruí-lo. O Partido do Comunismo não se apresenta como um partido
político e não pretende competir com estas organizações.
Com o estabelecimento da comunidade comunista, toda a actividade política como actividade distinta e busca do poder pelo poder desaparece. Já não existe a economia de um lado: a esfera da necessidade e a política do outro: a esfera da liberdade.
FIM DO ESTADO
O culto ao Estado
é fundamentalmente anti-comunista. Nasce e paradoxalmente fortalecido por todos
os defeitos, todos os fracassos, todos os conflitos que a sociedade capitalista
gera. Ele é o salvador supremo. O último recurso da viúva e do órfão. Aliás, e
embora se afirme acima das classes, e se apresente como o garante do interesse
geral contra os excessos particulares, cuida da defesa da propriedade e dos
privilégios.
Houve um tempo em
que a burguesia ascendente manifestava sentimentos anti-estatais. Hoje ela só
fica de mau humor. Acabou o tempo em que os revolucionários burgueses afirmavam
que as pessoas mais felizes eram as pessoas sem Estado. A ascensão do perigo
proletário, o desenvolvimento de imperialismos concorrentes, a escala das
crises económicas mostraram a importância de ter uma máquina estatal poderosa
e, antes de tudo, um bom aparelho de repressão.
Os partidos
políticos competem para conquistar, em nome do povo, esta máquina estatal que
apresentam como um instrumento neutro. Os leninistas proclamam, portanto, o
carácter de classe do Estado e a impossibilidade de controlá-lo através de uma
simples vitória eleitoral. Deduzem disto a necessidade do seu desmantelamento,
mas depois será substituído por um “Estado operário”.
É um mérito dos
anarquistas terem mantido um anti-estatismo fundamental.
Porém, ainda mais
do que contra o dinheiro, todos têm o dever de protestar contra o Estado.
Protestamos contra o peso da administração, o peso dos impostos, a arrogância
da polícia, a ambição dos políticos, a estupidez dos eleitores... Mas o
desaparecimento do Estado ultrapassa os limites da imaginação. E é isto que nos
propomos, sem imaginação, levar ao poder.
O Estado tem
intervindo cada vez mais abertamente na vida social nas últimas décadas. O
advento do estalinismo e do fascismo foram apenas etapas mais visivelmente
marcadas neste processo. Onde alguns acreditavam ver o Estado a tornar-se
popular, devemos ver a acentuação do controlo do Estado sobre as populações.
Note-se em
particular a aquisição ou integração no aparelho estatal das organizações de
defesa e de solidariedade dos operários. Através de vários meios de segurança
social, as estruturas sindicais submeteram-se ao Estado. Isto permite-lhes agir
mais ou menos como grupos de pressão. As suas declarações de independência e
oposição não devem enganar. É o papel deles. Obviamente esta integração da luta
e esta formalização do parceiro social foram apresentadas como grandes vitórias
para a classe operária. As lutas dos operários beneficiam uma camada de
especialistas em protestos e resultam numa maior institucionalização das
organizações “operárias”. Muitas vezes, estas “conquistas” nem sequer resultam
numa redistribuição de recursos para os grupos mais desfavorecidos, mas
contribuem para extrair deles mais dinheiro. Apesar do que os sindicatos e os
governos afirmam hipocritamente.
O crescente
controlo estatal não deve ser visto apenas como um enfraquecimento do
proletariado. Pelo contrário, corresponde à necessidade de controlar o poder
crescente. Esta nacionalização compensa a fragilidade das sociedades modernas.
Mas ela mesma não escapa desta fragilidade. A fiscalização estatal da população
só é possível com a cumplicidade desta população. A revolução antipolítica
mostrará a natureza, em última análise, superficial deste quadro.
Ao contrário dos
políticos de todos os lados, os revolucionários têm o cuidado de não invocar a
responsabilidade do Estado assim que surge um problema. Destacam
sistematicamente a autonomia e a auto-organização da classe proletária. Invocar
a fraqueza do proletariado para justificar o recurso ao Estado é justificar e
postular esta fraqueza como eterna.
A sociedade
revolucionária terá órgãos de coordenação e centralização. Muitas vezes,
permitirá até uma centralização mais avançada e mais global do que a permitida
pelo capital. Mas não necessitará de um Estado onde o poder esteja concentrado,
de toda esta maquinaria para reprimir, identificar, controlar, educar. A
administração das coisas substituirá o governo dos homens. 70
O problema está
numa fase insurreccional e intermédia de não recriar um Estado, garantindo ao
mesmo tempo funções administrativas e repressivas e, portanto, de Estado.
Aqueles que não querem resolver este problema, como os anarquistas, só podem
ser traídos pelos estatistas ou forçados a tornarem-se eles próprios
estatistas. A participação de ministros anarquistas na junta governamental
durante a Revolução Espanhola mostrou o que isto poderia alcançar.
A solução para o problema, para esta contradição, foi delineada pelas insurreições proletárias desde a Comuna de Paris. É o conselho operário, a organização conselhista da vida social.
OS CONSELHOS
OPERÁRIOS
A Comuna de Paris
já tinha dado uma primeira ideia do que poderia ser um governo operário.
Em 1905, os operários
russos rebeldes desenvolveram a forma do Soviete. Este órgão formado por delegados de fábrica
tinha como objectivo inicial coordenar a luta. Gradualmente transformou-se num
órgão administrativo que tende a substituir a administração oficial. Uma parte,
até mesmo das forças policiais, ficou sob o controlo do Soviete de Petrogrado.
A sua existência terminou com a prisão dos seus deputados pelas forças
czaristas.
Em 1917 fizemos
isso de novo, com maior participação dos soldados. O golpe bolchevique de Outubro
de 1917 foi realizado em nome do poder soviético. Ele confiou nos Sovietes,
onde os bolcheviques controlavam as comissões militares e obtiveram a maioria
dos votos em Petrogrado e Moscovo. Esta vitória foi o começo do fim. Com o
refluxo da revolução, a guerra civil, o fortalecimento do partido e da
administração bolcheviques, os sovietes viram-se gradualmente esvaziados do seu
conteúdo. A resistência final do Soviete na base naval de Kronstadt foi
esmagada em 1921 pelo Exército Vermelho liderado por Trotsky, o antigo
presidente do Soviete de Petrogrado.
As insurreições
proletárias do século XX fizeram ressurgir regularmente a forma soviética. Após
a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, foram formados conselhos operários
na Hungria, Alemanha e Itália. Durante a Guerra Civil Espanhola, assistimos à
proliferação de comités de operários e camponeses. Na Hungria, em 1956, os
delegados das fábricas formaram o Conselho Operário da Grande Budapeste. Na
Polónia, em 1971, os operários insurgentes dos portos do Báltico organizaram-se
novamente desta forma.
A palavra
conselho abrange, na verdade, formas bastante diversas de organização, mesmo
que eliminemos a co-gestão ou as organizações de gestão operária que não são de
forma alguma revolucionárias. Isto vai desde o comité de fábrica ou de bairro
até ao soviete que administra uma grande cidade ou região. É um erro querer
colocar estas organizações umas contra as outras, de modo a atribuir apenas o
rótulo de “conselho operário” a algumas delas.
Não somos a favor
deste ou daquele tipo de conselho. Somos pela organização consultiva da
sociedade. Isto envolve e requer vários
níveis de
organização que se complementam e se apoiam. O que é mau, e o que tem
acontecido regularmente, é que um nível vence. 71
O comité de
fábrica pode ser reduzido a uma simples função de controle dos operários ou à
pura gestão de uma unidade de produção. A falta de sovietes propriamente ditos
em Espanha e na Catalunha, apesar do florescimento dos comités de base, deixou
o campo aberto ao Estado republicano e aos políticos. Daí o dilema anarquista.
O Soviete,
separado das suas bases, pode transformar-se numa espécie de Estado regional ou
parlamento operário. Deixa de ser um órgão activo e anti-político para se
tornar o campo de batalha dos partidos políticos.
O que dá ao
conselho operário o seu carácter revolucionário, o que lhe dá um conteúdo anti-político,
é antes de tudo o facto de ser directamente a emanação das massas activas. É
constituída por uma pirâmide de comités que se geram mutuamente sem que o topo
possa acreditar-se independente da base.
Os comités não
são simples assembleias eleitorais que delegam poder de baixo para cima. Cada
nível está repleto de funções práticas. Cada comité é uma comunidade activa.
Ele delega ao nível superior o que não consegue resolver sozinho. Ele não abre
mão da sua soberania. Os delegados respondem perante os seus mandantes, são
responsáveis e
revogáveis.
O conselho operário
não reproduz em si as divisões entre os poderes legislativo, executivo e
judiciário. Ele encarrega-se de unificar e concentrar essas diferentes funções nas
suas mãos. Mesmo que estabeleça regras, ele age sobretudo de acordo com a
situação, sem se esconder atrás de um arsenal de leis formais.
O conselho operário
constitui-se como um tribunal para resolver conflitos, para julgar, decidir e
punir. Esta acção é feita com base numa situação concreta. O que julgamos não é
a gravidade da culpa, mas os danos e riscos objectivos para a revolução e a
sociedade.
O conselho não vê
a sua legitimidade garantida por eleições democráticas que o tornariam o ungido
do povo. Ele não é o representante das massas. Ele são as massas organizadas.
Indivíduos e grupos que assumem tarefas específicas não são necessariamente
eleitos. Mas quando envolvem todo o conselho, são responsáveis perante as suas assembleias gerais. O
conselho não pretende ser a expressão de toda a sociedade para além dos
conflitos que o afectam. É um órgão de classe e de luta. Isto implica um mínimo
de acordo dentro dele. Ele não pode tolerar diferenças que o paralisariam.
Podemos ver no
conselho operário uma forma ultraditatorial ou ultrademocrática. Ele é as duas
coisas e outras coisas ao mesmo tempo. É ultraditatorial no sentido de que
apenas afirma ser responsável perante si mesmo e de espezinhar os princípios
sacrossantos da divisão de poderes. É ultrademocrático no sentido de que
permite o debate e a participação das massas nunca antes alcançados com o Estado
mais democrático.
Acima de tudo, o
conselho operário já não é um órgão político. Já não separa o cidadão do
indivíduo social. Nisso está além da ditadura ou
da democracia,
que são os dois lados da política. Mesmo que utilize processos ou formas ainda democráticas
ou ditatoriais. 72
O conselho não é
o instrumento da democracia popular nem o instrumento da ditadura do
proletariado. Estas expressões não conseguem caracterizar a fase de ruptura
entre o capitalismo e o comunismo.
Os conselhos operários
do passado estiveram muito abaixo, salvo alguns raros momentos, do programa que
estamos a traçar. Têm sido gerenciais, burocráticos, meticulosos,
argumentativos, incapazes de ter uma perspectiva condizente com a sua própria
natureza. Eles morreram por causa disso. Isto não prova que a forma conciliar
seja inútil, mas antes que foi traçada num terreno ainda demasiado árido.
Em 1956, o
Conselho Operário da Grande Budapeste, que administrava toda a região, apelou
ao seu próprio suicídio com o restabelecimento da democracia parlamentar.
Os conselhos
operários do passado tiveram, no entanto, o mérito de existir. Eles
demonstraram a capacidade dos trabalhadores de cuidar da sua própria vida, de
assumir o comando e administrar fábricas e cidades. Estão ligados aos movimentos
formidáveis pelos
quais os operários derrubaram, pelo menos temporariamente, a burguesia e os
burocratas. Se ocultamos e distorcemos estas experiências é porque não queremos
que o proletariado repita o que fez na Catalunha, na Polónia, na China, sem
mestres e fazendo bem por isso.
A
contra-revolução, inclusive na União Soviética, nunca foi capaz de aceitar
isto. Que os conselhos demonstrem moderação é uma coisa, que a contra-revolução
seja moderada em relação a eles é outra.
As melhores
manifestações dos conselhos operários ocorreram quando tiveram que responder
rápida, clara e duramente aos seus inimigos. São forjados directamente como a
organização da luta. O programa deles pode ser limitado, mas eles sabem disso.
Outras vezes ficam atolados na administração, à espera. A sua única razão de
existência parece ser a vacância do poder burguês. Vemos o desenvolvimento de
magníficas construções organizacionais. Mas isto é feito no vácuo, fora dos
imperativos de uma luta.
A aparente
ausência de perigo leva às piores ilusões.
O conselho
aparece mais como a resposta dos operários ao vazio deixado pela burguesia do
que como um nível de organização imposto pela radicalidade da própria luta.
Somos a favor dos
conselhos operários. Mas somos contra a ideologia conselhista. Esta ideologia
não vê nos conselhos um momento da revolução mas sim o seu objectivo. O
socialismo é a substituição do poder da burguesia pelo poder dos conselhos, da
gestão capitalista pela gestão operária. O fracasso ou a vitória da revolução é
uma questão de organização. Onde os leninistas apostam tudo no partido, os
conselhistas apostam tudo no conselho.
Os conselhos operários
serão o que fizerem. A sua única hipótese de vitória é empreender e ser a
organização da comunização.
Para os comunistas,
a revolução não é uma questão de organização. O que determina a possibilidade
do comunismo é um certo nível de
desenvolvimento
das forças produtivas e da classe proletária. Existem problemas
organizacionais, mas não podemos colocá-los independentemente do que
organizamos, das tarefas que nos propomos. As regras organizacionais são
neutras? Essas questões são puramente técnicas? Certamente que não. A escolha
deles é de grande importância. Alguns são adaptados e promovem a acção
comunista. Outros atrapalham73.
Mas é uma grave
ilusão acreditar que a apresentação de certas regras, especialmente sobre o
controlo dos delegados, é suficiente para evitar a burocratização, as mentiras
e a divisão. Os burocratas são profissionais na organização como uma organização
separada. Gostam de enfatizar os pré-requisitos para a acção, os mecanismos
democráticos, em vez da acção em si. Regras meticulosas e inadequadas, mesmo
formalmente antiburocráticas, correm o risco de facilitar a sua tarefa.
Enquanto os conselhos se desenvolverem e não puderem mais ser liquidados
facilmente e os piores inimigos da revolução reivindicarão ser conselhistas
para melhor superar os conselhos. Tentarão fazer do país um campo fechado para
as suas peripécias, para excluir os revolucionários. Contra o comunismo, os
enfeites do velho mundo não hesitarão em renomear-se como conselhos.
Do carácter
muitas vezes anti-comunista dos concílios do passado, não podemos deduzir que o
seu tempo acabou? Não é toda a institucionalização contra-revolucionária?
Não vemos
instituições nos conselhos operários. A revolução, queira ou não, encontrará
problemas de administração, de manutenção da ordem, de unificação de tendências
opostas. Será ainda necessário governar, se não os homens, pelo menos alguns
homens. Podemos considerar que o saque é uma reacção saudável à provocação e à
escassez comercial. Pode desempenhar um papel benéfico numa fase de ruptura:
libertação e afundamento da mercadoria. Mas não podemos institucionalizar a
pilhagem, tornando-a o modo normal de distribuição comunista de produtos. É
impossível deixar todos os produtos em distribuição gratuita. Há que organizar,
distribuir, restringir. Esta é a tarefa dos conselhos.
À medida que a
escassez de bens diminui e a contra-revolução recua, os conselhos perderão o
seu carácter estatal. Eles não serão excluídos. Eles misturar-se-ão à vida
social.
Recusar conselhos
por purismo é, quando estes aparecem de acordo com necessidades reais,
colocar-se fora do processo revolucionário. É melhor participar na sua criação,
no seu funcionamento, na sua possível dissolução dependendo da luta e do
equilíbrio de poder entre revolução e contra-revolução.
A participação
nos conselhos não significa que os revolucionários devam desistir de agir e
organizar-se de forma autónoma. Os conselhos são organizações de massa. Daí um
certo peso, daí um ritmo de radicalização mais lento do que o de certas fracções
da população. A evolução dos conselhos será parcialmente determinada pelo que
acontece ao seu lado. O que terá de ser combatido e sabotado são os conselhos
corporativistas, as organizações de gestão, os grupos neo-sindicais ou
neo-políticos que querem confiscar a organização da vida social em benefício de
uma minoria. Não podemos considerar como soviete um órgão que preservaria a
produção de mercadorias, ou que constituiria uma força policial, que exigiria o
retorno dos patrões... 74.
O Conselho é necessário quando se trata de administrar um território. Desaparece quando esta necessidade desaparece temporariamente dependendo de um certo equilíbrio de poder ou definitivamente devido à consolidação do comunismo. Dependendo de uma situação revolucionária, os grupos podem intervir e reunir stocks de bens sem serem capazes ou quererem assumir a responsabilidade pela sua produção e distribuição numa base permanente. É uma questão de saber quando temos meios para passar deste tipo de acção pontual e selvagem para a administração directa de uma área. A vantagem é que podemos utilizar melhor os nossos recursos para alimentar a população ou liderar a luta. A desvantagem é que nos tornamos um alvo. A partir do momento em que aceitamos este risco, surge o problema da organização consultiva desta área. O problema da constituição de um poder revolucionário. Este poder, mesmo que deva procurar o mais amplo apoio e participação das massas, não procura ser fundado democraticamente, por exemplo através da organização de eleições.
A DEMOCRACIA
O que há de mais
belo sob o céu do que a democracia: o poder do povo soberano? Por mais que o
termo capitalismo possa ser embaraçoso, o de democracia desperta apoio. Todos
são a favor da democracia, seja ela coroada ou republicana, burguesa ou
popular. Se criticamos os seus adversários é por não serem suficientemente
democráticos.
Qualquer pessoa
que se levante contra a democracia só pode, na melhor das hipóteses, sentir
nostalgia das antigas monarquias absolutas. Em geral preferimos dar-lhe o
infame rótulo de fascista. Os mais teimosos são muitas vezes os marxistas e
marxistas-leninistas que esquecem o que os pais fundadores disseram sobre a
democracia, que querem mascarar o seu gosto pelo poder e pela ditadura...
Hipocritamente, alguns nostálgicos cheios de culpa pelo Estalinismo irão
censurar-nos por sermos Estalinistas.
A democracia
parece ser a antítese do despotismo capitalista. Quando sabemos bem que na
verdade uma minoria está no comando, fingimos opor-nos a ela com o poder
derivado do sufrágio universal.
Na verdade, o
capitalismo e a democracia estão ligados. A democracia é a folha de parra do
capital. Os valores democráticos, longe de serem subversivos, são a expressão
idealizada das tendências reais e menos nobres da sociedade capitalista. Os
comunistas não pretendem alcançar a trilogia “liberdade, igualdade,
fraternidade” mais do que “trabalho, família, pátria”.
Como é possível,
se a democracia é filha do capital, que a ditadura e o capitalismo coexistam
tantas vezes? Por que é que a maioria das pessoas vive sob regimes
autoritários? Como é que mesmo nos países democráticos o seu funcionamento é
constantemente dificultado?
Os valores e
aspirações democráticas são consequência da natureza dissolvente do capital.
Correspondem ao fim da integração do indivíduo
numa comunidade e
numa rede de relacionamentos fixos.75
Correspondem
também à necessidade de manter uma comunidade idealizada, de resolver
conflitos, de limitar os confrontos para o bem de todos. A minoria acata as
decisões da maioria.
A democracia não
é uma simples mentira, uma ilusão vulgar. Extrai o seu conteúdo de uma
realidade social dilacerada da qual parece ser a reunificação. Na aspiração
democrática existe uma procura de comunidade, um desejo de respeitar os outros.
Mas a base sobre a qual se enraíza e pretende desenvolver-se impede-o de ter
sucesso.
A democracia
ainda é muitas vezes demasiado perigosa para o capital ou, pelo menos, para
certos interesses estabelecidos. É por isso que ela constantemente vê limites
impostos a si. Com algumas excepções, estes limites e mesmo a simples ditadura
são apresentados como vitórias da própria democracia. Qual o tirano que não
pretende governar, se não pelo povo, pelo menos para o povo?
A democracia, que
em períodos de calma pode parecer uma boa forma de amortecer as lutas operárias,
é descaradamente abandonada assim que a defesa do capital o exige. Há sempre
alguns intelectuais e políticos que se surpreendem ao verem-se sacrificados tão
facilmente no altar dos interesses dos poderosos.
Democracia e
ditadura são formas opostas, mas não são formas estranhas. A democracia, na
medida em que implica a submissão da minoria à maioria, é uma forma de
ditadura. Uma junta de ditadores deve recorrer a mecanismos democráticos para
decidir.
Às vezes
esquecemos que o fascismo, o nazismo e o estalinismo combinaram procedimentos
terroristas e eleições regulares para se imporem. Gostavam de colocar as
grandes massas, os tribunais populares, contra os punhados de “traidores”,
“anti-patriotas”, “anti-partido”.
O comunismo não é
inimigo da democracia porque seria amigo da ditadura e do fascismo. Ele é o
inimigo da democracia porque é o inimigo da política. Dito isto, os comunistas
não são indiferentes ao regime sob o qual vivem. Preferem adormecer
tranquilamente à noite, sem se perguntarem se não será esta noite que alguém
virá tirá-los da cama e levá-los para a prisão.
A crítica ao
Estado não deve substituir a crítica à política. Algumas pessoas atacam a
máquina estatal, mas é para melhor salvar a política. Assim como alguns
educadores criticam a escola por generalizar a pedagogia para todas as formas
de relações sociais. Para os leninistas tudo é político. Por trás de cada
manifestação do capital, eles veem uma intenção, um desígnio. O capital
torna-se o instrumento de um projecto político ao qual outro projecto político
deve opor-se.
A política é o
domínio da liberdade, da acção, da manobra em relação à inevitabilidade
económica. A economia, o campo de produção de bens, é dominada pela
necessidade. A evolução e as crises económicas aparecem como fenómenos naturais
que escapam ao controlo do homem.
A esquerda está acostumada a enfatizar as possibilidades da política, a direita nas necessidades da economia. Falso debate. 76
A política
aparece cada vez mais como uma cópia da vida económica. Durante certo período,
conseguiu desempenhar um papel de compromisso e aliança entre camadas sociais.
Hoje a
importância da política como intervenção na economia aumentou. Mas, ao mesmo
tempo, a esfera política perdeu a sua autonomia. Existe agora apenas uma
política de capital que a direita e a esquerda são forçadas a adoptar
independentemente dos interesses específicos da sua base social.
Se o Estado
parece ser uma instituição aproximadamente delimitável, a política nasce e
renasce em todos os poros da sociedade. Embora resulte na acção de uma
determinada camada de activistas e políticos, baseia-se e encontra eco no
comportamento de cada pessoa. É isto que o fortalece e dá a impressão de que
qualquer solução social só pode ser política.
A política surge
e baseia-se na dissociação entre decisão e acção e nas separações que colocam
os indivíduos uns contra os outros. A política aparece primeiro como esta busca
permanente de poder que anima os homens na sociedade capitalista. A própria
democracia e o despotismo parecem ser as únicas formas de resolver problemas
entre as pessoas. A introdução da democracia nos casais ou nas famílias é vista
como uma nova etapa do progresso humano. Acima de tudo, exprime, talvez da
forma menos má, a perda da unidade profunda que pode unir os seres humanos.
O comunismo não
separa decisão e execução. Não há mais divisão entre dois grupos ou mesmo dois
momentos distintos e hierárquicos. Fazemos o que temos que fazer ou o que
decidimos fazer sem nos colocarmos o problema de saber se somos maioria ou
minoria. Noções que pressupõem a existência de uma comunidade formal.
O princípio da
unanimidade reina no sentido de que aqueles que fazem algo inicialmente
concordam e onde o acordo fornece a base e a possibilidade de acção conjunta. O
grupo não existe de forma independente e anterior à acção. Não se divide na
votação e depois se reunifica através da submissão de um partido a outro
partido. Constitui-se na e através da acção e capacidade das pessoas de se
identificarem e compreenderem o ponto de vista dos outros.
Não se trata de
rejeitar sistematicamente todos os votos e propostas da minoria para a maioria.
São formas técnicas às quais não podemos atribuir um valor absoluto. A minoria
pode ter a verdade. É possível que a maioria ceda à minoria, dada a importância
do que está em jogo para esta minoria. O comunismo é o advento da liberdade?
Sim, se quisermos dizer que os homens terão mais escolhas do que agora, que
poderão viver de acordo com os seus gostos.
O que rejeitamos
é a filosofia que se opõe ao livre arbítrio e ao determinismo. Esta separação
reflecte a oposição do homem e do mundo, do indivíduo e da sociedade. Expressa
o desenraizamento do indivíduo e a sua incapacidade de compreender as suas
próprias necessidades para satisfazê-las. Ele pode escolher entre mil empregos,
entre mil hobbies, entre mil amores, e ser influenciado de mil maneiras porque
nada realmente o preocupa. Sem certeza habita isso. 77
Ele duvida de tudo, antes de tudo de si mesmo. Ao fazer isso, ele está pronto para suportar tudo e muitas vezes acredita que escolheu. A liberdade apresenta-se como a roupagem filosófica da miséria. A dúvida como expressão da liberdade de pensamento quando significa confusão, a incapacidade do homem de se situar no seu mundo. No decurso da revolução o homem perde as suas cadeias mas, tornando-se finalmente ele próprio, encontra-se acorrentado simultaneamente aos seus desejos e às necessidades do momento. Ele apaixona-se novamente e começa a conhecer-se novamente. O extraordinário clima de alegria e tensão das insurreições está ligado ao sentimento de que tudo é possível e conjuntamente de que o que fazemos deve imperativamente ser feito. Não há mais necessidade de hesitar e ser jogado entre actividades insignificantes. As restricções subjectivas e objectivas fundem-se.
O CIRCO
ELEITORAL
Se você ataca a
democracia, dir-nos-ão as mentes subtis, é porque você sabe que isso o
condenaria.
Não temos
ilusões. É certo que com o sistema a funcionar normalmente seríamos fortemente
derrotados. O nosso programa poderá não ser considerado desagradável pela
maioria dos eleitores, mas certamente seria considerado impraticável. Somente
negando-se como eleitores é que poderiam começar a ver a possibilidade da sua
realização.
Se a política é a
arte do possível, como dizem, estamos fora desta possibilidade.
Senhores,
eleitoralistas e democratas, estão prontos para questionar a população sobre
certas questões e levá-las em consideração? Vocês, que são os lacaios do
capital, estão prontos para organizar um referendo para saber se devem ou não
manter o capitalismo? Há uma infinidade de perguntas que você nunca fará. Elas
são eliminadas antecipadamente por serem irrealistas. Você decide o que é
possível e o que não é. Isso ainda não é suficiente para si. Os seus programas
e previsões realistas nunca devem ser aplicados.
O Estado vive
graças aos impostos dos cidadãos. É gerido graças ao seu voto. Se a sua
política fosse aprovada e apoiada directamente pela aceitação ou recusa do
pagamento de impostos por parte dos indivíduos, correria o risco de perder
muitos apoiantes. Ao pagar, o cidadão tem a impressão de estar a ser enganado.
Quando vota, ele que, de outra forma, apenas tem de manter a boca fechada, fica
lisonjeado por a sua opinião ser procurada.
Há uma
dissociação entre, por um lado, a gestão real do sistema e as camadas de
funcionários que dele cuidam e, por outro lado, a política partidária, a
política espectáculo.
A democracia
eleitoral serve para esconder o facto de que decisões importantes escapam aos
eleitores e até aos políticos. A realidade política e eleitoral está cada vez
mais impregnada de mercadorias. A democracia parece ser um reflexo directo do
mundo económico. O eleitor já não é nem cidadão, mas consumidor de programas e
ideologias. O espectáculo da política e os seus momentos privilegiados que são
as eleições devem ser denunciados pelo que são: uma forma entre outras de fazer
o povo esquecer que não são nada. 78
Às vezes as
pessoas acreditam na palavra dos mentirosos. Por eleições rejeitadas ou pelo
que lhes parece uma vitória eleitoral, começam a rebelar-se. Isso não faz mais
parte da realidade eleitoral.
Não defendemos a
participação nas eleições e muito menos a abstenção. Quando os proletários
votam, eles têm, se não estão certos, pelo menos as suas razões. Este ritual só
parecerá verdadeiramente ilusório, ridículo e lamentável quando todas as
condições de vida começarem a transformar-se verdadeiramente. Entretanto, tem o
seu lugar no resto da gama.
Numa organização
comunista pode muito bem haver eleições. Delegados são designados. Mas as
eleições já não parecem ser um momento especial. O funcionário eleito não tem
autorização. Cumpre uma função entre outras e não é mais sagrada do que
qualquer outra. Ao designar uma determinada pessoa ou equipa ou aprovar a sua
acção posteriormente, o grupo de base apenas dá garantias quanto à aplicação do
seu programa. O que importa não é o procedimento de designação, mas a acção
efectivamente executada.
A constituição de
conselhos de trabalhadores não exige uma consulta eleitoral geral como
pré-requisito. Não se trata de libertar uma área para organizar eleições que só
seriam reconhecidas como válidas pelos organizadores, como é costume. Sobre
este assunto temos o mau exemplo da Comuna de Paris.
Mesmo que neste
tipo de situação as eleições pudessem ser seriamente organizadas, isso apenas
dissociaria a decisão e a acção e traria de volta os profissionais políticos.
As eleições exigem que os eleitores sejam listados e mapeados.
O estabelecimento
de uma administração através de eleições pressupõe a existência desta administração!
Não é o poder e o Estado que nascem das eleições, mas sim o contrário.
Organizações
revolucionárias de massas serão formadas e fortalecidas de acordo com tarefas
práticas. Elas surgirão da acção de uma minoria. Não vamos ver de repente 51%
da população a correr em direcção ao mesmo objectivo ao mesmo tempo. Esta
minoria activa distinguir-se-á pelo facto de não organizar o resto da
população, mas tender a envolvê-la na resolução dos problemas de todos. O seu
sucesso dependerá da sua capacidade de envolver bem mais de 51% da população.
O comunismo não
pode ser estabelecido através de um golpe. Tendo contra si o poder do Estado e
os seus instrumentos de repressão, o comunismo só poderá vencer se conseguir
desenvolver a participação mais ou menos activa de uma grande parte da
população e isolar uma pequena minoria como adversária.
A revolução
proletária, ao quebrar as cadeias do trabalho assalariado, permitirá e exigirá
a participação das massas sem comparação possível com a das revoluções
políticas burguesas. Mesmo quando essas revoluções eram revoluções populares.
Estas revoluções populares que os democratas afirmam ser não foram decididas
democraticamente. Em 1789, se tivéssemos dado a escolha aos franceses, eles
teriam votado a favor da revolução? Na realidade, foi a partir do carácter
ultrapassado dos privilégios dos nobres que surgiu uma fracção da população.
Impulsionada pelos sucessos e consequências das suas ações, ela gradualmente
chegou ao fim de um sistema podre. 79
O Partido
Comunista só liderará a esmagadora maioria da população quando o comunismo
aparecer como o meio imediato de resolver os problemas da vida quotidiana. A
revolução não surge porque um número suficiente de pessoas se torna
revolucionário. As pessoas tornam-se revolucionárias porque a revolução
aparece, porque lhes parece possível e necessário viver de forma diferente.
Hoje, quando
todos os elementos da estrutura social se apoiam, o desaparecimento do dinheiro
parece impossível. Aqueles que o defendem parecem bons sonhadores. Enquanto os
mecanismos de mercado falharem, continuar a depender do dinheiro para o
abastecimento parecerá uma acrobacia imbecil. Unir-nos-emos ao comunismo não
por ideologia ou mesmo por desgosto por uma sociedade moribunda, mas por uma
simples necessidade vital. Teremos então de nos defender contra oportunistas
incapazes de ter perspectivas de longo prazo que procurarão tirar vantagens
imediatas e pessoais da situação.
Porquê, se
considerarmos que a revolução deve contar com a participação mais ampla possível,
não nos declararmos democratas? Talvez isso envergonhasse alguns dos nossos
adversários e talvez nos ganhasse alguns amigos. Mas precisamente, não somos
políticos, uma manifestação superficial é mais embaraçosa do que útil.
Precisamos ser claros para podermos reunir e orientar os nossos apoiantes em
bases sólidas. Quanto aos nossos verdadeiros adversários, não queremos
facilitar-lhes as coisas, mas em qualquer caso, eles não se importam com o que
realmente dizemos e queremos. Ou não compreendem, ou caluniam, mesmo que isso
signifique escolher algumas ideias dos revolucionários para iluminar o seu
programa.
A democracia
seria o poder do povo, o poder de todos. A revolução comunista não pretende
mudar a forma do poder nem entregá-lo ao povo. Ela quer tirar isso de todos.
O poder sempre
precisa de legitimação externa a si mesmo. Deus pela monarquia, o povo pela
democracia coroada ou republicana. As pessoas têm mais realidade do que Deus?
Não, Deus é um personagem, uma encarnação repleta de humanidade, enquanto as
pessoas tendem a ser uma pura abstracção da humanidade. Este povo que invocamos
para apoiar o Estado é apenas o seu reflexo. Entre este povo em ideia, este
povo político e o povo real, diverso, vivo, estúpido ou inteligente, que se
manifesta na vida quotidiana, existe um mundo.
Não é a política
que expressa e incorpora as ideias e desejos dos humanos, são estes que se
tornam o suporte das opiniões políticas. Eles próprios tornam-se abstracções
quando os eleitores ou activistas confessam estas opiniões. Porque é que os
comunistas que querem pôr fim à exploração e às guerras não renunciam aos
procedimentos coercivos e ditatoriais? 80
Acreditamos que
as classes dominantes desistirão de utilizar estes meios? Acreditamos que num
período de convulsão os Estados mais democráticos não porão de lado os seus
belos princípios? Os ricos, os privilegiados e os mais liberais servidores da
ordem talvez afirmem que estão a lutar pela democracia. Não apresentarão a
defesa dos seus verdadeiros interesses. Mas há poucas hipóteses de lutarem
democraticamente.
É com base numa situação de crise que é apropriado comparar métodos burgueses e métodos revolucionários. É hipócrita contrastar o comportamento dos Estados burgueses mais democráticos em tempos de paz com o comportamento dos revolucionários em tempos difíceis. Há todas as possibilidades de que, em tempos de crise, os revolucionários se mostrem mais humanos e mais democráticos do que os defensores da ordem.
A GREVE
A democracia está
a ser negada com o desenvolvimento de greves e revoltas selvagens. O início da
acção não depende de uma consulta democrática da base ou dos seus
representantes.
Uma fracção dos operários,
por serem mais combativos, menos alienados, colocados em condições mais
favoráveis, rebela-se. Não há divisão entre decisão e execução, entre quem
decide e quem executa.
O problema
fundamental não é necessariamente conseguir que todos participem. A partir de
uma posição-chave na produção você pode fazer o chefe ceder. Parar o trabalho
pode ser o seu próprio objectivo, é apenas uma questão de respirar ou
recusar-se a fazer um determinado trabalho. É possível que o desengate de uma
alavanca provoque um desengate geral. Isto é o que vimos acontecer à escala
nacional em Maio de 68.
A greve espalha-se.
É aprovada pela grande maioria dos operários. A adesão é criada em acção e não
terá havido consulta prévia de todos aqueles que serão afectados.
Se os operários
tivessem tido que decidir democraticamente sobre a conveniência de iniciar as
hostilidades, talvez tivessem desistido. O exemplo de um pequeno número ter-lhes-á
mostrado a brecha para a qual se devem precipitar, o medo da gestão e o
possível sucesso. Serão dominados pelo clima de luta e solidariedade e mais
capazes de superar o sentimento de desânimo e de resignação que o desamparo
diário gera.
Suponhamos que a
greve foi decidida durante uma consulta. Provavelmente teria sido diferente.
Chega de ofensivas imprevistas dos operários. O adversário teria sido informado
sobre a natureza, forma, escala e objectivos do movimento. A organização teria
precedido a acção e desestimulado iniciativas. Os grevistas teriam permanecido
mais ou menos passivos e, com excepção de uma minoria de sindicalistas ou
organizadores, estranhos à sua greve. Quando os operários começam a
radicalizar-se, o momento democrático apresenta-se cada vez mais como o momento
da recuperação. Trata-se de votar na recuperação. Os burocratas, especialistas
em negociação, estão a recuperar a vantagem. A democracia torna-se a expressão
da renúncia. Ela visivelmente se torna o que já era aos 81 anos basicamente.
O recurso à única
assembleia geral soberana para lutar contra a burocratização não é suficiente.
A assembleia pode tornar-se o local privilegiado de manipulação, a reunião em
massa de indivíduos separados e impotentes, o suporte para conversas confusas e
inúteis.
As assembleias gerais são necessárias. Você deve ser capaz de fazer um balanço, avaliar os seus pontos fortes, controlar e exigir responsabilização dos delegados e comissões especializadas. Mas a assembleia não deve aparecer como o momento em que tudo está suspenso, em benefício do qual o resto da realidade é despojado.
O PARTIDO
À medida que a
crise do capital se aprofunda e torna mais visível a futilidade das soluções
capitalistas para esta crise, um partido comunista está a reformar-se entre a
população.
A formação do
partido não é a causa que determina a crise. Não é o pré-requisito para o
ataque ao capital. O seu desenvolvimento quantitativo e qualitativo é, pelo
contrário, extremamente dependente do surgimento desta crise. Ele procurará
orientar e facilitar o resultado.
O partido não é
uma reunião constituída segundo uma doutrina formada que se expandiria sem que
a sua natureza mudasse. O partido não existe, está constituído. Aos poucos ele
emerge, ganha contornos e conteúdos mais claros. A sua natureza torna-se mais
clara e o número dos seus membros aumenta à medida que surgem possibilidades de
ruptura com o sistema.
Contudo, a
constituição do partido não é um fenómeno novo e indeterminado. O partido, tal
como nasce num determinado período histórico, é o ressurgimento de um movimento
que escapa a esses limites temporais. O partido moderno reconecta-se com um
partido cuja realidade e até memória foram apagadas pela contra-revolução. Fora
dos períodos de insurreição, quando o comunismo só consegue afirmar-se de forma
tímida e descontínua, o partido em sentido estrito está condenado a permanecer
uma fracção minúscula e negligenciada da população. Ao lado dos comunistas
conscientes, há muitos comunistas inconscientes que manifestam exigências
revolucionárias através do seu comportamento. O partido, no sentido lato
daqueles que se mostram mais ou menos conscientemente comunistas com base no
aumento de oportunidades, não é visível. A sua imagem não se concretiza no
espetáculo reinante. No entanto, o seu poder é sentido no próprio nível deste
espetáculo. Publicitários e políticos que colocam o seu lixo são ecos
distorcidos das suas esperanças. A burguesia e os burocratas tremem diante
desta ameaça ainda sem nome e sem rosto.
É contraditório afirmar ser comunista num mundo que reprime o comunismo por todos os meios. Os comunistas não são super-homens que já vivem de forma diferente dos seus pares. Eles não escapam da pobreza ambiental. Para transformar as suas próprias vidas, a sua consciência teórica tem pouco peso. 82
É essencial e, em
qualquer caso, inevitável que apareçam comunistas conscientes e se encarreguem
de compreender e preparar a revolução comunista. Mas não podemos opor-nos aos
comunistas conscientes e aos comunistas inconscientes. O que importa é ver como
e porquê a consciência comunista se desenvolve como uma necessidade prática.
Certamente há
pessoas que se autodenominam revolucionárias. A produção destes
“revolucionários” não é independente da ascensão da crise. A maioria deles não
são comunistas e nem sabem o que são e o que querem. O desejo de revolução
apresenta-se como o último e mais vazio desejo possível nesta sociedade. É uma
abstracção separada das necessidades e esperanças concretas. O “revolucionário”
pode falar de tudo, apaixonar-se por questões de estratégia, mas é incapaz de
definir o que aspira. Se fala das transformações a serem feitas, a sua
perspectiva é dominada pela questão do poder. A sociedade a construir baseia-se
numa nova distribuição de poder. O que “queremos” é poder popular, poder
operário, poder estudantil, poder municipal (+ eletrificação ou automação!),
poder das pessoas sobre as suas próprias vidas, poder para poder...
Pelo contrário, a
maioria daqueles que serão revolucionários quando a revolução corresponder a
necessidades e possibilidades concretas não sentem a necessidade de se auto-denominarem
revolucionários.
Só numa fase de
confronto aberto, quando existe a possibilidade de comunização do corpo social,
é que o partido pode deixar de ser apenas a reunião de opiniões comuns ou o
produto de acções esporádicas. Pode finalmente tornar-se uma comunidade de acção.
Quando o
proletariado participa como um todo na revolução, o partido não se confunde com
a classe. Ele não afirma ser o proletariado ou representá-lo. É a fracção mais
lúcida e determinada. Co-existe, colabora ou entra em conflito com outras fracções
mais moderadas ou subservientes aos aparelhos e ideologias burguesas.
Podemos
caracterizar a sua acção numa frase: Crie a situação que torne impossível
qualquer retrocesso.
É normal que
surjam oposições entre a acção dos comunistas e o comportamento das massas.
Isto não é um sinal de antagonismo fundamental. O partido não tem de eliminar
organizações e movimentos de massas. Os conselhos e outros comités de base não
têm de eliminar o partido. Se uma destas duas coisas acontecesse, significaria
necessariamente o fim e a derrota da revolução. Esta visão de antagonismo é um
legado da revolução russa e da onda conselhista da década de 1920. Tem apenas
um defeito: considerar como comunistas organizações que não o eram.
O partido lutará
pelos conselhos porque esta luta não pode ser separada daquela pelo comunismo.
Mesmo que neste ou naquele ponto ou modo de organização os comunistas se
encontrem em desacordo com as massas.
O próprio
partido, que não é uma organização ou pior uma instituição unificada a partir
de cima, organizar-se-á em modo conselhista. É o encontro daqueles que se
colocam para além das tarefas e interesses imediatos da defesa do todo o
movimento. 83
Deve indicar as
fortalezas a serem desmanteladas, concentrar forças em pontos estratégicos e
propor soluções.
Não há nenhuma
organização que possa dizer que é o partido. Ele nunca se identifica com
nenhuma seita ou organização de massa. Os apoiantes do comunismo manifestam-se
pelo que fazem e não pela pertença a um grupo limitado. As formas
organizacionais não precisam ser fixadas ou unificadas antecipadamente. Elas
serão descobertas durante o movimento.
VII INSURREIÇÃO
E COMUNIZAÇÃO
A comunicação da
sociedade não ocorrerá de forma gradual e calma, mas de forma abrupta e insurreccional.
Não será uma viagem tranquila para a qual as forças complacentes se reunirão
gradualmente.
A insurreição e a comunização estão intimamente ligadas. Não haverá primeiro uma insurreição e depois, possibilitada por esta insurreição, a transformação da realidade social. O processo insurreccional retira a sua força da própria comunização. Entre o capitalismo e o comunismo não existe algum tipo de modo de produção misto e intermediário. O período de transição, ou melhor, o período de ruptura é caracterizado pela contradição entre métodos absolutamente comunistas, por um lado, e por outro, uma realidade ainda impregnada de mercantilismo. É nesta fase que uma sociedade de abundância e liberdade deve enfrentar problemas de escassez e poder. Deve liquidar os efeitos humanos e materiais de uma era de escravatura e neutralizar as forças que lhe permanecem ligadas.
A VIOLÊNCIA
O uso da
violência, para atingir os seus fins, é o que distinguiria os revolucionários
dos reformistas.
A oposição entre
revolucionários e reformistas não tem tanto a ver com estratégia e método, mas
sim com a natureza da transformação a ser realizada. Daí surge obviamente uma
diferença de método.
A história
distinguiu dois tipos de reformistas: os suaves e os duros.
Os reformistas
suaves, os social-democratas e os parlamentares, acreditam que os seus
ajustamentos podem ser feitos com suavidade. Muitas vezes têm razão na medida
em que as suas ilusões se relacionam com a profundidade das reformas que podem
aplicar. Todos os dias e nos quatro cantos do mundo provam que os interesses
vigentes concordam em não reprimir aqueles que não os ameaçam. Estes
reformistas suaves tornam-se por vezes duros, mas a sua dureza é exercida
principalmente contra o proletariado.
Ao lado deles
estão os verdadeiros linha-dura, isto é, os estalinistas e similares. Essas
pessoas pensam que são revolucionários. O seu objectivo é dominar o Estado e
controlar a economia, substituindo os líderes existentes. Eles não têm nenhum
interesse em subestimar a capacidade de resposta dos seus adversários. O seu
sucesso e até a sua pele estão em jogo. 84
E os
revolucionários?
A revolução
comunista é uma tremenda convulsão social. Envolve confrontos e violência. Mas
se a revolução é um acto de força, o seu problema essencial não é um problema
de violência e a condição do seu sucesso não é essencialmente uma questão de
força militar.
Isto porque a
revolução não é uma questão de poder. Não disputamos o Estado ou a economia com
quem está no poder. Graças às posições que ocupa na economia, o comunismo
poderá minar as bases e desarmar a contra-revolução, especialmente a militar.
Ele evitará o confronto directo tanto quanto possível.
A revolução
comunista não faz da violência o problema central porque visa dar vida ao que
já existe e não forçar um projecto a tornar-se realidade.
Tanto quanto
fanáticos e fetichistas da violência, opomo-nos aos pacifistas. Por mais que
possamos e devamos adoptar métodos não violentos, inclusive em relação aos
militares, não podemos aceitar a ideologia não violenta. Esta ideologia carrega
e depende de ilusões educacionais. Assume que todas as pessoas podem ser
educadas na não-violência e podem mobilizar-se friamente. Quer acções de massa
mas não vê que os problemas de informação e coordenação colocados por este tipo
de acção e resposta não podem ser resolvidos sem a possibilidade de violência.
A não-violência sistemática pressupõe que haja um consenso entre os adversários
para respeitar certas regras e, antes de tudo, uma liberdade mínima de
informação.
A não-violência é
mais eficaz como método defensivo. Os seus limites aparecem na hora de tomar a
iniciativa e neutralizar os seus inimigos.
Quanto mais a
revolução se erguer com força e lucidez, quanto mais ela impõe e apresenta as
suas opções como irreversíveis, mais será capaz de reunir os hesitantes e
neutralizar os adversários. Compreender o papel limitado mas essencial da
violência pode evitar erros com resultados sangrentos.
O proletariado
não pode renunciar à obtenção, fabrico e utilização de armas. Se as armas nem sempre
estão espalhadas pela sociedade, os materiais utilizados para fabricá-las são
frequentes e em grandes quantidades. É fundamental identificá-los e
preparar-nos para a sua possível utilização, armar-nos e preparar armadilhas
que farão com que os nossos inimigos paguem caro pelas suas intervenções. O que
é ridículo e vergonhoso é pressionar as pessoas a formarem grupos de auto-defesa
e a equiparem-se com armas ou facas para defenderem as suas fábricas e bairros
contra tanques ou aviões.
Não podemos prever
o curso de futuras insurreições, mas podemos defender uma estratégia
antecipadamente e durante o movimento. Esta estratégia baseia-se na própria
natureza da revolução comunista e nos pontos fortes de cada indivíduo. 85
Os burgueses e os
burocratas dependem do exército. A força do proletariado está na sua posição
económica.
O exército é
vulnerável, mas não tanto do ponto de vista militar, mas sim devido à sua
dependência da economia. Depende cada vez mais directamente dele para obter
armas, munições, alimentos e transporte. Inclui operários e técnicos. Para
travar a guerra, e a guerra moderna é dispendiosa, a administração deve
seguir-se e o país deve funcionar. A contra-revolução militar deve ser atacada
na sua rectaguarda económica. É crucial que um exército nacional não possa
reprimir noutros lugares porque a paz social seria mantida a nível interno.
Os militares conhecem o risco que correriam se tivessem de compensar as “falhas” dos operários no campo da produção. O exército não pode organizar a economia contra os operários. Ela prefere ter um oponente bem definido e da mesma natureza que ela a ter que realizar tarefas que lhe são estranhas, ficando presa nelas e ali se dispersando.
O EXÉRCITO
É comum imaginar
a revolução como um confronto entre dois exércitos. Um às ordens dos
privilegiados e dos exploradores, o outro ao serviço dos proletários. A
revolução é reduzida a uma guerra. A questão é a tomada do poder e o controle
dos territórios. Esta é uma visão perigosamente falsa. Baseia-se na memória das
batalhas das guerras civis russa e espanhola, bem como nas guerras de
libertação nacional.
Mesmo que neste
ou naquele momento, nesta ou naquela circunstância, a acção revolucionária tome
um rumo militar: intervenções de comandos, ataques aéreos... isto não mudará
nada na natureza profunda e no carácter global do conflito.
Ver a revolução
como um confronto entre exércitos vermelhos e brancos não seria comunista, mas
também seria estúpido, dada a desproporção das forças militares presentes.
Oferecer uma guerra ao capital seria entrar no seu jogo.
O exército e a
polícia constituem o último bastião do capital. A sua acção pode exprimir-se
directamente pela destruição dos homens e das coisas, mas também pela criação e
manutenção de uma situação de escassez susceptível de desenvolver o egoísmo, o
medo e outros velhos reflexos. Isto colocaria as populações necessitadas contra
os revolucionários causadores de problemas e tenderia a reavivar os mecanismos
comerciais.
O exército pode
ser usado para operar e controlar determinados sectores estratégicos da
economia.
Pela sua natureza
hierárquica que elimina a discussão e a contestação em favor da obediência e da
disciplina, pela sua função e pela sua ideologia patriótica o exército tende a
ser um órgão conservador.
Mas a
contra-revolução militar tem falhas.
A impressão de
segurança e o sentimento de direito que os soldados retiram do seu gueto e dos
seus encantos correm o risco de serem rapidamente prejudicados se não
conseguirem justificar-se e fortalecer-se no confronto com um exército oponente
num campo de batalha bem definido. Devemos impedir que o exército funcione como
um exército, opor-lhe a fluidez dissolvente do comunismo. Trata-se de
paralisar, contaminar, dividir, deslocar as forças militares. 86
As nossas intervenções
armadas devem acompanhar de perto a nossa acção de destruição e reconstrução
social. O uso da violência não deve tornar-se uma actividade autónoma e auto-justificável.
Serve para bloquear e desbloquear situações directamente baseadas na comunização
que lhe dá a sua justificação mas também a sua força.
Nunca seremos
suficientemente cautelosos durante ou antes de uma fase insurreccional de
violência separada, de terrorismo. Os revolucionários encontram-se presos numa
espiral de luta e resposta da qual o comunismo acaba por estar ausente. Quando
a violência se torna violência para o comunismo e já não acompanha o comunismo,
quando é esvaziada do seu conteúdo imediato, isto permite todas as provocações.
É fácil cometer assassinatos ou ataques e atribuir a culpa aos revolucionários.
Através da
transformação imediata e radical da organização social, devemos puxar o tapete
aos pés dos militares, privando-os de algo para defender. O exército é um
instrumento, não pode fazer tudo sozinho como organização de violência. Você
pode fazer qualquer coisa com uma baioneta, excepto sentar-se nela.
Há um preconceito
na esquerda favorável aos intelectuais e desfavorável aos militares. Quando se
trata de revolução, pensamos naturalmente que a primeira ficará do lado dela e
a segunda contra ela. De um lado a inteligência, do outro a força cega.
A história
mostrou o elemento de erro que estes preconceitos contêm. Desde a Comuna de
Paris, onde o Coronel Rossel se aliou aos insurgentes e foi fuzilado por isso,
e onde os escritores progressistas G. Sand e E. Zola cuspiram nesses mesmos
insurgentes, parte das forças armadas tem sido regularmente transferida para o
lado da insurreição. e uma parte não menos notável da intelectualidade
levantou-se contra ela.
A revolução é
assim que quando ocorre às vezes assusta quem a quis e encanta quem a temia.
O exército forma
um corpo bastante autónomo cujos valores são em parte estranhos aos valores
propriamente burgueses e mercantis. A classe burguesa não é capaz, tal como a
classe feudal, de se encarregar da sua própria defesa. Ela repassa para o
exército ou para a polícia. Mesmo que alguns dos líderes do exército
identifiquem completamente os seus interesses com os da classe dominante,
existe, no entanto, uma contradição latente entre os interesses e o
comportamento dos militares e os da burguesia.
Não devemos acreditar que o exército ou parte do exército se aliará espontânea e facilmente à revolução. Isto só pode acontecer dependendo do desenvolvimento da revolução e da sua penetração no exército. O exército tornar-se-á revolucionário na medida em que, sob a pressão dos soldados e oficiais, a omnipotência da hierarquia será posta em causa e a obediência cega será condenada. 87
Os
revolucionários não devem fazer concessões ao militarismo. Devemos mostrar aos
militares que não lutam em seu próprio nome e muito menos em nome da Nação.
Deve ser demonstrado que os seus ideais são minados pelo movimento de capitais.
Devemos também mostrar que os militares, enquanto homens e com as suas próprias
capacidades e qualidades, têm o seu lugar no movimento comunista.
O nosso objectivo
é a destruição do exército. Devemos esperar que isso possa ser alcançado com o
menor número possível de confrontos com os militares. Pouco a pouco, os grupos
armados recém-formados ou integrados perderão o seu carácter próprio ao
participarem em tarefas produtivas e em conselhos operários.
A revolução não
deve compreender mal a sua força e perder as possibilidades de integração nas
suas forças, transformando-as em órgãos de repressão da velha sociedade. O
policia pode estar muito disposto a servir o que não lhe parece mais uma
subversão, mas sim uma nova autoridade. Podemos até esperar que alguns não
queiram mais ser lacaios.
Em qualquer caso, os revolucionários e os proletários não devem deixar o monopólio das armas a outros. Esta questão de armar o proletariado será um teste para avaliar o valor de reunir soldados para a revolução.
VINGANÇA
Os
revolucionários não têm gosto por sangue nem espírito de vingança. As
insurreições passadas mostram que os insurgentes são geralmente responsáveis por pouco do derramamento de sangue. A
esperança apaga o ressentimento.
Foi a
contra-revolução que massacrou, prendeu, deportou. O sangue foi derramado
durante os combates, mas muitas vezes também depois, quando a vitória militar
foi alcançada. Fúria assassina nascida do terror dos ricos. A reacção deve
esmagar as forças opostas. A revolução parece-lhe residir nos revolucionários.
Eles devem, portanto, ser destruídos.
O espírito de
vingança pode ter desempenhado um papel nas insurreições dos operários. Mas o
que é isso se compararmos a sua acção com a repressão de Versalhes, do Kuomingtang
em 1927, dos franquistas...
As insurreições
operárias foram muito menos vingativas do que as revoltas camponesas anti-feudais.
Isto ocorre porque a revolução não é um acto de desespero. A destruição de
propriedades e as represálias contra as pessoas são muitas vezes obra daqueles
que não sabem como escapar à pobreza e se contentam em aniquilar aquilo que
encarna a opressão.
Vingar-se não
seria apenas mesquinho, seria estúpido. Condenar antecipadamente com base no
passado é fortalecer os nossos adversários no seu medo e determinação. Não é
criar inimigos entre aqueles que, com ou sem razão, pensam ter algo pelo que se
censurar. É encorajar o acerto pessoal de contas.
Devemos oferecer
aos nossos adversários a oportunidade de mudar de lado. Os princípios
comunistas não ditam por si só um modo de conduta uniforme. Pelo contrário,
implicam que a diversidade de personagens, situações e passados daqueles que participam na revolução
podem ser expressados. Melhor, implicam que se os nossos adversários conseguirem
cegar-se a si próprios, para não vermos mais em nós mesmos nada além de “vermes
vermelhos”, devemos, pela nossa parte, continuar a reconhecer um ser humano no
pior dos nossos inimigos. Sem qualquer ilusão sobre a natureza humana.
Seria estúpido
alienar médicos, engenheiros, agricultores quando muitos deles estarão
dispostos a juntar-se a nós sem que façamos concessões ao mito do especialista,
à hierarquia do trabalho, à propriedade. Isto significa que, por vezes, os
conselhos terão de proteger determinadas situações adquiridas. Isto irá contra
a igualdade, mas irá pressionar algumas pessoas, dando-lhes ainda algo que
valorizam. Aos médicos pode ser garantida a utilização da sua residência e do
seu equipamento profissional desde que não emigrem e que tratem quem dele
necessita. Essa segunda casa localizada no campo pode retornar ao seu legítimo
proprietário, um parente ou amigo, sem admitir que as pessoas possam ter duas
casas e outras ficarem num bairro da lata.
Por outro lado,
quem procura preservar privilégios ou aproveitar a situação para encher os
bolsos deve saber que não poderá beneficiar da piedade das suas vítimas.
Quanto mais confiantes estiverem os conselhos revolucionários, mais serão capazes de estabelecer regras claras, mais serão capazes de transformar rapidamente a realidade e menos violência será necessária.
RECONVERSÃO
Comunizar não
significa expulsar os patrões das empresas e das fábricas para se agarrarem a
elas, mas começar por fechar grande parte delas.
A fronteira entre
a contra-revolução e a revolução passará entre aqueles que em nome da pátria,
da democracia, da autogestão, dos conselhos operários, de Cristo Rei ou do
creme de chocolate empurrarão os operários-consumidores a agarrarem-se às suas
prisões e às suas drogas e aqueles que pressionarão para reduzir massivamente e
reconverter radicalmente a produção. Tratar-se-á de reduzir a poluição e de
romper o mais rapidamente possível com a brutalização do trabalho e a pseudo-abundância
mercantil. Ficar na sua fábrica, mesmo para a gerir você mesmo, é congelar a
situação em benefício da contra-revolução. Quer esta atitude seja professada
por workaholics (viciados no trabalho – NdT), por sindicalistas ingénuos ou por
capitalistas malandros que esperam poupar tempo, o resultado é o mesmo.
Os
revolucionários serão provavelmente acusados por todos estes bons apóstolos de
quererem perturbar a produção e baixar o nível de vida do povo.
Nesta redução da produção não deveríamos ver qualquer fascínio pela austeridade. Os sacrifícios exigidos serão muito menores do que os exigidos por outra solução. Uma falsa solução que serviria apenas para evitar uma ruptura decisiva com o passado e para imobilizar as forças necessárias à luta. Falsa solução que reunirá todos aqueles que têm medo de ver desaparecer as bases do seu poder: sindicalistas convictos, pequenos e grandes dirigentes, políticos, administradores, patrões... 89
Só interrompendo
a produção de uma miríade de produtos inúteis, inúteis ou nocivos e quebrando a
divisão entre empresas poderemos concentrar forças para produzir em abundância
os produtos essenciais ou necessários. Será necessário realizar pesquisas e
iniciar a implantação de novas produções. A comunização, portanto, não
significa apenas desmonetização, mas também rápida transformação da produção.
As duas coisas estão intimamente ligadas.
Operários, assalariados,
professores serão convidados a ir para onde forem verdadeiramente úteis. Estas
mudanças basear-se-ão, antes de mais, no desgosto espontâneo das massas pelo
seu trabalho e na revelação das suas capacidades. Não serão realizados sob a
égide de um centro director, mas surgirão de uma infinidade de iniciativas
diversas. Isso não significa desordem e desleixo. Toda a revolução envolve um
elemento de incerteza, caos e desperdício. É importante reduzi-lo ao mínimo.
Esta é particularmente a tarefa dos mais radicais. Não somos contra a ordem,
nem contra a disciplina, nem contra a organização, nem mesmo contra a
autoridade. Teremos de denunciar e combater aqueles que confundem revolução com
bordel com a mesma determinação com que atacamos os estatistas cujo jogo eles
jogam.
A reconversão
deve, em primeiro lugar, garantir a satisfação das necessidades mais básicas.
Então terá de favorecer, em vez da criação de certos produtos, a criação das
ferramentas e máquinas necessárias ao seu fabrico. Este material será difundido
entre a população e permitirá que todos façam o que gostariam que outros
fizessem.
Aqui estão
algumas indicações sobre as possíveis mudanças dependendo dos principais sectores
económicos. Nenhuma dessas transformações faz sentido por si só. O perigo de
fazer propostas concretas é que elas podem ser utilizadas contra o comunismo.
Mas não devemos esquecer que os revolucionários não podem contentar-se em
afirmar princípios gerais e que devem, dependendo de uma situação específica,
propor soluções concretas.
Energia: Haverá
uma redução significativa na produção de energia. Esta redução decorre
naturalmente do encerramento de parte da indústria que consome a maior parte
desta energia. Talvez, de qualquer forma, se tornasse obrigatório devido à
dificuldade em garantir o abastecimento de petróleo, gás e carvão.
A distribuição de
energia será transformada. Parte do que era utilizado directamente pela
indústria poderia ser transferido para o consumo doméstico: aquecimento,
iluminação, alimentação de pequenas máquinas.
Implementaremos
gradativamente novas fontes de energia. Será necessário desenvolver aquilo que
menos polui e que poupa recursos limitados, como os combustíveis fósseis. Poderíamos
encorajar a produção descentralizada e intermitente para uso local. Em qualquer
caso, isto não significa que o comunismo se oponha fundamentalmente à energia
nuclear. Precisamos simplesmente de garantias sérias sobre as condições de
produção e os requisitos de utilização. No curto prazo, a água, o vento e o sol
parecem preferíveis. 90
Transportes: Os
transportes desperdiçam energia, poluem, criam desigualdades sociais... Mais
uma vez, haverá uma redução e uma racionalização significativas que serão
possíveis através da requalificação do espaço. As pessoas conseguirão evitar
viagens muito longas. Elas terão menos oportunidades de se mover contra a sua
vontade. Horários mais livres permitirão evitar aglomerações nos mesmos
horários e nos mesmos veículos. A produção dos automóveis actuais pode
geralmente ser interrompida. A quantidade de automóveis em circulação,
utilizados de forma mais racional, permite aguardar o desenvolvimento e o
fabrico de máquinas menos miseráveis. Alguns dos veículos poderiam ser
utilizados como táxis, com ou sem motorista, ou utilizados para missões
públicas.
A grande maioria
dos carros provavelmente continuará a ser usada de forma privada. Isto
permitirá preservar hábitos tradicionais e interessar os utilizadores no bom
funcionamento daquilo que lhes continuará a pertencer. Esta adesão pode ser
limitada por determinadas condições de utilização que visam restringir e
eliminar a circulação em determinados locais e permitir a melhor utilização e
preenchimento possível.
O comboio e
outros meios de transporte guiados devem ser incentivados e desenvolvidos. É
ainda aqui que se encontram a melhor segurança, a melhor eficiência energética
e a menor utilização possível do solo. Estas máquinas rápidas e confortáveis poderão ser complementadas por veículos
mais lentos, mais individuais e flexíveis na utilização, que serão equipados
com motores não poluentes.
Entretanto,
podemos continuar a produzir camiões, bicicletas, scooters e bons sapatos.
Para reduzir a
necessidade de viagens, especialmente no que diz respeito a contactos rápidos
de longa distância, será necessário desenvolver uma boa rede telefónica ou de
videofone. Isso permitirá que muito mais pessoas do que hoje entrem em contacto
a um custo muito menor. O avião é um aparelho barulhento e poluente para empresários
e turistas ocupados. O seu uso é difícil de generalizar para todos. Será,
portanto, necessário eliminá-lo ou reduzi-lo a determinados casos particulares.
Para viagens de
longa distância, por que não trazer os grandes navios de volta à moda,
modernizando-os? A sua produção daria origem a uma concorrência saudável. Em
qualquer caso, existirão outros meios de transporte de um continente para
outro. Para isso não há necessidade de supersónico.
Imprensa: Este é
um sector cuja importância revolucionária é fácil de compreender. Quem
controlará a imprensa?
Durante os
períodos de insurreição, os trabalhadores controlavam regularmente o conteúdo
dos jornais que imprimiam. Tudo começará de novo, não importa o que aconteça
com os defensores da liberdade de imprensa, que muitas vezes são apenas
defensores da liberdade do dinheiro. Mas isto não é o suficiente. A imprensa
terá que se transformar. Deixará de ser o reflexo contemplativo da realidade.
A revolução permitirá a liberdade de expressão impossível hoje. Uma grande quantidade de pequenas máquinas de impressão pertencentes a empresas e administrações será disponibilizada a todos. 91
Amanhã qualquer
livro ou texto não será publicado e distribuído com base no acordo de uma
editora. Será apoiado directamente e impresso primeiro por aqueles que nele
estiverem interessados. O seu sucesso dependerá, portanto, da coragem do seu
autor e do apoio prático que encontrará.
Hoje, uma parte
considerável do custo de um livro deve-se à sua distribuição e promoção
publicitária. A vantagem do comunismo é óbvia. Podemos até aceitar, para salvar
as florestas, que jornais ou textos circulem ou sejam publicados.
O comunismo, ao
mesmo tempo que promove a expressão escrita, oral ou audiovisual de todos,
deverá permitir reduzir as despesas da sociedade em papel e tinta.
O que será da
literatura? Não há dúvida de que se transformará e que a actividade romântica
perderá gradualmente a sua necessidade. Não haverá mais, mesmo que continuemos
a lidar com a ficção, um mundo de livros oposto ao mundo real. Talvez com o
tempo, a comunicação escrita perca importância e tenda a desaparecer.
Construção: A
indústria da construção passará por mudanças. Isso não significa que os
pedreiros ficarão desempregados. A construção é uma das poucas actividades que
não diminuirá.
No entanto, terão
de ser tomadas medidas para limitar ou proibir mais radicalmente a construção
em cidades e subúrbios sobrelotados. Mas as pessoas que se deslocam para fora
destes centros urbanos terão de ser acomodadas. Casas e edifícios de todos os
tipos terão de ser iniciados. Será também necessário demolir e organizar a
recuperação de materiais.
Ali, como noutros
lugares, mas talvez ainda mais rapidamente, o profissionalismo será
prejudicado. Quem quiser ter uma casa nova terá que colocar a mão na massa.
Serão ajudados por aqueles que, através da formação ou da experiência, os
conhecem melhor.
Aqueles que
estiverem mal alojados serão imediatamente transferidos para apartamentos e
residências que, seja qual for o motivo, sejam gratuitas. A suspensão do
pagamento de rendas e despejos será naturalmente uma das primeiras
manifestações da revolução. Vestuário: Não podemos transformar tudo de uma vez.
Teremos que continuar a produzir com base nos materiais e máquinas existentes.
As transformações certamente poderiam ser feitas com bastante rapidez no
sentido da qualidade e da solidez.
Um certo número de modelos de roupas e sapatos pode ser produzido em grande número. Paralelamente, desenvolveremos a produção de tecidos e pequenas máquinas para que as próprias pessoas possam fazer o que precisam. Isso permitirá que os produtos sejam adaptados ao gosto das pessoas. Isto permitirá que a distribuição dos recursos dependa dos esforços directamente prestados. Alimentação: A industrialização de produtos alimentares resultou geralmente numa deterioração da qualidade destes produtos. O comunismo deve aumentar o mais rapidamente possível a quantidade de alimentos produzidos, alterar a sua distribuição, especialmente em benefício das populações subnutridas do Terceiro Mundo, e agir para melhorar a qualidade. 92
Serão
introduzidas alterações na composição dos produtos. Será necessário excluir
tudo o que seja prejudicial ou mesmo inútil e que sirva apenas para enganar o
consumidor. A embalagem será simplificada.
Do ponto de vista
agrícola, será necessário limitar e reduzir gradualmente a utilização de
produtos químicos. Esta não é uma posição de princípio contra qualquer coisa
química ou artificial, mas uma oposição à deterioração real e à falsificação
dos produtos agrícolas.
A monocultura
terá que dar lugar à policultura e à associação da agricultura e pecuária que
permite a reciclagem e utilização de estrume e resíduos. Isto permite reduzir a
importância das contribuições externas, que são de vital importância
especialmente para os países não industrializados.
É melhor para as
forças da sociedade investirem directamente no cultivo da terra, em vez de em
fábricas de fertilizantes e produtos químicos. Mesmo que isso signifique
desviar a atenção dos braços da agricultura, é melhor fabricar ferramentas e
máquinas agrícolas. Este material terá de ser introduzido, em particular, na
agricultura do Terceiro Mundo.
A investigação
sobre a qualidade dos alimentos e os métodos agrícolas, que estão actualmente
relativamente subdesenvolvidos, terá de ser alargada. Devemos seleccionar as
melhores variedades de plantas, os métodos mais suaves para o solo e uma
distribuição de culturas adaptada às necessidades alimentares. Na agricultura,
como noutros lugares, há escolhas a fazer: devemos favorecer a produção de
proteínas animais ou vegetais? Devemos preferir rendimento ou robustez?
Saúde: Os
problemas de saúde são em grande parte causados pelas condições de vida e de trabalho. O
comunismo, ao revolucionar estas condições, fará muito pela saúde das
populações.
A ênfase deve ser
colocada nas medidas de higiene e prevenção. A produção de medicamentos será
reduzida. Alguns produtos que são inúteis ou que atualmente parecem úteis serão
removidos. Tal como acontece com as marcas de detergentes para a roupa, existem
vários produtos para o mesmo produto farmacêutico. O custo da embalagem e da
publicidade supera o custo do produto realmente activo. Tudo isso obviamente
desaparecerá.
Trata-se de
desprofissionalizar a medicina o mais rápido possível. Isto significa
reintroduzir conhecimentos médicos e higiénicos perdidos na população.
Viabilizar o uso de plantas medicinais. Isto significa formar uma fracção da
população para que possa intervir clinicamente, num prazo bastante curto.
Educação: O
período de insurreição e reconversão desenvolverá a necessidade de educação e
aprendizagem. Como grande parte da população terá de mudar de actividade e como
todos terão de aumentar as suas competências, será necessário aprender.
Esse aprendizado
será feito em grande parte no trabalho. Todos devem compartilhar os seus
conhecimentos com os seus companheiros.
A televisão e a
rádio permitirão transmitir o que as pessoas necessitam a baixo custo. É fácil
transmitir cursos de mecânica, agricultura, alvenaria que complementarão o
aprendizado prático. 93
O que será dos
professores? Não se trata de proibir o ensino, mas o facto de ser apenas
professor deve ser desencorajado por todos os meios. Em qualquer caso, grande
parte da cultura deixará de ser objecto de ensino em sentido estrito. No que
diz respeito às crianças, não se trata de retirar à força a custódia dos
professores que amam a sua profissão. Mas a partir do momento em que as actividades
oferecidas às crianças se multiplicarem e deixarem de ser um fardo para os
adultos que não estarão mais acorrentados ao trabalho profissional ou
doméstico, será impossível que a escola se mantenha.
O corpo docente,
para garantir o seu bem-estar, terá todo o interesse em dedicar-se, como todos
os demais, às tarefas práticas. Se não o fizer, pagará directamente o custo.
Não há dúvida de que a maioria dos professores que ensinam cada vez mais
máquinas apreciarão um novo modo de vida que, em qualquer caso, não os impedirá
de partilhar os seus conhecimentos com outros.
Religião: Alguns crentes de pouca fé afirmam que a revolução comunista faria desaparecer a religião. É duvidar do poder do Senhor para cuidar dos seus assuntos. Quanto a nós, deixamos isso para ele.
RUPTURA
Entre o
capitalismo e o comunismo não existe uma fase de transição mas sim uma fase de
ruptura onde os revolucionários devem procurar aplicar medidas irreversíveis.
Alguns lamentam a
mercantilização e a industrialização de toda a vida social. Eles gostariam que
as coisas mudassem, mas querem permanecer razoáveis. Eles apelam às autoridades
locais ou às suas oposições oficiais para promover mudanças. Acima de tudo,
eles gostariam que as coisas mudassem em ordem. Para eles, a irrupção das
massas no cenário da história só pode levar à mais inextricável desordem.
Gostariam de
desmercantilizar gradualmente a economia através do desenvolvimento de serviços
públicos e de bens gratuitos. O trabalho assalariado seria reduzido e
paralelamente desenvolver-se-iam novas actividades produtivas menos desumanas.
Os mais ousados prevêem o eventual desaparecimento das
mercadorias e do trabalho assalariado.
É sempre a mesma
esperança de poder usar e amordaçar o capital. A mesma ilusão é propagada por
aqueles que querem manter o emprego assalariado, eliminando as diferenças
salariais ou fazendo com que o salário seja uma compensação justa pela
penosidade do trabalho. O capital é fundamentalmente expansionista e
imperialista. É por isso que tende a dominar toda a vida social. Um sector não
mercantil que operasse paralelamente ao sistema de mercado seria rapidamente
remercantilizado. Ou continuaria a ser uma actividade de lazer e um jogo
completamente dependente do capital como o actual DIY, ou ganharia importância
e a sua produção circularia e então reinventaria para si o capitalismo. Haveria
decomposição interna e agressão externa. Os produtores “livres”, os artesãos de
fim de semana que continuariam a ser
prisioneiros de um modo de vida burguês procurariam muito naturalmente obter
rendimentos da sua produção paralela para complementar os seus rendimentos. 94
Deveríamos contar
com o poder político para apoiar tal “revolução”? Isto significa esquecer a sua
dependência da economia. É opor o totalitarismo de mercado ao totalitarismo de
Estado.
Podemos contar
com uma transformação de mentalidades? É acreditar que o mercantilismo é antes
de tudo uma perversão da mente. As mentalidades serão o que a situação lhes
permitir ser. Você não pode ter um pé no novo mundo enquanto mantém a mão na
carteira.
Estas concepções
reformistas nada compreendem sobre a necessidade de uma ruptura global e a
natureza da actividade proletária revolucionária. Não vêem que é na situação e
na actividade da classe dos despossuídos que se encontra o verdadeiro adversário
do sistema comercial. Acreditamos que podemos tomar medidas contra o capital
porque o consideramos como algo cujo poder deve ser limitado e não como uma
relação social.
O capital pode
divertir-se libertando a actividade humana e aparentemente desmercantilizando.
Ele vende uma nova vida nos seus clubes de férias, nós pagamos para não ter que
pagar. Os novos sistemas de pagamento tendem a evitar o contacto directo e
opressivo com o dinheiro. Tudo isto demonstra a necessidade e a possibilidade
do comunismo, mas também a natureza recuperativa, vampirista e mentirosa do
capital.
O sistema de
mercado é um todo. Ele será derrubado como um todo. Não podemos comunizar sectores
cujo intercâmbio ligou intimamente um após o outro. Em qualquer caso,
acreditamos que poderíamos limitar o âmbito de intervenção de uma insurreição?
Precisamente as medidas “anti-mercado” que visam restringir temporariamente ou
tornar menos visível a acção do capital só poderiam ter como objectivo
dissuadir ou parar uma insurreição. Qualquer que seja a boa vontade ou mesmo a
semi-compreensão daqueles que as propõem, elas só podem ser utilizadas para a
contra-revolução.
Num período de
insurreição, os revolucionários terão de se esforçar por denunciar medidas
falsamente radicais e por acelerar o curso das coisas. Muitas vezes as suas
acções serão denunciadas não francamente como sendo revolucionárias, mas como
excessos por aqueles que se disfarçarão de revolucionários para melhor combater
a revolução.
A solução para os
problemas significativos que a ruptura repentina com a economia de mercado
colocará dependerá sobretudo da organização consultiva da produção e
distribuição de bens. A discriminação pela escassez de produtos não será mais
estabelecida pelo dinheiro, mas nesta fase intermediária pelos conselhos e
comités de “consumidores” que garantirão a distribuição de acordo com o melhor
aproveitamento possível. O perigo é acreditar que poderíamos estabelecer um
sistema misto para evitar dificuldades.
Os conselhos
terão de resolver problemas difíceis, mas são a única força capaz de os
resolver.
Para capacitar e
apoiar a organização conselhista será necessário que a ala em marcha da
revolução concentre as suas forças em certos pontos
estratégicos.
Terá que destruir o que permitiria a sobrevivência ou o reinício do antigo
sistema. 95
O sistema
bancário e financeiro deve ser destruído nas suas bases materiais. Será
necessário atacar estabelecimentos e queimar livros contábeis, papéis e
arquivos. Qualquer coisa que se assemelhe a um meio de pagamento terá que ser
exterminada.
Será necessário
paralisar a máquina estatal. Isto não significa tanto desferir um ataque
frontal ao centro do sistema, mas sim destruir os seus múltiplos tentáculos. O
estado tem ramificações em todos os lugares. Esta é a sua força e a sua
fraqueza.
Teremos de
enfrentar tudo o que permite o controlo das pessoas, sobretudo documentos de
identidade de todas as categorias. Será necessário procurar arquivos estatais
ou privados. Além de alguns itens de interesse revolucionário ou histórico,
arquivos e documentos administrativos de todos os tipos terão de ser
destruídos.
A tomada de posse
das prisões e a libertação de presos, incluindo presos políticos, estarão na
agenda. Isso não tranquilizará as pessoas boas. Todo o submundo durante a noite
na calçada. As prisões não estão cheias de bandidos horríveis e assassinos
horríveis?
Na verdade, a
maioria dos prisioneiros são proletários que queriam escapar da sua condição
atacando mercadorias e propriedades. A maioria deles não são pequenos santos ou
revolucionários generosos. Mas a razão dos seus ataques desaparece com o
desaparecimento do sistema actual. A esmagadora maioria deles será capaz de
colocar o seu talento ao serviço da revolução.
E o submundo?
Geralmente os gangsters não estão atrás das grades. Às vezes até reprimem com a
cumplicidade da polícia. Os assassinos ? Muitas vezes eles têm a lei do seu
lado. Alguns estão até à frente de estados.
A libertação dos
prisioneiros excluirá os canalhas e os notórios contra-revolucionários. O fim
das mercadorias e a organização de milícias armadas ajudarão a reduzir o número
de elementos do mal.
Estas diferentes
medidas não podem ser realizadas em qualquer contexto e em qualquer equilíbrio
de poder. Mas são uma necessidade imperativa para revolucionários e anti-estatistas.
Os comités
responsáveis pela
distribuição de mercadorias poderão procurar mobilizar pequenos comerciantes e
gestores e utilizar as suas instalações. Se estas categorias sociais mostrarem
a sua capacidade de reconversão, tanto melhor. Se resistirem e procurarem
continuar a ser donos dos seus stocks e das suas lojas, teremos de prescindir
deles. Se os bens que possuem forem importantes e necessários, terão de ser
apreendidos. Em qualquer caso, a sua potência é limitada porque basta cortar o
fornecimento na fonte.
A publicidade
poderia ser reconvertida em anti-publicidade. Isto implicará fornecer
informações sobre as características e fabrico dos produtos, o estado das
reservas e incentivar a moderação. 96
INTERNACIONALISMO
A revolução
será mundial.
Não é um
imperativo moral: todos os homens são iguais e irmãos e têm direito a isso.
A revolução será mundial
porque o próprio capital é uma realidade mundial. Destruiu comunidades humanas,
separou indivíduos, tornou todos concorrentes de todos os outros. Mas no mesmo
movimento ele reuniu e unificou a raça humana sob o seu controle. Hoje e pela
primeira vez na história desde Adão e Eva há uma coincidência entre a unidade
genética e a unidade social das espécies.
O nascimento da
ideia nacional e dos estados nacionais é fruto directo do desenvolvimento
capitalista, da destruição de grupos tradicionais, da padronização através da
troca e da desigualdade no crescimento. Mas se o capital se abriga atrás das
fronteiras, não se deixa aprisionar aí. O seu desenvolvimento imperialista e
anónimo sempre tendeu a conquistar e unificar os mercados. São diferentes
países e áreas que foram sucessivamente locais privilegiados de acumulação de
capital antes de se recusarem a dar lugar a outros.
A
contemporaneidade viu esse movimento acelerar. Houve mundialização das relações
de mercado e acentuação das desigualdades. A colonização, as guerras mundiais,
o desenvolvimento de novos centros de acumulação, a constituição de novos
Estados nacionais mais ou menos fantoches foram etapas deste movimento. A
multiplicação de nações e estados não impediu a unificação, mesmo a nível
político. Os estados pequenos são subservientes aos estados mais fortes.
Agruparam-se em blocos militares e zonas económicas. Criaram instituições mundiais
e forças de intervenção.
Ainda mais
notável é a internacionalização do comércio e a criação de empresas
multinacionais que acelerou a unificação política e privou os Estados de grande
parte do seu poder económico. Estas empresas gigantes são mais ricas do que
muitas nações. Elas têm uma visão mundial das coisas. Procuram produzir e
vender onde é mais rentável, sem se preocuparem com fronteiras.
A troca padroniza
a vida em todo o mundo e é o mesmo tipo de cereais, edifícios, ensinamentos que
encontramos em todo o lado. A cor local preservada ou acrescentada é um
argumento publicitário contra turistas e tradicionalistas. Nada ilustra melhor
esta gadgetização da ideia nacional do que as típicas decorações que aviões
semelhantes transportam pelo mundo. Aqui comemos à francesa, lá encontramos
gueixas japonesas... e em quase todo o lado piratas aéreos palestinianos.
Diante de tudo
isso, os revolucionários obviamente não clamam pela defesa ou restauração da
pátria como faz um bando de idiotas e demagogos. Também não apoiamos movimentos
regionalistas ou neo-nacionalistas que defendem a criação de novas pátrias mais
legítimas. Ao invocar o direito à diferença e à autonomia, opomos o
nacionalismo ao nacionalismo, o Estado ao Estado. Muitas vezes há, no início,
uma reacção saudável contra o estatismo, a padronização e a desigualdade de
desenvolvimento do mundo contemporâneo. A única solução possível é o fim do
capital e de todos os seus Estados. 97
O comunismo não é
inimigo da pátria, se por amor à pátria entendemos o apego dos homens à região,
à paisagem, aos costumes, ao modo de vida local. Não queremos ressuscitar o
paroquialismo, mas somos contra o nivelamento dos países e dos seus habitantes.
Os defensores da pátria são muitas vezes apenas os defensores do Estado. A sua
nostalgia quer ignorar o que destrói os valores que defendem.
O nacionalismo,
paradoxalmente, desenvolveu-se à medida que o conhecimento e o apego do homem
ao seu ambiente se deterioravam. Valoriza não uma comunidade real, mas a imagem
de uma comunidade reflectida no estúpido fetichismo da bandeira ou do herói
nacional. Os nossos tempos tornam todas essas bugigangas cada vez mais
obsoletas. Os sentimentos que cristaliza são cada vez mais desvinculados da
realidade ou hipócritas.
A maioria dos
líderes que exaltam a ideia nacional contrabalança-a. As classes dominantes e
privilegiadas demonstraram repetidamente quão pouco valorizam o patriotismo. O
interesse nacional só é válido quando corresponde ao interesse do capital.
Enquanto surgir uma ameaça proletária e as classes dominantes dos diferentes
países se apressarem a reconciliar-se.
A revolução será mundial
porque os problemas que terá de resolver serão mundiais. A interpenetração de
diferentes economias torna impossível avançar sozinho. Em qualquer caso, se a
revolução se desenvolver num único país terá que enfrentar a acção da
contra-revolução externa. Mas esta interdependência, o desenvolvimento dos
meios de comunicação, a simultaneidade dos choques económicos e políticos tornarão
a revolução mais contagiosa do que nunca. Cada Estado, ao fazer de polícia
noutros locais, deve temer a pressa em casa. Quanto mais rapidamente a
insurreição se generalizar, mais difícil será a repressão.
A fome e a
poluição não têm causas locais, mesmo que os seus efeitos sejam bem
localizados. A revolução deve estabelecer regras universais para a protecção da
natureza. A agricultura deve ser organizada para satisfazer as necessidades de
todas as populações.
Isto não
significa que os países ricos e industrializados terão de se esgotar ou que os
países pobres continuarão dependentes de áreas privilegiadas.
Cada região terá
de encontrar formas particulares de organização e desenvolvimento, dependendo
dos seus problemas e dos seus recursos e do tamanho do seu proletariado. Tanto
quanto possível, será necessário sobreviver com recursos locais. Contudo,
sobretudo no início, será necessário organizar transferências de equipamentos e
técnicos para ajudar os mais desfavorecidos a sair o mais rapidamente possível
da terrível pobreza. Se necessário, será necessário reduzir ou transformar o
consumo alimentar em determinadas regiões para ajudar outras. Os comunistas
estarão sempre na vanguarda da luta contra o egoísmo local.
Os países
subdesenvolvidos podem ser comunizados apesar da fraqueza do seu
desenvolvimento. A possibilidade do comunismo é estabelecida numa escala mundial.
98
O que importa não
é tanto o desenvolvimento quantitativo das forças produtivas, mas o seu
desenvolvimento qualitativo. Um certo nível técnico e científico gerará
abundância quantitativa no curto prazo. A actual predominância dos países
industrializados servirá o alvorecer do comunismo, apoiando as forças
proletárias locais para liquidar o capital em todo o lado.
Como podemos
promover transformações comunistas em países onde predominam as populações
agrárias? Não haverá necessidade de repetir a acumulação primitiva. O comunismo
não se consolidará como o capitalismo, derrubando as estruturas sociais
tradicionais. Pelo contrário, poderá apoiar-se nestas estruturas, livrando-as
dos seus aspectos mais negativos, encontrando comunidades camponesas de base
sob o parasitismo e o feudalismo.
Isto não impedirá
o desenvolvimento paralelamente às actividades modernas. Dentro destas
comunidades podem ser introduzidas tecnologias: equipamentos agrícolas ligeiros,
sensores de energia, métodos contraceptivos, cuidados médicos... Não há
incompatibilidade absoluta entre o equilíbrio comunitário tradicional e o uso
de técnicas simples de usar. Actualmente há casos em que populações primitivas
sabem utilizar técnicas modernas. A verdadeira desvantagem é antes a
desintegração destas comunidades sob a acção do capital.
É quase certo que
as populações envolvidas e as estruturas sociais evoluirão. Mas este desenvolvimento
não terá inicialmente sido uma destruição de pessoas e uma negação de valores
comunitários.
Podemos confiar
na classe operária para estabelecer a solidariedade mundial? Os operários não
são frequentemente racistas?
Muitas vezes os operários
são racistas. Racista para com os estrangeiros e especialmente para com os
trabalhadores imigrantes ou minorias raciais. Vimos governos da “classe operária”
mostrarem-se mais racistas, especialmente quando se trata de imigração, do que
governos burgueses. Muitas vezes são os empresários que são a favor da
imigração e da abolição de leis discriminatórias.
O racismo da
classe operária corresponde antes de tudo a uma atitude do oprimido que não
consegue escapar à sua condição e fica feliz por poder sentir-se superior ao
seu cão, a um polícia ou a um imigrante. É a expressão de um verdadeiro
interesse de classe, da classe operária como mercadoria. O intelectual pode
divagar sobre a fraternidade humana. O operário, especialmente o operário não
qualificado, sabe muito bem que o estrangeiro é antes de tudo o concorrente no
mercado de trabalho. O racismo aberto ou latente surge da incapacidade de
reconhecer que é o capital que se opõe aos assalariados. Esta incompreensão não
é a expressão de uma simples deficiência intelectual. Corresponde à impotência.
A compreensão e a capacidade de transformar a realidade andam de mãos dadas.
Quando o proletariado se levanta e se unifica, o racismo entra em colapso. Não
há necessidade de esperar até a grande noite para ver. Nas lutas parciais, operários
de diferentes origens rejeitam preconceitos e desconfianças. 99
VIII PROLETARIADO E COMUNISMO
O comunismo é a negação da condição proletária pelos próprios proletários. O proletariado e o comunismo são realidades íntima e contraditoriamente ligadas. Se os dissociarmos, não poderemos compreender o que são o movimento comunista e a revolução, nem mesmo o que é o proletariado.
LENINE
Lenine, seguindo
Kautsky, disse que os proletários só eram capazes, através das suas próprias
forças, de se elevarem a uma consciência sindical. Eles só conseguem pensar em
vender-se mais caro e não em revolucionar a sociedade. Lenine estava errado. Os
proletários são incapazes de alcançar uma consciência clara dos seus interesses
económicos. Os proletários são mercadorias, mas também são comerciantes pobres.
Na luta e na negociação, os proletários mostram constantemente que não sabem o
que querem e que confundem as realidades económicas e humanas.
Isto é uma
inferioridade porque quando se trata de defender os seus interesses económicos,
o proletariado é muito menos eficaz do que a burguesia. Mas não podemos julgar
o proletariado segundo um padrão burguês.
Lenine tem razão
ao enfatizar a descontinuidade entre a consciência sindical e a consciência
revolucionária. A segunda não é a exacerbação da primeira. Eles estão de costas
um para o outro. Mas a consciência revolucionária, e para nós é a consciência
comunista, não tem de ser importada do exterior, não é o produto dos
intelectuais enquanto estrato social. O ponto de vista de Lenine não é
estúpido, como acreditam alguns defensores do povo, mas apenas reflecte um
movimento aparente. Movimento que contradiz imediatamente um período de
revolução.
O proletariado
mostra diariamente que já está além da economia. A sua ineficácia, as suas
ilusões ingénuas são o lado negativo e temporário da sua humanidade. Na luta e
independentemente da natureza necessariamente limitada das suas reivindicações,
manifesta de muitas maneiras e através de muitos lapsos de língua a sua
humanidade e a sua aspiração ao comunismo.
O que importa não
é o que o proletariado é ou parece ser quando trabalha, quando marcha no 1º de
Maio, quando responde às sondagens de opinião. A sua situação fundamental
exigirá e já exige que ele se comporte de forma comunista.
Em tempos normais, o proletário, para sobreviver, deve procurar compensar esta privação fundamental pelos mil meios que lhe são oferecidos. Existem interesses, pátrias, drogas no show. Ele tenta viver novamente através do poder da sua empresa ou do seu sindicato. O capital não pode abolir a prostituição generalizada, mas pode distrair aqueles que se prostituem. Proporciona um bálsamo ao permitir “realizar-se” e ficar preso a bens e imagens. 100
O proletariado não é a encarnação positiva do comunismo dentro do capitalismo. Nem está permanentemente e por toda a eternidade integrado no sistema que drena o seu suor e a sua vida. A sua realidade é fundamentalmente contraditória. Ele parece integrado, mesmo que gagueje sobre o comunismo. De repente, uma violação se forma. Ele corre para dentro dele e amplia-a. As consequências das suas acções empurram-no para a frente. Ele descobre a sua força e faz o que nunca ousou sonhar em fazer.
BURGUESES E
PROLETÁRIOS
O que é o
proletariado? Onde começa e onde termina? Qual é a sua importância numérica?
Sobre a
importância numérica da classe operária em sentido estrito, foram feitas avaliações
baseadas em estatísticas oficiais. Representa uma pequena parte da população
mundial já que o seu tamanho pode ficar entre 200 e 250 milhões de indivíduos.
Obviamente, este número não é o de todos os proletários, na medida em que
exclui as famílias destes operários e muitos empregados proletarizados, mesmo
na indústria, não são contabilizados. Em qualquer caso, a importância numérica
da classe operária, que já é enorme se a compararmos com a da burguesia, não é
suficiente para explicar a sua real importância. Acrescentemos que esta
importância, ao contrário da tese que os sociólogos de vanguarda tentam
defender, é crescente.
Mas tal como a
burguesia, o proletariado não é algo que possamos tocar, delimitar e
quantificar com precisão. Isto não diminui a sua realidade, mesmo que os
sociólogos não consigam compreendê-la na sua rede académica.
Não podemos
reduzir o proletariado a uma imagem padronizada: o indigente em farrapos, o operário
de macacão, o portador da bandeira vermelha. Só em situações específicas é que
os seus limites se tornam claros.
Tal como
definimos a burguesia como casta, pelos seus privilégios e pelos seus tiques,
pela sua dificuldade de acesso em vez de a definirmos como classe, pela sua
função nas relações de produção, também reduzimos o proletariado a uma
categoria sócio-profissional ou a um acréscimo de categorias socio-profissionais.
A partir daí é
fácil mostrar que é difícil, senão impossível, compreender o que é o
proletariado. Isso realmente existe? O progresso técnico e a segurança social
não fizeram com que desaparecesse? A luta de classes, se concordarmos em
dar-lhe alguma importância, fica reduzida a uma forma de conflito entre outras.
Mulheres e homens, jovens e velhos, moradores das cidades e do campo às vezes
discutem. Por que não seria o mesmo entre operários e patrões?
Os nossos
sociólogos criticam Marx, que inventou a luta de classes, por não saber o que é
uma classe social. Ele contradiz-se, ora fala do campesinato como uma classe e
ora o divide em classes opostas.
Que os camponeses
podem por vezes ser considerados como uma classe única porque têm interesses e
ilusões comuns, porque agem de forma
no mesmo sentido,
uma vez que estes mesmos camponeses podem ser divididos em pobres e ricos, em
agricultores e proprietários de terras, isto está além da compreensão de um
sociólogo. Ele não pode saber que uma classe não é definida, tanto do ponto de
vista intelectual como do ponto de vista prático, independentemente da actividade
pela qual constitui uma classe. Não existem classes independentes da luta de
classes. 101
Reduzir uma
classe a uma categoria socio-profissional é dar-se a ilusão de ciência e de
rigor. Na verdade tudo depende dos critérios mais ou menos arbitrários que
escolhemos para dividir o corpo social. Acima de tudo, está a objectivar a
realidade.
Tudo é trazido de
volta ao lugar que o capital atribui aos homens. Fotografamos uma certa
divisão: intelectuais, operários, moradores de bairros degradados (ou de lata),
ganhadores de salário mínimo. Não vemos nem o que dá origem a estas situações,
nem a possibilidade de superá-las.
Na melhor das
hipóteses, “classes” restantes, imaginamos que uma prevalece sobre a outra.
Assim, no Ocidente a burguesia domina enquanto nos países orientais o
proletariado estabeleceu a sua ditadura. Para nós, o proletariado não pode ser
definido independentemente da sua luta contra o capital, isto é, também
independentemente do comunismo.
Isso não
significa que classe seja o conjunto de pessoas que lutam pela mesma causa.
Neste caso, o burguês que simpatiza com a evolução transformar-se-ia num
proletário e o varredor reaccionário tornar-se-ia num banqueiro. O anti-capitalismo,
isto é, o comunismo, pode tornar-se uma causa para alguns, mas pela sua
natureza não é uma causa. É uma actividade ligada a uma situação social
particular.
O proletariado é
aquela fracção da população que produz capital enquanto está separada da sua
posse e gestão. O pesadelo da auto-gestão é fazer com que os proletários
desempenhem a função de burgueses. Se esta quimera se concretizasse, ainda não
haveria abolição das classes. A burguesia e o proletariado co-existiriam
contraditoriamente num único todo. O mesmo na sua máquina seria inimigo do
mesmo no conselho de administração.
De vez em quando acontece que os filhos dos burgueses vão
arruinar a sua saúde na fábrica e que os operários fazem crescer os seus bens
às custas de alguns azarados. Não há nada nisso que signifique uma abolição das
classes.
A linha divisória entre gestores e escravos do capital é
estrita. Acontece que algumas pessoas têm um pé de um lado da fronteira e o
outro do outro lado. Eles terão que balançar para um lado ou para outro.
Deveríamos tornar concreta a linha divisória? Podemos compreendê-lo na atitude em relação ao dinheiro. É claro que os burgueses e os proletários distinguem-se pela quantidade de dinheiro que passa pelos seus dedos. Mas isto não é o suficiente. Mais fundamentalmente, o proletário vê o dinheiro: dinheiro. Para ele representa um certo número de bens. Para a burguesia, o dinheiro é capital monetário. O dinheiro é usado para ganhar mais dinheiro. Nós investimos e, que maravilha, produz pequeninos. É isto que liga, através dos tempos, o burguês medieval e o gestor moderno. Hoje também existe hipocrisia. 102
Para compreender a classe burguesa, devemos acrescentar os laços
familiares e as restricções sociológicas que fazem dos filhos ou esposas dos
burgueses membros da burguesia.
Na vida económica e nas empresas, a fronteira passa entre
aqueles que têm acesso ao conhecimento e às decisões financeiras, não
necessariamente técnicos e funcionários financeiros, e outros. Há quem saiba
que uma empresa está temporariamente presa a dinheiro destinado a ganhar
dinheiro. Há quem, a grande maioria, o veja antes de tudo como uma fábrica e um
comércio de valores de uso.
Anexar um indivíduo a uma determinada classe às vezes é difícil.
Um tal executivo superior, um tal engenheiro ou, porque não, um tal operário
pode, através das suas origens familiares, das suas possibilidades de promoção,
das suas amizades, das suas funções de comando, dos seus bens ou das suas
propriedades, ser capturados pela classe dominante. Pelo contrário, os pequenos
especuladores estão ligados por mil ligações à classe dominada.
Do ponto de vista da revolução é importante não rejeitar
inicialmente os proletários de luxo para o campo burguês. O engenheiro ligado à
burguesia e mais ainda os seus colegas que não têm nem o seu salário, nem o seu
papel de liderança, nem as suas ligações, podem sentir a contradição entre os
seus interesses profissionais e humanos e os limites impostos pelas finanças.
Isto pode levá-los ao comunismo, a um mundo onde os projectos técnicos escapam
à ditadura do valor de troca.
Os seus conhecimentos e habilidades são necessários. Tenha
cuidado, no entanto, com aqueles que podem ficar do lado da revolução porque
vêem a sua condição tornar-se proletária e esperam ingenuamente recuperar a
autoridade.
Em tempos normais e particularmente fora do processo de produção
a situação pode parecer vaga. A sociedade parece ser composta de partículas
individuais que vagueiam numa direção ou outra. Os operários e os burgueses
parecem desaparecer para se tornarem nada mais do que eleitores iguais ou
consumidores mais ou menos ricos. Assim que irrompe um conflito, quando surge
uma revolução, as partículas juntam-se em torno de pólos antagónicos.
O proletariado não é uma massa indiferenciada. Certos estratos
sociais, certos indivíduos desempenham um papel propulsor dependendo do seu
lugar na produção e das suas próprias qualidades. Eles mais ou menos ajudam a classe
a formar uma classe.
Alguns grupos sociais estão mais agitados do que outros ou
proclamam o seu descontentamento mais alto. Você tem que ter cuidado com as
aparências. Um grupo que é mais turbulento que outro pode acabar por não ser
muito revolucionário. Ele move-se por motivos que são muito pessoais para ele.
Ele arrasa porque o seu status está a deteriorar-se. Mas ele não atinge os
fundamentos da sociedade. Talvez ele fique mais assustado com a visão da
revolução do que com a do capital.
Quem parece mais integrado, mais tranquilo porque é mimado pelo
sistema pode acordar e ir directo ao assunto. O poder e a confiança que a sua
situação lhes proporciona pode permitir-lhes atacar o capital sem concessões. 103
Não podemos
considerar a evolução dos indivíduos e dos estratos sociais independentemente
da profundidade do conflito e da situação geral. Certas camadas sociais, como
estudantes, intelectuais, executivos, só podem elevar-se a uma consciência
corporativista ou, pior, pseudo-revolucionária. À medida que o comunismo se
desenvolve e estas camadas, dependendo da falta de autonomia que as
caracteriza, radicalizar-se-ão. Não tendo poder e interesses reais para
defender, só os poderão encontrar unindo-se e apoiando os operários.
Poderá a imensa
massa de camponeses do Terceiro Mundo participar na revolução comunista? Ela
faz parte do proletariado? Sim, mas não dependendo do seu grau de pobreza. Faz
parte do proletariado tanto mais quanto a influência do capital na sua
existência é mais directa.
Mesmo que não
seja uma assalariada, ela tende a juntar-se à classe dos assalariados devido à
crescente influência da economia de mercado sobre todas as pessoas e recursos.
A ofensiva dos proletários empregados ajudá-la-á a encontrar o inimigo e as
soluções.
O emprego
assalariado é, de certa forma, a relação de exploração ideal para o capital. No
entanto, não podemos equiparar proletários e assalariados. Já demonstrámos que
as relações esclavagistas foram integradas no universo capitalista, alterando
assim o seu conteúdo. Muitos pequenos proprietários estão directamente sujeitos
à exploração capitalista e muitas vezes são mais oprimidos do que os operários.
Os gestores de grandes empresas recebem salários. No entanto, tudo os torna
burgueses. Eles definem o seu próprio salário e esse salário é apenas uma parte
do seu rendimento real.
Algumas
profissões desenvolvem atitudes revolucionárias mais do que outras. A questão
depende, em particular, do grau de identificação que existe entre o operário e
a sua posição. Algumas pessoas ficam presas no jogo e não conseguem afastar-se
do trabalho que realizam. Ou que este trabalho, como o dos educadores, se torne
a sua própria ferramenta. Questionar o seu papel profissional envolve
questionar-se a si mesmo. Ou que o produto do seu trabalho não é um produto e
contribui directamente para o funcionamento do seu negócio.
Em ambos os casos
existe o risco de desenvolver uma ideologia que justifique a sua função
profissional e as suas contradições. Os mais alienados acabam a acreditar que
graças às suas próprias capacidades ou à utilidade geral do seu trabalho estão a
revolucionar a sociedade.
Os operários mais
lúcidos são muitas vezes aqueles que não se sentem ligados à empresa ou à
tarefa que desempenham. Este é o caso da maioria dos operários.
Pelo seu lugar na
produção, pela solidariedade que gera, pelas suas qualidades humanas, os operários
estarão no centro da revolução comunista. O operário americano ou soviético,
mesmo que sobreviva mais facilmente do que o mendigo indiano e mesmo que seja
mais corrupto, também está em melhor posição para reconhecer a natureza da
opressão que pesa sobre ele e pôr-lhe fim.
É tradicional
negar à classe operária o seu papel central na revolução.
Destacamos a sua ausência nas lutas de libertação nacional que, no entanto, conduziram a estados marxistas. 104
A ênfase é
colocada na ausência de consciência revolucionária da grande massa de operários
nos países ricos e nas vantagens que retiram do sistema.
A outras categorias
sociais é confiado o papel que os operários parecem incapazes de cumprir. As
revoluções do século XIX teriam sido obra de artesãos. No século XX, os
intelectuais leninistas assumiram o poder. Nos países do terceiro mundo são os
camponeses.
Se olharmos
seriamente para as coisas, vemos que os operários têm estado regularmente no
centro das tentativas de transformar radicalmente a realidade. São criticados
por não terem intervindo em revoluções que eram de facto burguesas. Quando
intervieram, a sua acção foi relegada para segundo plano para realçar a de
grupos sociais que no início ou no final se mostraram menos que comunistas.
Destacamos e exageramos esta ou aquela característica dos proletários que se
revoltaram para mostrar que eram operários duvidosos ou marginais, camponeses,
pequeno-burgueses, soldados, bandidos disfarçados de operários.
Os modernistas
substituem um proletariado gentrificado por novas categorias. A revolução seria
obra dos jovens porque ainda não estão domesticados, das mulheres porque estão
mais próximas da vida, dos hippies e outras pessoas marginalizadas porque estão
fora do sistema, dos negros porque amam a música e têm ritmo no sangue ...
Outros não veem mais a necessidade de favorecer uma determinada categoria. O
capital é uma força desumana da qual todos são vítimas, por isso é a humanidade
como espécie que deve surgir. Já não existe burguesia e proletariado, ou há
muito pouco.
Quando destacamos
este ou aquele grupo social ou categoria de idade ou género, fazemo-lo em
virtude dos valores que estes grupos deveriam deter. Não há tanto uma mudança
na escolha do sujeito revolucionário, mas um reconhecimento implícito da
realidade tal como ela é. Os jovens seriam revolucionários como jovens, as
mulheres como mulheres, enquanto o proletariado que inclui os jovens e as
mulheres é revolucionário na medida em que já não pode ser o proletariado. O
proletariado não é um grupo social. É um movimento. Ele é o que ele se torna.
Existe de acordo com suas possibilidades de auto-destruição.
Não estamos a
dizer que os jovens, as mulheres, as pessoas com deficiência de guerra... não
tenham interesses específicos e que não possam transformar a realidade.
Simplesmente, a menos que actuem como proletários, só poderão defender os seus
interesses como jovens, mulheres, inválidos de guerra dentro de uma determinada
realidade. A revolução proletária dá-lhes os meios, sem se negarem, para irem
além das suas exigências categóricas, para as superarem. São os jovens, as
mulheres, os enfermos que agem, mas já não o fazem pela juventude, pela
feminilidade ou pelo seu oposto, pelos benefícios do Estado e pela consideração
dos cidadãos. E os intelectuais?
De certa forma, a
revolução exige que os proletários se tornem intelectuais. Eles precisam de ser
capazes de ir além da sua situação imediata. É sabido que durante as
insurreições vemos serem discutidas nas ruas questões que antes eram
prerrogativas dos filósofos.
A revolução
também significa o fim dos intelectuais como categoria social separada. Se os
intelectuais participarem na revolução, não poderão fazer isso apenas negando a
sua condição. Ao reconhecer que estão mutilados. Eventualmente, medidas terão
de ser tomadas para impedir que alguém continue a ser um intelectual e nada
mais. 105
Aos intelectuais
é frequentemente atribuído um papel privilegiado como portadores de
consciência. Por si só, a consciência não é nada e nada pode fazer. Os nossos
intelectuais, que muitas vezes acreditaram que poderiam alcançar uma
compreensão geral e objectiva das coisas, têm estado regularmente a reboque dos
poderes estabelecidos. Estiveram sujeitos às piores ilusões e apoiaram, claro,
com pensamento crítico, a pior sujidade. Prontos para desculpar tudo em nome da
Razão, da História, do Progresso.
As exigências dos
intelectuais são mais adequadas para comover os corações burgueses do que as
dos operários. Quão mais nobre é pedir liberdade de expressão do que pedir pão.
O intelectual parece ser o defensor do interesse geral. O operário parece
egoísta e com os pés no chão.
Contudo, as
reivindicações proletárias são mais profundas do que as dos intelectuais. Eles
especializam-se em reivindicar formas vazias. Quando os operários exigem, ou
melhor, impõem a liberdade de expressão é porque têm algo a dizer. Caso
contrário, é de relativamente pouco interesse para eles. A sua capacidade de
não dissociar forma e conteúdo, de não lutar por nada, é o sinal do comunismo.
O problema com os intelectuais é que muitas vezes é do vento que eles obtêm o
seu rendimento.
Os jovens são
frequentemente os mais activos nas revoluções. Pode haver causas biológicas,
mas a sua situação social é suficiente para explicá-la. Mesmo aqueles que vêm
de camadas privilegiadas estão menos ligados aos interesses estabelecidos. Você
tem que esperar para herdar! A sociedade capitalista fetichiza a juventude e a
renovação, mas distancia os jovens de posições de responsabilidade e
propriedade. Eles encontram-se mais disponíveis.
Ao lado dos
jovens, por vezes destacamos os marginalizados. Eles não vivem como toda gente,
talvez sejam o futuro? Aqui, novamente, há uma incapacidade de compreender que
a revolução pode e deve surgir do próprio coração do sistema. Há uma
incapacidade de compreender dialecticamente o que é o proletariado. Existe uma
ilusão sobre o grau de independência dos marginalizados em relação ao sistema.
Terá o próprio capital abolido as classes sociais ao acelerar a revolução? Há
muito que se afirma que a revolução burguesa finalmente permitiu que todos os
homens fossem iguais.
A divisão da
sociedade em classes está a ir bem. Talvez nunca tenha sido tão acentuado,
ainda que tais meios nunca tenham sido utilizados para fazê-lo esquecer.
Certamente o
capital é uma força impessoal. Certamente todos sofrem os seus efeitos em maior
ou menor grau. Pobres burgueses que se esgotam no trabalho, discutem com os
filhos, respiram um ar nocivo! Os efeitos do capital, alguns têm mais que
outros a possibilidade de remediá-los. A diferença nas condições de vida
cresceu consideravelmente hoje. As possibilidades de diversificação dos
produtos e de desenvolvimento do comércio fizeram com que determinados
segmentos da população tivessem um nível e uma qualidade de vida muito
diferentes e superiores aos dos seus contemporâneos. Talvez a burguesia não
seja a mais feliz. Eles podem pelo menos deixar de ser burgueses. O oposto não
é possível para os trabalhadores rodoviários. Se mesmo os burgueses não estão
satisfeitos com o seu modo de vida, esta é mais uma razão para abolir esta
classe e a sua sociedade. 106
A burguesia não
desfila. Ela deixa isso para alguns novatos. Não é do seu interesse exibir
muito o estilo de vida que leva no abrigo das suas dachas e seu plágio
particular. Os proletários têm o hábito de sobrestimar os rendimentos das
camadas sociais próximas deles e sobrestimar os dos verdadeiros burgueses.
Mesmo que a
burguesia tivesse um estilo de vida austero e frugal, isso não faria com que
desaparecessem como classe. O que importa primeiro é a sua função económica e
social. O seu rendimento está obviamente directamente ligado a isso. Parte do
seu consumo, inclusive nos países ocidentais, é combinado com despesas
empresariais. Viajamos, jantamos, divertimo-nos por e em nome da nossa empresa.
O capital tende,
e hoje mais do que nunca, a desgastar a identidade dos grupos sociais. Tanto
para a burguesia como para a classe operária. O eleitor, o consumidor estão
fora da classe. O prazer que advém da compra não está mais ligado ao status,
mas ao dinheiro impessoal. Esta negação capitalista das classes prepara a
sociedade sem classes. Mas, por sua vez, é negado pela necessidade económica,
que tende a dar prioridade ao rendimento e a funções separadas.
A luta pelo comunismo não é uma luta por uma classe específica, mas uma luta pela humanidade. Mas esta luta está ligada àqueles a quem é negada toda a humanidade. A revolução não será unânime e é perigoso fazer as pessoas acreditarem nisso. Talvez alguns burgueses se juntem ao movimento, isto não mudará o facto de que os interesses da burguesia e do comunismo são contraditórios. O proletário ganhará imediatamente com a revolução quando a burguesia tiver sido despojada. O comunismo diz respeito à espécie humana, mas há homens que conseguem identificar o seu interesse imediato num período de ruptura com os da espécie, outros não.
À ESPERA DE
GODOT
O que propõem os
revolucionários enquanto esperam pela grande noite?
Não temos uma
solução milagrosa para passar o tempo nem um comportamento ideal para defender.
Os comunistas estão presos como os outros no melaço capitalista e não podem
implementar uma estratégia pura e universal que ignore interesses, capacidades
e condições particulares. Em qualquer caso, não oferecemos às “massas” o que
recusaríamos para nós mesmos, e vice-versa. Só podemos ver diferenças de
comportamento.
Não somos
puristas e aceitamos mesmo melhorias limitadas, se forem reais. Isto já
demonstra rigor numa altura em que falamos de uma grande vitória quando somos
pagos com vento.
Não somos puristas e concordamos em agir a nível popular com pessoas que não têm as nossas opiniões, desde que as perspectivas de acção sejam claras. 107
É importante ser
flexível a nível prático, a fim de tirar partido de situações em mudança e de
circunstâncias imprevistas. É preciso saber comprometer-se e, acima de tudo,
reconhecer os compromissos que faz. Não temos receitas para fornecer e temos
pena de quem precisa delas. Sem controle remoto.
Quem age com a
obsessão da recuperação se recupera inicial e radicalmente. O sectarismo é
antes de tudo uma forma de se proteger contra as próprias incertezas. Pelo
contrário, quando temos certezas profundas e não ideológicas, podemos inovar,
improvisar, compor sem nos sentirmos ameaçados na nossa pureza. O erro? Não é
reprimindo firmemente a verdade contra si mesmo que a preservamos.
Esta
flexibilidade pragmática deve ser acompanhada de uma grande rigidez e até, para
assustar os “espíritos livres”, de um dogmatismo doutrinário. Esclarecimento
teórico e garantia são essenciais. Você tem que saber para onde está a ir e
divulgá-lo.
A nossa era é de
comportamento rígido e pensamento gelatinoso. É romper com isso. As ideias só
têm interesse se fornecerem parâmetros de referência suficientemente fiáveis.
Pergunta clássica: devemos participar em sindicatos? Tudo depende das
circunstâncias e das pessoas envolvidas. Mas os sindicatos estão integrados! ?
Este pode ser um motivo para participar. Ou aproveitamos as vantagens que isso
proporciona às organizações sindicais. Ou demonstramos os limites dessas
vantagens. Eventualmente ficamos vazios e a contradição entre o conteúdo
revolucionário e a forma sindical vem à tona.
Se a participação
nos sindicatos for aceitável, a conquista dos aparelhos para endireitá-los num
sentido revolucionário deve ser rejeitada.
Na luta, assim
que surgirem possibilidades de organização de uma forma mais ampla e menos
especializada, os sindicatos devem ser rejeitados. A forma sindical pode ser
utilizada em situação de retirada, mas não deve impedir o desenvolvimento e
aprofundamento da luta. A acção da classe e para a classe não deve ser oposta à
acção da e para uma organização de especialistas em reivindicações e
negociação. Em qualquer caso, é certo que enquanto os operários continuarem a
ser mercadorias cujo preço deve ser negociado, os aparelhos sindicais manterão
uma razão de existir.
Não é renunciando
aos combates limitados que nos preparamos para a luta final. Não é
desconsiderando as questões salariais que avançamos na abolição do emprego
assalariado. A irredutibilidade económica demonstra a capacidade de resistência
e pode tornar-se perigosa para o sistema ameaçado no coração, ou seja, na caixa
registadora. Ai daqueles que querem distrair os proletários destas questões com
fumo e espelhos ideológicos. Desistir de lutar porque “o jogo não vale o
esforço” é muitas vezes apenas a expressão de uma passividade mais geral.
Estaremos a cair
na armadilha da eficiência pela eficiência, no economicismo? Não, mas
acreditamos que a acção colectiva tende a trazer à tona o seu próprio conteúdo.
É por isso que poderes de todos os tipos procuram amordaçá-lo.
Apoiantes da
pressão e da reacção mais imediata e variada possível por parte da classe,
somos muito cautelosos com objectivos de protesto dissociados das
possibilidades imediatas e do equilíbrio de poder. Igual e
especialmente
quando se trata de um programa de transição ao estilo trotskista. Estas
representações, que visam unificar e esclarecer o proletariado, apenas
bloqueiam a sua visão. 108
Por mais que seja
correcto lutar, e da forma mais generalizável possível, pela redução do tempo
de trabalho, também não é saudável estabelecer objectivos em termos de horas de
trabalho semanais ou de idade de reforma. Estamos apenas a assumir o controle,
apenas internalizando as limitações e separações capitalistas. A escolha é
entre o tempo de trabalho e o tempo livre, a condição de presidiário ou a
previdência aos idosos. Canalizamos a luta. O comunismo latente é esterilizado.
A única
perspectiva defensável é o comunismo. Não é uma abstracção distante, mas a
solução humana para todos os problemas. Trata-se de tornar manifesto o sentido
do movimento proletário, de mostrar o poder à sua disposição.
Muitas vezes
lutas não declaradas: absentismo, abrandamento das cadências, sabotagem,
perucas e roçadas... são as mais eficazes. Nós não os fetichizamos. O capital
pode tolerá-los e fazer deles uma válvula de segurança. Eles não podem
substituir uma luta mais geral. Mas mantêm o moral combativo, desenvolvem a iniciativa
e proporcionam satisfação saudável e imediata.
Trata-se de
popularizar meios de acção que, ao mesmo tempo que pressionam imediatamente os
exploradores, anunciam o mundo comunista. Muitas vezes é possível,
secretamente, mas também de forma massiva e aberta, distribuir produtos
gratuitamente e operar serviços. Os trabalhadores dos correios poderão deixar
de carimbar a correspondência e os ferroviários poderão deixar de verificar os
bilhetes. Se os trabalhadores mais empenhados forem despedidos, ainda existem
oportunidades de sabotagem para os reintegrar.
A nossa
estratégia pode ser expressa da seguinte forma: menos disparate, menos
espetáculo, mas que a classe operária utilize os diversos meios à sua
disposição para ganhar respeito e se preparar para o futuro. Um protesto um
pouco menos sério e um pouco mais de sorrisos e satisfação.
Numa escala
histórica, a revolução comunista é iminente. Não estamos a escrever para as
gerações futuras.
Ao afirmar isto
sabemos bem que muitos revolucionários já o proclamaram e se enganaram.
Subestimamos regularmente as possibilidades de adaptação do sistema. Parece-nos
que hoje, como reacção, estamos a fazer o contrário. Não será a última carta do
capital a ancorar no cérebro de todos a imagem do seu poder e da sua imortalidade?
Tendo
desenvolvido a maquinaria até ao limiar da automatização, tendo unificado o
planeta, está no auge da sua potência, mas também atingiu os seus limites
históricos. Já não consegue responder à destruição do tecido social e à
deterioração do ambiente que provoca. Ele não consegue mais eliminar o excesso
de gordura. É o seu próprio poder, a sua concentração que se transforma em
fraqueza.
A crise da civilização económica tornou-se gradualmente mais clara como uma crise económica. Apenas faça backup das coisas! Mas a fase actual não pode ser reduzida a um período de dificuldades económicas. 109
Para sair da crise, temos de aumentar a taxa de mais-valia e corrigir a falta de rentabilidade do capital. Existem muitos obstáculos técnicos, ecológicos e humanos. Isto só pode acontecer através de lutas e grandes convulsões. O proletariado já mostra de mil maneiras que não deixará que as coisas aconteçam sem ele. Ele também mostra que não está pronto para aderir a uma solução reformista. Uma solução que só poderia consistir em garantir a sua cumplicidade para derrotá-lo e enterrá-lo de uma forma pior que o estalinismo e o fascismo.
IX O DEVIR
HUMANO
O comunismo não é
prisioneiro do futuro. Ele surge dentro do próprio capitalismo. A actividade
que os proletários desenvolvem quando negam espontânea e muitas vezes
inconscientemente a sua condição é comunista.
O comunismo
apresenta-se antes de tudo, tanto como teoria como como prática, como uma antecipação.
Desde as suas origens apresenta-se como uma solução, mais ou menos viável, mas
imediata para os males do velho mundo. A utopia não é uma escória a ser
eliminada. Pelo contrário, é o sinal característico do comunismo. Estamos mais
seguros na ciência do futuro do que na do presente. Mas o futuro corrói o
presente.
O comunismo é,
obviamente, uma etapa na história humana, um novo mundo. Mas não é sobretudo
uma forma social dada, mas um movimento privilegiado de humanização da espécie.
HISTÓRIA
No nível teórico,
o comunismo surge com o renascimento das ideias renascentistas. Em 1516, o
inglês Thomas More publicou a sua “Utopia” em Louvain. Em 1602 o dominicano
Campanella escreveu “A Cidade do Sol”. Ele estava então na prisão por ter
instigado uma conspiração anti-espanhola na Calábria. Trata-se de descrever um
mundo onde o dinheiro, a propriedade e a divisão de classes desapareceram e
apresentá-lo como uma alternativa ao mundo actual. Mais ainda, Campanella e
outros que se inclinam para o comunismo não são proletários nem sequer
rebeldes. Pelo contrário, são mentes brilhantes e vanguardistas que namoriscam
com os poderes existentes ou que são caçados pela sua independência ou
inconformismo.
No entanto, ao
mesmo tempo, com a Guerra dos Camponeses e Thomas Munzer, o comunismo começou a
materializar-se. Aterroriza os príncipes, a burguesia e os reformadores
religiosos como Lutero que exclamaram: “Infelizmente pessoas equivocadas que
vocês são! É a voz de carne e osso que chega aos seus ouvidos.”
“Confundiram fé
com esperança: não é natural acreditar quando não se tem nada? Ora, o que era
sério é que a santa esperança que os animava, eles pretendiam realizá-la não
num outro mundo, depois da morte, mas nesta terra, e o mais rápido possível.”
(A Revolução dos Santos 1520-1536, G. d’Aubarède 1946) 110
“Mas com os
anabatistas daquela época, não se tratava apenas de religião. A sua doutrina
minou os fundamentos de toda a ordem social, das propriedades, das leis, dos
magistrados.” (...)
(...) “Quanto às
casas particulares, cada um se adaptou como quis. Um deles foi transportado
para um hotel que, anteriormente, residia sob o telhado de palha. Os servos dos
nobres e do clero apropriaram-se sem escrúpulos do que pertencera aos seus
senhores.
O palácio
episcopal, os arquivos, os títulos, os privilégios, todos os papéis foram
saqueados. De que serviriam essas ninharias na nova Sião, cujos fundamentos
eram a liberdade evangélica e a igualdade fraterna? (Jean Bockelson, M.Baston
1824)
“Muitas pessoas
não têm consciência de que o comunismo já entrou no domínio da história como um
facto prático, que se provou, que triunfou durante alguns anos e tomou uma
posição violenta em algumas províncias, não durou mais de trezentos anos.
Eram os mesmos
pretextos de agora, quase as mesmas tendências, a implementação dos mesmos
processos de acção, mas com um meio adicional poderoso, uma alavanca de imensa
força, a forma religiosa e mística em que os poderosos revolucionários da época
se envolveram. .” (Estudos históricos sobre o comunismo e as insurreições no
século XVI, Arnoul, 1850)
Traços da
tendência para o comunismo podem ser encontrados mais atrás no tempo, mesmo
antes do desenvolvimento do capitalismo. É a velha aspiração de recuperar a
abundância e a comunidade perdidas.
As primeiras tentativas
práticas do comunismo moderno basear-se-ão nos restos do comunismo primitivo
que terão sobrevivido ao desenvolvimento das sociedades de classes.
O comunismo
moderno inspira-se nos antigos defensores da comunidade de bens: Platão, que a
defendeu à moda aristocrática para os membros da classe alta; os primeiros
cristãos que puseram em comum os seus bens segundo o espírito evangélico.
No entanto, mesmo
inspirando-se e ligando-se ao passado, o comunismo moderno inova.
O comunismo apresenta-se como um adversário da sociedade existente e quer substituí-la. Thomas More dedica a primeira parte da sua obra à denúncia dos infortúnios actuais e à descoberta das suas causas. Ele observa a devastação causada pelo desenvolvimento do capital.
O comunismo já
não é um estado de espírito ou uma forma de viver através da partilha de
recursos. É uma solução mundial e social, um modo de organizar a produção.
Thomas More
apresenta um navegador, Hythlodeus, que visitou as ilhas imaginárias da Utopia.
Hythlodée olha para a nossa sociedade: “Meu querido More”, diz ele, “para lhe
contar o fundo do meu pensamento, onde todos medem tudo de acordo com o
dinheiro, nesses países, é pouco quase impossível que a justiça e a
prosperidade reinem em públicos romances. Este homem muito sábio (Platão) viu
que só existe um e único caminho para a salvação pública, nomeadamente a
igualdade, que não me parece possível quando os bens pertencem a indivíduos...
Estou, portanto, convencido de que os bens não podem ser distribuídos de forma
justa e razoável, que os assuntos dos homens não podem ser geridos de forma
feliz, se não eliminarmos completamente a propriedade .” 111
More denuncia os
danos causados pelo
desenvolvimento da propriedade fundiária e do capitalismo fundiário que
afugenta os camponeses para a criação de ovelhas; “As suas ovelhas são tão
gentis, tão fáceis de alimentar com pouco, mas que, pelo que me disseram, estão
a começar a ser tão gananciosas e tão indomáveis que até devoram os homens.” Ele denuncia
a impotência da política e a distância que separa necessariamente os bons
preceitos da sua aplicação prática.
Na Utopia as
coisas são diferentes. “Cada pai vem buscar tudo o que precisa e leva sem
pagamento, sem remuneração de qualquer espécie. Por que recusar algo a alguém,
já que tudo existe em abundância e ninguém teme que o próximo peça mais do que
necessita? Porquê pedir demais, quando sabemos que nada será recusado? O que o
torna ganancioso e voraz é o terror de perder..."
“Em todos os
outros lugares”, escreve ele, “aqueles que falam do interesse geral pensam
apenas no seu interesse pessoal; ao passo que onde não se tem nada de próprio,
todos estão seriamente preocupados com os assuntos públicos, uma vez que o bem
particular se confunde realmente com o bem geral...
Na Utopia...,
onde tudo é de todos, não pode faltar nada a ninguém, uma vez cheios os
celeiros públicos. Pois a fortuna do Estado nunca é distribuída injustamente
neste país; não vemos nem pobres nem mendigos, e embora ninguém tenha nada
próprio, todos são ricos...
Não é iníqua e
ingrata a sociedade que esbanja tantos bens àqueles que chamamos de nobres, aos
joalheiros, aos ociosos ou aos artesãos de luxo que só sabem lisonjear e servir
prazeres frívolos? Quando, por outro lado, não tem coração nem pensamento para
o lavrador, o carvoeiro, o operário, o carroceiro, o trabalhador, sem os quais
não haveria sociedade. No seu egoísmo cruel, ela abusa do vigor da sua
juventude para extrair deles o máximo de trabalho e lucrar; e assim que
enfraquecem sob o peso da idade ou da doença, quando lhes falta tudo, Ela
esquece as suas muitas vigílias, os seus muitos e importantes serviços,
recompensa-os deixando-os morrer de fome.
More conclui o seu
livro assim: “Há uma série de coisas entre os utópicos que desejo ver
estabelecidas nas nossas cidades. Desejo isso mais do que espero.” E a palavra
utopia designa na linguagem quotidiana um sonho irrealizável. E ainda...
E, no entanto, pouco mais de um século depois, aconteceria uma experiência notavelmente próxima do sonho de More. É muito raro um projecto social ser executado com tanta fidelidade. 112
O COMUNISMO GUARANI
No ano da
publicação de “Utopia” os espanhóis entraram e começaram a conquistar o
Paraguai: o país dos índios Guarani. O nome Paraguai designa no século XVI um
território maior que o actual Paraguai e pátria dos Guaranis, portanto a
experiência da qual vamos falar estava localizada fora dos limites do Paraguai
moderno.
Sob a égide dos
jesuítas, várias centenas de milhares de índios viveriam, cultivariam a terra,
extrairiam e forjariam metais, fundariam estaleiros, dedicar-se-iam às artes,
sem dinheiro, salários e propriedade privada. A república guarani duraria cerca
de um século e meio, depois deteriorar-se-ia com a expulsão dos jesuítas e os
ataques dos espanhóis e portugueses. Este grupo constituía na sua época o país
industrialmente mais avançado da América Latina. Os contemporâneos
questionariam e argumentariam sobre a natureza e o âmbito da experiência que
alimentaria o socialismo europeu. Alguns vê-lo-ão como uma tentativa de
vanguarda, outros irão minimizá-lo ou reduzi-la a um obscuro empreendimento
jesuíta. Com o tempo, este caso foi considerado demasiado jesuítico ou
demasiado comunista para atrair a atenção.
Os documentos
citados por Clovis Lugon, papista e estalinófilo, permitem-nos formar uma
opinião mais precisa (La République des Guaranis, Éditions Ouvrières 1970).
“Nada me pareceu
mais bonito do que a ordem e a forma como é assegurada a subsistência de todos
os habitantes do povo. Quem faz a colheita é obrigado a transportar todos os
grãos até aos armazéns públicos; há pessoas designadas para vigiar essas lojas,
que mantêm um registo de tudo o que recebem. No início de cada mês, os oficiais
responsáveis pela
administração dos cereais entregam aos chefes de distrito a quantidade
necessária para todas as famílias do seu distrito, e estes distribuem
imediatamente às famílias, dando a cada uma mais ou menos, conforme para isso é
mais ou menos numeroso. » (R.P Florentin, Viagem às Índias Orientais...)
A maior parte do
trabalho era feita em comum e os índios não pareciam tentados pela propriedade
privada. Eles só criavam galinhas ou um cavalo. Para fazê-los evoluir para a
propriedade privada, foram distribuídos lotes individuais, mas no dia em que os
índios tiveram que cuidar desses lotes eles ficaram “o dia inteiro deitados na
rede...” (P. Sepp)
“O Padre Cardiel,
que deplora, como foi dito, a persistência do sistema comunista, por sua vez
fez todo o possível para levar os Guaranis à propriedade privada, e antes de
tudo ao sentido do interesse e do lucro individual, encorajando-os a cultivar
produtos valiosos no lote com o objectivo de vender o excedente. Ele admite
francamente o seu fracasso e declara que só encontrou três exemplos em que
indivíduos tiraram do seu lote um pouco de açúcar ou algodão para vender. No
entanto, um desses três indivíduos era um mulato convertido.” (Lugon) E o Padre
Cardiel acrescenta: “Nos vinte e oito anos em que me encontrei entre eles como
pároco ou companheiro, não encontrei outro exemplo entre tantos milhares de
índios. »
Todos os índios eram obrigados a participar de tarefas manuais e ali passavam apenas um tempo limitado: um terço ou metade do dia. 113
“Há por toda a parte
oficinas de douradores, pintores, escultores, ourives, relojoeiros,
serralheiros, carpinteiros, marceneiros, tecelões, fundições, numa palavra, de
todas as artes e de todas as profissões que lhes possam ser úteis.”
(Charlevoix). “Só encontraríamos tantos mestres artesãos e artistas numa grande
cidade europeia.” (Garech). “Eles fazem relógios, desenham planos, gravam mapas
geográficos.” (Sepp). Segundo Charlevoix, os Guaranis “têm sucesso como que por
instinto em todas as artes em que se aplicaram... Vimo-los fazer os órgãos mais
compostos pela única inspeção que deles fizeram, bem como esferas astronómicas,
tapetes no estilo turco e o que é mais difícil de fabricar.” E «assim que as
crianças têm idade suficiente para poderem começar a trabalhar, levamo-las às
oficinas e colocamo-las naquelas para as quais parecem ter mais inclinação,
porque estamos convencidos de que a arte deve guiar-se pela natureza. .”
Os índios também
fabricavam sinos, as suas armas de fogo, canhões e munições. As gráficas
possibilitaram a produção de livros em diversas línguas, principalmente em
guarani. Os índios estavam organizados militarmente; “Poderíamos mobilizar
imediatamente mais de trinta mil índios, todos a cavalo” e capazes de “empunhar
um mosquete e também brandir um sabre... para lutar ofensiva ou defensivamente,
tal como qualquer europeu”. (Sepp).
O Padre
d'Aguilar, superior geral da República, escreveu: “O que se poderia opor a
vinte mil índios que se compararam às melhores tropas espanholas e portuguesas,
diante das quais os mamelus já não se atrevem a mostrar-se, que por duas vezes
expulsaram os Portugueses da colónia do Santíssimo Sacramento, e que durante
tantos anos respeitaram todas as nações infiéis que os cercam. (Citado por
Charlevoix).
Segundo
Charlevoix não havia “nem ouro nem prata, excepto para decorar os altares”. “A população
obtinha alimentos sem dinheiro nem moedas. Esses ídolos da ganância, diz
Muratori, são absolutamente desconhecidos para eles... O valor das mercadorias
foi expresso em "pesos" e "reais", de forma puramente
fictícia. Era uma forma de fixar o valor relativo das mercadorias correntes...
Além da troca e da moeda fictícia do peso, existia uma moeda "real"
composta por certos bens de uso geral que eram aceites por todos como
pagamento, mesmo sem necessidade ou uso imediato. (Chá, tabaco, mel, milho).
O preço
correspondia normalmente ao valor real das mercadorias, ou seja, à quantidade
de trabalho necessária à sua produção, sem qualquer aumento em benefício de
intermediários inexistentes. O preço relativo de uma determinada mercadoria era
naturalmente influenciado pela sua escassez ou abundância. (Lugão)
As transações de
“redução” em “redução” cabiam à comunidade. “As estatísticas indicavam
regularmente o volume de reservas e as necessidades de cada redução, era fácil
prever as trocas. O padre consultava o corregedor e o mordomo para determinar o
tipo e a quantidade de mercadorias a serem importadas e exportadas. (Lugão)
Seria isto um
comunismo autêntico?
O comunismo
guarani não era comunismo puro. Havia o espírito atrevido dos jesuítas, a
homenagem prestada à coroa de Espanha e o estabelecimento do seu serviço das
forças militares Guarani, a persistência do escambo, etc. Mas não estamos à procura
de pureza. 114
Não foram os
jesuítas que trouxeram o comunismo aos guaranis. Eles encontraram-no lá e
tiveram que conviver com isso. Alguns regozijaram-se, achando-o coerente com o
espírito evangélico, outros, por gosto ou sob pressão externa, procuraram
reduzi-lo. Os jesuítas permitiram a enxertia de técnicas e conhecimentos
ocidentais num comunismo primitivo inerradicável. Eles permitiram que os grupos
Guarani se unissem num todo substancial.
Este comunismo era suficientemente forte para despertar desconfiança e ser atacado. Os Jesuítas desempenharam um papel bastante prejudicial, sujeitos a uma autoridade externa à comunidade Guarani, ao semear confusão e desunião entre os índios quando os espanhóis e portugueses atacaram as “reduções” orientais em 1754-56. “Os Padres das reduções receberam do General da Companhia, Ignace Visconti, “a ordem estrita de se submeterem ao inevitável e de levarem os índios à obediência”. (Lugão). Os índios ameaçaram directamente lutar, mas foram finalmente esmagados. Em 1768 os Jesuítas foram expulsos. As intervenções anti-Guarani continuaram e arruinaram a experiência. A fraqueza do comunismo Guarani foi que inicialmente não era um comunismo revolucionário e não foi formado através do confronto.
Em 1852, Martin
de Moussy escreveu: “este estranho regime, este comunismo tão criticado, com
uma aparência de razão talvez, a melhor prova de que convinha aos índios, é que
os sucessores dos jesuítas se viram forçados a continuá-lo quase até ao
presente e que a sua destruição, despreparada por medidas inteligentes e
paternas, não teve outro resultado senão lançar os índios na miséria... actualmente,
os seus últimos herdeiros lamentam amargamente este regime, imperfeito sem
dúvida, mas tão bem adaptado aos seus instintos e à sua moral.
Lugon, que deseja
absolutamente fazer dos jesuítas os importadores do comunismo, escreve
novamente: “No dia seguinte à destruição de Entre-Rios, os sobreviventes
reorganizaram-se sob a direcção de três chefes assistidos por um conselho,
inteiramente de acordo com a tradição recebida do Jesuítas. A população desta
colónia foi estimada em 10.000 pessoas entre 1820 e 1827. A comunidade de
propriedades foi totalmente restaurada.
Nas reduções
ocorridas no Paraguai moderno, o regime comunista foi oficialmente abolido em
1848 pelo ditador López. Os Guaranis que ainda permaneciam nesta região foram
nesta época legalmente despojados dos seus prédios e propriedades. Eles foram abandonados
para vegetar em reservas estabelecidas à maneira norte-americana.”
A República dos
Guarani não é o único exemplo do encontro entre o comunismo índio e o Ocidente.
Houve algumas outras de menor importância: a República Chiquite no sudeste da
Bolívia, a República dos Moxes no norte da Bolívia, o grupo dos Pampas...
Os comunistas de
Munzer ou do Paraguai foram mais longe na criação de uma forma social
intermediária entre o comunismo primitivo e o comunismo superior do que os comunardos
e os outros proletários dos
tempos modernos. 115
Haveria regressão
ao longo do tempo? Foi o poder do capital e a consequente degradação do sentido
social dos indivíduos que se opuseram ao comunismo. Não há regressão, mas sim
um ciclo que está a ser completado e que verá o comunismo ressurgir, mas desta
vez no centro do mundo capitalista.
Isto talvez seja
incompreensível para quem vê a história como um processo linear e contínuo. Não
há regressão nem antecipação, mas progresso perpétuo do inferior para o
superior. Mas por que é que então a indústria moderna se desenvolveu a partir
do atraso feudal europeu e não a partir das grandes fábricas de tecelagem
incas, e não a partir das artes e técnicas chinesas? Porque esta indústria só
pôde ser introduzida após um período de decadência?
Ao lado e seguindo este comunismo de envoltório religioso, embora iconoclasta entre os insurgentes alemães ou Campanella que quer o fim da família, um comunismo naturalista e anti-religioso desenvolver-se-á na esteira das revoluções burguesas.
NIVELADORES
Na Inglaterra,
após a Revolução de 1648, desenvolveu-se uma corrente favorável ao comunismo
dentro do partido dos “niveladores”. Várias obras comunistas apareceram nesta
época. Defende a obrigação de trabalho para todos e a distribuição gratuita de
bens.
Os contactos com
sociedades não ocidentais alimentam reflexões filosóficas. Em 1704 Gueudeville
publicou os “Diálogos ou entrevistas entre um selvagem e o Barão de La Houtan”.
O indiano seria superior ao europeu porque desconhece a distinção entre o meu e
o seu.
Em 1755 Morelly
publicou o seu “Código da Natureza”. Ele afirma que o homem não é cruel nem
mau. É preciso romper com o “desejo de ter” e a propriedade: “Tire a
propriedade, o interesse cego e impiedoso que a acompanha, tire todos os
preconceitos, os erros que os sustentam, não há mais resistência ofensiva ou
defensiva entre os homens”. , não existem mais paixões furiosas, nem ações mais
ferozes, nem mais noções, nem mais ideias de mal moral.”
Apesar de sua
confiança na natureza humana, Morelly consegue, contraditoriamente, definir as
leis que regem a vida das pessoas nos mínimos detalhes. O vestuário, o
casamento, o divórcio, a educação dos filhos, o pensamento e até os devaneios
são estritamente regulamentados.
O comunismo de
Morelly influenciará notavelmente o revolucionário Gracchus Babeuf, que será
executado em 1797 após o fracasso da conspiração Equals.
Foi
fundamentalmente correcto considerar que o comunismo corresponde à natureza humana;
que é o estado natural da espécie. Isto não acontece porque o homem é
espontaneamente bom ou moral, não porque as sociedades se sucedem sem modificar
uma natureza humana inalterável. Simplesmente classes, propriedade, troca, o
Estado impõe-se como necessidades sociais, portanto também humanas, mas são
apenas necessidades momentâneas que correspondem à passagem de uma forma social
comunista para outra. 116
O comunismo não é
imposto. Surge constantemente, mesmo que só possa desenvolver-se em determinados
momentos. Vimos que uma manifestação espontânea e tipicamente humana como a
fala permanece comunista, pelo menos ao nível da forma. Na sua própria
compreensão, o comunismo continua a ser muito mais simples e transparente do
que o capitalismo: a forma social dominante. Isto porque é ainda hoje uma
realidade mais imediata. Quando ridicularizamos a riqueza burguesa baseada na
monopolização e expressa pelo dinheiro, e fazemos papel de ingénuos, é porque
podemos confiar imediatamente numa concepção comunista de riqueza que existe no
Estado.
Seremos criticados
por sermos simplistas ou ingénuos. Até certo ponto estas são virtudes que
cultivamos. Bem-aventurados os simplórios, porque deles é o reino dos céus; e
não só este. O comunismo é criticado não por ser incompreensível e inaceitável,
mas por ser ingénuo, por não ter em conta a realidade que pretende derrubar.
Lutam contra o comunismo porque sabem que não é assim tão ingénuo e que existem
os meios para o seu sucesso.
A teoria é uma
necessidade. É necessária num mundo onde a realidade humana escapa aos homens.
Mas se a teoria serve apenas para complicar as coisas, para reforçar a tela que
separa os homens da sua humanidade, então é melhor abster-se. A teoria
revolucionária não é como a teoria da relatividade. Ela fala de uma realidade
na qual estamos imersos. A complexidade e a distância que procura reduzir, num
movimento que é, portanto, ele próprio comunista, não estão ligadas a razões
físicas, mas a razões humanas e humanamente modificáveis.
Somos tentados a drogar-nos
com a teoria e assim recusar a vida, ou a recusar a teoria e a drogar-nos com a
experiência. A falta de vida, o distanciamento dos mecanismos que organizam a
vida humana não conduzem a um desejo necessariamente activo de compreensão, mas
a uma busca frenética por imagens e possibilidades de identificação. O que
importa não é compreender e assim colocar-se na possibilidade de transformar a
realidade, mas encontrar os responsáveis, os culpados, os belicistas e os
ladrões de trabalho. Só graças a esta procura de concretude e de imagens é que
o sistema e os seus gestores têm conseguido concentrar o ódio popular contra
este ou aquele grupo social. A esta necessidade pervertida de experiência
devemos opor explicações, mas sobretudo a própria vida. Não pode curar viciados
em drogas com palavras.
Morelly observa:
“Infelizmente, é verdade que seria quase impossível formar tal república nos
nossos dias.” Os utópicos não compreendem o movimento que pode levar ao
comunismo. Nesta altura o proletariado ainda mal aparecia como uma força
autónoma. Mas as descrições utópicas já manifestam a necessidade histórica do
comunismo e fazem dele uma exigência imediata de acordo com a sua natureza
profunda.
O futuro não é um
ponto externo à realidade que vivemos. Ele é esta realidade, é a sua superação.
O comunismo está aqui e noutros lugares, hoje e amanhã, a minha subjectividade
e o desenvolvimento objectivo de forças
produtivas. 117
Não podemos, sem
nos desviarmos, opor-nos ao comunismo como utopia e como movimento histórico.
Um dos grandes méritos dos utópicos é não terem alimentado quaisquer ilusões
quanto à possibilidade histórica do seu projecto.
Mais tarde vieram
reformadores comunistas como Cabet e Owen, que tentaram transformar as suas
ideias em realidade criando pequenas comunidades ou instituições que eram
“comunistas” ou tinham objectivos comunistas.
A força do
utópico é que ele não se concentra em construir uma representação da evolução,
em deduzir o que virá do que é. Ele antecipa directamente. Ataca radicalmente,
isto é, ao nível humano, os problemas que o capital levanta e revela. Problemas
com os quais a humanidade um dia será forçada a lidar.
Como utopia, o
comunismo afirma-se na sua descontinuidade com o presente. Foi concebido como
um novo equilíbrio mundial.
A isto opomos um
determinismo de má qualidade que reduz a evolução a um processo contínuo onde
cada fase é a extensão ou produção por desmoldagem da fase anterior. O utópico
é reduzido a um sonhador ou a um racionalista místico. Não compreendemos a sua
abordagem e o seu ponto de partida como parte do movimento em questão.
O comunismo é uma
expressão da implantação historicamente permitida e ordenada das capacidades da
espécie humana. É o estado natural da espécie. Mas esta natureza é produzida
historicamente. A própria história apenas ordena e repete os mesmos materiais,
sem ficar parada ou descrever um círculo fechado.
A fase intermédia das sociedades de classes, que tende a negar o homem, fazendo do homem um instrumento, só foi possível e necessária pelas características específicas e geneticamente inscritas da espécie. É a capacidade humana de se adaptar, mas também de resistir, de usar ferramentas, mas também de ser usada como uma ferramenta que não se volta contra a humanidade. Esta fase, ao gerar o capitalismo e a maquinaria, assinou a sua própria sentença de morte.
SOCIALISMO
CIENTÍFICO
No século XIX o antagonismo entre a burguesia e o proletariado veio à tona. O comunismo tenderá menos a pretender basear-se na razão ou na filosofia em geral. Ele quer inserir-se e praticamente transformar a realidade. A primeira tendência a surgir é aquela que quer começar a criar ilhas comunistas e a expandir-se pelo exemplo, possivelmente com o acordo dos poderosos deste mundo. A segunda tendência é a do comunismo revolucionário e insurreccional. Em França, será associado em particular ao nome de Blanqui: “O comunismo, que é a própria Revolução, deve proteger-se da aparência da utopia e nunca separar-se da política. Ele estava fora disso anteriormente. Está bem no centro disso hoje. Ele nada mais é do que seu servo... No dia em que a mordaça sair da boca do trabalho, será para entrar na do capital.” 118
Blanqui vê o
comunismo já em acção, embora de certa forma um pouco generoso em nossa
opinião, no mundo capitalista: “O imposto, o próprio governo, são comunismo, do
pior tipo, com certeza, e ainda assim absolutamente necessário... Associação ,
ao serviço do capital, torna-se um tal flagelo que não será tolerado por muito
tempo. É privilégio deste princípio glorioso poder fazer apenas o bem.”
(Comunismo, futuro da sociedade, 1869)
O comunismo, ao
ligar-se abertamente à luta do proletariado, dá um passo decisivo, mas também
se perverte. Gradualmente deixa de ser uma exigência imediata. Torna-se um
projecto, uma missão, um estádio histórico isolado do presente. Esvaziado do
seu conteúdo para os “niveladores” e os “partilhadores”, poderá tornar-se no
século XX um hábito para o capital.
O “socialismo
científico” foi uma forma de racionalizar o afastamento histórico do comunismo.
No século XIX, a classe operária pode agir de forma autónoma, mas o comunismo
não é possível. Ao propor preconceitos políticos e fases de transição, Bray,
Marx ou Blanqui permitiram todas as recuperações.
O que falta no
famoso “Manifesto Comunista” é precisamente o comunismo. Aí encontramos uma
apologia à burguesia, uma análise das lutas de classes, medidas de transição. O
comunismo raramente é falado e bastante mal.
O “Manifesto” foi
escrito para a “Liga dos Justos” que se tornou a “Liga dos Comunistas”. Antes
da chegada de Marx e Engels, a doutrina desta associação de artesãos e
trabalhadores alemães na imigração era bastante vaga. Weitling, seu fundador e
teórico, era do tipo místico. Marx e Engels fazem progressos inegáveis, mas
provocam um recuo numa afirmação ingénua mas mais positiva e ainda mais justa
do comunismo.
Em Junho de 1847,
o Congresso da Liga definiu as suas intenções no Artigo I dos Estatutos: “A
Liga visa suprimir a escravidão humana através da divulgação da teoria da
comunidade de propriedade e, o mais rapidamente possível, através da sua
aplicação prática.”
Em Novembro de
1846/Fevereiro de 1847 o Comité Director escreveu às secções “Vocês sabem que o
comunismo é um sistema segundo o qual a Terra deve ser o bem comum de todos os homens,
segundo o qual todos devem trabalhar, “produzir”, de acordo com suas
capacidades , e desfrutar, “consumir”, de acordo com suas forças...”
O Artigo I dos
novos Estatutos, escritos por Marx e Engels, enfatiza os problemas do poder e
da dominação e define o comunismo negativamente: "O objectivo da Liga é a
queda da burguesia, a dominação do proletariado, a supressão da velha sociedade
burguesa baseada em antagonismos de classe, e a fundação de uma nova sociedade
sem classes e sem propriedade privada”.
Em “Gritos de
angústia da juventude alemã” (1841), Weitling define o seu comunismo cristão
assim: “O problema que ele (Cristo) colocou a si mesmo foi a fundação de um
império sobre toda a terra, a liberdade para todas as nações, a comunidade de
bens e de trabalho para todos aqueles que professam o império de Deus. E é
precisamente isto que os comunistas de hoje adoptaram novamente..." 119
“Há comunistas
que o são sem saber: o agricultor trabalhador que partilha o seu pedaço de pão
integral com o trabalhador faminto é comunista; o artesão trabalhador que não sequestra
os seus trabalhadores e que lhes paga proporcionalmente ao produto do seu
trabalho comunitário, é um comunista; o rico que usa o seu excedente para o bem
da humanidade sofredora é um comunista.” Comunismo e caridade são praticamente
confundidos. Marx iria reagir com razão e vigor contra esta confusão. Mas no
“Manifesto Comunista” os comunistas já não são definidos pelo seu comunismo.
Eles são simplesmente os mais resolutos dos proletários e aqueles que têm a
vantagem de uma compreensão clara do progresso do movimento proletário: os
possuidores da teoria. No final do século XIX e início do XX, e apesar da raiva
de Marx contra a social-democracia, especialmente antes do Congresso de Gotha
em 1875, o comunismo foi esvaziado do seu verdadeiro conteúdo. Só manterá o seu
significado profundo para um punhado de anarquistas.
Em 1891, Paul
Reclus, para justificar a “recuperação individual”, isto é, o roubo, deu em “La
Révolte” esta curta e boa definição de comunismo: “A actividade de vida com que
sonhamos também está longe do que chamamos hoje de trabalho e o que chamamos de
roubo: pegaremos sem pedir e isso não será roubo, usaremos as nossas faculdades
e a nossa actividade e isso não será trabalho..."
Com a onda
revolucionária que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e na esteira da
Revolução Russa, as tendências marxistas e comunistas reapareceram. Há indícios
de comunismo entre os bolcheviques. Noivas que rapidamente se tornarão
pervertidas e desaparecerão com o declínio da revolução mundial e o
envolvimento nos problemas russos.
É com razão que
denunciámos o papel contra-revolucionário inicial dos bolcheviques, é com razão
que mostrámos o carácter burguês do trabalho teórico e prático de Lenine. Mas é
estúpido querer culpar os bolcheviques pelo fracasso da revolução operária na
Rússia. Os bolcheviques são antes um caso específico de exemplo em que um
punhado de homens conseguiu influenciar o curso da história até ao extremo das
possibilidades revolucionárias. Os seus adversários, mesmo de esquerda,
geralmente apenas tiveram de se opor às perspectivas humanistas e democráticas.
O contraste é
impressionante entre a magnitude da onda revolucionária e a fraqueza da
afirmação comunista.
Na Alemanha e na
Holanda em particular, os “esquerdistas” denunciam o capitalismo de Estado no
regime russo. A isto opõem-se um comunismo baseado na gestão dos operários.
Devemos-lhes a ênfase na acção autónoma das massas e dos conselhos operários.
Com o refluxo da revolução, esta corrente, expressa em particular pelo KAPD,
fragmenta-se em pequenas seitas, quando deveria ter reunido centenas de
milhares de operários.
Este
gerencialismo operário também será usado por anarquistas e
anarco-sindicalistas. O comunismo é reduzido à auto-organização dos produtores.
Foi em Itália que
a esquerda de Bordiga, que dominou o PCI na sua fundação, melhor restaurou a
doutrina comunista. Ela posiciona-se contra a participação nas eleições, recusa
frentes comuns com a social-democracia, critica a ilusão democrática. 120
Destaca a
abolição do emprego assalariado e da economia mercantil. Particularmente após a
Segunda Guerra Mundial, Bordiga desenvolveu a sua análise da contra-revolução
capitalista na Rússia e a sua concepção do comunismo. Não construímos o
comunismo, destruímos o mercantilismo.
Apesar da sua
profundidade, o Bordigismo não consegue libertar-se da sua matriz leninista. O
seu radicalismo e a sua perspicácia perdem-se nos piores impasses.
Após a Segunda
Guerra Mundial, foi apenas muito gradualmente que o comunismo teórico renasceu.
A prosperidade e a boa saúde do capital não ajudam. Depois de relembrar o seu
passado, de forma bastante má, ele tenta ir além dele. Desenvolve-se à medida
que a crise social, e depois económica, do capital começa a tornar-se novamente
visível.
Depois de
enfrentarem as críticas aos países orientais e à burocracia, os situacionistas
desenvolveram uma teoria da sociedade moderna baseada na mercadoria e no “espectáculo”.
Eles denunciam a pobreza moderna. Por mais relevante que a sua análise possa
muitas vezes ser, ela permanece na superfície das coisas. Prisioneira no seu
estilo e conteúdo do efeito espectáculo que denuncia e reflecte.
Os situacionistas
produzem uma crítica social brilhante e corrosiva, mas não uma teoria do
capital, da maquinaria que sustenta o espectáculo e da revolução. Eles não
abordam a questão da comunização senão aplaudindo a negação imediata da
mercadoria: saque ou incêndio, ou afundando-se no conselhismo: Pelo poder
absoluto dos conselhos operários nos quais tudo está suspenso. Ferozes inimigos
do bolchevismo, como ele, fizeram da revolução uma questão de organização.
A doutrina
comunista deve centrar-se na descrição do futuro e especialmente no processo de
comunização. É isto que devemos debater, unir ou, pelo contrário, dividir. Não
se trata de fugir do presente, mas de vivê-lo e julgá-lo à luz do futuro. O
comunismo é actual e podemos imediatamente opor as suas perspectivas à cola
capitalista.
O protesto, se
não conduz a perspectivas positivas e, portanto, mostra a sua falta de
profundidade, torna-se um meio de entrar na miséria sob o pretexto de
denunciá-la. Seguindo os palhaços e os cantores, os ideólogos passam a
alimentar-se da própria decomposição do sistema. Se pudermos perdoar tudo
àqueles que nos fazem rir, não poderemos perdoar nada. Maneira definitiva de
esconder as possibilidades gigantescas e inexploradas que se abrem para a
humanidade: Maneira definitiva de extinguir a esperança nos corações dos
oprimidos!
Com o tempo, a
ideia e a luta comunistas ressurgiram continuamente. Porém, só se transformam
gradativamente ao se recuperarem, o capitalismo obriga-nos a ir além. Hoje que
o capitalismo generalizou a propriedade pública e o trabalho nos campos de
concentração, o comunismo está para além da oposição entre apropriação
individual e colectiva. Tudo já não se baseia na questão da propriedade. O
comunismo não oscila entre um naturalismo associal e um moralismo ou
regulacionismo exasperado. 121
A fase marxista também não deve ser poupada. O comunismo foi considerado um modo de produção que sucedeu ao capitalismo. É ao mesmo tempo mais e algo diferente de uma forma social. É o movimento, presente no capitalismo que o reprime, através do qual a actividade humana rompe os seus constrangimentos e finalmente floresce!
A ACTIVIDADE
COMUNISTA
O comunismo é
antes de tudo actividade. Primeiro, porque surge dentro do capitalismo antes de
poder derrubá-lo. Primeiro, porque no mundo comunista a actividade humana e as
funções vitais não são prisioneiras das formas sociais geradas. A organização
das tarefas já não tem de estar congelada nas instituições. O comunismo surge
positivamente dentro do capitalismo. Mas afirma-se como o reverso da negação. O
comunismo como actividade é ao mesmo tempo negação e antecipação. Não existem
dois momentos sucessivos. Quanto mais a actividade se opõe ao capital, mais
tende a atrair o comunismo; e vice versa.
Portanto, não se
trata de forma alguma de construir ilhas de comunismo dentro do capitalismo. Se
a actividade tende a construir, ela destrói-se do ponto de vista comunista.
Não existem
necessidades comunistas que exijam satisfação fora do sistema. Mesmo que exista
comunismo sob as necessidades, quando elas aparecem não conseguem dissociar-se
das suas possibilidades de realização, mesmo imaginárias, no sistema. A
incapacidade do capitalismo de satisfazer desejos leva à sua superação e à superação
dos desejos que permite.
Nem vemos o
comunismo como Weitling no sentido moral ou com Blanqui na ascensão do glorioso
princípio de associação. Se for comunismo, é comunismo negativo, que não deve
ser confundido com mau comunismo. É a ascensão do movimento de desapropriação
capitalista.
Despossuídos dos
instrumentos de produção, privados do poder sobre o seu trabalho, separados uns
dos outros, mas confrontados e animados por um enorme poder produtivo, reunido
em grandes massas, os proletários vêem o comunismo inscrito negativamente na
sua situação. Eles não têm, mesmo que possuam a sua caixa de ferramentas,
quaisquer interesses particulares a defender. A sua privação enfrenta o poder e
a riqueza social que animam. Isto é o que faz do proletariado a classe do
comunismo. Os proletários não podem reapropriar-se aos poucos dos meios de
produção. Eles precisam compartilhá-los.
Mas o fundamental não é tanto, mesmo que as coisas estejam indissociavelmente ligadas, o movimento de reapropriação e partilha de bens, mas a nova actividade que se desenvolve, a reapropriação da vida, o nascimento de novas relações, a inversão da relação de dominação entre homens e objectos. 122
Certamente o
comunismo, a comunidade humana, é uma fase de desenvolvimento histórico, um
determinado modo de produção. Os antagonismos que opunham grupos e interesses
humanos desaparecem.
Mas não podemos
compreender o comunismo se fizermos dele um objectivo ou um movimento
finalizado, desligado da actividade que o produz. Ao submeter a actividade ao
objectivo, os meios aos fins, apenas projectamos na história a dominação do
capital mercadoria sobre a actividade humana, que ele aprisiona na forma de
trabalho. O objectivo, o resultado, a forma social comunista deve ser
considerada como uma necessidade da actividade que procura assegurar e
reproduzir as suas condições de existência.
A comunidade está
na sociedade por vir, na unificação do planeta, no fim da divisão da economia
em empresas, numa solução mundial e social. Mas aqueles que não o vêem em acção
na actividade espontânea dos proletários, na negação imediata e particular do
racismo e das mentiras, não conseguem compreender nada sobre isso.
A relação entre a
actividade imediata e o mundo vindouro é central. A universalidade do comunismo
está contida na particularidade das situações.
Se a
universalidade pode surgir do particular é porque este particular é ele próprio
produto da lógica universal, unificadora e privativa do capital.
Aqueles que não
compreendem a ligação são forçados a apelar para um falso universal: o partido
(proletário!), o Estado (proletário!), ou mesmo o proletariado, mas como uma
abstracção ou representação. Considera-se que este falso universal esconde o
princípio activo face a uma pasta social inerte. O instrumento e seu objecto.
Mente transformando ou cavalgando na matéria.
A consciência
comunista só se generaliza quando a sociedade é abalada até aos seus alicerces.
Mas na vida que ressurge tudo já está lá, inclusive a consciência que deixa de
ser o reflexo passivo de representações e situações congeladas. A consciência
ideológica é transformada em consciência prática. Nisso ela já é comunista.
Quanto mais
profunda a luta, mais os participantes se veem limpos dos preconceitos e das
mesquinharias que os habitavam. A sua consciência é desvendada e eles lançam um
olhar novo e surpreso sobre a realidade e a existência que levam.
Esta presença do
comunismo não é o monopólio da luta no sentido estrito do termo: um confronto
claro e declarado entre trabalho e capital. Manifesta-se ao longo da vida
social e muitas vezes abandona essas lutas ritualizadas, fixas e enfadonhas que
já não existem.
A verdadeira
comunidade humana sempre envolve uma contradição com o capital. Tende a
tornar-se uma luta aberta ou é destruída e recuperada para se tornar uma imagem
a aderir à realidade. A influência crescente do capital sobre a vida reprime e
torna cada vez mais impossível toda a humanidade, todo o amor, toda a criação e
toda a verdadeira investigação. Os homens tornam-se carcaças vazias que vagueiam
sem vida ao ritmo do capital. A revolta, a reacção devem então assumir um
carácter cada vez mais humano. A essa humanidade contraditória ao capital, fase
precisa do futuro da espécie, chamamos de comunista. Este rótulo é necessário
enquanto este tornar-se humano não pode pretender representar e abranger todas
as manifestações humanas, uma vez que permanece antagónico ao capital. 123
O comunismo é
possível porque o capital não pode transformar os homens em robôs. Mesmo que
ele robotize a sua existência, ele não pode prescindir da sua humanidade. A actividade
mais integrada e servil prospera na participação, na criação, na comunicação e
na iniciativa, mesmo que não consiga florescer. A necessidade e a expectativa
de salário não são suficientes para manter o operário a funcionar. Ele precisa
de outras motivações, precisa colocar o seu próprio esforço nisso. A forma de
trabalho não pode eliminar o carácter genérico e humano da actividade do operário.
Vimos (cap. IV)
que sob separações a vida se perpetua e mantém a sua unidade: É impossível
dissociar completamente produção, educação e experimentação. A produção, o
trabalho mais estúpido, exige uma certa adaptação do operário e capacidade de enfrentar
uma situação não planeada. Da mesma forma, a educação mais abstracta deve
materializar-se através de determinados “produtos”, ainda que apenas uma prova.
A necessidade de controle externo recai sobre a produção...
O sistema de
produção entraria em colapso se os operários não pudessem mais experimentar,
ajudar-se uns aos outros, aconselhar-se uns aos outros. A organização
hierárquica do trabalho só pode sobreviver se as suas regras forem
constantemente desrespeitadas. Impõe um quadro intransponível a estas
ilegalidades e à actividade espontânea dos operários para evitar que se
desenvolvam e se tornem verdadeiramente perigosas e subversivas. Quando se abre
uma brecha ou surge um conflito, esta actividade tenta tornar-se autónoma e
desenvolver a sua própria lógica.
Ao lutar, o
proletário nega-se imediatamente como assalariado, como escravo, como robô. Por
mais limitado que seja o reaparecimento da vida e da acção, a opressão
capitalista já é posta em causa nos seus fundamentos.
O proletário que
não passava de uma engrenagem começa a escolher novamente, a comprometer-se, a
correr riscos. Ele recupera o controle dos seus movimentos. Os seus olhos abrem-se,
a sua inteligência descongela. A seriedade opressiva, o cinzentismo que cerca
os homens nos campos de trabalhos penais e o universo civilizado e
mercantilizado estão em colapso. Tudo se torna possível novamente.
A revolta como
busca de prazer e eficiência já está além do trabalho. O seu salário está directamente
na alegria que desperta e nos resultados que proporciona.
A actividade selvagem do proletariado é reprimida assim que ultrapassa um certo limiar. Mais comumente, é recuperado e digerido em estado morto. Portanto, não só o comunismo é o produto do capitalismo, mas o capitalismo é o produto do comunismo. Se insistirmos neste comunismo latente ou hesitante não é para o fetichizar. Ele só pode ser ele mesmo superando-se e afastando-se da órbita capitalista. Reconhecer a sua importância não é de forma alguma ajoelhar-se diante de uma espontaneidade que se recusa a organizar-se, a disciplinar-se e a tornar-se ofensiva. 124
O capital recupera de acordo com a sua natureza profunda. Em essência, ele é um vampiro. É aconselhável, portanto, não se surpreender com este ou aquele aspecto mais espetacular. As lutas operárias, apesar da oposição que suscitaram, serviram para que o sistema se transformasse e concretizasse as suas potencialidades, permanecendo sempre ele mesmo. As lutas salariais e políticas, ou os resultados salariais e políticos, abalaram o sistema e permitiram-lhe modernizar-se. A luta consegue ser esterilizada na base. A greve, a manifestação, a ocupação das fábricas tendem a ser uma asneira. Já não procuramos ferir o capital, mas alertá-lo para o desconforto, para expressar descontentamento. No auge da alienação, a greve já não aparece sequer como um meio de pressão, mas como um sacrifício para aqueles que a fazem. A importância do seu sacrifício prova a seriedade do seu protesto. A guerra social é substituída pelo desfile.
ACTIVIDADE E
PROGRAMA
O ponto de vista
da actividade é o do comunismo. Não se trata de negar a necessidade de a
actividade se corporificar, de se objectivar e de se apoiar naquilo que gera e
transforma.
Pelo contrário, o
capital só considera a actividade do ponto de vista da coisa produzida. É por
isso que, contra todas as evidências, ele equipara o trabalho e especificamente
a actividade humana. A actividade só pode ser levada a sério tendo em conta o
seu contributo imediato e positivo. Positivo dependendo do capital.
Este desejo de
considerar apenas o impacto imediato esconde a natureza antecipatória da luta dos
operários: “Em vez de olhar para o que os operários fazem, os ideólogos
burgueses tentam imaginar o que os operários gostariam de obter. Vemos na
actividade proletária, no máximo, apenas um factor de ruptura ou de
modernização do sistema, nunca o esboço da sua superação.
Esta actividade
não é levada a sério porque não produz. Seria puramente destrutivo e negativo.
Como podemos imaginar que isso poderia animar um novo mundo? Na realidade, o
carácter negativo da actividade comunista é determinado pelas oportunidades
imediatas e pelo contexto capitalista. Só é negativo do ponto de vista do
capital e não daqueles que o põem em movimento.
“Não devemos
iludir-nos sobre a natureza destrutiva da actividade comunista à medida que
emerge dos flancos do capitalismo. Já é produtor de uso. A sabotagem destrói o
valor de mercado ao atacar o uso que pode ser feito de uma mercadoria, mas
produz valor de uso para o trabalhador, pois permite-lhe ganhar tempo livre,
para pressionar o patrão.” (Lordtown 72). Este carácter destrutivo desaparece
mesmo quando o operário produz por conta própria à custa da sua empresa.
Ao fazer da
actividade proletária revolucionária o pivô da nossa doutrina, podemos compreender
a identidade e a descontinuidade entre a revolta contra o capital e o mundo
vindouro. Vemos a unidade contraditória entre trabalho e actividade comunista.
Podemos afirmar que o comunismo é antes de tudo uma transformação radical da
actividade humana antes de ser uma modificação das formas sociais. Isto
permite-nos rever as concepções tradicionais de avaliação de custos no mundo
comunista. 125
Nos seus escritos
juvenis, Marx consegue conceber o comunismo não apenas como um movimento, mas
também como uma actividade. Infelizmente, à medida que ele desenvolve a sua
concepção de desenvolvimento histórico, esta visão desaparece como um ponto de
vista unitário. Marx torna-se o teórico comunista do capitalismo. Em ambos os
sentidos da expressão. Por outro lado, analisa o capitalismo do ponto de vista
da sua negação. Por outro lado, ele é um prisioneiro do capitalismo.
Obviamente Marx
leva em consideração a actividade humana, como actividade revolucionária e como
actividade produtiva; mas separadamente. No que diz respeito à revolução de
1848, ele mostra que a actividade proletária se alimenta da sua situação de
classe e desenvolve a sua própria lógica. Nas suas obras económicas ele faz do
trabalho a base e a medida do valor. Mas deduzir a actividade produtiva do produto
recorre à assimilação entre a actividade produtiva humana e o trabalho. Ele não
vê na actividade do proletariado revolucionário nada além do trabalho.
Se tudo está na actividade
imediata do proletariado, por que ainda se preocupar com teoria e organização?
Por que procurar reformular um programa?
Nem tudo está na
actividade imediata do proletariado, mesmo que tudo deva estar ligado a ele,
tudo deve ser colocado em perspectiva e em ressonância.
A actividade imediata só é comunista pela sua capacidade de se superar. O programa comunista é uma necessidade, mesmo que se encontre por enquanto separado de todo o proletariado. Não é externo ao seu movimento, é uma antecipação, um guia. A sua verdade reside na sua capacidade de ser dissolvida, isto é, realizada pela classe. É apenas o programa da actividade proletária.
Fonte: un-monde-sans-argent-le-communisme.pdf (wordpress.com)
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