8 de Fevereiro de 2023 Equipa editorial
Espontaneidade
e direcção consciente
Antonio Gramsci
Caderno
da prisão XX
de acordo com a numeração de Tatiana Schucht,
3 de acordo com a
numeração de Valentino Gerratana
Existe assim uma "multiplicidade" de elementos de "direcção
consciente" nestes movimentos, mas nenhum deles é predominante, ou vai
além do nível da "ciência popular" de um dado estrato social, o nível
do "senso comum", ou seja, a visão tradicional do mundo desse estrato
social. É precisamente este elemento que De Man, empiricamente, opõe ao
marxismo, sem (aparentemente) se aperceber que ele cai na própria posição
daqueles que, tendo descrito folclore, bruxaria, etc., e tendo demonstrado que
estes modos de pensar não são os mesmos que os dos marxistas, não são os
mesmos, e depois de ter mostrado que estas formas de ver têm sólidas raízes
históricas e estão bastante tenazmente enraizadas na psicologia de certos
estratos da população, acreditaria que "ultrapassaram" a ciência
moderna, e tomaria como "ciência moderna" os pequenos artigos em
revistas científicas para o povo e as publicações baratas em fascículos. Este é
um caso real de teratologia intelectual [1], do qual temos outros exemplos - os
admiradores do folclore, precisamente, que defendem que deve ser preservada; os
apoiantes da "magia" ligada a Maeterlinck, que consideram que o curso
do desenvolvimento da alquimia e da feitiçaria, que foi quebrado pela
violência, deve ser tomado a fim de colocar a ciência novamente num caminho de
descoberta mais frutuoso, etc. Contudo, De Man tem, por acaso, o mérito de
mostrar a necessidade de estudar e elaborar os elementos da psicologia popular,
do ponto de vista histórico, e não a nível da sociologia, de uma forma activa
(isto é, transformar estes elementos através da educação, numa mentalidade
moderna) e não de uma forma descritiva, como ele faz; mas esta necessidade foi
contida pelo menos implicitamente (e talvez até explicitamente formulada) na
doutrina de Ilich [2], algo que De Man ignora completamente. Que existe em cada
movimento "espontâneo" um elemento primitivo de direcção consciente,
de disciplina, é demonstrado indirectamente pelo facto de existirem correntes e
grupos que apoiam a espontaneidade como um método. Neste contexto, deve ser
feita uma distinção entre elementos puramente "ideológicos" e
elementos de acção prática, entre teóricos que apoiam a espontaneidade como um
"método" imanente e objectivo de desenvolvimento histórico, e políticos
que a apoiam como um método "político". Para o primeiro, é uma
concepção errada; para o segundo, é uma contradição imediata e mesquinha que
revela a sua origem prática óbvia, ou seja, o desejo imediato de substituir uma
direcção determinada por outra. Mesmo entre os teóricos, o erro tem uma origem
prática, mas não é imediato como é entre os outros. O carácter apolítico dos
sindicalistas franceses pré-guerra continha estes dois elementos: era um erro
teórico e uma contradição (havia o elemento "soreliano" e o elemento
de competição entre a tendência política anarco-sindicalista e a corrente
socialista). Este apoliticismo foi também a consequência dos terríveis
acontecimentos parisienses de 1871: a continuação, com novos métodos e com uma
brilhante teoria, de trinta anos de passividade (1870-1900) dos operários
franceses. A luta puramente "económica" não foi concebida para
desagradar à classe dominante, bem pelo contrário. O mesmo se pode dizer do
movimento catalão que, se "desagradava" a classe dominante espanhola,
só a desagradava porque reforçava objectivamente o separatismo republicano
catalão, dando origem a um verdadeiro bloco industrial republicano contra os
grandes latifundiários, a pequena burguesia e o exército monárquico.. O
movimento de Turim foi acusado ao mesmo tempo de ser "espontâneo" e
"voluntarista" ou Bergsoniano! Esta acusação contraditória, se a
analisarmos, mostra a fecundidade e a correcção da direcção que tinha sido dada
a este movimento. Esta direcção não era "abstracta"; não consistia na
repetição mecânica de fórmulas científicas ou teóricas; não confundia a
política, a acção real, com a investigação particular do teórico; aplicava-se a
homens reais, formados em determinadas condições históricas, com determinados
sentimentos, formas de ver, fragmentos de concepção do mundo, etc., que
resultavam das combinações "espontâneas" de um determinado ambiente
de produção material, com a aglomeração "fortuita" de elementos
sociais díspares. Este elemento de "espontaneidade" não foi
negligenciado, muito menos desprezado - foi educado, orientado, purificado de
todos os corpos estranhos que o pudessem manchar, a fim de o tornar homogéneo,
mas de uma forma viva, historicamente eficaz, graças à teoria moderna. Entre os
próprios líderes, falava-se da "espontaneidade" do movimento; e era
correcto que se falasse dela: esta afirmação era um estimulante, um elemento
energético, um elemento de profunda unificação. Mais do que qualquer outra
coisa, era uma forma de negar que era algo arbitrário, aventureiro, artificial,
um movimento que não era historicamente necessário. Deu à massa uma consciência
"teórica", fez dela a criadora de valores históricos, a criadora de
instituições, a fundadora de estados. Esta unidade de
"espontaneidade" e "liderança consciente", ou
"disciplina", é precisamente o que é a verdadeira acção política das
classes subalternas, na medida em que se trata de uma política de massas e não
de uma mera aventura de agrupamentos que afirmam ser das massas.
Neste contexto, surge uma questão teórica fundamental: pode a teoria
moderna estar em oposição aos sentimentos "espontâneos" das massas?
("Espontâneas" no sentido de que não são devidas a uma actividade
educativa sistemática por parte de um grupo já consciente, mas foram formadas
através da experiência quotidiana informada pelo "senso comum", ou
seja, pela concepção popular tradicional do mundo, aquilo a que se chama, de
uma forma mais "institiva", e que em si mesmo nada mais é do que uma
aquisição histórica primitiva e elementar). Não, não pode haver oposição:
existe uma diferença "quantitativa" entre eles, de graus, não de
qualidade: deve haver, por assim dizer, uma possível "redução", uma
passagem de um para o outro, e vice-versa. (Não devemos esquecer que Kant
insistiu que as suas teorias filosóficas deveriam estar de acordo com o senso
comum; encontramos a mesma posição em Croce: recordemos a afirmação de Marx em
A Sagrada Família de que as fórmulas da política francesa durante a Revolução
são reduzidas aos princípios da filosofia clássica alemã). Negligenciar, e o
que é pior, desprezar os chamados movimentos "espontâneos", ou seja,
renunciar a dar-lhes uma direcção consciente, elevá-los a um plano superior,
inserindo-os na política, pode muitas vezes ter consequências muito graves.
Acontece quase sempre que um movimento "espontâneo" das classes
subalternas é acompanhado por um movimento reaccionário da ala direita da
classe dominante, por razões concomitantes: Uma crise económica, por exemplo,
determina por um lado o descontentamento das classes mais baixas e os
movimentos espontâneos das massas, e por outro lado determina parcelas por
grupos reaccionários que se aproveitam do enfraquecimento objectivo do governo
para tentar golpes de Estado. Entre as causas efectivas destes golpes está a
recusa dos grupos responsáveis em dar uma orientação consciente aos movimentos
espontâneos e, assim, torná-los um factor político positivo. Exemplo: as
Vésperas Sicilianas [3] e as discussões dos historiadores para estabelecer se
foi um movimento espontâneo ou um movimento concertado: parece-me que ambos os
elementos foram combinados nas Vésperas Sicilianas: a insurreição espontânea do
povo siciliano contra os provençais, que se espalhou com tanta rapidez que
podia dar a impressão de acções simultâneas e, portanto, concertadas, de tal
forma intoleráveis que a opressão se tinha tornado nessa altura em todo o
território nacional, e, por outro lado, o elemento consciente de importância e
eficácia variáveis, no qual predominava a conspiração de Giovanni di Procida
contra os aragoneses. Exemplos podem ser retirados de todas as revoluções
passadas em que as classes subalternas eram bastante numerosas e hierarquizadas
na sua situação económica e homogeneidade. Os movimentos
"espontâneos" dos estratos populares mais vastos permitem que a
classe subalterna mais progressista chegue ao poder por causa do
enfraquecimento objectivo do Estado. Este é outro exemplo 'progressivo'; mas no
mundo moderno os exemplos regressivos são mais comuns.
Uma concepção histórico-política escolar e académica é a concepção segundo
a qual apenas o movimento que é cem por cento consciente, e que é mesmo
determinado por um plano meticulosamente traçado com antecedência, ou que
corresponde (o que equivale à mesma coisa) à teoria abstracta, tem realidade e
dignidade. Mas a realidade é rica nas combinações mais bizarras, e é o teórico
que deve encontrar a prova da sua teoria nesta estranheza, que deve 'traduzir'
em linguagem teórica os elementos da vida da história, e não é, na direcção
oposta, a realidade que se deve apresentar de acordo com o plano abstracto.
Isto nunca irá acontecer e, portanto, esta concepção é apenas uma expressão de
passividade. (Leonardo da Vinci soube encontrar o número em todas as
manifestações da vida cósmica, mesmo quando os olhos do profano viam apenas
arbitrariedade e desordem). (P.P., pp. 55-59.) [1930].
Notas
1
Teratologia: estudo de anomalias, monstruosidades em seres vivos.
2
Vladimir Illich Lenin.
3
O movimento insurreccional que surgiu em Palermo na segunda-feira de Páscoa de
1282 contra as tropas provençais de Carlos de Anjou, Rei de Nápoles, é
conhecido como as Vésperas Sicilianas. O movimento, que começou com o massacre
de vários milhares de franceses, levou à expulsão da Casa de Anjou da Sicília e
ao estabelecimento no trono de Frederick de Aragão. Esta revolta foi o
resultado tanto da ira popular contra o regime de terror estabelecido por
Carlos de Anjou como da acção de alguns nobres contra os angevinos a favor dos
aragoneses, entre eles o médico e estudioso Giovanni di Procida.
Os direitos de autor deste texto pertencem aos organismos em causa. É
publicada aqui, num espaço de cidadão sem rendimentos e sem conteúdos
publicitários, para fins estritamente documentais e em total solidariedade com
o seu contributo intelectual, educativo e progressista.
Robert Bibeau
20
de Agosto de 2020 às 9:45h
Permalink
@
Todos
Gramsci é o
produto puro do intelectualismo pequeno-burguês italiano na altura da ascensão
do fascismo italiano e mundial.(sublinhado e negrito da responsabilidade
do tradutor)
O
fascismo surgiu como um pensamento político - ideologia - e organização
estruturante da crise económica do capitalismo. O totalitarismo de Estado
assumiu então duas formas complementares: o fascismo (incluindo Mussolini e
NAZI e o corporativismo e o militarismo japonês e o kuomintang chinês, etc.) e
a forma do bolchevismo-estalinismo, com o qual o PCI de Gramsci se associou.
Em
toda esta confusão intelectual que aterroriza as massas com a sua verborreia
pomposa é preciso discernir o profundo desprezo dos
socialistas-comunistas-marxistas-leninistas-graxistas pelos plebeus - para as
massas pouco instruídas que relutam em ser doutrinadas (a doutrina de Illich,
diz ele, o intelectual burguês) pelo campo socialista burguês e preferem
frequentemente a doutrina pragmática do campo fascista burguês.
A
propósito, leia novamente o texto e veja como o intelectual burguês Gramsci
dicotomiza a LUTA DA CLASSE NA FRENTE ECONÓMICA e a luta de classes na FRENTE
IDEOLÓGICA E POLÍTICA.
A
luta de classes do proletariado é uma e a mesma, e é apenas para facilitar a
análise e a compreensão que a subdividimos em três categorias.
Intelectuais
burgueses como Gramsci separam-nos estritamente para depreciar a luta económica
- espontânea = selvagem = indisciplinada = fora do controlo dos apparatchiks e
para dar todo o seu brilho à luta política - ideológica - REFLECTIVAMENTE
CONSCIENTE e que o O Partido Comunista liderado pelos intelectuais burgueses
tem o dever de derramar sobre os plebeus ignorantes - espontâneos -
voluntaristas - obreiristas - economistas e outros disparates dos quais esta
era passada da degeneração do totalitarismo socialista nos tem tristemente
alimentado.
A
luta de classes é consubstancialmente consciente e tem a sua fonte no confronto
diário das duas classes antagónicas, capitalista burguesa e proletariado
assalariado, e a primeira e mais importante forma desta luta de classes é a
luta na frente económica pela sobrevivência da raça humana.
O
proletariado de acordo com a necessidade e a capacidade faz emergir uma
liderança política que tenta o melhor que pode condensar a experiência de luta
na forma de uma ideologia - uma teoria revolucionária.
Karl
Marx e Engels e os da Primeira Internacional foram a primeira materialização
deste processo e manifestaram à sua maneira uma liderança consciente de classe,
mas não mais avançada do que o que as massas proletárias internacionais do seu
tempo poderiam trazer das suas experiências concretas de luta.
Onde
estamos nós, proletários revolucionários - hoje, em 2020, EIS A QUESTÃO.
Robert Bibeau
Fonte: Spontanéité et direction consciente (Gramsci) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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