segunda-feira, 26 de maio de 2025

Da Rússia com Amor (Emmanuel Todd)


Da Rússia com Amor (Emmanuel Todd)

26 de Maio de 2025 Robert Bibeau

Depois de Budapeste, Moscovo: Aqui está o texto da palestra que proferi na Academia Russa de Ciências em 23 de Abril de 2025, sob o título “ Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais ”  :

                         


Estou impressionado com esta conferência. Faço frequentemente conferências em França, Itália, Alemanha, Japão e no mundo anglo-americano - por outras palavras, no Ocidente. Falo a partir do meu mundo, de uma perspectiva crítica, claro, mas a partir do meu mundo. Aqui, é diferente, estou em Moscovo, na capital do país que desafiou o Ocidente e que, sem dúvida, será bem sucedido neste desafio. Psicologicamente, é um exercício completamente diferente.

Auto-retrato anti-ideológico

Vou começar por me apresentar, não por narcisismo, mas porque muitas vezes as pessoas de França ou de outros países que falam da Rússia com compreensão, ou mesmo simpatia, têm um certo perfil ideológico. Muitas vezes, essas pessoas vêm da direita conservadora ou do populismo e projectam a priori uma imagem ideológica da Rússia. Na minha opinião, as suas simpatias ideológicas são um pouco irrealistas e fantasiosas. Eu não pertenço de todo a esta categoria.

Em França, sou aquilo a que se chamaria um liberal de esquerda, fundamentalmente ligado à democracia liberal. O que me distingue das pessoas ligadas à democracia liberal é o facto de, por ser antropólogo, por conhecer a diversidade do mundo através da análise dos sistemas familiares, ter uma grande tolerância em relação às culturas exteriores e não partir do princípio de que todos devem imitar o Ocidente. A tendência para dar lições é particularmente tradicional em Paris. Penso que cada país tem a sua história, a sua cultura e o seu percurso.

No entanto, tenho de admitir que existe em mim uma dimensão emocional, uma verdadeira simpatia pela Rússia, o que pode explicar a minha capacidade de ouvir os seus argumentos no actual confronto geo-político. A minha abertura não resulta daquilo que a Rússia é em termos ideológicos, mas de um sentimento de gratidão para com ela por nos ter livrado do nazismo. É agora o momento de o dizer, quando nos aproximamos do 9 de Maio, o dia em que celebramos a vitória. Os primeiros livros de história que li, quando tinha 16 anos, eram sobre a guerra do Exército Vermelho contra o nazismo. Sinto uma dívida que deve ser honrada.

Acrescentaria que estou consciente de que a Rússia saiu do comunismo por si própria, através dos seus próprios esforços, e que sofreu enormemente durante o período de transicção. Considero que a guerra defensiva a que o Ocidente obrigou a Rússia, depois de todo esse sofrimento, numa altura em que estava a recuperar, é um erro moral da parte do Ocidente. Isto no que respeita à dimensão ideológica, ou melhor, emocional. Quanto ao resto, não sou um ideólogo, não tenho um programa para a humanidade, sou um historiador, sou um antropólogo, considero-me um cientista e o que posso contribuir para a compreensão do mundo e, em particular, para a geo-política, vem essencialmente das minhas competências profissionais.

Antropologia e política

Formei-me como investigador em história e antropologia na Universidade de Cambridge, em Inglaterra. O meu orientador de tese foi Peter Laslett. Ele descobriu que a família inglesa do século XVII era simples, nuclear e individualista. Os seus filhos tiveram de se dispersar muito cedo. Depois disso, o meu examinador de tese em Cambridge foi outro grande historiador inglês que ainda está vivo, Alan Macfarlane. Ele percebeu que havia uma ligação entre o individualismo político e económico dos ingleses (e, portanto, dos anglo-saxões em geral) e a família nuclear identificada por Peter Laslett no passado da Inglaterra.

Sou um estudioso destes dois grandes historiadores britânicos. Basicamente, generalizei a hipótese de Macfarlane. Apercebi-me de que o mapa do comunismo acabado, por volta de meados da década de 1970, se assemelhava muito ao mapa de um sistema familiar a que chamo comunitário (a que outros chamaram família patriarcal ou família conjunta), um sistema familiar que é, de certa forma, o oposto conceptual do sistema familiar inglês. Tomemos a família camponesa russa, por exemplo. Não sou um especialista em Rússia, mas o que sei sobre a Rússia são as listas de nomes de habitantes do século XIX, que descrevem as famílias camponesas russas. Não se tratava, como as famílias camponesas inglesas do século XVII, de pequenas famílias nucleares (pai, mãe, filhos), mas de grandes agregados familiares com um homem, a sua mulher, os seus filhos, as mulheres desses filhos e os netos. Este sistema era patrilinear porque as famílias trocavam as suas mulheres para as tornar esposas. A família comunal pode ser encontrada na China, no Vietname, na Sérvia e na Itália central, uma região que votou comunista. Uma das particularidades da família comunal russa é o facto de manter um estatuto elevado para as mulheres, uma vez que só recentemente foi criada.

A família comunal russa surgiu entre os séculos XVI e XVIII. A família comunal chinesa surgiu antes do início da Era Comum. A família comunal russa existiu durante alguns séculos, a família comunal chinesa durante dois milénios.

Estes exemplos revelam a minha percepção do mundo. Não vejo um mundo abstracto, mas um mundo em que cada uma das grandes nações, cada uma das pequenas nações, tinha uma estrutura familiar camponesa particular, uma estrutura que ainda explica muito do seu comportamento actual.

Posso dar outros exemplos. O Japão e a Alemanha, que são tão semelhantes em termos industriais e nas suas concepções de hierarquia, partilham também uma estrutura familiar, diferente dos tipos de família nuclear e comunitária, a família tronco, que não vou abordar nesta palestra.

Se olharmos para os meios de comunicação social de hoje, jornalistas e políticos falam de Donald Trump e Vladimir Putin como se fossem os agentes fundamentais da história, ou mesmo as pessoas que estão a moldar a sua sociedade. Eu vejo-os sobretudo como expressões de culturas nacionais, que podem ser expansivas, estáveis ou decadentes.

Gostaria de deixar uma coisa clara sobre a minha reputação. 95% da minha vida de investigador foi consagrada à análise das estruturas familiares, um tema sobre o qual escrevi livros de 500 ou 700 páginas. Mas não é por isso que sou mais conhecido no mundo. Sou conhecido por três ensaios geo-políticos em que utilizei o meu conhecimento deste fundo antropológico para compreender o que se estava a passar.

Em 1976, publiquei La chute finale, Essai sur la décomposition de la sphère soviétique, no qual previ o colapso do comunismo. A queda da taxa de fertilidade das mulheres russas mostrava que os russos eram pessoas como as outras, em vias de modernização, e que o comunismo não tinha criado nenhum homo sovieticus. Acima de tudo, identifiquei um aumento da mortalidade infantil entre 1970 e 1974 na Rússia e na Ucrânia. O aumento da mortalidade das crianças com menos de um ano mostrava que o sistema tinha começado a deteriorar-se. Escrevi esse primeiro livro quando era muito jovem, com 25 anos, e tive de esperar cerca de 15 anos para que a minha previsão se concretizasse.

Em 2002, escrevi um segundo livro de geopolítica, Après l'Empire, numa altura em que toda a gente falava da hiperpotência americana. Diziam-nos que a América ia dominar o mundo por tempo indeterminado, um mundo unipolar. Eu costumava dizer o contrário: não, o mundo é demasiado grande, a dimensão relativa da América está a diminuir economicamente e a América não vai conseguir controlar este mundo. Isso provou ser verdade. Em “Depois do Império”, há uma previsão particularmente correcta que até a mim me surpreende. Um capítulo chama-se “O regresso da Rússia”. Nele, prevejo o regresso da Rússia como grande potência, mas com base em muito poucas pistas. Apenas tinha observado uma retoma da queda da mortalidade infantil (entre 1993 e 1999, após um aumento entre 1990 e 1993). Mas sabia instintivamente que a comunidade cultural russa, que tinha produzido o comunismo numa fase de transicção, ia sobreviver ao período de anarquia dos anos 90 e que constituía uma estrutura estável que permitiria reconstruir alguma coisa.

Mas há um grande erro neste livro: prevejo um destino autónomo para a Europa Ocidental. E há uma lacuna: não falo da China.

Isto leva-me ao meu último livro de geo-política, que penso que será o último, La Défaite de l'Occident (A Derrota do Ocidente). Estou aqui em Moscovo para falar sobre este livro. Nele se prevê que, no confronto geo-político aberto pela entrada do exército russo na Ucrânia, o Ocidente sofrerá uma derrota. Mais uma vez, estou em oposição à opinião geral do meu país, ou do meu campo, uma vez que sou ocidental. Começarei por dizer por que razão foi fácil para mim escrever este livro, mas depois gostaria de tentar explicar por que razão, agora que a derrota do Ocidente parece certa, se tornou muito mais difícil para mim explicar a curto prazo o processo de deslocação do Ocidente, sem deixar de ser capaz de fazer uma previsão a longo prazo sobre a continuação do declínio americano.

Estamos num ponto de viragem: estamos a passar da derrota para a deslocação. O que me torna cauteloso é a minha experiência passada com o colapso do sistema soviético. Eu tinha previsto esse colapso, mas tenho de admitir que, quando o sistema soviético entrou efectivamente em colapso, não fui capaz de prever a dimensão da deslocação e o nível de sofrimento que essa deslocação implicaria para a Rússia.

Não tinha percebido que o comunismo não era apenas uma organização económica, mas também um sistema de crenças, uma quase-religião, que estruturava a vida social soviética e russa. A deslocação da crença ia conduzir a uma desorganização psicológica muito para além da desorganização económica. Estamos hoje a chegar a uma situação semelhante no Ocidente. O que estamos a viver não é simplesmente um fracasso militar e um fracasso económico, mas uma deslocação das crenças que tinham organizado a vida social ocidental durante várias décadas.

Da derrota à deslocação

Lembro-me muito bem do contexto em que escrevi A Derrota do Ocidente. Estava na minha pequena casa na Bretanha, no Verão de 2023. Os jornalistas em França e noutros países estavam entusiasmados a comentar os “sucessos” (fantasiados) da contra-ofensiva ucraniana. Vejo-me a escrever calmamente: “A derrota do Ocidente é certa”. Não tinha qualquer problema com isso. Por outro lado, quando hoje falo de deslocação, assumo uma posição de humildade perante os acontecimentos. O comportamento de Trump é uma encenação da incerteza. A belicosidade dos europeus que perderam a guerra ao lado dos americanos e que agora falam em ganhá-la sem os americanos é muito surpreendente.

É o presente. Os acontecimentos a curto prazo são muito difíceis de prever. Por outro lado, o médio e o longo prazo no Ocidente, nomeadamente nos Estados Unidos, parecem-me mais acessíveis à compreensão e à previsão - sem certezas, claro. Muito cedo, em 2002, eu tinha uma visão positiva a médio e longo prazo para a Rússia, como já disse. Mas hoje tenho uma visão muito negativa a médio e longo prazo dos Estados Unidos. O que estamos a viver é apenas o início da queda dos Estados Unidos e temos de estar preparados para ver coisas ainda mais dramáticas.

A derrota do Ocidente: uma previsão fácil

Permitam-me que comece por recordar o modelo de A Derrota do Ocidente. Este livro foi publicado e qualquer pessoa pode verificar o que ele diz. Vou explicar porque é que foi relativamente fácil conceber esta derrota. Nos anos que a antecederam, eu já tinha analisado longamente o regresso da Rússia à estabilidade.

Não estava a viver a fantasia ocidental de um regime monstruoso de Putin, de Putin como o diabo e os russos como idiotas ou submissos, que era a visão ocidental dominante. Tinha lido Russia, the Return of Power, um excelente livro de um francês pouco conhecido, David Teurtrie, publicado pouco antes da entrada das tropas russas na Ucrânia. Nele, descrevia o renascimento da economia russa, da sua agricultura e das suas exportações de centrais nucleares. Explicava que, desde 2014, a Rússia estava a preparar-se para se desligar do sistema financeiro ocidental.

Eu também tinha os meus indicadores habituais de estabilidade social, mais do que de estabilidade económica. Continuei a acompanhar a taxa de mortalidade infantil, o indicador estatístico que mais utilizo. As crianças com menos de um ano são os membros mais frágeis da sociedade e as suas hipóteses de sobrevivência são o indicador mais sensível da coesão e da eficácia social. Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade infantil russa diminuiu a um ritmo acelerado, apesar de a mortalidade geral russa, em particular a masculina, ser insatisfatória. Durante vários anos, a taxa de mortalidade infantil russa foi inferior à taxa de mortalidade infantil dos EUA.

A taxa de mortalidade infantil americana é um dos indicadores que nos mostra que a América não está a ir bem. Infelizmente, creio que, neste momento, a taxa de mortalidade infantil francesa, que está a aumentar, está em vias de ultrapassar a da Rússia. É doloroso para mim, como francês, mas como historiador tenho de ser capaz de ver e analisar coisas que não me agradam. A história que se está a desenrolar não existe para me agradar. Existe para ser estudada.

O desenvolvimento económico e a estabilização social da Rússia foram satisfatórios. Também se registou uma queda rápida da taxa de suicídios e de homicídios entre 2000 e 2020. Eu tinha todos estes indicadores e tinha também o meu conhecimento do meio familiar comunal russo, de origem camponesa, que já não existe visivelmente mas continua a actuar. É claro que a família camponesa russa do século XIX já não existe. Mas os seus valores sobrevivem nas interações entre os indivíduos. Na Rússia, continuam a existir valores reguladores de autoridade, igualdade e comunidade, que asseguram um tipo particular de coesão social.

É um pressuposto que pode ser difícil de aceitar para os homens e mulheres modernos da vida urbana. Acabo de chegar a Moscovo, que estou a redescobrir em 2025, transformada desde a minha última viagem, em 1993. Moscovo é uma cidade enorme e moderna. Como posso imaginar, num tal contexto material e social, a persistência de valores comunitários do século XIX? Mas faço-o como o faço noutros lugares. É uma experiência que tive, por exemplo, no Japão. Também Tóquio é uma cidade imensa, na verdade, com os seus 40 milhões de habitantes, o dobro de Moscovo. Mas é fácil ver e aceitar a ideia de que um sistema de valores japonês, herdado de uma estrutura familiar antiga, se perpetuou ali. Sinto o mesmo em relação à Rússia, com a diferença de que a família comunal russa, que é autoritária e igualitária, não era a família japonesa, que é autoritária e desigual.

A economia, a demografia, a antropologia da família: em 2022, não tinha a menor dúvida sobre a solidez da Rússia. Assim, desde o início da guerra na Ucrânia, assisto com um misto de divertimento e tristeza à apresentação de hipóteses por parte de jornalistas, políticos e politólogos franceses sobre a fragilidade da Rússia e o colapso iminente da sua economia, do seu regime, etc.

A auto-destruição dos Estados Unidos

Sinto-me um pouco embaraçado por dizer isto aqui em Moscovo, mas tenho de admitir que a Rússia não é o assunto mais importante para mim. Não estou a dizer que a Rússia não seja interessante, estou a dizer que não está no centro do meu pensamento. O cerne do meu pensamento é referido no título do meu livro, La Défaite de l'Occident (A Derrota do Ocidente). Não é a vitória da Rússia, é a derrota do Ocidente que estou a estudar. Penso que o Ocidente se está a destruir a si próprio.

Para apresentar e demonstrar esta hipótese, tinha também um certo número de indicadores. Vou limitar-me aqui aos Estados Unidos. Trabalhei durante muito tempo sobre a evolução dos Estados Unidos.

Conhecia a destruição da base industrial americana, nomeadamente desde que a China aderiu à Organização Mundial do Comércio em 2001. Sabia como seria difícil para os Estados Unidos produzir armamento suficiente para alimentar a guerra.

Tinha conseguido estimar o número de engenheiros - pessoas dedicadas a fazer coisas reais - nos Estados Unidos e na Rússia. Cheguei à conclusão de que a Rússia, com uma população metade da dos Estados Unidos, era capaz de produzir mais engenheiros do que os Estados Unidos. Muito simplesmente porque apenas 7% dos estudantes americanos estudam engenharia, ao passo que na Rússia esse número ronda os 25%. Evidentemente, o número de engenheiros deve ser visto como um número-farol, que se refere mais profundamente aos técnicos, aos trabalhadores qualificados e à capacidade industrial geral.

Eu tinha outros indicadores de longo prazo para os Estados Unidos. Há décadas que ando a trabalhar no declínio do nível de educação, no declínio da qualidade e quantidade do ensino superior americano, um declínio que começou em 1965. O declínio do potencial intelectual americano é algo que vem de há muito tempo. Mas não esqueçamos que este declínio surge após uma ascensão que se estendeu por dois séculos e meio. A América foi um imenso sucesso histórico antes de se afundar no seu fracasso actual. O êxito histórico dos Estados Unidos foi um exemplo, entre outros, mas o mais maciço, do êxito histórico do mundo protestante. A religião protestante estava no centro da cultura americana, tal como estava no centro da cultura britânica, das culturas escandinavas e da cultura alemã, uma vez que dois terços da Alemanha eram protestantes.

O protestantismo exigia que todos os fiéis tivessem acesso às Sagradas Escrituras. Exigia que as pessoas soubessem ler. Assim, o protestantismo era muito favorável à educação em todo o lado. Por volta de 1900, o mapa dos países onde todos sabiam ler era o do protestantismo. Além disso, nos Estados Unidos, o ensino secundário arrancou no período do pós-guerra, o que não aconteceu nos países protestantes da Europa.

O colapso educativo dos Estados Unidos está obviamente ligado ao seu colapso religioso. Sei que hoje em dia se fala muito dos evangelistas excitados que rodeiam Trump. Mas tudo isso, para mim, não é a verdadeira religião. Em todo o caso, não é o verdadeiro protestantismo. O Deus dos evangelistas americanos é um tipo simpático que distribui presentes financeiros, já não é o Deus calvinista rigoroso que exige um elevado nível de moralidade, encoraja uma forte ética de trabalho e promove a disciplina social.

A disciplina social nos Estados Unidos deveu-se muito à disciplina moral protestante. Isto era verdade mesmo no século XX, quando os Estados Unidos já não eram um país protestante homogéneo, com imigrantes católicos e judeus, e depois imigrantes da Ásia. Pelo menos até aos anos 70, o núcleo da cultura americana permaneceu protestante. Os WASPs - White Anglo-Saxon Protestants - eram ridicularizados pelos seus defeitos, mas representavam uma cultura central e controlavam o sistema americano.

Estados activos, zombies e religião zero

Uma conceptualização particular permite-me analisar o declínio religioso, não apenas neste livro, mas em todos os meus livros recentes. É uma análise em três etapas do apagamento da religião.

*Primeiro distingo um estágio activo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes.

*Há então uma fase que chamo de fase zombie da religião, na qual as pessoas não são mais crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais valores e comportamentos herdados da religião anterior actuante. Eu falaria, por exemplo, do republicanismo francês, que sucedeu a Igreja Católica em França na Bacia de Paris, como uma religião civil zombie.

*Depois vem um terceiro estágio, que estamos a vivenciar actualmente no Ocidente, que eu chamo de estágio zero da religião, no qual os hábitos sociais herdados da religião desapareceram. Estou a dar um indicador de tempo de quando esse estágio zero foi alcançado, mas não deve interpretar isso de forma moralista. Este é um instrumento técnico que me permite datar o fenómeno em 2013, 2014 ou 2015.

Costumo datar como início da fase zero qualquer lei que estabeleça o casamento para todos, ou seja, o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Isto é um indicador de que nada resta dos hábitos religiosos do passado. O casamento civil espelhava o casamento religioso. O casamento para todos é pós-religioso. Repito, eu não disse que era mau. Não estou aqui como moralista. Digo que é isso que nos permite considerar que chegamos a um estágio zero de religião.

Remontando ao declínio industrial, passando pelo declínio educacional e ao declínio religioso, o diagnóstico final de um estado zero de religião permite-nos afirmar que a queda dos Estados Unidos não é um fenómeno reversível e de curto prazo. Não será reversível em nenhum caso durante os poucos anos desta guerra na Ucrânia.

Uma derrota americana

Esta guerra, que ainda está em andamento, embora o exército que representa o Ocidente seja ucraniano, é um confronto entre a Rússia e os Estados Unidos. Isso não poderia ter acontecido sem equipamento americano. Isso não poderia ter ocorrido sem os serviços de observação e inteligência americanos. É por isso que é perfeitamente normal que as negociações finais ocorram entre os russos e os americanos.

A surpresa actual dos europeus, ao se verem excluídos das negociações, causa-me estranheza. A surpresa deles é uma surpresa para mim. Desde o início do conflito, os europeus comportaram-se como súbditos dos Estados Unidos. Eles participaram das sanções, forneceram armas e equipamentos, mas não lideraram a guerra. Esta é a razão pela qual os europeus não têm uma representação correcta ou realista da guerra.

Estamos aqui. O Ocidente foi derrotado industrialmente. Economicamente. Prever essa derrota não foi um grande problema intelectual para mim.

Chego ao que mais me interessa e que é mais difícil para um futurista: a análise e a compreensão dos acontecimentos actuais. Dou palestras com bastante regularidade. Fiz algumas em Paris. Fiz algumas na Alemanha. Fiz algumas em Itália. Fiz uma recentemente em Budapeste. O que me impressiona é que em cada nova conferência, embora haja sempre uma base estável, comum a todas, há também novos eventos a integrar. Nunca sabe qual é a verdadeira atitude de Trump. Não está claro se o seu desejo de deixar a guerra é sincero. Há surpresas extraordinárias, como o seu ressentimento repentino contra os seus próprios aliados, ou melhor, seus súbditos. :Ver o presidente dos Estados Unidos apontar o dedo para os europeus e ucranianos pela guerra e pela derrota foi bastante surpreendente. Hoje, devo confessar a minha admiração pela compostura e calma do governo russo, que deve (aparentemente) levar Trump a sério, que deve aceitar a sua representação da guerra porque é necessário negociar.

Noto, no entanto, um elemento positivo que permaneceu estável desde o início: ele está a conversar com o governo russo e está a afastar-se da atitude ocidental de demonizar a Rússia. É um retorno à realidade e, por si só, algo positivo, mesmo que essas negociações não levem a nada de concreto.

A Revolução Trump

Gostaria de tentar entender a causa imediata da Revolução Trump.

Toda a revolução tem causas primariamente endógenas; é antes de tudo o resultado de dinâmicas e contradições internas da sociedade em questão. Entretanto, uma coisa impressionante na história é a frequência com que as revoluções são desencadeadas por derrotas militares.

A Revolução Russa de 1905 foi precedida por uma derrota militar do Japão. A Revolução Russa de 1917 foi precedida por uma derrota da Alemanha. A revolução alemã de 1918 também foi precedida pela derrota.

Até mesmo a Revolução Francesa, que parece mais endógena, foi precedida em 1763 pela derrota da França na Guerra dos Sete Anos, uma grande derrota já que o Antigo Regime havia perdido todas as suas colónias. O colapso do sistema soviético também foi desencadeado por uma dupla derrota: na corrida armamentista com os Estados Unidos e pela retirada do Afeganistão.

Acredito que devemos partir dessa noção de uma derrota que leva a uma revolução para entender a revolução Trump. A experiência em andamento nos Estados Unidos, mesmo que não saibamos exactamente o que será, é uma revolução. É uma revolução no sentido estricto? Isto é uma contra-revolução? É, em qualquer caso, um fenómeno de violência extraordinária, uma violência que se volta, por um lado, contra os súbditos aliados, os europeus, os ucranianos, mas que se expressa, por outro lado, internamente, na sociedade americana, por uma luta contra as universidades, contra a teoria de género, contra a cultura científica, contra a política de inclusão de negros nas classes médias americanas, contra o livre comércio e contra a imigração.

Essa violência revolucionária está, na minha opinião, ligada à derrota. Várias pessoas me relataram conversas entre membros da equipa de Trump, e o que chama a atenção é a consciência da derrota. Pessoas como JD Vance, o vice-presidente, e muitos outros, são pessoas que entenderam que a América havia perdido esta guerra.

Foi uma derrota fundamentalmente económica para os Estados Unidos. A política de sanções mostrou que o poder financeiro do Ocidente não é omnipotente. Os americanos tiveram a revelação da fragilidade da sua indústria militar. As pessoas no Pentágono sabem muito bem que um dos limites para sua acção é a capacidade limitada do complexo militar-industrial americano.

Essa consciência americana de derrota contrasta com a falta de consciência dos europeus.

Os europeus não organizaram a guerra. Como não organizaram a guerra, eles não podem ter plena consciência da derrota. Para ter uma compreensão completa da derrota, eles precisariam ter acesso ao pensamento do Pentágono. Mas os europeus não têm acesso a ele. Os europeus estão, portanto, mentalmente posicionados antes da derrota, enquanto a actual administração americana está mentalmente posicionada depois da derrota.

Derrota e crise cultural

Como já disse, a minha experiência da queda do comunismo ensinou-me uma coisa importante: o colapso de um sistema é tanto mental como económico. O que está a ruir no Ocidente de hoje, e em primeiro lugar nos Estados Unidos, não é apenas o domínio económico, mas também o sistema de crenças que o impulsionou ou que se lhe sobrepôs. As crenças que acompanharam o triunfalismo ocidental estão a entrar em colapso. Mas, como em qualquer processo revolucionário, não sabemos ainda qual é a nova crença mais importante, qual é a crença que sairá vitoriosa do processo de decomposição.

Razoabilidade na administração Trump

Quero deixar claro que, à partida, não tinha qualquer hostilidade de princípio em relação a Trump. Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, eu era uma daquelas pessoas que aceitava que a América estava doente, que o seu coração industrial e operário estava a ser destruído, que os americanos comuns estavam a sofrer com as políticas gerais do Império e que havia muito boas razões para que muitos eleitores votassem em Trump. Há algumas coisas muito razoáveis nas intuições de Trump. O proteccionismo de Trump, a ideia de que precisamos de proteger a América para reconstruir a sua indústria, é o resultado de uma intuição muito razoável. Eu próprio sou um proteccionista. Escrevi livros sobre isso há muito tempo. Também penso que a ideia de controlar a imigração é razoável, mesmo que o estilo adoptado pela administração Trump na gestão da imigração seja insuportavelmente violento.

Outro elemento razoável, que surpreende muitos ocidentais, é a insistência da administração Trump em que só há dois sexos na humanidade, homens e mulheres. Não vejo isto como uma aproximação à Rússia de Vladimir Putin, mas como um regresso à concepção comum da humanidade que existe desde o aparecimento do Homo sapiens, uma evidência biológica sobre a qual, de resto, a ciência e a Igreja estão de acordo.

Há algo de razoável na revolução de Trump.

Niilismo na Revolução Trump

Devo agora dizer porque é que, apesar da presença destes elementos razoáveis, sou pessimista e porque é que penso que a experiência Trump vai falhar. Vou recordar-vos porque é que sou optimista em relação à Rússia desde 2002 e porque é que sou pessimista em relação aos Estados Unidos em 2025.

Há no comportamento da administração Trump um défice de pensamento, uma impreparação, uma brutalidade, um comportamento impulsivo e irreflectido, que evoca o conceito central de A Derrota do Ocidente, o do niilismo.

Em A Derrota do Ocidente, explico que o vazio religioso, o estado zero da religião, conduz à angústia e não a um estado de liberdade e de bem-estar. O estado zero leva-nos de novo ao problema fundamental. O que é que significa ser humano? Qual é o sentido das coisas? Uma resposta clássica a estas questões, numa fase de colapso religioso, é o niilismo. Passamos da angústia do vazio à deificação do vazio, uma deificação do vazio que pode levar ao desejo de destruir as coisas, as pessoas e, em última análise, a realidade. A ideologia transgénero não é em si mesma moralmente grave, mas é intelectualmente fundamental porque dizer que um homem pode tornar-se mulher ou uma mulher um homem revela um desejo de destruir a realidade. Foi, em associação com a cultura do cancelamento, com a preferência pela guerra, um elemento do niilismo que predominou sob a administração Biden. Trump rejeita tudo isso. No entanto, o que me impressiona neste momento é a emergência de um niilismo que assume outras formas: um desejo de destruir a ciência e a universidade, as classes médias negras, ou uma violência desordenada na aplicação da estratégia proteccionista americana. Quando, sem pensar, Trump quer estabelecer tarifas entre o Canadá e os Estados Unidos, quando a região dos Grandes Lagos constitui um sistema industrial único, vejo nisso um impulso para destruir tanto quanto para proteger. Quando vejo Trump estabelecer subitamente tarifas proteccionistas contra a China, esquecendo que a maior parte dos smartphones americanos são fabricados na China, digo a mim próprio que não podemos simplesmente considerar isto uma estupidez. É estupidez, claro, mas também pode ser niilismo. Passemos a um nível moral mais elevado: a fantasia de Trump de transformar Gaza, esvaziada da sua população, numa estância turística é tipicamente um projecto niilista da mais alta ordem.

A contradição fundamental da política americana, no entanto, encontra-se no proteccionismo.

A teoria do proteccionismo diz-nos que a protecção só pode funcionar se um país tiver uma população qualificada para tirar partido da protecção pautal. Uma política proteccionista só será eficaz se tivermos engenheiros, cientistas e técnicos qualificados. Os americanos não os têm em número suficiente. Agora vejo os Estados Unidos a começarem a perseguir os seus estudantes chineses, e tantos outros, precisamente as pessoas que lhes permitem colmatar o seu défice de engenheiros e cientistas. Isto é absurdo. A teoria do proteccionismo também nos diz que a protecção só pode lançar ou reanimar a indústria se o Estado intervier para ajudar a construir novas indústrias. No entanto, vemos a administração Trump a atacar o Estado, precisamente o Estado que deveria estar a fomentar a investigação científica e o progresso tecnológico. Pior ainda, se procurarmos a motivação por trás da luta contra o Estado federal liderada por Elon Musk e outros, descobriremos que nem sequer é económica.

Quem conhece a história americana sabe o papel crucial que o Estado federal desempenhou na emancipação dos negros. Nos Estados Unidos, o ódio contra o Estado federal deriva, na maior parte das vezes, do ressentimento anti-negro. Quando se luta contra o Estado federal americano, está-se a lutar contra as administrações centrais que emanciparam e protegeram os negros. Uma grande parte da classe média negra encontrou emprego na administração federal. A luta contra o Estado federal não se inscreve, portanto, numa concepção geral de reconstrucção económica e nacional.

Se penso nas múltiplas e contraditórias acções da administração Trump, a palavra que me vem à cabeça é deslocação. Uma deslocação cuja direcção não é clara.

Família nuclear absoluta + religião zero = atomização

Estou muito pessimista em relação aos Estados Unidos. Para concluir esta conferência exploratória, vou regressar aos meus conceitos fundamentais como historiador e antropólogo. Disse no início desta conferência que a razão fundamental que me levou a acreditar, muito cedo, já em 2002, no regresso da Rússia à estabilidade, foi o facto de estar consciente da existência de um fundo antropológico comunitário na Rússia. Ao contrário de muitas pessoas, não preciso de especular sobre o estado da religião na Rússia para compreender o regresso da Rússia à estabilidade. Vejo uma cultura familiar, uma cultura comunitária, com os seus valores de autoridade e igualdade, que nos ajuda a compreender o que é a nação na mente russa. Existe, de facto, uma relação entre a forma da família e a ideia de nação. À família comunitária corresponde uma ideia forte e compacta da nação ou do povo. Assim é a Rússia.

No caso dos Estados Unidos, tal como no de Inglaterra, temos a situação oposta. O modelo familiar inglês e americano é nuclear, individualista, sem sequer incluir uma regra precisa de herança. Reina a liberdade da vontade. A família nuclear absoluta anglo-americana faz muito pouco para estruturar a nação. A família nuclear absoluta tem certamente a vantagem da flexibilidade. As gerações sucedem-se separando-se. A rapidez com que os Estados Unidos e a Inglaterra se adaptaram e a plasticidade das suas estruturas sociais (que permitiram a revolução industrial inglesa e o arranque americano) são em grande parte o resultado desta estrutura familiar nuclear absoluta.

Mas a par ou acima desta estrutura familiar individualista, em Inglaterra como nos Estados Unidos, existia a disciplina da religião protestante, com o seu potencial de coesão social. A religião, como factor estruturante, foi crucial para o mundo anglo-americano. Desapareceu. O estado nulo da religião, combinado com valores familiares muito pouco estruturantes, não me parece uma combinação antropológica e histórica susceptível de conduzir à estabilidade. O mundo anglo-americano está a caminhar para uma atomização cada vez maior. Esta atomização só pode conduzir a uma acentuação, sem limites visíveis, da decadência americana. Espero estar enganado, espero ter esquecido um factor positivo importante.

Infelizmente, tudo o que consigo encontrar agora é um outro factor negativo, que me chamou a atenção depois de ler um livro de Amy Chua, uma académica de Yale que foi mentora de J.D. Vance. Political Tribes. Group instinct and the Fate of Nations (2018) sublinha, depois de muitos outros textos, o carácter único da nação americana: uma nação cívica, fundada pela adesão de todos os sucessivos imigrantes a valores políticos que ultrapassam a etnia. É verdade. Foi essa a teoria oficial desde muito cedo. Mas nos Estados Unidos havia também um grupo protestante branco dominante, fruto de uma história bastante longa e, no fundo, inteiramente étnico.

Desde que o grupo protestante foi atomizado, a nação americana tornou-se verdadeiramente pós-étnica, uma nação puramente “cívica”, unida em teoria pelo seu apego à sua Constituição e aos seus valores. O receio de Amy Chua é que a América esteja a regressar àquilo a que chama tribalismo. Uma atomização regressiva.

Cada uma das nações europeias, independentemente da sua estrutura familiar, tradição religiosa ou visão de si própria, é basicamente uma nação étnica, no sentido de um povo ligado a uma terra, com a sua própria língua e cultura, um povo enraizado na história. Cada um tem uma base estável. Os russos têm isso, os alemães têm isso, os franceses têm isso, mesmo que, de momento, sejam um pouco estranhos a estes conceitos. A América já não tem isso. Uma nação cívica? Para além da ideia, a realidade de uma nação americana com espírito cívico, mas privada de moralidade pelo estado zero da religião, deixa-nos a sonhar. É até arrepiante.

O meu receio pessoal é que não estejamos de todo no fim, mas apenas no início de uma queda dos Estados Unidos que revelará coisas que nem sequer podemos imaginar. A ameaça existe: mais ainda do que com um império americano, seja ele triunfante, enfraquecido ou destruído, estamos a caminhar para coisas que nem sequer podemos imaginar.

Estou hoje em Moscovo, por isso vou terminar com algumas palavras sobre a situação futura da Rússia. Vou dizer duas coisas, uma agradável e a outra preocupante para a Rússia. A Rússia vai, sem dúvida, ganhar esta guerra. No entanto, no contexto do colapso dos Estados Unidos, ficará com responsabilidades muito pesadas num mundo que terá de recuperar o seu equilíbrio.

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Fonte: https://les7duquebec.net/archives/300083?jetpack_skip_subscription_popup#

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




 

 

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