O ISLÃO, E NÓS OS ATEUS |
YSENGRIMUS — Entrevista com uma informadora que solicitou (firmemente) o anonimato. A sua identidade foi cuidadosamente alterada.
Paul Laurendeau (Ysengrimus): (EN) Fatima Massoud, tu és de Laval, eu sou da Baixa Laurentiana. Tive o prazer de a conhecer, a si e ao seu marido, quando eu e a minha mulher estávamos a fazer compras no belo mercado ao ar livre de Saint Eustache. Antes de mais, obrigada por ter aceite esta entrevista.
Fatima Massoud : Não tem de quê. É um prazer.
P.L.: É uma cidadã comum do Québec, nascida em Tripoli (Líbano) e que emigrou para o Québec aos quatro anos de idade com o seu irmão de seis anos, o seu pai e a sua mãe.
F.M.: Uma pessoa completamente vulgar. Não é intelectual nem política.
P.L.: Trabalha no sector hospitalar.
F.M.: Sim, sou técnica de laboratório num... digamos num hospital da grande área metropolitana. Não preciso de dizer mais nada sobre a minha entidade patronal?
P.L.: Não, não, isso é suficiente. Sector hospitalar, no sector parapúblico. Portanto, seria diretamente afectada pelo “estatuto” .
F.M.: Sem dúvida.
P.L.: É uma quebequense de corpo e alma. Andou na escola pública. Ouvi-a falar um francês quebequense, muito semelhante ao dos meus filhos. Que língua falas em casa?
F.M.: Com o pai e o meu irmão é francês, com algumas palavras em árabe. Quando estou sozinha com a minha mãe, é mais em árabe. A minha mãe fala muito bem francês, mas insiste para que eu e o meu irmão continuemos a falar árabe.
P.L.: E, do fundo do meu coração, Fátima, concordo com ela. É uma óptima língua de cultura.
F.M.: Obrigada.
P.L.: Os teus pais falam árabe uns com os outros?
F.M.: Sim, sempre, quando estão sozinhos. Passam para francês quando temos visitas que falam francês.
PL: Esta é a melhor diglossia (um tipo particular de bilinguismo) em chalés de Montreal . E com o seu marido, também é em árabe, tive o prazer de o ver no mercado de Saint Eustache. Árabe libanês, em todo o caso?
F.M.: Sim, sim, árabe de dialecto libanês em todo o caso. Também tenho muitas dificuldades com o árabe clássico. Leio o Corão com muita dificuldade. Não percebo tudo.
P.L.: Com que frequência o lê?
F.M.: Raramente, muito pouco e mal. Sabe, vou dizer-lhe uma coisa que poucos árabes da diáspora se atreveriam a admitir. Não há muitos muçulmanos por cá que leiam realmente o Corão. A linguagem do texto é difícil para quase todos os falantes de árabe. Não consigo sequer imaginar como é que os muçulmanos não árabes lidam com isso.
P.L.: É muçulmana sunita.
F.M.: Sim.
P.L.: Por isso, vemos frequentemente em Montreal mulheres libanesas, argelinas e marroquinas que se dizem abertamente muçulmanas mas não usam o véu. Como é que explica isso?
F.M.: O uso do véu não é uma obrigação religiosa. Não é um dos pilares do Islão. É costume usá-lo quando se vai à mesquita, mas de outra forma não se pode usar o véu e continuar a ser um muçulmano praticante.
P.L.: Então, Fátima, isso leva-nos à questão crucial. Porque é que usa o véu?
F.M.: É um pouco complicado de explicar...
P.L.: Claro que é complicado. É precisamente para compensar o simplismo dominante que falamos disso. Sente-se perfeitamente à vontade?
F.M.: A minha família deixou o Líbano por causa da guerra. Os meus pais, sobretudo a minha mãe, foram muito afectados. A minha mãe perdeu dois irmãos e um terço dos meus tios ficou aleijado devido aos bombardeamentos. Houve também violações e atrocidades, especialmente em aldeias remotas. Eu nasci na segunda maior cidade do país, mas a minha mãe vem de uma aldeia no oeste do país. A minha mãe adora o seu país e eu respeito profundamente essa herança, mesmo que saiba muito pouco sobre ela.
P.L.: O Líbano faz fronteira com a Síria, que se encontra actualmente em guerra civil. Isso deve ser motivo de grande preocupação.
F.M.: Muito. Tem razão em falar nisso. Não se pode falar do Líbano sem falar da Síria. Não vamos falar disso agora, é demasiado complicado e também demasiado doloroso. O que é importante é que os meus pais deixaram uma terra, amigos, cidades e aldeias que amavam por causa de conflitos armados que não lhes interessavam. Não emigramos por prazer, Paul, emigramos e, portanto, imigramos, movidos por uma necessidade que nos arranca da nossa vida.
P.L.: Compreendo perfeitamente. E também sinto o profundo respeito que tem pelos seus pais e pela sua herança.
F.M.: Aí está. Bem... agora... a mãe acha que uma mulher decente deve cobrir o cabelo em público. Eu não andaria de cabeça descoberta em público ou em privado com a minha mãe. Isso seria indecente e um ataque aberto contra ela. A mãe tem este conceito de modéstia e passou-o para mim. Eu respeito-a. É uma questão de corpo e de vestuário. É um assunto de mulheres.
P.L.: Mas e a religião?
F.M.: Não te faças passar por mais não religioso do que és, Paulo. Li o teu excelente texto de uma vez por todas: o véu não é um sinal religioso e sei que, ao contrário de muitos outros, compreendes perfeitamente que as pessoas usam o véu por razões culturais. Mas temos de insistir - e o seu texto não o faz suficientemente - no facto de que também o usamos por razões familiares, por respeito pelo nosso grupo familiar, pela nossa comunidade próxima, que é uma diáspora ferida mas orgulhosa, que valoriza a sua herança.
P.L.: Isto leva-nos ao outro lado do problema. Algumas mulheres - algumas delas de origem do Médio Oriente - dizem que a obrigação de usar o véu é uma intimidação patriarcal. Usa-se o véu por submissão aos homens.
F.M.: Explique o seguinte às pessoas que dizem isso. O homem a quem me submeto é o meu marido. Só a ele. Alá é grande, e eu entrego-me inteiramente ao meu marido por amor a ele e por respeito às nossas leis. Ele é o único que deixo ver os meus cabelos, tal como o resto da minha nudez. Eu sou dele. Ele é o homem da minha vida, para sempre. A minha carne dar-lhe-á os seus filhos. Mas temos as nossas pequenas diferenças.
P.L.: Como qualquer casal moderno...
F.M.: É isso mesmo. E há uma dessas diferenças que eu gostaria muito que partilhasse com os seus leitores.
P.L.: Estou a ouvi-la e tenho a sensação de que eles vão ficar fascinados.
F.M.: Bem, o meu marido diz-me: “Não vais perder o teu emprego por causa do véu. Só tens de fazer o que te dizem. Tira o véu no dia em que fores trabalhar e pronto.
P.L.: E o teu pai?
FM: Mas o meu pai é mais um calculista, Paul. Eu sou a mulher do meu marido, compreende. Se o meu marido me diz para deixar o meu trabalho para ficar em casa com os nossos filhos, eu faço-o. Ele é o famoso homem que manda aqui, que está a ser atacado por mulheres feministas que não aceitam que o véu seja, antes de mais, uma questão de mulheres.
P.L.: Estou contigo, estou contigo.
F.M.: Pai, não é complicado. O pai não é um homem complicado. Ele não se preocupa muito com esse tipo de coisas. Ele gosta de mim tal como sou. É que quando a mãe sofre, o pai chora.
P.L.: Estou a perceber bem. Então o seu marido diz: “Tem de tirar o véu”. E tu recusas.
F.M.: É isso. Esta é a nossa pequena disputa conjugal. Não é mau, pois não?
P.L.: Ah, ele é esperto. Não é muito frequente vê-lo nos meios de comunicação social!
F.M.: Oh, não! E, no entanto, devia estar. Devia dizer-se mais vezes que o facto de eu estar de véu não significa que seja submissa. Tenho o meu próprio carácter e também eu beneficio da modernidade ocidental nestas questões.
P.P.: Então porque é que não tira o véu, Fátima? Se o teu marido aprovar?
F.M.: Mas eu não iria trabalhar de cabeça descoberta, como uma rapariga com cabelo, à frente de todas estas pessoas que não são minhas amigas íntimas. É contra todos os meus princípios de modéstia. Iria para o trabalho em roupa interior ou com uma camisola?
P.L.: Não.
F.M.: Veja. E, por favor, compreenda o meu marido. Os homens imigrantes adaptam-se tradicionalmente melhor às sociedades de acolhimento. Eles integram, eles demonstram. Não querem causar problemas. Adaptam-se muito mais do que se pensa. As mulheres, por outro lado, integram menos. Ficam em casa e preservam a sua língua e os seus costumes. O véu é a minha mãe, é o meu passado, são os meus costumes familiares, é a minha decência, é o meu respeito e é o meu direito.
P.L.: E tenciona defender esse direito?
F.M.: Sim. A Carta dos Direitos do Canadá protege-me. A nossa comunidade já é muito activa na sua aplicação. OK, isto soa um pouco federalista, eu sei....
PL: Ah , eu sou um internacionalista . Devo confessar, além disso, que quando a estupidez é provinciana, eu faço-me passar por federalista e quando a estupidez é federalista, eu faço-me passar por provinciana. Não se dá tréguas. Dois inimigos são melhores do que um, como dizia Mao...
F.M.: Sou profundamente quebequense, todos os meus amigos são quebequenses e os meus amigos que me amam de verdade amam-me com o meu véu e aceitam-me tal como sou.
P.L.: E as pessoas na rua?
F.M.: Oh, a atitude delas piorou desde que este “estatuto” foi noticiado.
P.L.: Então é verdade.
F.M.: É bem verdade. E, infelizmente, a maior parte das vezes são as mulheres que me atacam. Até já me puxaram o véu no metro. Nunca tinha passado por isso, e há vinte e cinco anos que uso o véu aqui em Montreal e em Laval.
P.L.: Que confusão etnocêntrica que fizeram com as coisas. E, para terminar, o que diria a estas mulheres, suas compatriotas?
F.M.: Antes de mais, estou muito contente por ver que colocou a fotografia que lhe enviei no início deste artigo.
P.L.: Sem dúvida. Muito boa fotografia.
F.M.: Com todo o respeito, digo aos meus colegas quebequenses: olhem para esta fotografia. Trata-se da igualdade das mulheres.
P.L.: É a favor da igualdade das mulheres?
F.M.: Sem dúvida. Sou a favor da igualdade entre homens e mulheres. O meu marido também é. Mas também sou a favor da igualdade das mulheres ENTRE ELAS, no que diz respeito aos seus direitos. Esta imagem diz: nada de cidadãos de segunda classe. Todas as mulheres são soberanas sobre a sua aparência física e têm O DIREITO de decidir por si próprias que parte do seu corpo mostram e que parte escondem em público. E este direito é um direito individual, cultural e não religioso que eu vou defender, simples mas firmemente, por mim, pela minha mãe e pelas minhas filhas.
P.L.: Terá sempre a minha total solidariedade nesta matéria. Obrigada por esta troca de impressões fascinante e esclarecedora.
F.M.: Obrigado e até ao próximo Verão, com os nossos cônjuges, no mercado de Saint Eustache.
P.L.: É um encontro. Estaremos a dançar ao som dos farrapos do “estatuto”!
F.M.: Felizmente. Então, serei totalmente laica, mas ainda com véu.
P.L.: Nariz no ar!
Extraído do meu trabalho: Paul Laurendeau
(2015), Islam, and we atheists , ÉLP Éditeur, Montreal,
formato ePub ou PDF.
Fonte: https://les7duquebec.net/archives/296995?jetpack_skip_subscription_popup
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
Sem comentários:
Enviar um comentário