terça-feira, 9 de setembro de 2025

A maldição de Sabra-Chatila

 


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A maldição de Sabra-Chatila

Samir Geagea: o único sobrevivente dos protagonistas deste massacre, confrontado com os seus fantasmas Paris, 15 de Setembro de 2008 – Com uma...

 

Por : René Naba - em : Analyse Liban - 13 de Setembro de  2008


Samir Geagea: o único sobrevivente dos protagonistas deste massacre, confrontado com os seus fantasmas

Paris, 15 de Setembro de 2008 – Com uma regularidade metronómica, a maldição de Sabra-Chatila atinge os seus promotores, muitas vezes de forma violenta, não poupando praticamente nenhum dos seus protagonistas, como expressão de uma espécie de justiça imanente, vinte e seis anos após o massacre a sangue frio de cerca de três mil civis dos campos palestinianos de Sabra-Chatila, nos subúrbios a sudeste de Beirute.

Além do relatório Kahanna da comissão de inquérito israelita sobre este massacre e do comovente testemunho do escritor francês Jean Genêt «quatro horas em Chatila», publicado no Outono de 1983 na Revue d'Etudes Palestiniennes, nenhuma obra literária, nem um filme, nem um documentário, nem um relato histórico, muito menos um «romance-investigação», – a técnica narrativa preferida do filósofo Bernard Henry Lévy para torturar a verdade e estimular a imaginação e a curiosidade dos seus zeladores –, veio lançar um simples feixe de luz sobre esta terrível carnificina cometida, sem discernimento, pelas milícias cristãs libanesas, teleguidada pela soldadesca israelita, embriagada de raiva perante o fracasso do seu plano de domínio sobre o Líbano.

Há 26 anos, um manto de silêncio caiu sobre este episódio pouco glorioso do exército israelita no Líbano, manchando a sua reputação a ponto de comprometer o lema que justificava os seus excessos, a «pureza das armas» israelitas, e de perturbar a percepção da opinião pública internacional em relação a Israel. Quase três mil civis palestinianos foram massacrados durante dois dias, de 15 a 17 de Setembro de 1982, numa operação ordenada para vingar o assassinato de Bachir Gemayel, líder das Forças Libanesas, recém-eleito presidente da República Libanesa e assassinado na véspera da sua posse. Pela gratuidade da sua violência cega, este acto foi comparado na época pelo presidente François Mitterrand a Ouradour sur Glane, nome de uma operação semelhante cometida pelo exército alemão contra os habitantes da aldeia francesa em represália ao assassinato de soldados alemães em França.

Vinte e seis anos depois, eis o no que se tornaram os protagonistas deste drama:

O clã Gemayel, o grande perdedor do caso, apesar de ter tido dois presidentes.

Bachir Gemayel, que sonhava em destruir os campos palestinianos numa antecipação distante das limpezas étnicas das guerras pós-comunistas da década de 1990, para tornar o seu país um paraíso na terra, livre das pequenas misérias das grandes fortunas, esse líder militar de uma comunidade cristã minoritária num mundo árabe maioritariamente muçulmano, que se aliou ao principal inimigo do mundo árabe para chegar à magistratura suprema, o homem que defendia, para tal, que existia um «povo a mais no Médio Oriente», ignorando que esse povo a mais poderia um dia ser o povo dos cristãos árabes, realizou bem o seu sonho.

Foi eleito, à sombra dos blindados israelitas, presidente do Líbano, sem nunca, porém, saborear o prazer do poder supremo, nem mesmo por um breve instante: seria pulverizado por uma explosão no seu quartel-general em Beirute Oriental, na véspera da sua tomada de posse presidencial.

Desde então, a família Gemayel acumula infortúnio após infortúnio. Por sua própria culpa e pelos seus erros. A sua história não é uma saga à la Kennedy, como gostam de popularizar os jornais ocidentais complacentes, mas uma longa lamentação de lágrimas e sangue, da qual eles são os principais responsáveis.

Bachir foi assassinado aos 35 anos, em 1982, e o seu sobrinho, Pierre Amine Gemayel, foi assassinado aos 34 anos, em 2006, no seu reduto eleitoral de Jdeiddeh, em Metn, quando uma violenta ofensiva diplomático-militar israelo-americana foi novamente lançada contra o Médio Oriente com o objectivo de subjugar os contestatários da «Pax Americana». Amine Gemayel, o mais velho do clã, que sucedeu ao seu irmão mais novo na chefia do Estado após o seu assassinato e que ambicionava suceder ao seu filho assassinado no cargo de deputado, viveu uma espécie de assassinato político quando foi derrotado nas eleições de 2007 no seu próprio reduto de Metn, derrotado por um desconhecido, apesar da simpatia da população local suscitada pela tragédia familiar. A sua contestação do patriotismo dos libaneses de origem arménia que o abandonaram durante esta eleição demonstrou a magnitude do seu despeito perante esta derrota inesperada e dolorosa, ao mesmo tempo que revelou uma xenofobia primitiva e rançosa nos círculos dirigentes libaneses, sempre que os seus interesses clânicos estão em causa.

Embora a família Gemayel tenha conseguido colocar dois presidentes à frente do Estado libanês, membros da mesma família, aliás, ela é considerada a grande perdedora da vida política libanesa, com dois assassinatos dentro da família, sem qualquer visibilidade parlamentar ou ministerial, o seu tratado de paz com Israel destruído pelos seus opositores e, humilhação suprema para este senhor da terra, o chefe do clã presidencial, Amine, forçado ao exílio na França durante nove anos (1991-2000), no final de um mandato pouco glorioso, a liderança cristã agora disputada acirradamente entre dois líderes, o general Michel Aoun, chefe da Corrente Patriótica Libanesa (CPL), e Samir Geagea, antigos subordinados da família Gemayel na época da presidência familiar (1).

Menahem Begin e o seu «cavalo louco» Ariel Sharon

No plano israelita, a operação «Paz na Galileia» precipitou o afastamento político de Menahem Begin, líder histórico da direita messiânica israelita e primeiro-ministro na altura da invasão do Líbano, vítima directa das manobras descontroladas do seu «cavalo louco», o general Ariel Sharon, ministro da Defesa, e das visões bíblicas próprias da direita radical israelita que ele encorajou nesse caminho durante o meio século em que presidiu esse movimento.

Ariel Sharon: mais do que um longo discurso, uma simples sequência do filme «Valse avec Bachir» resume melhor do que tudo o personagem, as suas ambições e contradições. Através de uma narrativa ficcional, o cineasta israelita, realizador do filme, Ari Folman, projecta uma conversa telefónica entre Menahem Begin e Ariel Sharon, no dia seguinte aos massacres de Sabra-Chatila.

Sem se incomodar com essa terrível carnificina, segurando o telefone com uma mão e acenando regularmente com a cabeça em direcção ao seu superior hierárquico, o homem de lendária corpulência mantinha os olhos fixos nos dez ovos estrelados que havia pedido para o seu pequeno-almoço, ……. indiferente ao infortúnio alheio, preocupando-se principalmente, durante essa conversa, em satisfazer, literal e figurativamente, o seu feroz apetite pelo poder e a sua bulimia alimentar. Ele satisfaria o seu apetite pelo poder ao tornar-se primeiro-ministro 18 anos após Sabra e Chatila, mas a sua bulimia alimentar acabaria por derrubá-lo, assim como a sua carreira política, mergulhando-o em coma cinco anos depois... em estado de contiguidade passiva com as suas antigas vítimas. Uma sequência que ficará na história como um pedaço de antologia política e ilustra, acima de tudo, o autismo da classe política israelita em relação ao seu ambiente árabe, particularmente palestiniano.

O sonho de um Líbano forte, refúgio dos cristãos do Oriente, desmoronou-se. A aventura de Bachir, particularmente a sua aliança com o inimigo oficial do mundo árabe, levou a uma desclassificação das prerrogativas constitucionais dos cristãos libaneses, principalmente os maronitas, no novo acordo inter-libanês concluído em Taëf, sob a égide da Arábia Saudita, para pôr fim à guerra em 1989.

Os campos palestinianos permaneceram na periferia de Beirute, com uma população mais numerosa e rejuvenescida, como uma afronta à família Gemayel, agora marginalizada no cenário político pelo advento do antigo tenente de Bachir, Samir Geagea, um ambicioso de feroz temibilidade, na vanguarda da cena cristã.

Beirute, que foi o fôlego do mundo árabe e a sua consciência crítica durante meio século, assume agora uma função traumática na consciência colectiva israelita, uma vez que reivindica o privilégio único no mundo de ter simbolizado, por duas vezes na história contemporânea, a resistência árabe à hegemonia israelo-americana:

A primeira vez, em 1982, durante o cerco da capital libanesa pelo general Ariel Sharon, numa época em que o sunismo se identificava com a luta nacionalista, a partir do reduto do sunismo libanês em Beirute Ocidental.

A segunda vez, em 2006, desta vez a partir de Beirute Sul (ad dahyah), literalmente o subúrbio sul da capital, o reduto xiita da capital, na época do coma do general Ariel Sharon, quando o xiismo libanês, substituindo a vassalagem do sunismo árabe ao eixo israelo-americano, assumiu o comando com o objectivo de perpetuar a luta nacionalista árabe.

O apoio dos sucessivos comandantes-chefes do exército libanês – o general Emile Lahoud, o general Michel Aoun e a simpatia manifestada pelo novo presidente da República, o general Michel Sleimane, antigo comandante-chefe do exército, à Resistência Nacional Libanesa aglomerada em torno do seu núcleo duro, o Hezbollah xiita, testemunha, por contrapartida, a preocupação da hierarquia militar cristã em refrear os impulsos mortíferos dos «cabeças quentes» da ordem miliciana, tão prejudiciais ao campo cristão.

Elie Hobeika e Samir Geagea, os dois lugar-tenentes de Bachir, predadores insaciáveis.

Na qualidade de responsável pelo serviço de informações da formação paramilitar libanesa, Elie Hobeika, um dos dois tenentes de Bachir Gemayel, é considerado um dos principais responsáveis pelos massacres de Sabra e Chatila, tal como Samir Geagea, responsável operacional das «Forças Libanesas», que uma guerra de sucessão implacável irá esgotar ao ponto de marginalizar a principal formação paramilitar do campo cristão durante a guerra.

O primeiro a sacar a arma e iniciar as hostilidades foi Elie Hobeika: por devoção a Bachir, 24 meses após o seu assassinato, ele fomentou um golpe contra o presidente Amine Gemayel para tomar o partido e o seu tesouro de guerra. Aliado de Israel, mudará de lado em 1985 para se aliar à Síria, antes de ser, por sua vez, afastado por Samir Geagea. Um desempenho medíocre para um homem responsável pelos serviços secretos. Exilado do Líbano, regressará em grande estilo no final da guerra entre facções e com a instauração de uma «pax syriana». Como consagração suprema, ele chegou a ocupar cargos nos sucessivos governos libaneses, incluindo, em 1992, o de Rafic Hariri, o bilionário libanês-saudita e principal financiador das milícias libanesas, assassinado em 2005. Pouco antes de sua morte violenta, ele voltou-se contra Israel e propôs-se a testemunhar contra Ariel Sharon no processo movido contra ele na Bélgica por «crime contra a humanidade». Ele teria querido implicar unidades de comando do exército israelita (os Sayeret Matkal) que teriam actuado sem uniforme durante o massacre. Tal como anteriormente Bachir e, posteriormente, o sobrinho do líder falangista, Pierre Amine Gemayel, Elie Hobeika morreu na sequência de um atentado com carro-bomba em frente à sua residência, em 24 de Janeiro de 2002, aos 46 anos de idade.

A sua eliminação não suscitou qualquer pedido de investigação por parte da comunidade internacional. É verdade que os preparativos para a invasão americana do Iraque estavam em pleno andamento, assim como a inclusão da Síria na lista negra, através da «Syria Accountability Act», adoptada em 2003. Era importante não se deixar desviar desse objectivo principal da estratégia israelo-americana pela morte de uma pessoa cuja eliminação convinha a muita gente: o primeiro-ministro israelita Ariel Sharon, directamente visado pelo seu possível testemunho em Bruxelas, Samir Geagea, o seu rival permanente, Amine Gemayel, o seu antigo chefe a quem ele roubou o partido falangista, cônjuges contrariados e irascíveis, a julgar pelas conquistas femininas que lhe são atribuídas, e, para completar, a Síria, tanto que o envolvimento deste país em todos os assuntos do Médio Oriente é um exercício de estilo obrigatório para todos os cronistas ocidentais.

Samir Geagea

O seu pseudónimo não deve induzir em erro: ele recorre à ambiguidade, tal como a sua personalidade recorre à ambivalência. «Al Hakim», o seu nome de guerra, que significa o sábio ou o médico, nunca foi sábio no seu comportamento belicoso, além de toda a medida e desmesura, nem erudito, nem médico, pois também não possui um grau universitário. Essa é a sua primeira usurpação. Aquele que a sua formação universitária deveria ter destinado a um comportamento humano revelou-se um dos mais desumanos chefes de guerra, o implacável carrasco do campo cristão, responsável pela decapitação da família Frangieh, em 1978, não poupando nada nem ninguém dessa grande família do norte do Líbano, seus vizinhos, nem mesmo uma menina de três anos ou o cão de guarda em frente à casa.

Reincidente em 1980, ele atacou o reduto do outro aliado dos falangistas, as milícias do PNL (Partido Nacional Liberal) do presidente Camille Chamoun, em Faqra, na região montanhosa do Líbano, afogando em sangue as forças cristãs, apesar de serem aliadas na mesma coligação. Em Julho de 1983, ele iniciou a batalha da montanha de Chouf contra a milícia drusa liderada por Walid, filho e sucessor de Kamal Joumblatt, líder do Partido Socialista Progressista e chefe da comunidade drusa. A sua ofensiva resultou na destruição de 60 aldeias e no êxodo de uma população cristã de mais de 250 000 habitantes do Chouf, pondo fim a um século de convivência entre drusos e cristãos no Chouf. O mesmo aconteceu, com resultados idênticos, em Saida, capital do sul do Líbano, e em Zahlé, no centro do Líbano, em 1985. Um balanço negativo para o defensor das minorias cristãs oprimidas, cujo belicismo as oprimiu de forma mais duradoura do que a hostilidade dos seus adversários.

A lista não é exaustiva. Em 1988, no final do mandato do presidente Amine Gemayel, Samir Geagea estava à frente de uma empresa próspera, apoiada por uma máquina de guerra bem organizada. O confronto que ele travou contra o general Michel Aoun, comandante-chefe e primeiro-ministro interino, acabou por esgotar o campo cristão, levando o general Aoun ao exílio em Paris, onde permaneceu durante quinze anos, e Samir Geagea à prisão, onde ficou detido durante quase dez anos.

O assassinato do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri, em Fevereiro de 2005, dará origem a uma improvável reviravolta na aliança, unindo os antigos chefes de guerra antagónicos e o seu financiador: Walid Joumblatt, Samir Geagea, Amine Gemayel e Saad Hariri. Embora tenha resultado na libertação de Samir Geagea graças à aprovação de uma lei de amnistia que apagou o passado, esta coligação heterogénea e sem credibilidade constituirá o ponto fraco do dispositivo ocidental para preservar o poder libanês no seu seio.

Samir Geagea é o único sobrevivente dos principais protagonistas do caso Sabra-Chatila, cujo grande vencedor moral poderia ser, a posteriori e paradoxalmente, Soleimane Frangieh, o sobrevivente do massacre que fundou a sua autoridade.

Num país há muito transformado num gigantesco cemitério, Soleimane Frangieh, cuja família serviu de banco de ensaio para o massacre de Sabra-Chatila, refreará os seus instintos guerreiros para conceder o perdão pelas ofensas, sendo o único líder libanês a ter realizado este gesto de grandeza moral, remetendo para a sua vilania o carrasco da sua própria família.

Analistas da cena libanesa sustentam que um avanço político de Nadim Gemayel, filho do presidente assassinado Bachir e seu verdadeiro herdeiro político, ou pelo menos de seu primo Sami, filho de Amine, tornar-se-ia um pesadelo para Samir Geagea, privando-o de toda a legitimidade popular e política e, ao mesmo tempo, remetendo-o às suas fantasias. A menos que «Al-Hakim», acostumado a tais manobras de contorno, antecipe esse evento com um movimento de confinamento para silenciar os herdeiros Gemayel, uma medida tanto mais imperativa quanto a ausência de herdeiros biológicos o fragiliza e, ao mesmo tempo, torna precária a perpetuação de seu projecto político, colocando-o à mercê de um golpe do destino.

Samir Geagea escapou assim provisoriamente à justiça dos homens. Personagem funesta, sem descendência, sem remorsos, sozinho diante dos seus crimes, sozinho diante dos seus fantasmas, impedido pelos seus delitos, manchas indeléveis, dificilmente poderá escapar ao castigo da História... Sem dúvida, o olho estará no túmulo e observará Caim.

Que a alma das vítimas dos campos palestinianos de Sabra-Chatila descanse em paz e que a terra dos homens lhes seja leve.

1-      No final do seu mandato, Amine Gemayel permaneceu no Líbano até 1991, data em que recebeu ameaças de morte circunstanciadas por parte de Samir Geagea. Ele falou sobre isso com o primeiro-ministro da época, o general Michel Aoun, chefe do governo interino, que lhe respondeu: «Tendo em conta os seus antecedentes, é perfeitamente possível que Geagea concretize as suas ameaças, pelo que lhe aconselho a abandonar o país.» Amine Gemayel apresentou queixa ao procurador-geral (os documentos escritos e o seu testemunho sobre as ameaças recebidas estão disponíveis na Internet) e abandonou então o território libanês. Regressou em 2000, na sequência de um acordo com os sírios negociado por Michel el Murr. O acordo previa que os sírios permitiriam o regresso de Gemayel e, em contrapartida, o filho de Gemayel se aliaria a Murr nas eleições do Metn, o que aconteceu.

 

Fonte: La malédiction de Sabra-Chatila - En point de mire

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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