sábado, 20 de setembro de 2025

Radiografia da França: Defesa da grandeza da França e não da sua megalomania 4/5

 


Radiografia da França: Defesa da grandeza da França e não da sua megalomania 4/5

René Naba / 20 DE setembrO DE 2019 / EM EuropeFranceSociété

Última actualização em 13 de Dezembro de 2021

36 anos depois, uma visibilidade maior, mas ainda marginal.

Trinta e seis anos após a «Marcha dos Beurs», em 1983, que deveria inaugurar a entrada em cena, no plano político, da terceira geração descendente de imigrantes, a presença árabe e muçulmana tornou-se dez vezes mais visível em França, com a proliferação de individualidades, mas essa visibilidade acrescida nos diversos domínios do desporto, da arte e dos meios de comunicação social continua a ser marginal, na medida em que essa presença se situa fora do círculo decisório do poder, fora do âmbito do domínio fundamental, como se estivesse impedida por um tecto de vidro intransponível.

As razões para essa marginalidade são múltiplas, decorrentes de factores endógenos próprios da França e da sua história; outras exógenas relacionadas, por um lado, com a projecção política do Islão, pelo menos dos regimes políticos que se reivindicam dessa religião ou ideologia e suas repercussões na França e, por outro lado, com o comportamento da liderança muçulmana na França, bem como com a estratégia individualista e oportunista de muitos dos seus membros.

Um debate cíclico

O debate é cíclico, como uma fuga em frente, como para desviar a atenção dos graves problemas estruturais da França, do défice abismal das suas finanças públicas, da falência e impunidade das suas elites, da deterioração do seu tecido social, da docilidade da sua imprensa, da inconsistência do debate público interpartidário, a necrose dos seus circuitos de decisão, como atesta a descida da França para o 6.º lugar entre as potências económicas mundiais, em 2017, agora ultrapassada pela Índia, uma antiga colónia ocidental, uma ultrapassagem que ocorreu, sintomaticamente, no dia da vitória dos «Blues» no Mundial da Rússia em 2018.

O debate é cíclico sobre um tema único nas suas diversas declinações, o véu, a burca, os minaretes, o papel positivo da colonização, como uma fuga para a frente, como para ocultar o essencial, a dívida de honra da França para com os seus imigrantes, tanto pela defesa da sua independência – por duas vezes no mesmo século, durante as duas guerras mundiais, um facto raríssimo na história –, como pela sua contribuição para o prestígio da França em todo o mundo.

A obra salutar que é prioritário iniciar não é um trabalho de exaltação chauvinista propício a todos os excessos, mas um trabalho de «desconstrução» dos mitos fundadores da grandeza francesa, uma leitura fractal da história da França, a fim de fundamentar a identidade nacional num conhecimento concreto e não sublimado da história da França e cimentar a unidade nacional através da consideração das diversas componentes da população nacional e não da estigmatização do estrangeiro.

A menos que se abdique perante os defensores da anglosfera, a menos que se envolva num esplêndido isolamento, a menos que se esconda a face numa esplêndida cegueira, o debate não pode ser reduzido a um duelo narcisista entre a França e ela mesma, oferecendo-se em espetáculo ao resto do mundo, em nome da excepção francesa, mas a um debate sobre o posicionamento da França no seio da sua bacia natural de expansão, a Francofonia, garantia do seu prestígio e justificativa do seu estatuto de grande potência, membro permanente do Conselho de Segurança.

Da identidade francesa

A identidade francesa, a sua honra e grandeza são vividas e reivindicadas no «papel positivo» da colonização com o Dr. Albert Schweitzer de Lambaréné (Gabão) e nos 955 491 soldados coloniais ultramarinos que lutaram pela França durante as duas guerras mundiais (1914-1918, 1939-1945), dos quais 113 000 «indígenas da República» caíram no campo de batalha, regando duradouramente os sulcos da França com o seu «sangue impuro».

Cento e treze mil (113 000) indígenas mortos pela França, ou seja, tanto quanto a população combinada das cidades de Dreux, Vitrolles e Orange, os três antigos feudos da Frente Nacional, sem que se falasse então de «limiar de tolerância», muito menos de testes de ADN ou de voos charter da vergonha, mas de sangue a derramar em abundância.

A identidade francesa é vivida e reivindicada no «privilégio da terra da França», que libertava qualquer escravo no momento em que pisava o solo francês, a França terra de asilo e não a França da «Venus Hottentote» e dos «zoológicos humanos». Na França de Valmy e do Pont d'Arcole, e não na França do afundamento da frota francesa de Toulon ou da expedição punitiva de Suez. Na «França Livre», e não na França de Sétif (Argélia), de Thiaroye (Senegal) ou do Alto Sanaga (Camarões).

Na França das convicções republicanas e não na França dos transfugas cosmopolitas que desacreditam o compromisso político.

No Prefeito Jean Moulin e não no Prefeito Maurice Papon, nos metèques do Grupo Manouchian, esses párias do Cartaz Vermelho, e não na França de Vichy, cúmplice do nazismo, em Guy Môquet e não no seu denunciante, o ministro do Interior da época, e os seus capangas da polícia francesa, fornecedores dos seus carrascos alemães.

No general Jacques Pâris de la Bollardière, a consciência do exército francês durante a guerra da Argélia (1956-1962) e não nos torturadores dos maquisards argelinos. No portador de malas Francis Jeanson, e não no portador de sacos de farinha mediáticos, Bernard Kouchner, o apoio oportunista aos ditadores africanos e às aventuras separatistas do Pacto Atlântico do Darfur ao Curdistão, à Líbia e à Síria.

Na França do discurso de Pnom Penh (Charles de Gaulle) e de Cancún (François Mitterrand) e não na França do discurso de Dakar sobre o homem africano «ainda não entrado na história» (Nicolas Sarkozy) e do discurso de Tunes, fundador da União para o Mediterrâneo, sobre a divisão racial do trabalho entre franceses e árabes na orla mediterrânica (Nicolas Sarkozy ibidem).

Na França da bela língua revolucionária francesa de Voltaire, Aimé Césaire, Franz Fanon, Léopold Sedar Senghor e Kateb Yacine, que carregam consigo o prestígio da França, e não na França do «Casse-toi pauv’con», essa gíria tão detestada do detestável Nicolas Sarkozy pelos seus excessos de linguagem e comportamento.

Na França do Abbé Pierre e não na de um Brice Hortefeux, a do «um auvergnat tudo bem, mas quando há demasiados, bonjour les dégâts» (olá, problemas), um Brice Hortefeux, campeão da luta contra o anti-semitismo, um prémio atribuído pela organização irredentista pró-israelita «Union des Patrons Juifs de France» (UPJF), ilustração pateticamente caricatural de uma grave inversão de valores, indício patente de uma grave confusão mental.

Na França de Yannick Noah (Roland Garros 1982) e de Zinedine Zidane (Mundial 1998) e de Kylan Mbappé Mundial 2018) da «equipa de futebol negra, negra, negra, motivo de chacota da Europa» (Alain Finkielkraut), mas mesmo assim orgulho da França, na França do actor Omar Sy, o personagem preferido dos franceses em 2016-2017, e não na França das cidades « brancos puros, blancos» do antigo presidente da câmara de Evry, antigo primeiro-ministro renegado do socialismo, Manuel Valls. Na França do matemático rebelde e torturado Maurice Audin e não na do general Paul Aussaresses, o comando Zero de memória sinistra.

Na França de Claude Levy Strauss (Tristes Tropiques) e não na de Philippe Val, artífice de uma tentativa dissimulada de revisionismo histórico anti-árabe.

Na França de Emile Zola (J'accuse) e não na de Eric Zemmour, pronto a criticar a criminalidade de pele escura (negros e árabes), mas mudo como um tapete em relação à criminalidade de colarinho branco. Na França de André Malraux, da esquadrilha «Espagna», e não na de Bernard Henry Lévy, filósofo mundano e impulsionador da Sharia na Líbia no seu juramento de Tobruk.

Para ir mais longe neste tema:

https://www.renenaba.com/philippe-val-ou-le-revisionnisme-anti-arabe-en-guise-de-fond-de-commerce/

Neste contexto, a leitura pública da carta do jovem resistente comunista fuzilado Guy Mocquet poderia ter tido valor pedagógico e terapêutico se esse exercício tivesse sido acompanhado da denúncia dos seus carrascos, neste caso a polícia francesa, ou seja, a base do poder securitário do ex-presidente Sarkozy e do ex-primeiro-ministro Manuel Valls.

Tal denúncia teria sido vista como um acto de coragem e responsabilidade e não como aconteceu, como uma operação de falsificação da história, um exercício de recuperação demagógica, um acto de desvio da memória.

A noção de identidade nacional aparece, nesta perspectiva, como uma noção relativa. Para sua perenidade, a identidade nacional deve basear-se em valores universais, imutáveis e não variáveis em função de considerações eleitorais.

O debate ganharia clareza se a confusão não fosse mantida no mais alto nível do Estado pelo primeiro magistrado da França, ao nomear um reservista do exército israelita, Arno Klarsfeld, para o cargo de conselheiro em plena guerra de destruição israelita do Líbano (Julho de 2006) ou ao confiar a uma dirigente do American Jewish Committee, Valérie Hoffenberg, a tarefa de acompanhar, em nome da França, as negociações israelo-palestinianas.

Um presidente que fantasia com «ovelhas degoladas em banheiras», mas que, no entanto, procura regularmente a hospitalidade das banheiras dos palácios reais árabes, de Doha a Rabat, tomando a iniciativa de estigmatizar uma parte da população por motivos eleitorais inconfessáveis.

Nesse sentido, «ovelhas degoladas em banheiras» (Nicolas Sarkozy), tal como «os ruídos e os odores das famílias imigrantes» geneticamente prolíficas (Jacques Chirac), permanecerão uma mancha indelével no discurso político francês e desonram os seus autores. Se não se tiver cuidado, abrirão caminho a derrapagens fascistas no comportamento político francês.

Que não nos enganemos, com todo o respeito mais uma vez aos escritores de salão, os morenos da França estão aqui e bem aqui, duramente enraizados no panorama político e social francês, aqueles cujo «papel positivo» nunca foi celebrado com solenidade, a não ser de forma incidental, quando não foi simplesmente negado ou contestado.

Na França, não no seu país de acolhimento, mas no seu país de eleição. Determinados a defender a elevada ideia que têm da França e que a França quer transmitir ao mundo, determinados a defender a grandeza da França e não a sua megalomania, a sua grandeza e não o seu nanismo político.

A combater todos aqueles que enfraquecem a economia com uma gestão arriscada, todos aqueles que desacreditam a política com uma conivência sulfurosa. Todos aqueles que poluem a imagem da França, com empregos fictícios e responsabilidades fictícias, «evaporações de receitas», comissões retroactivas e despesas de alimentação, crimes de iniciados e abuso de bens sociais. Esses senhores das fragatas de Taiwan, da Clearstream e do Angolagate. Do Crédit Lyonnais e da Compagnie Générale des Eaux. Da Elf Aquitaine e da EADS, da Executive Life e da Pechiney American-Can. Dos mercados da Île-de-France e dos HLM de Paris, da MNEF e da Urba-Gracco. Da Bygmalion e da conexão líbia de Paul Bismuth.

Aqueles que desvalorizam a sua justiça com casos como o de Outreau, escutas telefónicas ilegais, triagem selectiva e «charters da vergonha». Que desvalorizam os seus cidadãos com insultos como «bougnoule» e «ratonnades», «racaille» e «Karcher».

Contra a «França de baixo» que governa o país, a França das manobras baixas e dos cálculos mesquinhos, das «zonas de ilegalidade e de privilégios», das nomeações por conveniência, dos apartamentos oficiais e das «despesas de alimentação». A França que se recusa a dar um empurrãozinho ao SMIC, mas que exacerba o antagonismo social, confortando os mais abastados nas suas riquezas, dotando-os de um «escudo fiscal» em plena turbulência bancária.

A França que «cristaliza» na sua porção congrata as pensões dos antigos combatentes «morenos» do exército francês. A França que congela as pensões dos reformados franceses, para encher de «stock-options e pára-quedas dourados» os patrões saciados ou os gestores em falência.

As empresas do CAC 40 distribuíram 106 mil milhões de euros aos seus accionistas em 2 anos, o suficiente para reduzir substancialmente a dívida pública francesa e aliviar os encargos das gerações futuras. Em 2016, foram registados 55,7 mil milhões de euros em dividendos e recompras de acções, e 50,9 mil milhões em 2017. Um movimento que atesta a melhoria da saúde financeira dos pensionistas do CAC 40, mas não necessariamente das condições de vida dos desempregados de longa duração, nem dos simples trabalhadores assalariados.

A França que recicla a prevaricação em honra, promovendo ao Conselho de Estado, o templo da virtude republicana, como recompensa por serviços prestados no desvio da justiça, tal como o ministro da Justiça, que passou à história como o mais famoso interceptador de helicópteros dos anais judiciais internacionais, Jacques Toubon, agora mediador moderado da República.

Um capé da República na jurisdição suprema, o Conselho Constitucional, por ter apoiado o terrorismo islâmico do «Jabhat An Nosra», a filial síria da Al Qaeda, «que faz um bom trabalho na Síria» (Laurent Fabius).

Em suma, contra esta postura de desprezo e irresponsabilidade, a singular teoria do «fusível à francesa» que isenta o responsável de qualquer responsabilidade, na medida em que é «responsável, mas não culpado», através de uma espécie de privilégio anti-democrático que encontra a sua justificação numa ideologia proto-fascista inerente a uma parte da cultura francesa.

Contra a criminalização da política, este facto sintomático da França contemporânea, como testemunha «O registo criminal da República», com um balanço edificante, onde se contabilizavam, só na década de 1990, novecentos (900) eleitos investigados por crimes financeiros ou por danos a bens e pessoas, incluindo crimes sexuais, enquanto a «tolerância zero» em relação à criminalidade de colarinho branco deveria ser um imperativo categórico da ordem republicana, em virtude do princípio da exemplaridade do Estado.

Um cadastro que se enriqueceu com contribuições prestigiadas do calibre de Dominique Strauss Khan, ex-director do Fundo Monetário Internacional, e de Jérome Cahuzac, o notável evasor fiscal, dois representantes não da quintessência do socialismo, mas da sua decadência, co-enterradores do Partido de Jean Jaurès, tal como o socialista motorista François Hollande e o renegado Manuel Valls.

Nunca um país pareceu tão preocupado em magnificar o seu passado. Todas as variações do calendário desfilaram em comemoração: o bimilenário do baptismo de Clóvis (1996), que marca a adesão da França ao cristianismo, o 1500.º aniversário da proclamação do Édito de Nantes (1598), que pôs fim à guerra religiosa entre católicos e protestantes, bicentenário da Revolução Francesa (1989), 150º aniversário da abolição da escravatura (Maio de 1998), centenário do manifesto acusatório de Émile Zola contra a segregação político-religiosa («J'accuse», Janeiro de 1998), sexagésimo aniversário da libertação da França, quinquagésimo aniversário da V República e, finalmente, quadragésimo aniversário da revolta estudantil de Maio de 1968...

Como se a França quisesse compensar o seu recuo tímido sobre si mesma, procurando na sua glória passada a esperança do seu futuro.

Longe de participar de uma hipermnesia culpabilizante, o debate impõe-se tanto sobre a contribuição dos «povos de pele escura» para a libertação do solo francês, como sobre o seu contributo para o prestígio do seu país de acolhimento, como medida de profilaxia social sobre os males coloniais e pós-coloniais cuja ocultação poderia esclarecer os desvios repetitivos da França, tais como - simples hipótese escolar? - a correspondência entre a amnésia prolongada sobre os «crimes de gabinete» de 1940-1944 e a impunidade soberana da classe político-administrativa nos escândalos financeiros do final do século XX, ou a correlação entre a derrota da elite burocrática de 1940 e o colapso da enarquia contemporânea.

« Se uma França de 45 milhões de habitantes se abrisse amplamente, com base na igualdade de direitos, para admitir 25 milhões de cidadãos muçulmanos, mesmo que em grande parte analfabetos, não empreenderia uma iniciativa mais ousada do que aquela que permitiu aos Estados Unidos não permanecerem uma pequena província do mundo anglo-saxão», profetizava, já em 1955, Claude Lévi-Strauss, num resumo impressionante da problemática pós-colonial com que a sociedade francesa se debate há meio século (Claude Lévy Strauss, «Tristes Tropiques»).

A racionalidade cartesiana, transcendência simbiótica da inteligência ateniense e da ordem romana, quintessência do espírito crítico, gerou assim monstruosidades nos seus momentos de adormecimento. Nenhum país está imune a tais desvios diante das grandes convulsões da história, e a ingratidão passa por ser uma lei fundamental dos povos para a sua sobrevivência.

Mas a excepção francesa tão altamente reivindicada por uma nação que se proclama grande é, no entanto, antinómica de uma cultura de impunidade e amnésia, uma cultura erigida em dogma de governo e, como tal, incompatível com a deontologia do comando e os imperativos da exemplaridade.

Não vemos nisso qualquer interferência partidária ou eleitoralista, mas qualquer pessoa preocupada com o estatuto da França, seja francês de origem ou francês por opção, deve entregar-se a tal introspecção, uma medida de salubridade pública, pois é verdade que a história de hoje é a memória de amanhã e que é importante ser vigoroso na denúncia dos desvios contemporâneos para evitar dolorosas reminiscências da memória futura.

As explicações culturalistas mal escondem a sobrevivência de uma forma de etno-grafia colonial, que explica a reacção psicológica exagerada dos factos árabes e muçulmanos na opinião ocidental, particularmente francesa, além da predominância de um comportamento neo-colonialista na abordagem dos problemas do mundo árabe-africano, particularmente na França.

Precursora da laicidade com a prescrição do califa Omar «Ad Dine Lil lah Wal Watan Lil Jamih» – «A religião pertence a Deus e a pátria pertence a todos os seus cidadãos» –, a governação muçulmana deixou-se subverter por uma rigidez doutrinária sustentada por uma forma de religiosidade tão tendenciosa que se deixou despojar desse privilégio pela França. Mas, um século após a instauração da laicidade em França, o conceito envelheceu mal e mostra as suas limitações, sendo importante regenerá-lo.

Um diálogo verdadeiro só se estabelece a partir do topo e não com estigmatizações e «golpes baixos». Em vez de subscrever as intimações a que é convidado a cada surto terrorista, em vez de se culpar por comportamentos pelos quais não é pessoalmente responsável, ou mesmo totalmente alheios como cidadão, o muçulmano, por sua vez, deve reajustar a sua posição em relação ao esquema ocidental, a fim de tornar acessíveis à opinião ocidental as suas motivações, nomeadamente as suas objecções a uma política de desprezo e culpabilização.

Epílogo: Sobre a religião e as guerras religiosas.

Espaço de comunhão e exclusão, a religião é um espaço competitivo. A instrumentalização da religião para fins políticos é uma constante na história. Todas as religiões recorreram a ela, em todas as suas formas, seja na guerra de conquista da cristandade na América Latina ou nas Cruzadas contra o mundo árabe, ou, inversamente, na conquista árabe da Ásia, da costa sul do Mediterrâneo ou da África.

Guerras religiosas no espaço ocidental da cristandade (entre protestantes e católicos na França ou na Irlanda do Norte), guerras religiosas no espaço muçulmano (entre sunitas e xiitas) ou, finalmente, o sionismo, a forma mais moderna de instrumentalização da Bíblia para fins políticos, através da implementação da noção do regresso a Sião, sobre os escombros da Palestina.

A religião não é condenável em si mesma. Os seus desvios sim, na medida em que a piedade não exclui nem a inteligência, nem o livre arbítrio. Ela não proíbe o espírito crítico. Ela não pode, em caso algum, desviar-se para causas que prejudiquem o interesse nacional.

Mas em nenhum outro lugar, excepto na liderança sunita árabe, a instrumentalização da religião se desviou tanto do seu objectivo, prejudicando a causa árabe em benefício dos seus patrocinadores, os Estados Unidos, o melhor aliado do seu principal inimigo, Israel.*

O jihadismo takfirista errático consolidou, por ricochete, Israel, na medida em que consolidou no imaginário ocidental a ideia de uma barbárie muçulmana e justificou, por ricochete, a intransigência israelita e a fagocitose da Palestina, bem como a arabofobia e a islamofobia nos países ocidentais.

Se a profecia é divina, a sua interpretação é humana. O cristianismo purgou o passivo das guerras religiosas e a reconciliação ocorreu entre católicos, ortodoxos e protestantes, entre judeus e cristãos. Resta apenas a guerra sunita-xiita que paralisa todo o mundo árabe-muçulmano.

O mundo árabe está longe de ser um grupo étnico homogéneo: Mashreq-Magrebe, árabes-cabilas-curdos, cristãos-muçulmanos, sunitas-xiitas pertencem à mesma esfera cultural do mundo árabe, maioritariamente muçulmano, maioritariamente sunita, maioritariamente arabófono.

Este facto irrefutável deve ser tido em conta pela liderança sunita e levá-la a ultrapassar as divisões históricas para atingir um «limiar crítico» com o objectivo de influenciar as relações internacionais e conduzir o mundo árabe ao seu renascimento, em vez de precipitar o seu declínio irremediável.

A constituição de uma massa crítica impulsionaria uma dinâmica com o efeito de induzir uma estrutura paritária nas suas relações com a Europa e, consequentemente, relações de igualdade entre as duas margens do Mediterrâneo.

A casta intelectual árabe e muçulmana da diáspora ocidental sofre fortemente de um fenómeno de desorientação, marca típica da aculturação, num contexto de descompressão psicológica e perda intelectual e moral. Um naufrágio humano.

Cabe-lhe recusar apoiar a democracia formal representada pela diplomacia da Liga Árabe, na medida em que o mundo árabe está cativo das petromonarquias e o mundo muçulmano refém do wahabismo; uma dupla desvantagem que acentua a servidão do conjunto árabe-muçulmano à ordem atlantista e o marginaliza na gestão dos assuntos mundiais.

As monarquias árabes dispõem de uma maioria bloqueadora, governando assim o mundo árabe. Para agravar a situação, as seis petromonarquias são apoiadas por uma base militar ocidental, enquanto a Jordânia e Marrocos são dois aliados secretos de Israel. As Comores, um confete do império francês, e o Djibuti abrigam no seu solo uma base americana e uma base francesa.

Nem as petromonarquias do Golfo, nem a Jordânia, nem o Djibuti ou as Comores travaram uma guerra de libertação cuja independência foi concedida pelos seus colonizadores. Um desequilíbrio estrutural calamitoso para a definição de uma estratégia para o mundo árabe. A busca pelo conhecimento tecnológico e o acesso à modernização económica não são compatíveis com um autoritarismo de base rigorista.

Da mesma forma, a personalização do poder, por si só, não pode servir de panaceia para todos os males da sociedade árabe-muçulmana, nem a retórica pode substituir a necessidade imperiosa de dominar a complexidade da modernidade. Isto implica uma necessária, mas salutar, revisão da «cultura de governo» nos países árabes.

O que pressupõe «uma revolução na esfera cultural», no sentido em que Jacques Berque a entende, ou seja, «a acção de uma sociedade quando procura um sentido e uma expressão».

Para o intelectual, um reinvestimento no campo do debate através da sua contribuição para a produção de valores e o desenvolvimento do espírito crítico. Para o cidadão, a conquista de novos espaços de liberdade.

Para o mundo árabe-muçulmano, a consideração das suas diversas componentes, nomeadamente as suas minorias culturais e religiosas e, sobretudo, última mas não menos importante, a superação das suas divisões.

Em última análise, a função de um bi-nacional não é ser o porta-voz do seu país de acolhimento, nem o seu porta-serviços, mas assumir com vigor a função de interface exigente e crítica. Uma salvaguarda contra excessos prejudiciais do país de origem e do país de acolhimento.

No interesse bem compreendido de ambos os lados, a parceria bi-nacional deve ser feita em pé de igualdade e não numa relação de subordinação do antigo colonizado, fazendo-o parecer um suplente do seu antigo colonizador. A aliança do fraco com o forte acaba sempre por beneficiar o mais forte.

Da mesma forma, o dever de um intelectual árabe e muçulmano na sociedade ocidental é conjugar o Islão e o progressismo e não provocar uma abdicação intelectual perante um islamismo básico, invariavelmente colocado sob o jugo israelo-americano.

O maior erro do Ocidente foi sempre ter querido co-existir com «árabes domesticados», na mais pura tradição colonial.

Trinta e seis anos após a «Marcha dos Beurs pela Igualdade», uma «Marcha pela Dignidade» foi organizada em França a 17 de Março de 2018 para reivindicar a igualdade de tratamento. Um eterno recomeço?

O mundo árabe não tem vocação para servir de válvula de escape à patologia belicista ocidental. E a comunidade árabe-muçulmana da Europa Ocidental e dos Estados Unidos — em contacto diário, permanente e directo com a sociedade ocidental — deve ser o fermento e a alavanca de um renascimento tão necessário do mundo árabe e muçulmano, e não a força suplementar das guerras de auto-destruição do mundo árabe e da sua predação económica pelo bloco atlantista.

 

René Naba

Jornalista-escritor, ex-chefe do mundo árabe e muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do director-geral da RMC Médio Oriente, chefe de informação, membro do grupo consultivo do Instituto Escandinavo de Direitos Humanos e da Associação de Amizade Euro-Árabe. De 1969 a 1979, foi correspondente rotativo no escritório regional da Agence France-Presse (AFP) em Beirute, onde cobriu a guerra civil jordaniano-palestiniana, o "Setembro Negro" de 1970, a nacionalização de instalações petrolíferas no Iraque e na Líbia (1972), uma dúzia de golpes de Estado e sequestros de aviões, bem como a Guerra do Líbano (1975-1990) a 3ª guerra árabe-israelita de Outubro de 1973, as primeiras negociações de paz egípcio-israelitas na Mena House Cairo (1979). De 1979 a 1989, foi responsável pelo mundo árabe-muçulmano no serviço diplomático da AFP, depois assessor do director-geral da RMC Médio Oriente, encarregado da informação, de 1989 a 1995. Autor de "Arábia Saudita, um reino das trevas" (Golias), "De Bougnoule a selvagem, uma viagem ao imaginário francês" (Harmattan), "Hariri, de pai para filho, empresários, primeiros-ministros" (Harmattan), "As revoluções árabes e a maldição de Camp David" (Bachari), "Media e democracia, a captura do imaginário, um desafio do século XXI" (Golias). Desde 2013, ele é membro do grupo consultivo do Instituto Escandinavo de Direitos Humanos (SIHR), com sede em Genebra. Ele também é vice-presidente do Centro Internacional Contra o Terrorismo (ICALT), Genebra; Presidente da instituição de caridade LINA, que opera nos bairros do norte de Marselha, e Presidente Honorário do 'Car tu y es libre', (Bairro Livre), trabalhando para a promoção social e política das áreas periurbanas do departamento de Bouches du Rhône, no sul da França. Desde 2014, é consultor do Instituto Internacional para a Paz, Justiça e Direitos Humanos (IIPJDH), com sede em Genebra. Desde 1 de setembro de 2014, é responsável pela coordenação editorial do site https://www.madaniya.info  e apresentador de uma coluna semanal na Radio Galère (Marselha), às quintas-feiras, das 16h às 18h.

ToDOSs OS artiGOS de René Naba

 

Fonte: Radioscopie de la France : Plaidoyer pour la grandeur de la France et non sa mégalomanie 4/5 - Madaniya

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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