quarta-feira, 24 de setembro de 2025

EUA versus Venezuela: Sanções e Diplomacia da Canhoneira

 


EUA versus Venezuela: Sanções e Diplomacia da Canhoneira

24 de Setembro de 2025 Robert Bibeau

Pelo  correspondente do The Cradle , 29 de Agosto de 2025. Em   Spirit Of Free Speech | Spirit's FreeSpeech | Substack

O aumento da presença naval dos EUA na costa venezuelana não tem nada a ver com o combate ao narcotráfico, mas sim com o império. A resposta de Caracas, baseada numa defesa assimétrica apoiada por alianças eurasianas importantes, está a transformar uma batalha desequilibrada num confronto entre potências mundiais.


Os Estados Unidos entraram numa nova fase da sua longa guerra contra a Venezuela. Tendo esgotado as suas armas económicas e diplomáticas, agora estão a recorrer à força militar, enviando navios de guerra ao Caribe numa demonstração flagrante de força, conhecida como diplomacia da canhoneira.

Essa escalada é o ápice de vários anos de estratégia imperialista contra o governo bolivariano em Caracas, que se manifestou primeiro em sanções radicais sob a administração do ex-presidente dos EUA Barack Obama, depois em medidas sem precedentes sob o presidente Donald Trump e, finalmente, num consenso bi-partidário.

Oficialmente, Washington apresenta essa medida como parte de uma  campanha anti-narcóticos " mais ampla  , visando organizações terroristas. Mas essa narrativa desfaz-se após uma análise mais aprofundada. Na realidade, os Estados Unidos procuram dois objectivos: mudança de regime e controle regional, sob o pretexto de uma retórica de guerra às drogas.

Guerra legal, um prelúdio para a guerra?

A estrutura legal para a operação dos EUA começou com uma directiva presidencial secreta concedendo ao Pentágono a autoridade para atacar organizações terroristas estrangeiras (FTOs) designadas. Washington enviou navios de guerra ao largo da costa venezuelana para combater o tráfico de drogas, disse um oficial de defesa dos EUA sob condição de anonimato. Esta iniciativa, confirmada por Trump, tem como alvo cartéis que ele acusa de contrabandear fentanil e outras drogas. Entre esses grupos está o  Cartel de los Soles "  (Cartel dos Sóis), um termo antes usado informalmente para se referir a redes de corrupção dentro das forças armadas venezuelanas. Washington agora consolidou essas redes num cartel centralizado que o governo Trump designa como uma organização terrorista, embora a sua existência seja contestada. Em Julho, o governo Trump sugeriu que o presidente venezuelano Nicolás Maduro lideraria esse suposto cartel, com o apoio de outros altos funcionários venezuelanos.

O Departamento de Justiça dos EUA reforçou a aposta, oferecendo uma  recompensa de 50 milhões de dólares  pela sua captura. Essa estratégia, que envolve retirar a imunidade soberana de um chefe de Estado e rotulá-lo de narco-terrorista, serve para justificar a agressão aberta aos olhos da opinião pública nacional e internacional.

De acordo com  Christopher Sabatini , pesquisador da Chatham House, em Londres, o envio de navios dos EUA, a designação do "Tren de Aragua" como uma organização terrorista e o aumento da recompensa oferecida pela captura de Maduro são todos elementos de uma estratégia da Casa Branca projectada para fazer "o máximo de barulho possível" para satisfazer a oposição venezuelana, muitos dos quais apoiam Trump, e para "assustar" altos funcionários do governo e fazê-los renunciar.

Cartéis fictícios, intervenções reais

Análises de especialistas, incluindo as do think tank  InSight Crime , especializado em corrupção nas Américas, e de ex-oficiais de inteligência dos EUA, desmentiram a alegação de que a Venezuela abriga um cartel de drogas estatal. No início de Janeiro, a InSight Crime declarou que as sanções dos EUA contra o Cartel de los Soles eram injustificadas. "As novas sanções do governo dos EUA contra o 'Cartel de los Soles' da Venezuela retratam-no falsamente como uma organização hierárquica e ideológica de tráfico de drogas, em vez de um sistema de corrupção generalizada e com fins lucrativos envolvendo figuras militares de alto escalão", escreveu.

Relatórios publicados por organizações internacionais independentes, como o Relatório Mundial sobre Drogas 2025 do Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, indicam que as principais rotas de tráfico de cocaína entre a região andina e a América do Norte passam principalmente pelo Pacífico e pelo Corredor Centro-Americano.

A rota oriental, que atravessa o Mar do Caribe, passa parcialmente perto da Venezuela, mas representa uma parcela estatisticamente insignificante do fluxo total. Essa disparidade torna a prioridade da Venezuela no combate às drogas desproporcional à real importância do seu papel nas principais redes de contrabando.

Analistas de crime organizado e ex-oficiais de inteligência, como Fulton Armstrong, também questionam a narrativa americana que retrata a "Carte de los Soles" como uma organização criminosa hierárquica e estatal. Análises de especialistas, incluindo relatórios anteriores de organizações como a InSight Crime, sugerem que o termo surgiu informalmente para descrever redes esporádicas de corrupção dentro das Forças Armadas venezuelanas que lucram com actividades ilícitas, em vez de uma estrutura centralizada semelhante aos cartéis de drogas mexicanos.

O discurso americano parece ter reunido esses fenómenos díspares para apresentá-los como uma estrutura única e coerente, com o objectivo de retratar o Estado venezuelano como um "narco-estado".

Além disso, o governo Trump não forneceu nenhuma evidência material confiável que vincule especificamente a Venezuela à produção ou tráfico de fentanil, que actualmente é uma das principais prioridades de saúde pública e segurança nacional nos Estados Unidos.

No entanto, a presença militar de Washington conta uma história diferente. Este destacamento inclui contratorpedeiros da classe Arleigh Burke equipados com o sistema de combate Aegis, mísseis de cruzeiro Tomahawk e o porta-aviões de assalto anfíbio Iwo Jima.

Este precedente faz referência a exemplos históricos perturbadores, como o incidente do Golfo de Tonkin, que desencadeou a Guerra do Vietname, ou a invasão do Panamá pelos Estados Unidos em 1989, cujo objectivo era prender o presidente Manuel Noriega, acusado de tráfico de drogas.

Guerra psicológica, ameaça regional e petróleo

A postura militar particularmente ostensiva dos Estados Unidos, combinada com declarações oficiais vagas, constitui uma poderosa ferramenta de pressão psicológica. Visa semear dúvidas e stress nas instituições venezuelanas, particularmente entre as Forças Armadas Nacionais Bolivarianas, incentivando deserções ou rompendo a coesão de comando, tudo isso sem disparar um único tiro. Essa postura também fornece à oposição nacional a alavanca para retomar a iniciativa política após repetidos fracassos.

Ao deslocar uma força avassaladora para o exterior, Washington espera provocar esse tipo de fractura nas Forças Armadas Bolivarianas, apostando num efeito de repetição histórica. No entanto, ao contrário do que sucedeu à duas décadas atrás, a actual estrutura de comando foi fortalecida por anos de bloqueio, treino no exterior e ampla cooperação com as Forças Armadas russas e iranianas.

A operação americana tem vários objectivos. Além de dividir a liderança militar venezuelana e revitalizar uma oposição estagnada, também envia uma mensagem aos aliados regionais de Caracas (Cuba e Nicarágua) e seus apoiantes internacionais (Rússia, China e Irão): os Estados Unidos pretendem manter o seu "quintal".

Além de Havana e Manágua, outros governos latino-americanos estão profundamente cautelosos com Washington e o seu poder naval.

Reportagens publicadas pelo portal militar  DefesaNet  indicam que um plano secreto, baptizado de "Operação Imeri", estaria a sr elaborado dentro do Itamaraty para exfiltrar Maduro e protegê-lo de uma possível intervenção americana. Embora isso tenha sido oficialmente negado, essas fugas de informação sugerem um sério debate na elite política e de segurança brasileira sobre como lidar com as acções de Washington.

Dentro da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a diplomacia de canhoneiras dos EUA reavivou os temores de um retorno às intervenções do século XX, enfraquecendo ainda mais a posição de Washington na região.

Mas o cerne da questão é, claro, o petróleo. A Venezuela possui as  maiores reservas comprovadas  de ouro negro do mundo. Garantir o acesso a essas reservas, ou pelo menos negar o acesso a terceiros, é um dos princípios fundamentais da estratégia dos EUA na região.

Caracas responde com assimetria e alianças

O presidente Maduro respondeu activando a doutrina de defesa da Venezuela, "  Defesa de Todos os Povos  ". Esse plano prevê a mobilização de cerca de cinco milhões de milicianos bolivarianos para criar uma rede nacional de resistência projectada para impedir qualquer invasão através de uma guerra de atrito prolongada.

Adoptada pelo antecessor de Maduro, o falecido Hugo Chávez, após a tentativa de golpe de 2002, essa doutrina transforma qualquer invasão numa ocupação longa e ruinosa através da defesa civil enraizada nas comunidades locais.

Diplomaticamente, a Venezuela denunciou a decisão dos EUA como uma violação do direito internacional e obteve apoio de vários países em fóruns regionais e mundiais, incluindo a CELAC e a ONU. Mais importante ainda, Caracas baseou-se em suas alianças estratégicas.

A Rússia fornece armas avançadas, organiza exercícios conjuntos e bloqueia resoluções apresentadas pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU. A China continua a ser o principal credor e parceiro económico da Venezuela, fornecendo empréstimos lastreados em petróleo e investindo em infraestrutura. Durante anos, Pequim concedeu milhares de milhões de dólares em empréstimos ao governo venezuelano em troca de futuras entregas de petróleo, fornecendo recursos imediatos.

O Irão fornece o seu conhecimento tecnológico para modernizar as refinarias venezuelanas, transporta combustível para áreas bloqueadas e abastece empresas com produtos básicos. A relação entre Caracas e Teerão é única, baseada na solidariedade objectiva entre dois países sujeitos à máxima pressão e às sanções dos EUA, unidos por um discurso ideológico comum contra a hegemonia. Juntas, essas alianças formam um  escudo geo-político  que impediu a Venezuela de se tornar mais um Estado falido sob as sanções dos EUA.

Cada parceiro está a contribuir: a Rússia está a fornecer apoio militar, a China está a garantir a estabilidade económica e o Irão está a fornecer soluções práticas para permitir que as pessoas continuem as suas vidas quotidianas. Juntos, eles estão a transformar o que poderia ter sido uma intervenção unilateral num passo crucial na ordem multipolar emergente.

Em 2022, Teerão e Caracas intensificaram as operações  de transferência de petróleo de navio para navio , enviando petróleo bruto secretamente pelo mar para contornar as sanções dos EUA, demonstrando a sua engenhosidade na manutenção de fluxos bilaterais de energia.

Na América Latina e além, a estratégia de Washington não é nada inovadora. No Panamá, Noriega foi derrubado pelos Estados Unidos sob o pretexto de combater o narcotráfico, enquanto no Afeganistão, o cultivo de papoula foi usado para justificar a "guerra ao terror", embora a indústria da droga  tenha florescido sob a ocupação americana. Ao reciclar esses tropos, Washington procura mascarar a sua projecção militar por trás de uma fachada legalista.

Cenários potenciais

Três opções são possíveis. A primeira é uma crise controlada, na qual os Estados Unidos continuam a sua campanha de pressão militar sem desencadear um conflito directo. Washington mantém uma presença naval activa na região e utiliza-a como moeda de troca em negociações mundiais, particularmente com a Rússia e a China. Nesse caso, o impasse permanece contido, mas a ameaça persiste.

O segundo cenário é uma intervenção limitada que degenera em caos. Essa intervenção poderia assumir a forma de um ataque direccionado ou de um bloqueio naval, desencadeando forte resistência das forças e milícias venezuelanas. Isso causaria ondas de choque económicas nos mercados mundiais de energia e desestabilizaria os países vizinhos, particularmente a Colômbia.

A terceira possibilidade envolve uma retirada estratégica. Diante de altos riscos e consequências económicas negativas, Washington poderia optar pela retirada, mantendo sanções económicas. E Caracas, graças às suas alianças estrangeiras e mecanismos internos de resiliência, consegue manter um status quo tenso, mas estável.

A política agressiva de Washington, apresentada como uma cruzada virtuosa contra o narcotráfico, na realidade nada mais é do que uma campanha de pressão multifacetada cujos objectivos vão muito além da simples erradicação das drogas. Esse pretexto duvidoso, desacreditado por dados de campo e análises de especialistas, nada mais é do que uma cortina de fumo política e jurídica para uma vasta ofensiva política e económica.

Cada opção tem um custo alto. Mas uma coisa é certa: este caso não tem nada a ver com drogas, e sim com o império. A Venezuela, alvo de longa data das estratégias de desestabilização de Washington, é agora uma frente fundamental na batalha mundial contra a dominação unipolar.

O resultado desta batalha determinará não apenas o futuro da Venezuela, mas também um ponto de viragem no equilíbrio de poder no século XXI.


Traduzido por  Spirit of Free Speech

 

Fonte: ‍États-Unis contre Venezuela, sanctions et diplomatie de la canonnière – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




Sem comentários:

Enviar um comentário