31 de Dezembro de
2022 Ysengrimus
YSENGRIMUS - Aqui estamos novamente
confrontados com o velho problema do choque traumático. Como pode um duro golpe
na nossa vida adulta, que é completamente inesperado, pôr em risco toda a nossa
vida? Será isto sequer possível? Um jovem está sentado numa carruagem de
comboio, sozinho, numa viagem de longa distância curta, supostamente sem
incidentes. Com paz de espírito, prepara-se para levar um presente de
aniversário a um membro da família. Este jovem é obviamente de classe média.
Tanto que a narrativa sente mesmo a necessidade de justificar e explicar o
facto de ele estar a apanhar o comboio em vez do seu carro, o que se assume ser
agradável e confortável. Que é. O nosso
jovem protagonista solitário está à-vontade, bem vestido e sociologicamente e
psicologicamente confortável. O presente que leva na sua mochila é um daqueles
objectos de computador que vale o seu preço, um tipo de portátil quase
ostensivamente portátil. O nosso jovem, fortuitamente isolado nesta carruagem
vazia, é então abordado por um pequeno bandido que deve ter mais ou menos a sua
idade. Cada vez mais inoportuno, este jovem incómodo do paciente começa a
incomodar o nosso viajante. E a querer conversar, fazer amigos, interferir. E a
querer ver o que está na sua bolsa e o que está na sua psique. As coisas correm
mal, muito rapidamente, e apercebemo-nos de que, de repente, à dimensão de
roubo deste problema social emergente se junta uma dimensão sexual. Sem entrar
em pormenores (Loana Hoarau fá-lo-á por nós), encontramo-nos abruptamente numa
situação em que o nosso jovem bem vestido, tão preocupado com a sua boa imagem
para com os seus pares que vai encontrar, se vê violado e despojado de tudo por
um bandido desconhecido. Ele sofre um choque traumático, que dificilmente pode
esconder dos seus pares. Acaba despenado, despojado, catastrofizado, numa
plataforma de estação. E, de momento, tem apenas uma prioridade em mente.
Esconder tanto quanto possível este choque traumático improvisado e dar a
impressão de que vai conhecer as pessoas que vai conhecer, no contexto
acolhedor e tranquilo que é o deles.
A perturbação sofrida é cataclísmica. Uma questão sobre ela torce inevitavelmente o seu caminho dentro de nós. Este choque traumático é inicial ou, mais profundamente... ressurgente? Os choques traumáticos mais antigos, enterrados na infância, estão a vir à luz aqui, nesta tempestade específica? Aqui, o mistério permanecerá completamente opaco para nós. Tudo o que descobriremos é que, após este doloroso incidente, este jovem, um pouco precioso, desaparecerá completamente para o seu grupo de pares. Sem que nos digam as razões da muda, testemunharemos o aparecimento de Erell. Como o nosso jovem sofreu um efeito interior devastador, na sequência deste acontecimento único, ele irá literalmente mudar a sua vida. Ele também alterará o seu género de alguma forma. E irá mudar a sua orientação social. Tornar-se-á uma prostituta transexual que vive no seu carro e faz o sexo ao ar livre, na sua própria pequena área arborizada. Ela espera lá pelo cliente. O sensual John... o sádico John... ou ambos. A escrita firme mas sóbria e solidamente esculpida de Loana Hoarau faz-nos sentir a profunda angústia e as difíceis viagens emocionais vividas pelas personagens que lutam sob as várias perucas de Erell. E estas personagens flutuantes acabarão por se cristalizar e tomar forma, quando testemunharmos o aparecimento da Gaby. A Gaby é uma criança jovem, explicitamente do sexo masculino. Ele anda por aí na floresta, sem que nós saibamos realmente o que ele está a tramar. Não sabemos porque anda de um lado para o outro e não sabemos há quanto tempo está lá. Gradualmente, a Erell e a Gaby estabelecerão a sua ligação. E isto terá um impacto claro e directo nas suas vidas, mas terá também um conjunto tumultuoso de consequências interiores para ambos. De uma forma muito construída e subtilmente elaborada, é estabelecida uma dependência mútua entre estes dois jovens forasteiros. E, sim, é claro que o efeito configurado entre Erell e Gaby é um efeito espelho...
Segue-se uma série de aventuras amargas, que não detalharei aqui para não comprometer o vosso prazer na leitura deste deslumbrante pequeno romance. Uma coisa é certa: uma espécie de cumplicidade profunda, secreta, íntima, superior e sublime surgirá entre estas duas personagens. O que poderíamos chamar uma relação humana, no sentido forte e sublime do termo, será estabelecido entre eles. E isto é ainda mais novo, e bem conseguido, quando nos damos conta de que, bem, vivemos num mundo de cinismo brutal. E é este mundo de cinismo brutal que prevalece, quando o exercício em que a narrativa está aqui envolvida é estabelecido. Cinismo mercantil, cinismo ladrão, cinismo sádico, cinismo perverso, cinismo de prostituta. Inexistência de lealdades. Transgressão de todas as obrigações, incluindo a obrigação de solidariedade fundamental entre criança e adulto. Já não existem determinações estáveis de constrangimentos sociais. A nossa vida é instável. Está a desenrolar-se. E tudo aquilo que uma vez determinou o sexo ou idade das pessoas em interacção, dos parceiros sexuais em situações íntimas, dos corpos em conflito, está a apodrecer com um escárnio. Qualquer coisa pode acontecer. Tudo é suspeito de ter acontecido. E no entanto, neste leito de cinismo procrustador, neste tipo de fossa malodorosa de suspeita e insensibilidade, duas coisas doces irão crescer. Duas flores flutuarão, na superfície do pântano, e virão ao encontro, para tocarem as pétalas uma da outra, numa ligeira colisão. Isto irá acontecer de uma forma natural e credível. Sim, tomamos consciência da ligação entre a Erell e a Gaby e aceitamo-la. Funciona. As realidades que aqui são evocadas são possíveis. Plausíveis. Realizáveis. E, atrevemo-nos a dizê-lo, portadoras de esperança. Belas, quase.
Loana Hoarau faz parte da equipa ÉLP há já vários anos. Escreveu uma série de romances, muitas vezes muito explícitos. Aqui ela entrega um pequeno texto que é particularmente magistral, solidamente sintetizado e finamente doseado. Uma fina capacidade de encontrar uma coexistência subtil entre brutalidade, intensidade, força das emoções, incongruência de conforto, o ardor humano manifesta-se abertamente. Poder-se-ia usar... e reactivar... a velha expressão do romance psicológico para caracterizar esta obra. No seu delicado funcionamento, a história não cultiva os excessos, muitas vezes gratuitos e muito ostensivos, de uma certa literatura sangrenta. Tudo o que é transportado por aqui, tudo o que ofende, tudo o que mata, tudo o que desconfia, tudo o que sangra e tudo o que arranca encontra a sua motivação. O fundamento da crise humana contemporânea desdobra-se, sob o olhar empático do leitor, as sombras da sua explicação. Oh, a explicação explicitamente explícita não existe. O que acabaria por ser pesado e didáctico, é-nos abertamente poupado. É deixado à nossa imaginação e ao nosso imaginário. E, ao fazê-lo, estamos a confiar, com razão, na nossa inteligência e na adequação da nossa própria compreensão íntima das crises humanas do nosso tempo. Tudo o que acontece neste romance é organicamente dotado de uma legitimidade de existência. E isto leva-nos a uma obra que é breve, nervosa, repentina, mas particularmente assombrosa pela sua coesão e solidez, tanto no seu funcionamento narrativo como na gestão dos seus temas. O pensamento que emerge da Erell é intelectualmente interessante. E se se pudesse resumir, dir-se-ia, permanecendo deliberadamente enigmático... O que eu me tornei produto da criança, ainda sou. O meu ser actual e esta criança que se assemelha a mim estão unidos. E o que me estou a tornar, nesta união, faz-me compreender que ser parecido com a criança é encontrá-la em mim mesmo e reconectar-se com a estabilidade fundamental do meu ser. E isto é ainda mais importante, dado que este ser está ferido, empurrado, atormentado... traumatizado (atrevamo-nos a usar essa palavra novamente). E como corolário, em tudo isto, o patriarcado crepuscular do mundo adulto contemporâneo, tanto visceralmente cínico como sistematicamente desconfiado, perdeu toda a capacidade de enquadrar o ser fundamental feminizado em construção..
Loana
Hoarau, Erell, Montréal, ÉLP éditeur, 2022, formatos print, ePub ou
Mobi.
Fonte : ERELL (Loana Hoarau) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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