sábado, 17 de dezembro de 2022

XAVIÈRE – MY SEASONS (Hélèna Courteau)

 


 17 de Dezembro de 2022  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — A prosa ficcional contemporânea, seja da literatura de elite ou de massas, é bastante determinada pelo peso das coisas que contamos. A nossa cultura ficcional é largamente jornalística, (auto)biográfica ou dramático-histórica. Este é o lote actual da vitória do romance policial e do romance de ficção científica sobre o romance atmosférico. Nas situações de acção dos romances principais, o foco está no que acontece, na forma como os acontecimentos, que são todos decisivos, nunca subsidiários ou marginais, se desdobram, se desenrolam e se encaixam. Assim, a nossa mentalidade como leitores está altamente dependente do facto de procurarmos sequências muito precisas dentro da história que está a ser contada. Na cultura da ficção livreira contemporânea, sem realmente darmos por ela, de uma forma insidiosa, massiva e colectiva, consumimos cada vez mais texto narrativo como consumimos o fluxo cinematográfico. Vamos à procura de uma fábula encomendada cujo conteúdo podemos sintetizar para a avó, que não pôde vir e comer pipocas connosco no cinema. Queremos seguir um enredo faccioso e ser capazes de o regurgitar para nós próprios, tal como ele é.

Imaginemos agora que, intencionalmente ou acidentalmente, um autor decide aderir à tradição literária, que também está solidamente estabelecida, e que assume a tarefa de a alterar, um pouco. Vamos propor que o que aparece no cinema como sendo mais ou menos os elementos de fundo se torne de facto a trama principal de um romance. Inversão de perspectivas. Inversão de ângulos. Repolarização das relações. Jogos de elipses. Encontramo-nos então numa situação em que não temos necessariamente de relacionar um enredo, articular uma construção narrativa, ou desdobrar um corpo explícito de acontecimentos. O que avança e se desdobra, de forma expressa e espectacular, já não é o que acontece, no sentido prosaico do termo. Imaginemos que o objectivo novelista, se é que existe, se torna antes a evocação de percepções e particularidades emocionais, intelectuais e sensuais, corolários de acontecimentos, companheiros de situações. A partir de uma viagem factual, muitos efeitos sobre os sentidos, sobre o pensamento, sobre a memória são desenhados, e isto, principalmente. As alusões ao que guardamos, e não a história do que aconteceu. Ao assumir este tipo de inversão de perspectivas, ao colocar o pano de fundo para a frente, ao dar prioridade à reminiscência perceptiva sobre a relação factual e, sobretudo, ao relegar o grosso do aparelho narrativo para o implícito, acabaremos por ter uma obra como a que Hélèna Courteau aqui entrega.

Descobrimos assim, em explosões, a trajectória de Xavière, uma jovem mulher que atravessa as estações da sua vida, como se se dividisse a névoa variável de uma rica experiência mental. Em secções, em períodos espaçados, tomamos consciência dos elementos da consciência ordinária de Xavière. Logo percebemos que esta figura, meio-narrador, meio-protagonista, vem de um horizonte no qual as dimensões sociais e culturais são de grande importância. medida que os vários acontecimentos que compõem o mundo de Xavière se desenrolam, rapidamente nos damos conta de que são aqui contados de uma forma ligeiramente brechtiana, por outras palavras, à maneira dos historietas en abyme do teatro épico, sem necessariamente cultivar a mitologia de um drama pesado com nós e afunilamentos. Trata-se aqui mais de uma série de etapas, como se fosse por painéis. As estações de Xavière voam como tantas bolhas distintas, por vezes comoventes, outras vezes não. Os momentos passam, sem que nos concentremos demasiado directamente no movimento dos relógios ou no desenrolar de um fio. De facto, a linha do tempo não está aqui tão claramente definida, e esta é uma das facetas que torna este exercício tão forte. Instalamo-nos numa configuração em que nem tudo é dito, nem tudo é martelado, nem tudo é explicitamente formulado. É mais como uma evasão e a criação de uma atmosfera.

Estas estações do ano. Há os seus turnos, mas há também as suas protuberâncias. Assim, um certo número de momentos fortes emerge. Na noite da infância, desenvolve-se um subtil caso de amor entre Xavière e uma encantadora investigadora americana um pouco mais velha do que ela, uma mulher calada e quase rígida. Tudo começa numa amizade de Verão, feita de admiração respeitosa mútua e de cumplicidade sorridente. As coisas acontecem de uma forma difusa, num tom etéreo, de uma forma que ainda não tenta instalar-nos num romance de grande grandiosidade. Estamos no jogo fluido de uma evocação que, como resultado, vem a ditar a força silenciosa dos seus temas. Sólida na sua autonomia bissexual, gradualmente afirmada durante a implantação social da sua vida adulta, Xavière será ainda mais evasiva de todas as relações susceptíveis de acarretar muitos constrangimentos exclusivistas. Somos convidados a ouvir muito mais as sensações que serão despertadas e evocadas, do que o ruído de possíveis contratos de casais. A mensagem por detrás do tratamento instala-se. Esqueça o seu essencial. Concentre-se nos meus detalhes. E se o conseguir fazer, é de facto porque, no fim de contas, chegámos à conclusão de que Xavière só lhe diz o que está disposta a partilhar, e nada mais...

Muito Kerouakian em tom, por vezes, as etapas da história avançam aquele tipo particular de convite para viajar que é o das mulheres do nosso tempo. A história tem, entre outras coisas, a característica de ser formulada em proximidade com a natureza. Os apartamentos, as praias Gaspé, as ilhas de St. Lawrence. O frio amargo. A atmosfera socialmente tórrida, ensolarada e consciente das ruas de Montreal, durante as grandes manifestações de Verão onde se concentram as questões de todas as nossas lutas. A escrita de Hélèna Courteau mistura habilmente simplicidade e riqueza. Com o risco do texto, é uma questão de estar constantemente em contacto com o fresco, o saudável, o natural. As estações de Xavière são tecidas e desdobradas no exterior. Brincamos lá fora, vamos lá para fora, agimos lá fora, lutamos lá fora. E nós envolvemo-nos em actividades de intervenção artística no exterior. As aventuras, mesmo as desventuras, são mais do ordinário do que do extraordinário. Tudo funciona aqui como uma colecção de miniaturas, como um esboço em vez de um fresco, como uma tela em vez de uma peça de teatro. Mas a capacidade de procurar o extraordinário no ordinário está aqui em jogo. É uma apresentação que se saboreia com grande prazer porque emite um conjunto complexo de vibrações sensuais, intelectuais e emocionais.

Xavière é uma mulher de cultura. Os reflexos estão lá. O hábito também. Ela é uma pessoa que vive nas artes. Um músico, até traz na sua bagagem um piano em miniatura como o que está em Schroeder, o famoso. Beethoven em serviço na trupe de Charlie Brown. Na maior parte das vezes, surpreende-se a si própria ao pensar que é Franz Liszt. Ela por vezes disfarça-se como ele, literalmente, quando o fundo convencional das nossas práticas festivas o exige. Xavière é habitada por modos de expressão artística e ela faz-nos adorar. Ela está impregnada de poesia, pintura, jantares finos, cinema, circo. E ela está constantemente envolvida nesta música extraordinária, que quase se pode ouvir quando se vira as páginas. Cita abertamente para si própria os autores que a fascinam. Os seus amigos, os seus pares, os seus intimidados, os Théobalds, Berthe Morisot & Consort, são militantes ou artistas políticos. Homens, mulheres, Xavière adora um pouco de toda a gente, sem ficar demasiado molhada (um pouco, especialmente literalmente, quando o céu da noite começa a parecer-se com uma pintura de Turner). Ela tem um olhar aguçado mas sereno sobre as diferentes realidades da vida à medida que esta vai passando. Há mesmo algo de sociólogo ou etnógrafo no nosso Xavière. Ela aspira a descobrir as pessoas locais, a conhecê-las, tanto no ambiente social do seu quotidiano rústico como nas pregas da realidade que formam a intimidade das suas emoções.

O que se desdobra diante dos nossos olhos neste breve e fluido romance são as belas estações de Xavière. Aqui é-nos dada uma série de quadros que são gerados uns pelos outros. Seguem-se uns aos outros sem tensão, com harmonia, flexibilidade, capacidade, felicidade de expressão. E tudo isto nos dá um tom feminino, tanto sensual como intelectual. Estes dois planos estão aqui em perfeita harmonia. O conjunto enche-nos gradualmente de uma espécie de harmonia difusa com o bom, o belo, o puro. O que está adormecido no fundo de tudo isto é a juventude. Os nossos sucessos e erros juvenis são tão brilhantes e coloridos quando aparecem, sempre brutais e surpreendentes, aos olhos e ouvidos de um tempo. E quando as vemos novamente, mais tarde, como tantas fotos amareladas num álbum de memória, dizemos a nós próprios que sim, era forte. Sim, ainda está profundamente impresso em mim, mas mesmo assim, não impediu que o fio da vida continuasse a desabrochar, deslumbrante. E novas estações de Xavière continuam a aparecer e a reaparecer. Sempre fresco. Sempre verdade. Sempre renovado. Sempre o máximo.

Hélèna Courteau (2022), Xavière – mes saisonsÉLP Éditeur, Montréal, formato de papel, ePub ou Mobi.

 


Fonte: XAVIÈRE – MES SAISONS (Hélèna Courteau) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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