domingo, 8 de agosto de 2021

Os meus dezasseis aforismos úteis do LA SOCIÉTÉ DU SPECTACLE (1967) de Guy Debord

 6 de Agosto de 2021  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Há pouco mais de cinquenta anos, Guy Debord avançou magistralmente os 221 aforismos da sua obra principal LA SOCIÉTÉ DU SPECTACLE. Hoje, temos de ler tudo discretamente, e dar um passo para trás. Alguns segmentos de pensamento envelheceram (nomeadamente os seus desenvolvimentos sobre o tempo cíclico e sobre o espaço urbano - não vamos debruçar-nos sobre eles). Outros continuam connosco. Os meus dezasseis aforismos úteis tirados deste trabalho crucial de meio século estão aqui... [fugazmente comentados em parênteses e a negrito por mim - Ysengrimus]..

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O espectáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental que foi um entendimento da actividade, dominada pelas categorias do voir; bem como se baseia na implantação incessante da racionalidade técnica exacta que deriva deste pensamento. Não percebe filosofia, filosofar a realidade. É a vida concreta de tudo o que se deteriorou num universo especulativo.

[1- É historicamente importante e dialécticamente significativo observar que é no momento da lenta dissolução da filosofia especulativa como uma vasta disciplina inteletiva que a dinâmica do espectáculo gradualmente assume. Passamos, inevitavelmente, dos logos armaturados para a imagem da borboleta, do líder ao saltimbanco, do pensador ao jogador de basebol e, consequentemente, do raciocinado ao metafórico. — Ysengrimus].

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É a mais antiga especialização social, a especialização do poder, que está na origem do espectáculo. O espectáculo é, assim, uma actividade especializada que fala por todos os outros. É a representação diplomática da sociedade hierárquica antes de si mesma, onde todas as outras palavras são proibidas. O mais moderno é também o mais arcaico.

[2- Se o espectáculo emana do poder, é também a manifestação mais marcante da perda da auto-essência do poder. Se temos de deslumbrar as massas, é porque já não são subjugadas, se temos de as agitar, é porque não estão muito convencidas. Um desenvolvimento que Debord só podia vislumbrar é que corroborar que hoje as massas são o espectáculo. O irmão mais velho é todos nós e o ceptro contemporâneo, é uma haste de egoretrato (selfie). — Ysengrimus].

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Com a separação geral do trabalhador e do seu produto, perde-se qualquer ponto de vista unitário sobre a actividade exercida, perde-se qualquer comunicação pessoal directa entre os produtores. Após o progresso da acumulação de produtos separados, e a concentração do processo de producção, a unidade e a comunicação tornam-se o atributo exclusivo da direcção do sistema. O sucesso do sistema económico de separação é a proletariaização do mundo.

[3- Pudemos acreditar, com os avanços tecnológicos e a democratização da informação em massa (Internet e seus mitos), no estabelecimento de uma comunicação multipolar, proletária e de origem colectiva. Esta é uma das grandes ilusões dos desenvolvimentos contemporâneos no espectáculo. A cibercultura e a cibercensura dançam juntas no mesmo círculo, numa restauração gradual da separação da comunicação e do facto comunicado, especialmente pelas autoridades. Estas rapidamente encheram uma recuperação tecnocrática que fala alto e claro sobre a transparência escrava de toda a tecnocracia, incluindo as que emanam de tecnologias comuns. — Ysengrimus].

29

A origem da mostra é a perda da unidade do mundo, e a gigantesca expansão da mostra moderna expressa a totalidade desta perda: a abstracção de qualquer trabalho em particular e a abstracção geral da produção global reflectem-se perfeitamente no espectáculo, cujo modo de ser concreto é precisamente a abstracção. No espectáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é superior. O espectáculo é apenas a linguagem comum desta separação. O que liga os espectadores é apenas uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espectáculo reúne os separados, mas reúne-o como separado.

Nunca podemos dizer o suficiente sobre os abusos da abstracção ordinária. A crise do espectáculo contemporâneo está aninhada, entre outras coisas, na separação doentia entre o viral e o não-viral. Encorpado e concreto, não-viral existe diariamente, mas é repetidamente esquecido, disperso sem constância. Abstracto e espectacular, o viral impõe-se como conhecimento colectivo artificial, doxa falso, falso consenso da histeria de Panurge, normalização efémera do zumbido hipersensitado, nado-morto. É, de facto, como um separado que o viral voa sobre o não-viral, completando a colectivização da pseudo-existência de todos os nossos pragmatismos praticamente consensuais. Os dois reúnem-se na forma de espectacular inexistência num tempo deslumbrante. — Ysengrimus].

43

Enquanto na fase primitiva da acumulação capitalista "a economia política vê no proletário apenas o trabalhador",que deve receber o mínimo essencial para a preservação da sua mão-de-obra, sem nunca o considerar "no seu lazer, na sua humanidade", esta posição das ideias da classe dominante é invertida assim que o grau de abundância alcançado na produção de bens requer um excedente de colaboração do trabalhador. Este trabalhador, subitamente afastado do total desprezo que lhe é claramente demonstrado por todos os métodos de organização e supervisão da producção, encontra-se todos os dias fora dele aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma educação ansiosa, sob o disfarce do consumidor. Assim, o humanismo da mercadoria assume o "lazer e a humanidade" do trabalhador, simplesmente porque a economia política pode e deve agora dominar estas esferas como economia política. Assim, "a completa negação do homem" tomou conta de toda a existência humana.

[5- A terciarização de todo o tom civilizacional empurrou este humanismo da mercadoria para as suas últimas trincheiras. O desrespeito glaciar pelas interacções no local de trabalho responde fielmente às outras interacções, queridas e teatralizadas, do local de lazer. É evidente que o bordel como espaço de contacto e a prostituição como um modus operandi intersubjectivo atinge dimensões de um modelo universal interactivo. A prostituta engole o seu desprezo, executa a tarefa em toda a técnica retemperadora do espectáculo. O joão colecta o prazer, paga o preço do prazer e recolhe a facticidade padronizada e quantificável de todo o seu lazer. A terciarização e a reificação trabalham em conjunto, trabalhando para um objectivo comum: silenciar emoções, transgressões e desvios. Vamos viver com os dentes cerrados: estamos terciarizados. — Ysengrimus].

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O valor de utilização que foi implicitamente incluído no valor de troca deve agora ser explicitamente proclamado, na realidade invertida do espectáculo, precisamente porque a sua realidade real está a ser corroída pela economia de mercado sobredesenvolvida; e que a pseudo-justificação torna-se necessária para a vida falsa.

[6- É necessário encontrar urgentemente uma Frente para a Libertação do Valor de Utilização. Este está agitado como um gorila na gaiola mercante, mas nem o espectáculo nem a verdade representativa podem dissolvê-lo. É a praxis activa na união crucial com o objecto da sua acção. Libertemos o último preso político: o valor da utilização! É o núcleo duro materialista que cruza os regimes e os desgasta como o jacto de raladores de areia rala a superfície das pedras antigas e as limpa muito limpas, muito brancas. O que a economia empresarial roeu, a náusea financeira verá regurgitar, enojada, mas integral. Sob os mercados, o valor de utilização. — Ysengrimus].

62

A falsa escolha em abundância espectacular, uma escolha que reside na justaposição de espectáculos competitivos e de apoio, bem como na justaposição de papéis (principalmente significados e transportados por objectos) que são exclusivos e entrelaçados, desenvolve-se na luta por qualidades fantasmagóricas destinadas a fascinar a adesão à trivialidade quantitativa. Assim renascem falsas oposições arcaicas, regionalismos ou racismos, responsáveis por transfigurar em fantástica superioridade ontológica a vulgaridade das posições hierárquicas no consumo. Assim se recompõe a série interminável de confrontos desgastantes que mobilizam um interesse pouco lúdico, do desporto competitivo às eleições. Lã onde o consumo abundante se instalou, uma oposição espectacular principal entre jovens e adultos surge em primeiro plano dos papéis falacciosos: porque em nenhum lugar existe um adulto, mestre da sua vida, e a juventude, a mudança do que existe, não é de forma alguma propriedade destes homens que agora são jovens, mas o do sistema económico, o dinamismo do capitalismo. Estas são coisas que reinam e são jovens; que se caçam e se substituem elas mesmo.

[7- As competições falacciosas (desporto, eleições, nacionalismos, racismo, falo-batota, conflito de gerações, mundanidades do mundo do espectáculo) são o motor de relojoaria da falsa binaridade do pêndulo. O consensualismo cego do golem económico requer uma série de concessões fictícias à dialética e à alternativa. Note-se que a durabilidade do processo se esgota, à medida que gradualmente passamos da guerra contra o inimigo para a guerra à guerra. Escusado será dizer que chegará o dia em que a inequívoca ambiguidade mundialista do sistema económico enfrentará as massas unidas através destas falsas divisões internas e em harmonia com a crise crucial. Sim, chegará o dia. — Ysengrimus].

85

A falha na teoria de Marx é naturalmente a falha na luta revolucionária do proletariado da sua época. A classe trabalhadora não decretou a revolução permanente na Alemanha de 1848; a Comuna foi derrotada isoladamente. A teoria revolucionária ainda não pode alcançar a sua própria existência total. Ser reduzido a defendê-lo e precisá-la na separação do trabalho erudito, no Museu Britânico, implicava uma perda na própria teoria. São precisamente as justificações científicas traçadas sobre o futuro desenvolvimento da classe operária, e a prática organizacional aliada a estas justificações, que se tornarão obstáculos à consciência proletária numa fase mais avançada.

[8- O defeito na teoria é a resposta no céu aos defeitos das lutas terrenas. A Batalha dos Campos Catalão da Teoria e da Praxis é perpetuada em dois níveis, fatalmente, dado o seu ardor. É bom deixar claro que a teoria para as massas que deve ser explicada às massas perde um passo. Não se torna mais falso, mas a sua apreensão é, por outro lado, bastante distorcida. A teoria revolucionária encontra praxis revolucionária no slogan, texto curto, sensor universal. A teoria revolucionária procura as massas no julgamento e erro do texto longo, articulado, explicativo, tranquilizante e murmurado.  O Capital de Marx não é um slogan de acção circunscrita. Todo o poder para os soviéticos! não é um desenvolvimento teórico de âmbito universal. — Ysengrimus].

86

Toda a insuficiência teórica na defesa científica da revolução proletária pode ser reduzida, tanto para o conteúdo como para a forma da exposição, para uma identificação do proletariado com a burguesia do ponto de vista da apreensão revolucionária do poder.

"Eu, Karl Marx, introduzi a dialéctica hegeliana no materialismo histórico. A dialéctica não perdoa o estudo e a compreensão da história. Rejeita o sustentável, o eterno, o estável, o constante, o cíclico, o idêntico, a favor do contraditório, do irreversível, da crise, da alteração inovadora e sem retorno. Não há necessidade de se comprometer com este tipo de doutrina. E mesmo assim, apesar de mim, comprometi-me. Comprometi-me com o velho pensamento não dialético. Obviamente! Pensa! Sugeri que a revolução proletária se desenrolaria, assim como a revolução burguesa. As revoluções burguesas, a de 1789, certamente, mas também, e mais precisamente, o meu sonho de infância, que se concretizou parcialmente em 1848, foram o modelo de identidade que usei, inevitavelmente, para representar as revoluções que se seguiram. Perpetuando tal modelo de identidade, é esta velha podridão da constância metafísica que mantive, coagulada no coração da dialéctica. Sem mais crises, sem mais novidades radicais, mas uma modelo sub-reptício, um colete-de-forças, um chefe. E não menos importante! Nada menos que a burguesia mostrando ao proletariado como fazer uma revolução! É precisamente este colete-de-forças, este padrão, este modelo que Lenine quebrou. Ele demonstrou que, na sua implantação eficaz, as revoluções não adoptam um padrão absoluto, mas apenas analogias tendentes. Ele demoliu os restos da fantasia doutrinária da minha abordagem. O que é que ele tanto fez? Simplesmente deixou cair, como uma ilusão desnecessária, a ideia "marxista" de que a burguesia deveria fazer a revolução primeiro e que o proletariado só deve avançar depois. Lenine pôs em marcha a imensa lição da Comuna de Paris que ainda estou a tentar compreender. Ele provou, através do seu trabalho e da sua acção, que, como ele próprio disse, a história sempre se desenvolve pelo seu lado mau. Além disso, quando o proletariado russo marchou sobre Moscovo e Petrogrado, o quadro teórico foi ajustado a este radical intelectual e material imponderável da não-simetria das revoluções. O leninismo teórico na história é o culminar da dialéctica no materialismo histórico. Sem mais constantes, sem mais sequências obrigatórias pré-estabelecidas na ideia. Rasgou a cortina final do hegelianismo de Marx. Corrigido, o grande erro teórico em torno do qual todas as esperanças e mortificações da minha vida estavam aninhadas. Infelizmente, Lenine foi engolido pelas leis que ele próprio descobriu. A história, que, por tê-la revelado, não controlou mais do que eu, desenvolveu-se do lado errado para ele e para o seu povo também... As regressões thermidoriana, brumariana e, finalmente, liquidatária incluídas! Isto, de facto, caro Sinclair, é o que Lenine e Marx têm profundamente em comum: acabam por se desfazer das colossais contradições históricas que desvendam. Note-se, em dialéctica radical e sempre tão triste e orgulhosa ao mesmo tempo, que, uma vez que sou ultrapassado por Lenine, parece que Lenine também é ultrapassado por mim. A sua análise anomalista da revolução russa, válida a curto e médio prazo, faz com que, a longo prazo, seja responsável pelo meu modelo análogo. A sua Comuna de Paris também caiu, mas de acordo com uma curva larga muito mais semelhante à da Revolução Francesa. Basicamente, e - mais uma vez!- esquematicamente, as fases são: Governo Revolucionário, Bonapartismo/Estalinismo, Restauração Política sem retorno real ao ponto de partida. Em algum lugar eles se juntam, toda esta merda de arabescos revolucionários. (dixit o Karl Marx de DIALOGUS, pastiché por Paul Laurendeau). — Ysengrimus].

114

Neste complexo e terrível desenvolvimento que varreu a era das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industrializados perdeu completamente a afirmação da sua perspetiva autónoma e, em última análise, as suas ilusões,mas não o seu ser. Ele não é suprimido. Continua a existir irredutivelmente na alienação intensificada do capitalismo moderno: é a grande maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o emprego das suas vidas e que, assim que o conhecem, se redefinem como o proletariado, o negativo no trabalho nesta sociedade. Este proletariado é objectivamente reforçado pelo desaparecimento dos camponeses, bem como pelo alargamento da lógica do trabalho fabril que se aplica a grande parte dos "serviços" e das profissões intelectuais. É subjetivamente que este proletariado ainda está longe da sua consciência prática de classe, não só entre os trabalhadores, mas também entre os trabalhadores que ainda não descobriram apenas a impotência e a mistificação da velha política. No entanto, quando o proletariado descobre que a sua própria força externa contribui para o fortalecimento permanente da sociedade capitalista, não só sob a forma do seu trabalho, mas também sob a forma dos sindicatos, partidos ou poder estatal que tinha formado para se emancipar, também descobre através de uma experiência histórica concreta que é a classe totalmente inimiga de qualquer externalização fixa e de qualquer especialização do poder. Carrega a revolução que não pode deixar nada fora de si,a exigência do domínio permanente do presente sobre o passado, e a crítica total à separação; e é isso que ele deve encontrar a forma certa na acção. Nenhuma melhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica, é um remédio duradouro para a sua insatisfação, porque o proletariado não se consegue reconhecer verdadeiramente num erro particular de que não teria sofrido, portanto, nem na reparação de um determinado erro,nem num grande número desses erros, mas apenas no erro absoluto de ser rejeitado à margem da vida.

Tendo perdido as suas ilusões revolucionárias e reformistas, o proletariado continua a ser, no entanto, a grande força negadora do desenvolvimento histórico contemporâneo. No entanto, "inverteu-se o alargamento da lógica do trabalho fabril que se aplica a uma grande parte dos 'serviços' e profissões intelectuais". Hoje, é antes o alargamento da lógica dos "serviços" e das profissões intelectuais que se aplica a uma grande parte do trabalho de fábrica... Por conseguinte, não há necessidade de procrastinar, a terciarização é o estabelecimento, intencional ou não, do proletariado que pensa, especula e que, inevitavelmente, critica o mundo, de forma abstracta e concreta. A terciarização dá as últimas ferramentas teóricas do dia-a-dia ao proletariado. Ela o traz para os bastidores do espectáculo em massa. Nada é mais duro ou fatal, tudo é macio, fictício. É uma decoração. Falso. E o dinheiro é papel. E uma faísca pode incendiar toda... uma pilha de memorandos. — Ysengrimus].

121

A organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não faz pacto com qualquer forma de poder separado, em qualquer parte do mundo, e uma crítica pronunciada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta da organização revolucionária contra a sociedade de classes, as armas não são outra coisa senão a essência dos próprios combatentes: a organização revolucionária não pode reproduzir nela as condições de divisão e hierarquia que são as da sociedade dominante. Tem de lutar constantemente contra a sua distorção no espectáculo reinante. O único limite da participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a efectiva auto-apropriação, por todos os seus membros, da coerência da sua crítica, coerência que deve ser comprovada na própria teoria crítica e na relação entre ela e a sua atividade prática.

Não há revolução isolada, nem revolução nacional. As revoluções num único país foram todas niveladas e voltaram gradualmente a reconectar-se com o miasma internacional predominante. O conceito de mundialização tem, portanto, duas facetas mais do que nunca. Mundialização da massa internacional de acumuladores e financeiros. Mundialização da resistência concertada daqueles que produzem riqueza colectiva avançando calmamente em direção à praxis revolucionária em massa. Somos todos inteiramente as armas da revolução, mesmo que as revoluções do futuro não sejam marxistas  https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2020/10/as-revolucoes-do-futuro-nao-serao.html  — Ysengrimus].

168

Subproduto da circulação de mercadorias, a circulação humana considerada como consumo, o turismo, é basicamente reduzida ao lazer para ir ver o que se tornou comum. O planeamento económico da frequência de diferentes locais é já, por si só, a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que tirou tempo das viagens, também retirou a realidade do espaço.

[12- O turismo é a mundialização do mundo fodido. Apenas as aventuras cuidadosamente trabalhadas e circularizadas da repetição aí se afirmam. Esta situação é tão integral que existe, desde há muito tempo, uma actividade turística do voo dos circuitos turísticos. Um off brodway fora do turismo, de algumas maneiras, tão falso como o outro, naturalmente. Seja extremo, ecológico, desportivo, naturista, gastronómico ou etnográfico, o turismo continua a ser a quintessência, cada vez mais abertamente confessada, da sociedade do espectáculo. Nada e ninguém mostra o mundo, desde que a dinâmica do turismo imponha a sua lei. O único turismo franco e honesto é saquear abertamente o turismo, ou seja, aquele que assume sem complexidade do sol, praias, frutas exóticas e paisagens pitorescas, negando-lhes e acabando com a sua vida histórica. O turismo é o roubo da parte do imóvel que não é exportado para que não saia do caminho. Todo o turismo mata a agricultura (alimentos ou compradores) tanto quanto mata as juntas. Numa palavra, o turismo é uma teoria do espectáculo feito de carne, rocha, lago e rio, e que estrangula discretamente qualquer desenvolvimento. É que o materialismo turístico é a antítese aberta e escandalosamente burguesa do materialismo histórico. — Ysengrimus].

176

A história universal nasceu nas cidades, e tornou-se grande no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Marx considera como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia este facto de que "submeteu o campo à cidade", cujo ar emancipa. Mas se a história da cidade é a história da liberdade, tem sido também a história da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade. A cidade ainda poderia ser apenas o campo de luta da liberdade histórica, e não a sua posse. A cidade é o meio da história porque é simultaneamente uma concentração de poder social, o que torna possível o empreendimento histórico, e uma consciência do passado. A actual tendência para a liquidação da cidade só expressa, de outra forma, o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação da sociedade que re-aproveita os poderes que lhe foram desvinculados.

[13- A tendência actual para a liquidação da cidade leva-nos à outra cidade. A cidade terciarizada aspira a higienizar, socializar, a nunuchificar-se e, portanto, também aspira a iludir-se. Montreal oferece a si mesma bairros livres de neve, bem como um distrito de espetáculos... seria necessário inaugurar uma Place Guy Debord para que a compreensão radical das coisas ganhe (muito possivelmente) um pouco de espessura. Tudo o que resta então é livrar-se dos carros e dos seus eternos tubos de escape. De volta ao bom e velho urbanismo básico. Oh, lá, lá. Programa extenso. — Ysengrimus].

191

O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. São, embora apenas relativamente conscientes, contemporâneos do último grande ataque do movimento revolucionário proletário; e o fracasso deste movimento, que os deixou fechados no campo muito artístico cujo lapso proclamaram, é a razão fundamental para a sua imobilização. O dadaísmo e o surrealismo estão ambos historicamente ligados e na oposição. Nesta oposição, que constitui também para cada um a parte mais substancial e radical do seu contributo, surge a insuficiência interna das suas críticas, desenvolvidas por ambas as partes. O dadaísmo queria suprimir a arte sem se aperceber; e o surrealismo queria realizar a arte sem a apagar. A posição crítica desenvolvida desde então pelos Situacionistas demonstrou que a supressão e realização da arte são os aspectos inseparáveis da mesma superação da arte.

A arte está em todo o lado. O meu telemóvel é a câmara do Doisneau, a câmara do Truffaut, o caderno do Rimbaud, a paleta do Van Gogh e a harmónica do Guthrie num objecto. Dada está em todo o lado. O surrealismo está em todo o lado. Dada e o Surrealismo têm sido os impulsos prospectivos mais eficazes e relevantes, não só em termos de arte, mas também na questão muito mais volátil da expressão ordinária. Dada é falso. O surrealismo está ultrapassado. É que a referida expressão comum amplificou-os a um nível exponencial. Vivemos em Dada. A sociedade do espetáculo é Dada. Surrealismo sou eu, e todos nós. Surrealismo é Instagram e Facebook. — Ysengrimus].

201

A afirmação da estabilidade definitiva de um curto período de congelamento do tempo histórico é a base inegável, inconsciente e conscientemente proclamada, da actual tendência para a sistematização estruturalista. O ponto de vista do pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da presença eterna de um sistema que nunca foi criado e que nunca acabará. O sonho da ditadura de uma estrutura inconsciente anterior sobre qualquer praxis social poderia ser extraída indevidamente dos modelos de estruturas elaboradas pela linguística e pela etnologia (até mesmo a análise do funcionamento do capitalismo), modelos já abusados nestas circunstâncias, simplesmente porque um pensamento académico de gestores intermédios, rapidamente cumprido, pensado inteiramente afundado no espantado elogio do sistema existente, traz de volta toda a realidade à existência do sistema.

 [15- Cinquenta anos depois, ainda vivemos tanto na lama de um gel estruturalista que já não diz o seu nome que somos quase capazes de formular os elementos configuráveis de uma historicidade do pensamento anti-histórico. Este trabalha em sucessão de negações tanto quanto numa pilha de confirmações. Diz que nunca soube o que foi afectado para descobrir e/ou ter sempre sabido o que finalmente foi forçado a reconhecer. Uma parte significativa do discurso contemporâneo fala constantemente de novidade e mudança sem nunca falar de história. A grande tela plana do programa é a negação da história. Esta história da história é oculta, banalizada ou sublime de facto diversa. Ou, é erguida como uma grande inevitabilidade natural, em código genético, em princípio fundamental da espécie (especialmente quando se trata dos impulsos dos nossos machos Alfa). Quando se trata da evolução e desenvolvimento das coisas, na sociedade burguesa contemporânea, Darwin está em todo o lado, Marx não está em lado nenhum..

209

O que, na formulação teórica, é abertamente apresentado como desviada, ao negar qualquer autonomia duradoura da esfera do expresso teórico, ao trazer para ela por meio dessa violência a acção que perturba e retira qualquer ordem existente, recorda que esta existência do teórico não é nada em si, e s´se deve conhecer com a acção histórica e com a correção histórica que é a sua verdadeira fidelidade.

[16- Não há teoria autónoma e não há história autónoma. Todo o pensamento é gerado historicamente, materialmente. É uma emergência. O mito da esfera do teórico, do científico, do artístico ou do místico continua a ser o fumo intelectual final do nosso tempo. O fumo mais antiquado também. O mais difícil. O fumo dos velhos mágicos... Só a consciência colectiva da transmissão ordinária de talentos e dos saberes permitirá dissolver o lívido coágulo intelectual do embuste de uma autonomia sacralizável do pensamento e dos saberes. Quando a genialidade estiver em todo o lado, a mistificação não estará em lado nenhum. Chegará o dia. — Ysengrimus]

 


Fonte: Mes seize aphorismes utiles tirés de LA SOCIÉTÉ DU SPECTACLE de Guy Debord (1967) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice


 

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