A nova carta de Marx reafirma a necessidade do internacionalismo e do
partido
Foi
recentemente descoberta uma carta de Karl Marx a Jules Guesde:
10 de Maio de 1879 41 Maitland Park Road London NW
Caro cidadão Guesde, Nenhum refugiado francês que tenha contacto comigo pode
suspeitar da profunda simpatia que sinto por si ou do grande interesse que tenho
pelo seu trabalho. O socialismo militante tem certamente muitos apoiantes em
França, mas há poucos que combinem conhecimento com coragem e devoção como o
senhor faz. A eleição de Blanqui, graças à sua iniciativa, é uma primeira
compensação pelos sofrimentos e aviltamentos que os detentores do poder vos
infligem. (1) No que respeita ao regresso da
legislatura a Paris, falei tanto com Lissagaray como com Longuet no mesmo
sentido dos vossos artigos. (2) Afinal, dei mais importância aos debates
sobre este assunto do que ao assunto em si, estando bem convencido de que
Messieurs les Gambettistes prefeririam viver em Paris a vegetar em Versalhes. (3) A grande tarefa dos socialistas em França
é a organização de um partido operário independente e combativo. Esta organização,
que não deve limitar-se às cidades, mas deve estender-se ao campo, só pode ser
conseguida através da propaganda e da luta contínua, uma luta quotidiana que
corresponda sempre às condições do momento, às necessidades actuais. Só os
jacobinos póstumos conhecem apenas uma forma de acção revolucionária, a forma
explosiva. Isto é muito natural para os burgueses que nunca levantaram os seus
escudos até ocuparem posições sociais dominantes. Estou convencido de que,
desta vez, a revolução explosiva não virá do Ocidente, mas do Oriente - da
Rússia. Reagirá primeiro nos dois outros despotismos graves, a Áustria e a
Alemanha, onde uma convulsão violenta se tornou uma necessidade histórica. É da
maior importância que, no momento desta crise geral, a Europa encontre o
proletariado francês já constituído como partido operário e pronto a
desempenhar o seu papel. Quanto à Inglaterra, os elementos materiais para a sua
transformação social são abundantes, mas falta-lhe o espírito motor. Este só se
formará sob a explosão dos acontecimentos continentais. É preciso nunca
esquecer que, por mais miserável que seja a sorte do grosso da classe operária
inglesa, ela participa, em certa medida, no império da Inglaterra no mercado
mundial, ou, o que é ainda pior, imagina-se a participar nele. Algumas palavras
sobre Longuet. Estaria a prestar-lhe um mau serviço se pensasse que ele é o seu
adversário pessoal. Pelo contrário, apesar de ter sido convidado por alguns
emigrantes coquetes, não se deixou arrastar para a zombaria. Se, por vezes, as
opiniões dele diferem das suas quanto à táctica a seguir, não creio que sejam
diferentes quanto à substância. Por último, as relações familiares e de amizade
não podem influenciar a minha linha política, da qual nunca me desviei. Na
esperança de que recupere em breve a sua liberdade e a sua saúde, sou o seu
fiel amigo Karl Marx (4)
Esta
breve carta ilustra mais uma vez a importância que Marx atribuía ao movimento
operário em França. Foi escrita um mês após a fundação da Federação dos
Trabalhadores Socialistas de França, da qual surgiria, alguns anos mais tarde,
o Partido Operário Francês. Marx ainda não tinha conhecido Guesde pessoalmente.
A carta não contém nenhuma informação nova, mas ilustra o pensamento de Marx,
nomeadamente sobre a revolução mundial e a necessidade de os operários se
organizarem como partido antes dessa revolução, como veremos mais adiante.
A
primeira coisa que salta à vista é o facto de Marx conceber a revolução como
internacional, ao contrário de Karl Kautsky e dos seus epígonos para quem, nas
palavras de Rosa Luxemburgo, “a revolução socialista é um assunto nacional e,
por assim dizer, doméstico, de cada Estado em particular”. (5) Para Marx e Engels, foi sempre claro que a revolução
comunista não poderia ter lugar num só país. (6) No entanto, acreditavam que a revolução seria mais
fácil nos países industrializados. A carta ilustra uma mudança que ocorreu no
pensamento de Marx e Engels desde o seu exílio em Inglaterra. O país burguês
mais avançado da época tinha o proletariado mais desenvolvido, mas também os
meios mais desenvolvidos para manter esse proletariado sob controlo,
nomeadamente os meios ideológicos. Na carta, Marx observa que o que é pior do
que a classe operária inglesa participar, em certa medida, no império inglês no
mercado mundial é o facto de se imaginar a participar nesse império.
Assim,
Marx e Engels voltaram o seu olhar para o continente, e para a França em
particular, em busca da faísca que incendiaria toda a Europa. Mas Marx e Engels
acreditavam que a revolução comunista seria impossível sem a classe operária
inglesa, precisamente devido ao domínio da Inglaterra no mercado mundial. Os
operáriosde todos os países tinham de trabalhar em conjunto, daí a
necessidade de um partido operário internacional. (7) Após a guerra franco-prussiana e a derrota da Comuna,
Marx e Engels voltaram a sua atenção para a Rússia. Durante a guerra franco-prussiana,
tinham previsto uma guerra devastadora entre a Alemanha e a Rússia, sendo
provável que a França se aliasse à Rússia, a menos que rebentasse uma revolução
na Rússia. (8) A carta de Marx deve, portanto, ser lida como uma
afirmação da necessidade de a classe operária formar um partido não só para
preparar a revolução, mas também para se preparar contra uma guerra mundial,
porque só “a aliança dos operários de todos os países acabará por matar a
guerra”. (9)
É
claro que, dado o seu atraso, a Rússia só poderia ter uma revolução comunista
na condição de que “a revolução russa desse o sinal para uma revolução
proletária no Ocidente, e que as duas se complementassem”. (10) Podemos ver, portanto, que na sua carta Marx pensava
que a classe operária francesa ainda tinha um papel crucial a desempenhar. Marx
esperava que uma revolução na Rússia provocasse uma vaga revolucionária em toda
a Europa e, por isso, pensava que o proletariado francês devia preparar-se para
ela, organizando-se em partido. Actualmente, ao contrário do que acontecia
quando Marx escrevia, o capitalismo abrange o mundo inteiro. A faísca
revolucionária pode, portanto, ocorrer em qualquer parte do mundo. Mais uma razão para estarmos
preparados.
Por
conseguinte, hoje, após uma década de protestos infrutíferos em todo o mundo, é
mais claro do que nunca que é necessária uma organização partidária. No
entanto, nem sempre é claro o que é um partido revolucionário. (11) Esta é a segunda coisa que fica clara na carta de
Marx e na resposta de Guesde. O partido dos operários deve ser independente
da burguesia e das suas tradições políticas, neste caso a tradição republicana
francesa, e deve manter-se afastado de correntes, como o blanquismo, que
acreditam que a revolução é uma questão de vontade.
A
carta mostra também que Marx queria que o partido se estendesse não só às
cidades, onde se concentra a classe operária, mas também aos trabalhadores do
campo, através de uma propaganda vigorosa. É precisamente isso que o Segundo
Congresso da Terceira Internacional, nas suas teses sobre a questão agrária,
censurava a Segunda Internacional por não ter feito o suficiente. (12)
Sobre
o tema dos fracassos da Segunda Internacional, embora na sua resposta (13) Guesde se concentre, correctamente, na necessidade de
um partido operário independente, e concorde com Marx que a forma explosiva da
revolução “à la Blanqui” (14), embora útil na Rússia, não corresponde à situação em
França, na Alemanha ou em Itália, a sua resposta é muito reveladora na medida
em que não retoma o tema da revolução mundial apresentado por Marx. (15) Afinal, Guesde preferia a sua pátria ao proletariado.
Não compreende, ou não quer compreender, que “a nacionalidade do operário não é francesa, inglesa, alemã, é o trabalho, a escravatura livre, o
auto-tráfico. O seu governo não é francês, inglês ou alemão; é o capital. O ar
que ele respira em casa não é francês, inglês ou alemão, é o ar da fábrica. O
solo que lhe pertence não é francês, inglês ou alemão, está uns metros abaixo
do solo”. (16) Assim, quando a guerra mundial prevista por Marx e
Engels chegou, Guesde traiu o proletariado internacional.
Em
contrapartida, nós, da Tendência Comunista Internacionalista, reconhecemos,
como Marx, a necessidade do internacionalismo e de um partido operário
internacional. Mas a história da classe operária obriga-nos a aprender com as
lutas passadas. Na revolução russa, a dizimação da classe operária num país
maioritariamente camponês, devido tanto a uma crise económica como à luta
contra os brancos e a uma invasão imperialista internacionalista, viu o partido
bolchevique criar um Estado que gradualmente suplantou os sovietes. Este declínio
da iniciativa proletária num país isolado levou à ideia de que se a classe não
podia fazer ou defender a revolução, então o partido devia fazê-lo por ela.
Este substitucionismo levou mais tarde os conselheiros a concluir que “todos os
partidos são burgueses”. E assim depositaram as suas esperanças no renascimento
espontâneo dos conselhos operários. Mas no seio da esquerda comunista o debate
não era sobre partidos ou conselhos, mas sobre a natureza do partido e a sua
relação com a classe e os seus órgãos representativos (como os conselhos operários). Para nós, este debate culminou na Plataforma de 1952 do Partido
Comunista Internacionalista (Battaglia Communista) (17), que afirma claramente que “a classe não pode delegar
a sua missão histórica a outros... nem mesmo ao seu partido de classe”. Este é
o axioma fundamental da nossa concepção do partido hoje. Antes da revolução, o
partido reúne politicamente todos aqueles que compreendem a necessidade de uma
revolução proletária para derrubar o capitalismo (uma revolução mais necessária
do que nunca actualmente), mas embora o partido exerça uma liderança ideológica
e política, não é certamente um governo em formação. O poder real deve ser
exercido pelos órgãos de toda a classe, como os conselhos operários, que
são os veículos para envolver a massa da classe na transformação do seu próprio
destino. Mas ainda temos tempo até que possa surgir uma organização política
internacional. Entretanto, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que
ela surja, mas não pretendemos ser esse partido, mas apenas um dos elementos
que terão de ser reunidos para a sua formação.
Erwan
21/05/2024
Notes :
1.
A eleição de Auguste Blanqui em Abril foi invalidada
em Junho mas ele ainda assim foi libertado da prisão, o que era o objectivo da
campanha.
2.
Prosper-Olivier Lissagaray e Charles
Longuet participaram na Comuna de Paris. Lissagaray ficou algum tempo na casa
de Marx e escreveu uma história da Comuna, enquanto Longuet se tornava genro de
Marx.
3. A Assembleia Nacional encontrava-se em Versalhes desde
a Comuna. Léon Gambetta era republicano e presidente da Assembleia. O Parlamento muda-se para Paris
em Junho.
4.
A carta e a conhecida resposta de Guesde
estão disponíveis no Actuel Marx e online aqui: cairn.info
5.
marxists.org
6.
marxists.org
7.
marxists.org Este
texto também pode ser encontrado em francês em Le parti de classe tome III em
pdf aqui: classiques.uqac.ca
8.
marxists.org A
passagem em questão encontra-se nas páginas 529-30 de Écrits militaires.: classiques.uqac.ca
9.
marxists.org
10. marxists.org
11. leftcom.org
12. marxists.org
13. A versão antiga da resposta de Guesde pode ser
encontrada em Le mouvement ouvrier français tome II: classiques.uqac.ca
14. Na versão antiga da resposta, está escrito Cafiero
(sem dúvida em referência ao anarquista Carlo Cafiero). O Marx actual indica
que o nome não é claro, mas decide a favor de Blanqui. À luz da carta de Marx,
Blanqui faz sentido. Na versão antiga da carta, encontramos também esta
passagem (na página 93): “Tal como tu, em última análise, contesto que a
simples destruição do que existe seja suficiente para estabelecer o que
queremos, e penso que, a mais ou menos longo prazo, o impulso, a direcção, deve
vir de cima, daqueles que ‘sabem mais’.” A nova versão da resposta reproduzida
no Actuel Marx não contém “daqueles que ‘sabem mais’”. Em todo o caso, a ideia
de Guesde de que o impulso deve “vir de cima” indica que a sua concepção da
ditadura do proletariado era diferente da de Marx.
15. No início da sua carta, Guesde pede desculpa por ter
sido contra Marx durante o período da AIT. No exílio na Suíça, após a derrota
da Comuna, Guesde, então anarquista, publicou alguns artigos contra Marx.
17. leftcom.org
Sábado, Março 22, 2025
Fonte: La nouvelle lettre de Marx réaffirme la nécessité de l’internationalisme et du parti | Leftcom
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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