segunda-feira, 24 de maio de 2021

A tragédia do estado profundo americano contra a aliança chino-russa

 24 de maio de 2021  Robert Bibeau  

Por Pepe Escobar. Fonte The Saker's Blog

Henry Kissinger, 97 anos, conhecido como Henrique K. para aqueles que ele mantém perto de si, ou é um pensador estratégico do oráculo de Delfos ou é um autêntico criminoso de guerra, para aqueles que ele mantém menos perto dele. Parece que ele deixou um pouco a sua actividade habitual de dividir para melhor reinar, para aconselhar o grupo que detém o POTUS, também conhecido como Crash Test Dummy, e emitir algumas pérolas de sabedoria na realpolitik.

Num fórum recente no Arizona, Henry, o K. disse, referindo-se ao conflito sino-americano que cresce, que "este é o maior problema da América, o maior problema do mundo. Porque se não podemos resolvê-lo, o risco é que, no mundo inteiro, uma espécie de guerra fria se desenvolva entre a China e os Estados Unidos. »

Em termos de realpolitik, esse "tipo de guerra fria" já está em andamento; dentro do Beltway [Wasington DC, NdSF],a China é considerada por unanimidade como a primeira ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.

Kissinger acrescentou que a política dos EUA em relação à China deve ser uma mistura de "princípios" dos EUA para exigir respeito à China e ao diálogo para encontrar áreas de cooperação: "Não estou a dizer que a diplomacia sempre levará a resultados benéficos... Essa é a tarefa complexa que temos... Ninguém foi capaz de fazê-lo completamente. »

Henry, o K. deve ter perdido o fio diplomático. O ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, e o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, estão a trabalhar a tempo integral para demonstrar - principalmente aos países do Sul - que a "ordem internacional baseada em regras" imposta pelos Estados Unidos não tem absolutamente nada a ver com o direito internacional e o respeito pela soberania nacional.

No início, eu tinha rejeitado essas platitudes de Henrique K. Mas uma pessoa que ocupava uma posição de primeiro plano no topo do estado profundo americano mostrou-me que precisamos prestar mais atenção a isso.

Essa personalidade, vamos chamá-la de ESM, tem sido uma das minhas fontes inestimáveis e confiáveis desde o início dos anos 2000. A confiança mútua sempre foi a chave. Perguntei-lhe se podia publicar algumas das passagens da sua análise, sem citar nomes. Ele concordou com cautela. Então apertem os cintos de segurança.

Dançando com M. S.

O sr. M.S., de uma forma bastante intrigante, parece expressar a opinião colectiva de um número de indivíduos altamente qualificados. Desde o início, ele aponta como as observações de Henrique K. podem ser explicadas pelo triângulo Rússia-China-Irão de hoje.

O primeiro ponto que fazemos é que não foi Kissinger quem criou a política para Nixon, mas o estado profundo. Kissinger era apenas um mensageiro. Na situação de 1972, o estado profundo queria deixar o Vietname, cuja política havia sido posta em prática para conter a China comunista e a Rússia. Estávamos lá baseados na teoria do dominó.

 E ele continua a dizer:

O estado profundo queria alcançar uma série de objectivos ao aproximar-se do presidente Mao, que estava chateado com a Rússia. Em 1972, ele queria aliar-se à China contra a Rússia. Isso tornou o Vietname irrelevante, porque a China tornou-se o partido que conteria a Rússia e o Vietname não significava nada. Queríamos equilibrar a China contra a Rússia. A China não era uma grande potência em 1972, mas poderia drenar a Rússia, forçando-a a colocar 400.000 soldados na sua fronteira. E a política do estado profundo funcionou. Fomos nós, no estado profundo, que pensámos nisso, não Kissinger. 400.000 soldados na fronteira chinesa foi uma punção no seu orçamento, como mais tarde se tornou o Afeganistão com mais de 100.000 soldados, e o Pacto de Varsóvia com 600.000 tropas adicionais.

 E isso leva-nos ao Afeganistão:

O estado profundo queria criar um Vietname para a Rússia, no Afeganistão em 1979. Eu estava entre aqueles que se opuseram, porque teria usado desnecessariamente o povo afegão como carne para canhão e foi injusto. Eles recusaram-se a ouvir-me. Brzezinski fez o papel de Kissinger aqui, um outro nada que só transmitia mensagens.

 O estado profundo também decidiu baixar o preço do petróleo, porque enfraqueceria economicamente a Rússia. E funcionou em 1985, fazendo com que o preço caísse para oito dólares o barril, o que derreteu metade do orçamento russo. Então permitimos que Saddam Hussein invadisse o Kuwait a fim de enviar o nosso exército avançado para o atordoar e demonstrar a nossa superioridade para o mundo em termos de armamentos, o que desmoralizou fortemente os russos e incutiu o medo de Deus nos países petrolíferos muçulmanos. Então criámos a ficção Star Wars. A Rússia, para nossa surpresa, perdeu a calma e entrou em colapso.

M.S. define tudo isso como "maravilhoso" aos seus olhos, porque "o comunismo saiu e o cristianismo entrou":

Queríamos então receber a Rússia na comunidade das nações cristãs, mas o estado profundo queria desmembrá-la. Foi estúpido, porque teria criado um equilíbrio contra a China, pelo menos do ponto de vista deles no Mackinder. Foi ingénuo da minha parte esperar um retorno do cristianismo, pois o Ocidente estava rapidamente a caminhar para a desintegração moral total.

 Enquanto isso, a nossa aliada China continuou a crescer porque ainda estávamos a desmembrar a Rússia e os conselheiros que enviámos para a Rússia destruíram toda a economia nos anos 1990, contra as minhas objecções. O bombardeamento de Belgrado, que durou 78 dias, finalmente despertou a Rússia, que começou a remilitarizar-se maciçamente, porque era óbvio que a intenção final era destruir Moscovo. Os mísseis defensivos tornaram-se, portanto, essenciais. Daí, o S-300, o S-400, o S-500 e de seguida o S-600.

 Nas nossas reuniões, eu tinha avisado o estado profundo que o bombardeamento de Belgrado em 1999 levaria à remilitarização da Rússia, mas o argumento não foi ouvido. Belgrado foi bombardeada durante 78 dias, comparados com os dois dias de bombardeamento de vingança contra Hitler. E a China continuou a crescer.

Porque é que o equilíbrio de forças não funciona

E isso leva-nos a uma nova era - que começou na prática com o anúncio chinês  das Novas Rotas da Seda em 2013 e o Maidan em Kiev em 2014:

A China desperta e percebe que foi usada e que a frota dos EUA controla as suas rotas comerciais. Ela decidiu então aproximar-se da Rússia em 2014, no preciso momento em que ela testemunha o derrube da Ucrânia pelos Maidan. Essa reversão foi organizada pelo estado profundo quando começou a entender que havia perdido a corrida aos armamentos, e que nem sabia mesmo o que se estava a passar.

O estado profundo queria atrair a Rússia para um novo Vietname, na Ucrânia, para drená-lo e, em seguida, fazer com que o preço do petróleo entrasse em colapso novamente, o que eles fizeram. Pequim estudou isso e entendeu a história. Se a Rússia fosse derrubada, o Ocidente controlaria todos os seus recursos naturais, que a China esperava precisar, pois tornou-se uma economia gigante, maior que a dos Estados Unidos. Pequim então começou a forjar relações calorosas com Moscovo, procurando obter da Rússia recursos naturais terrestres, como petróleo e o gás natural, a fim de evitar tanto quanto possível os recursos naturais transportados pelo mar. Enquanto isso, Pequim está a acelerar maciçamente a construcção de submarinos que transportam mísseis capazes de destruir frotas dos EUA.

Então, qual é a relação com Kissinger no Arizona?

Hoje, Kissinger reflecte a angústia do estado profundo sobre a relação entre a Rússia e a China e o seu desejo de que ela seja dividida para sempre. É disso que Kissinger está a falar. Ele não quer dizer a verdade sobre as realidades do equilíbrio de forças. Ele usa o argumento "nossos valores",enquanto os Estados Unidos não têm valores além da anarquia, saques e incêndio de centenas de cidades. Biden espera convencer a população desinformada à medida que a impressão monetária aumenta.

Então voltamos a Kissinger chocado com a nova aliança russo-chinesa. Ela deve ser quebrada.

Agora, eu não concordo com os fascinantes equilíbrios de forças, porque a moralidade ou os valores nobres devem governar as relações internacionais, não o poder. Os Estados Unidos seguem os seus sonhos de equilíbrio de forças desde 1900 e agora enfrentam a ruína económica. Essas ideias não funcionam. Não há razão para que os Estados Unidos não possam ser amigos da Rússia e da China e que as diferenças possam ser resolvidas. Mas você não pode chegar a essa fase enquanto considerações de equilíbrio de forças dominarem todo o seu pensamento. Esta é a tragédia do nosso tempo.

Pepe Escobar

Traduzido por Wayan, revisto por Hervé para o Saker de língua francesa

 

Fonte: La tragédie de l’État profond américain contre l’alliance Chino-russe – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice


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