quinta-feira, 13 de maio de 2021

Os Mingongs e a radicalização da classe operária chinesa

 

 13 de Maio de 2021  Robert Bibeau  

Por Dao Feixiang.

Antes do início da pandemia COVID-19, a economia mundial entrou em colapso. No entanto, enquanto o resto do mundo parece estar em chamas, a China parece ter permanecido imune a esse declínio económico extremo, sendo uma das poucas economias a crescer em 2020. A China registou um aumento de 1% no PIB graças a medidas rigorosas do Partido Comunista da China (CPC) e aos esforços dos operários da linha da frente. Aos olhos do mundo exterior, o Estado chinês continua a parecer forte, orgulhosamente a brandir o slogan do "socialismo com características chinesas".

Por trás dessa fachada, no entanto, está uma economia capitalista altamente explorada que também está em crise. Dentro das fronteiras da China, os operários ainda sofrem com a sobre-exploração comparável à vivida pelos operários ingleses no final do século XIX. Os seus direitos são-lhes negados, os seus discursos são censurados, as suas acções são impiedosamente reprimidas. Mas os operários não se deixam ficar e as contradições sociais do capitalismo e do ambiente repressivo empurram-nos para questionar todo o sistema.

O desenvolvimento do capitalismo na China criou uma nova geração de operários que nunca viveram sob a velha economia planificada nacionalizada ou sob os efeitos desorientadores da restauração capitalista. O resultado foi uma revitalização das lutas operárias nos últimos tempos.

A mudança do papel dos operários migrantes (mingongs)

Uma das forças motrizes por trás do reavivamento da consciência de classe na China é o crescente fluxo de operários migrantes (民工, mingongs)  para as cidades. Com a restauração e desenvolvimento do capitalismo sob a direcção do PCC da China, uma nova massa de população rural proletarizou e foi forçada a encontrar trabalho em centros urbanos em expansão. Isso substituiu a geração anterior de operários, geralmente desorientados e desmoralizados pelas medidas tomadas pelo Estado durante o período de "reforma e abertura". A geração mais antiga da classe operária urbana, que viveu os dias da economia planificada, tendia a ser mais dócil e a confiar na administração do PCC diante do processo de restauração capitalista.

As condições materiais melhoraram de facto para esta geração mais antiga de operários: de 1978 a 1985, o salário médio mensal dos operários subiu de 52 yuan para 119 yuan, um aumento anual de 13%. O aumento do salário médio inicialmente desviou a atenção desses operários do perigo representado pela transição do PCC para o capitalismo, da qual se iriam ressentir das dolorosas consequências. Após a volta ao Sul de Deng Xiaoping em 1992, o PCC ficou firmemente sob o controle dos liberais económicos, que realizaram enormes reformas de privatização em empresas estatais, excluindo rapidamente a geração mais antiga de operários do local de trabalho.

Mais de 22 milhões de operários foram demitidos em três anos, entre 1998 e 2001. Isso desencadeou uma onda maciça de lutas entre os operários demitidos de 2002 a 2005, que morreu logo depois. Enquanto a geração mais velha de operários urbanos perdeu os seus empregos em empresas estatais, muitos camponeses - após a introducção do sistema de responsabilidade domiciliar em 1982, que efectivamente marcou o início da privatização das terras agrícolas - começaram voluntariamente a deixar as suas terras durante períodos fora do pico para procurar trabalho sazonal nas cidades, e eventualmente deixaram completamente o campo para encontrar melhores empregos nas cidades.

Esses operários rurais são comumente designados como mingongs.

Entre 1982 e 1988, cerca de 9,7 milhões de mingongs reuniram-se nas cidades a cada ano. Após a volta sulista de Deng Xiaoping em 1992, o fluxo de pessoas atingiu mais de 10 milhões de mingongs a migrar para as cidades a cada ano desde então. De acordo com o Bureau Nacional de Estatísticas, o número de mingongs na China foi de cerca de 290 milhões em 2019. Só agora é que o crescimento desses números desacelerou consideravelmente: o mesmo relatório aponta que o número de 2019 aumentou apenas 1% em relação a 2018.

Hoje, esses mingongs ocupam um terço da força de trabalho de 900 milhões de pessoas na China, mas o número real de trabalhadores rurais é muito maior do que os 290 milhões devido a mudanças nos registos domésticos. Legalmente falando, os mingongs são operários migrantes cuja família está registrada em áreas rurais. No entanto, nas últimas décadas, muitos mingongs foram autorizados a registar-se numa residência urbana e, portanto, não foram contados como mingongs como tal, embora ainda possam ter uma conexão com o campo.

Hoje, os mingongs consideram-se conscientemente como fazendo  parte da classe operária urbana em vez de dela estarem separados. Numa entrevista de 2006, um mingong da província de Hunan a trabalhar na província de Guangdong explicou:

"Tudo na minha vida é diferente da geração dos meus pais. Não tenho intenção de voltar à aldeia para me casar e ter filhos. Sou instruído e culto. Quero aprender uma competência e plantar minhas raízes aqui [na cidade]. »

Um relatório mais recente de 2019 aponta que muitos desses jovens mingongs são muito mais qualificados e educados do que as gerações anteriores. A sobre-exploração e a vida difícil nas cidades rapidamente criaram uma consciência de classe entre os mingongs. A maioria das mais de 13.000 greves registadas em toda a China desde 2011 envolveu uma força de trabalho em grande parte mingong. Embora muitos pensassem durante algum um tempo que as cidades trariam oportunidade e riqueza, essas ilusões sobre o sistema estão a dissipar-se rapidamente, especialmente porque o crescimento económico desacelerou desde 2011 e o novo fluxo de operários urbanos tornou-se mais sofisticado e qualificado. Há algumas décadas, os mingongs eram na sua maioria carentes de educação: uma pesquisa de 2007 e um levantamento de uma amostra de 897 mingongs de Nanchang mostraram que mais de 80% tinham uma educação que não excedia a faculdade (máximo em torno do 9º ano, dependendo da região).

Nas últimas décadas, no entanto, milhões de mingongs e suas famílias enraizaram-se nas cidades, o que resultou numa rápida urbanização. Em 2010, a taxa de urbanização foi de 49,68%. Em 2016, a taxa de urbanização da China atingiu 57,35%. Até 2020, estima-se que 840 milhões de pessoas, ou mais de 60% da população chinesa, estejam a viver agora em cidades. À medida que os mingongs se estabeleceram nas cidades, o seu modo de vida também mudou. Hoje em dia, os jovens mingongs geralmente tentam evitar trabalhar em fábricas. É razoável que esses jovens operários rejeitem as condições de trabalho perigosas e o trabalho duro (físico) que os seus pais experimentaram.

Ao contrário da forma como a media pró-estatal descreve os empregos do sector de serviços, a ilusão neste sector de que esses empregos são mais seguros e de melhor qualidade contrasta fortemente com a realidade. Por exemplo, os motoristas de entrega de alimentos são submetidos a intensos trabalhos diários, o que explica o alto número de acidentes de trânsito nas regiões metropolitanas. Muitas vezes as empresas não compensam o suficiente, se é que compensam, as lesões sofridas pelos seus trabalhadores.

Ao contrário da geração mais velha de operários, que se lembram da igualdade salarial e de certos benefícios proporcionados pelo Estado, a nova classe operária foi formada no campo das relações imobiliárias privatizadas, da livre concorrência do mercado e da repressão autoritária. Como resultado, um despertar maciço da consciência de classe começou entre os operários mais educados e avançados dos últimos anos.

Uma consciência de classe recentemente emergente

Essa tendência tem sido particularmente evidente desde o Incidente 996 e o "251" de 2019, quando a conscientização das classes entre os estratos mais educados da classe operária começou a expressar-se online. Os operários têm apupado a grande media pelas suas posições pró-capitalistas, gozando com os anúncios corporativos ridículos, expondo a exploração brutal que estão a experimentar, e activamente tentando conectar-se com operários físicos. Podemos ver muitos exemplos dos seus esforços: o escárnio aberto de Jack Ma após o incidente do Bilionário do Povo; a greve dos escritores criativos de 5 de Maio de 2020; a disseminação do meme da internet打工 (Da Gongren, costumava referir-se apenas aoscolarinhos azuis, mas agora costuma referir-se a todos os operários); reivindicações activas para uma jornada de trabalho de oito horas.

Esta mudança, no entanto, não caiu de um céu azul claro. É o resultado inevitável do capitalismo.

Antes desse despertar da consciência de classe, os operários já sofriam com a opressão dos seus patrões e chefes. Uma mudança qualitativa ocorreu após anos e anos de opressão acumulada. No momento da curva decisiva, até mesmo uma pequena faísca pode inflamar o barril de pólvora do fermento. Por exemplo, o sistema de trabalho 996 (trabalho de 9 a.m. a 9 p.m., 6 dias por semana - ou 72 horas por semana) existe no sector de tecnologia desde 2016. O ressentimento com a crescente intensidade do trabalho, salários inadequados e direitos do trabalho desprotegidos, no entanto, incubou entretanto entre esses operários.

Essa situação chegou a um ponto de viragem em 2019, quando o magnata da tecnologia Jack Ma elogiou abertamente o sistema 996. Isso levou a uma reacção online maciça dirigida contra o próprio capitalismo.

A necessidade de liderança marxista

Como Marx e Engels explicaram: o capitalismo não pode deixar de dar à luz os seus próprios coveiros. A restauração do capitalismo na China proletarizou milhões de pessoas rurais e pressionou-as a encontrar melhores perspectivas como operários nas cidades, deixando-os amargamente decepcionados com mais miséria, trabalho e opressão. Mesmo entre aqueles que conseguem obter uma educação, em vez de estabilidade, encontram apenas empregos precários e horas de trabalho desumanas. É por isso que, apesar do bombardeamento implacável da propaganda estatal que afirma que a China é um país socialista próspero, uma camada crescente de operários e jovens reconhece esta sociedade pelo que ela é: uma sociedade capitalista que deve ser derrubada.

À medida que as contradições na sociedade chinesa se acumulam e mais e que cada vezmais greves ocorrem, novos ataques de luta maravilhosa e espontânea entrarão irão romper à superfície. Elas serão, sem dúvida, levadas a cabo activistas que querem transformar a sociedade de cima a baixo. Apesar do que muitos esquerdistas na China acreditam, lutas espontâneas em si não podem levar à vitória da classe operária e à revolução socialista (comunista – NdT).

A China é um país de 9,6 milhões de quilómetros quadrados, com uma população de 1,4 bilião e cerca de 900 milhões de operários. Isso só aumenta a probabilidade de que a explosão espontânea da luta se torne isolada. Quando os trabalhadores começarem a lutar, também enfrentarão um aparelho estatal extremamente centralizado, engenhoso e disciplinado com uma omnipresente rede de vigilância. (Como em todo o lado)

Uma liderança que ajude a ligar as lutas em toda a China é, portanto, necessária para garantir a vitória e permitir que os operários chineses realmente tomem conta da sociedade. Essa direcção só pode ser forjada construindo o seu próprio partido, que utilize a melhor ferramenta teórica do marxismo, com uma perspectiva internacionalista.


Fonte: Les Mingongs et la radicalisation de la classe ouvrière chinoise – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice


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