sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Determinações sociais da música como arte não figurativa

 


 12 de Novembro de 2021  Ysengrimus 

 

Jazz?
Jazz é
música instrumental para hippies que têm filhos...
Um amador de Rock anónimo, por volta de 1975

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YSENGRIMUS - Boa música. A mais moderna das artes antigas. A crise radical e permanente da conformidade na arte. ATENÇÃO ESTOU AQUI A FALAR EXCLUSIVAMENTE DE MÚSICA SEM PALAVRAS, À EXCLUSÃO DE QUALQUER EXERCÍCIO MUSICAL DE QUALQUER TIPO QUE INCORPORE TEXTO. COM EFEITO, AS ARTES MISTAS, FIGURATIVAS PELO REFERIDO TEXTO, CANTO E CANÇÃO ESTÃO EXCLUÍDAS DESTE COMENTÁRIO. É que, na seguinte palavra de Theodor Adorno: A emancipação da música, hoje, é sinónimo da sua emancipação da linguagem verbal e é isso que se faz na destruição do "significado" (Adorno 1962: 137), não hesito por um segundo para substituir hoje por todos os tempos porque acredito que este aforismo provém da definição fundamental da música como arte não figurativa.

Assim, quando colocamos a questão da influência da música (sem palavras, portanto) sobre os comportamentos, colocamo-la demasiado simplisticamente, demasiado superficialmente. Normalmente esquecemo-nos de um facto que permanece fulcral se quisermos embarcar neste tipo de reflexão. É o facto de a música ser a mais antiga das artes não figurativas. Isto implica estabilidade, mas também variações que decorrem do que a música faz muito mais do que aquilo que evoca ou "diz" (uma vez que não diz nada, não pinta nada, não imita nada, excepto a si própria). Por exemplo, no século passado, quando o Jazz é tocado no campo, há guitarra e banjo. Ele entra numa cidade portuária, a guitarra e o banjo desaparecem a favor da tuba e do piano. O Jazz deixou Nova Orleães e mudou-se para norte. A tuba desaparece e o clarinete é substituído por um saxofone. Além disso, para quem amava o saxofone, o clarinete soava "sul", o banjo soava "campo" sem estes instrumentos que alguma vez tentaram evocar o sul ou o campo como, digamos, uma pintura bucólica ou um poema pastoral.... Há uma influência auditiva, electiva, totalmente não figurativa entre os instrumentos, as linhas melódicas, as peças executadas e o grupo social que se apropria de uma nova moda musical. Compreender como esta influência se desenrola é algo muito complexo que deve ser evitado reduzido a comportamentos simplistas dos consumidores que são apaziguados num centro comercial. Acredito, com Sidney Finkelstein, que, numa base individual ou colectiva, alguém é influenciado pela música que ele por acaso influenciou a si mesmo em primeiro lugar. A versão mais simples desta ideia é que alguém mantenha uma atenção e ternura para a música que está perto dos sons da música que terão ouvido, por exemplo, na sua infância ou adolescência. Mas avançamos ainda mais com a ideia, propondo que o nosso tema se interesse pela música que terá obtido pela sua própria influência, durante a sua infância ou juventude. Observamos que existe uma correlação entre a música produzida numa sociedade e a sociedade que a produz. O compositor individual não tem autonomia criativa absoluta. Ele inevitavelmente expressa-se numa expressão específica, mesmo que por vezes seja beneficiado por uma originalidade radical que impulsiona a compreensão que a sua arte faz do desenvolvimento social. Na verdade, a música avança porque a sociedade avança. Tendo a mesma origem do processo social e constantemente impregnado com os seus vestígios, o que parece simples auto-movimento do material evolui na mesma direcção que a sociedade real, mesmo onde os dois movimentos se ignoram e lutam entre si. Por isso, o confronto do compositor com o material é também um confronto com a sociedade, precisamente na medida em que penetrou na obra e não se opõe à produção artística como elemento puramente externo e heterónimo, como consumidor ou opositor. (Adorno 1962: 45). Não alinho muito com a ideia de música ou arte como uma manifestação de um génio isolado e fixo. Mesmo os grandes artistas solitários como Thelonious Monk ou Anton Webern são apenas indicadores do facto de que a sociedade constrói do zero a solidão do artista, uma vez que coloca criminosos na prisão ou cronifica os doentes e os idosos. O conteúdo artístico do "génio" é uma pilha de realizações sociologicamente explicáveis. Todas as formas musicais, não apenas as do expressionismo, são conteúdos sedimentados. Neles sobrevive o que de outra forma seria esquecido e quem já não seria capaz de falar directamente. O que outrora procurou refúgio na forma permanece, anónimo, durante a vida desta. Formas de arte registam a história da humanidade com mais precisão do que documentos. Nenhum endurecimento da forma que não possa ser interpretado como uma negação da vida dura. Mas que a angústia do homem solitário se torna o cânone da linguagem das formas estéticas detecta algo do segredo da solidão. O rancor contra o individualismo tardio da arte é muito mesquinho, porque ignora a natureza social deste individualismo. "Discurso solitário" diz mais sobre a tendência social do que o discurso comunicativo. Ao insistir na solidão até ao clímax, Schönberg revelou o seu carácter social. (Adorno 1962: 53-54). Música (sem palavras) é sempre música de um espaço etno-cultural, um dispositivo geo-social, um tempo, uma geração (no sentido amplo do termo). Não é por acaso que, ao ouvi-la, vemos à nossa frente (e isto, sempre parasiticamente) as imagens reais (reminiscentes) ou fantasiadas (conotativas) destes lugares e, desta vez, a cinematografia sensorial em explosão que a música não significa, mas que evoca em suma metonimicamente, e como se implacavelmente.

Dito isto, há que salientar que uma certa imobilidade estratificada do produto artístico resulta do facto de grupos sociais estáveis estarem também interessados em música relativamente estável. Jazz, Rock, Pop, Dance, Rap, Country e música atonal, mesmo ao longo de duas ou três gerações, tendem a juntar-se aproximadamente aos mesmos segmentos sociológicos. Há mais estabilidade etno-cultural em tudo isto do que inicialmente imaginávamos. E mesmo o progresso ou regressões podem ser analisados como indicadores sociais, em última análise de (todos) estabilidade relativa. O conceito de forma musical dinâmica que domina a música ocidental desde a escola de Mannheim até à actual escola de Viena pressupõe precisamente um motivo mantido como idêntico e claramente desenhado, mesmo que seja infinitamente pequeno. A sua ocultação e variação constituem-se no único contraste com o que foi preservado idêntico na memória. A música só conhece o desenvolvimento na medida em que contém algo sólido, coagulado; A regressão de Stravinskian, que gostaria de voltar a uma fase mais precoce, precisamente por causa desta tendência, substitui a repetição do progresso (Adorno 1962: 170). Esta solidez que vai além das modas é então complicada pelo facto de a música ser um objecto comercial. Retenho-a plenamente, esta ideia mordaz da minha juventude, e vejo nela precisamente uma reedição, uma repetição, uma conformidade de formas que confirmam que a produção de um certo número de artistas de inspiração original tem ressonância sociológica suficiente para o comércio a aproveitar e a faça entrar numa dinâmica de repetição e falsos progressos que formam a implementação das modas enquanto adoçam e destroem o conteúdo artístico original. O termo comercialismo não deve, no entanto, ser aplicado ao desejo do músico de ser pago pelo seu trabalho, e pago proporcionalmente ao seu talento. Também não deve ser aplicado ao desejo do músico de jazz de usar a linguagem musical predominante do seu período e público. O passo do estatuto amador ou semi-amador para a maioria dos músicos de Nova Orleães para o estatuto de músico pago pelo seu trabalho e fazer dele uma profissão, foi um passo progressivo. O comercialismo deve restringir-se, como termo, ao que é realmente destrutivo na cultura: a tomada de posse de uma arte, neste caso a música popular, pelas empresas, e a ascensão dos negócios a uma força tão poderosa na produção musical que já não havia mercado livre para os músicos. Em vez de distribuir ao serviço do músico, a distribuição, onde o dinheiro foi investido, tornou-se a força dominante, ditando tanto a forma como o conteúdo da música. Tendia a forçar o músico a entrar no estatuto de artesão contratado, cujo trabalho não deveria suportar a sua própria individualidade, livre pensamento e exploração da arte, mas era para ser feito por ordem, para um padrão padronizado. [O termo comercialismo não deve, no entanto, aplicar-se ao facto de um músico querer ser pago pelo seu trabalho de acordo com o seu talento. O termo também não deve aplicar-se ao desejo do músico de Jazz de utilizar a linguagem musical com que o público do seu tempo está familiarizado. Os palcos da transicção do estatuto de músico amador ou semi-amador para o estatuto de artista remunerado que faz da música a sua profissão foram muito graduais para os músicos de New Orleans Jazz. A noção de comercialismo deve aplicar-se exclusivamente ao que é culturalmente destrutivo: o desvio de uma arte, neste caso a música popular, através do comércio e da emergência do comércio como tal poder dominante na produção musical que já não existe um mercado verdadeiramente livre para os músicos. A distribuição ao serviço dos músicos torna-se então distribuição de acordo com o local onde o dinheiro é investido. O comercialismo tornou-se um caso tão poderoso que dita a forma musical e o conteúdo. Isto obriga então o músico a limitar-se ao papel de um fabricante assalariado cujo produto musical já não expressa personalidade, livre pensamento, ou o desejo de exploração artística, mas uma submissão ordenada e servil a um modelo musical padronizado] (Finkelstein 1948: 103). Temos, portanto, uma síntese de sedimentos não figurativos, organizada em conjunto por um certo número de artistas líderes e, em seguida, complicações adicionais, depois disseminadas e gradualmente deterioradas através da estrutura de circulação e divertida e decorativa falsa perpetuação de canais comerciais. Jazz é uma arte da melodia. Grande parte desta melodia consiste em canções folclóricas retiradas das mais variadas fontes, reunidas no corpo geral do jazz, enquanto os espirituais levavam para si músicas de hinos e danças quadradas. No período de florescimento de New Orleans rag, blues e stomp jazz, novas melodias vieram de fontes frescas: antigas danças francesas que ainda faziam parte da música viva da cidade, canções crioulas, músicas e danças de minstrel, canções e danças de origem espanhola, marchas militares e desfiles, marchas fúnebres, espirituais e hinos, danças quadradas, até a música mock-oriental ouvida em vaudeville. O músico de jazz adorava melodia. Ambos improvisaram a sua própria melodia, e tocaram uma melodia familiar com profundo carinho, acrescentando apenas os sotaques e frases que qualquer bom artista, folk ou profissional, acrescenta a um trabalho que executa. [Jazz é uma arte da melodia. Uma parte significativa das melodias do Jazz são melodias folclóricas tiradas de uma miríade de fontes. Estas melodias foram agrupadas no corpus geral do Jazz, tal como as canções da igreja tinham agrupado hinos religiosos e danças da aldeia. Na era florescente de New Orleans Rag, Blues e Rhythmic Jazz, novas melodias surgiram de novas fontes: as velhas danças francesas ainda fazem parte da colecção musical viva da cidade, canções crioulas, músicas e danças de minstrel mostra números, canções e danças de origem espanhola, marchas militares e músicas de fanfarra, marchas fúnebres, canções de igreja, hinos religiosos, danças da aldeia, e até mesmo a música oriental de toc que podia ser ouvida em vaudevilles. O músico de jazz adorava melodias. Ele poderia improvisar a sua própria melodia ou tocar uma melodia bem conhecida, investindo-a com um profundo carinho, acrescentando-lhe apenas aquelas acentuações e frases que só o bom artista, artesão ou profissional, sabe incorporar na peça que executa" (Finkelstein 1948: 55). Diria que é, portanto, através daquilo a que Adorno chama o conteúdo sedimentado da música que devemos procurar os segmentos de actividade e relação com a vida que os diferentes grupos sociais estabelecem com a música. Aumentamos então as nossas hipóteses de pôr as mãos numa influência etno-cultural, no sentido forte, que é a mutualidade (sociedade – música, depois música – sociedade). Isto não se limita à prática humilde e comportamental de colocar música suave nas lojas para que as pessoas boas abrandem e comprem mais. Para além do comercialismo, é a origem sociocultural dos interesses musicais que temos de ter em conta. Essa origem sociocultural é também discriminatória. Não hesitemos em meditar sobre os dados mais prosaicos que lhe dizem respeito. Ainda hoje, mais de 72% dos filhos dos agricultores reportam ir a festivais, mas pouco mais de 10% frequentam os locais actuais da música pop. Por outro lado,as crianças cujo pai é gerente ou exerce uma profissão intelectual superior são as que vão com mais frequência a salas dedicadas à música pop atual (55,6% delas dizem que estiveram lá). Escusado será dizer que estes dados estatísticos também provêm do planeamento regional: as cenas de música pop contemporânea atingem principalmente um público urbano, onde a oferta de festivais é melhor distribuída nas regiões e é capaz de preocupar, por exemplo, os filhos dos agricultores que vivem longe das grandes cidades. (Fonte: "Comportamentos adolescentes face à música", Le Pole, Outubro de 2009). Bem, estás a ver onde quero chegar. Ouvimos a música que temos, esperamos até termos a música que ouvimos. O jazz e a música atonal dependem totalmente deste tipo de determinações geo-sociais e socio-históricas. Duvido muito que as escolas de pintura e escultura estejam sujeitas, por seu lado, a um dispositivo de distribuição tão demográfico. Preferências culinárias e de roupa, por outro lado, sim. É que a música, como a cozinha, a roupa e a perfumaria, é uma arte dos sentidos e há, sem dúvida, uma etnologia precisa da satisfação dos referidos sentidos...

Para se aproximar do que significa compreender os fundamentos sociais de uma arte popular, no sentido sociológico e etnológico do termo, nada como a música como objecto de análise. Como ela não representa (ao contrário do seu irmão mais novo, a única forma figurativa imaginável de expressão sonora: os efeitos sonoros), como ela não diz nada, não desenha nada, não conta nada, não argumenta nada, ela não está dependente de uma questão de conformidade descritiva ou narrativa para o mundo. Adorno faz uma analogia muito arriscada quando exclama: A pintura moderna afastou-se do figurativo, que nele marca a mesma ruptura que a atonalidade na música, e isso foi determinado pela defensiva contra a mercadoria artística mecanizada, sobretudo contra a fotografia. Originalmente, a música radical não reagia de outra forma contra a depravação comercial da expressão tradicional; foi a antítese da indústria cultural que invadiu o seu domínio. (Adorno 1962: 15). Ao afastar-se do figurativo, a pintura trocou o mundo objectivo empírico por um mundo de concretidade formal que brota dos impulsos exploratórios, automatista ou formalista, do pintor (e isso, e aqui eu secundo Adorno, como um confronto directo das artes fotográficas e cinematográficas). Por outro lado, ao afastar-se do tom, a música nunca virou as costas a isso... música que tocou antes dela! O que foi uma crise de representação figurativa na pintura foi apenas uma crise de conformidade melódica e rítmica na música. É que, finalmente um no outro, este suave produto altamente socio histórico que é a nota falsa (Adorno 1962: 47) não é novo. O po-po-po-pom da Quinta Sinfonia de Beethoven era quatro famoso pelo tenso e educado tímpano do público empoeirado e rígido público austríaco de 1808, se não para o nosso... para a música, a mais moderna das artes antigas, foi e continua a ser a crise radical e permanente da conformidade na arte.

Rara é a música que nunca deixa de ser o que era; que não estraga e não perde o que criou, mas que nutre o que acabou de trazer ao mundo, em mim.

Concluo que o verdadeiro conhecedor desta arte é necessariamente aquele a quem ele não sugere nada.

Paul Valéry, «Coisas mortas», em Tel quel, Folio essais, p. 14.


FONTES:

ADORNO, Theodor (1962), Philosophie de la nouvelle musique, Gallimard, Collection TEL, 222 p. Este livro é composto por dois ensaios. O primeiro, intitulado "Schönberg and Progress" (pp 41-142), estabelece uma correlacção entre a música atonal do século XX e a rejeição do pensamento filosófico positivo e conformista. O segundo "Stravinsky and the Restoration" (pp 145-220) explora a procura de autenticidade formalista que não se separa do legado dos antecessores, mas volta a ele e o re-trabalha. A reflexão de Adorno é interessante porque existe uma investigação filosófica muito avançada sobre a relação entre a música (sem palavras — embora neste ponto Adorno não seja muito rigoroso) e o pensamento fundamental, especialmente pensado em reflexão, subversão, rejeição do comercial e conformal, mas também de lógica, pureza e estrutura. A música associa-se a um sentimento de revolta e manifesta-a na sua expressão, sem a representar como um filme, uma narrativa ou uma imagem.

FINKELSTEIN, Sidney (1948), JAZZ: A people's music, International Publisher, New York, 180 p. Este livro oferece uma visão histórica da música folk americana, blues e jazz através das várias mudanças de estilos que este último experimentou no final do século XIX e ao longo do século XX: Dixie, Be-bop, Mainstream Jazz, Cool, Free Jazz, New Thing etc. A força deste trabalho reside no esforço constante para manter a relação entre o Jazz e a vida comum e as lutas pela emancipação de quem o interpreta. Entendemos que a música é uma emanação social que não só influencia comportamentos, pois antes de os influenciar, emana deles, sai deles e reflecte-os sociologicamente, historicamente, e não apenas individualmente. Há uma ligação indissolúvel entre a vida social de um povo e a música que tocam. E também, a música mais expressiva é, de facto, a de um povo que luta, que resiste, que luta pelo seu direito ao respeito e à vida.




 

Fonte: Des déterminations sociales de la musique comme art non-figuratif – les 7 du quebec


Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice





 

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