21 de Janeiro de
2023 Ysengrimus
Não
suporto este mundo
que
não entende nada sobre a minha dor...
(p. 134)
.
YSENGRIMUS
- Pelo seu primeiro trabalho em prosa (já lhe devemos uma colecção de
poesia intitulada Permanence de l'instant –
que fais-tu de ta vie?), Jeannine Pioger decidiu
confrontar-nos frontalmente com o drama absoluto. Vamos ficar, portanto,
íntimos com o acontecimento mais insuportável que pode acontecer a um ser
humano, o de perder um filho e isso, aliás, na sequência da decisão,
conscientemente tomada por esta criança, de tirar a própria vida. A autora
retira-se directamente da sua própria experiência, para nos imergir nesta lava
da vida que continua a coxear, mesmo após a morte do nosso menor direito de
reivindicar a mais ínfima das alegrias humanas. No entanto, continuamos com um pé na
sepultura com ele, e outro na vida com aqueles que permanecem (p. 136). Nem um pouco
óbvio.
O que emerge, neste doloroso, ardente exercício, mas mesmo assim altamente
meritório, é a oportunidade cardeal que nos foi dada aqui para acompanhar a
jornada de uma mulher madura (e fatalmente madura) que, depois de ter vivido,
pela ementa, este acontecimento insuportável que demoliria muitos outros,
recupera, reconstrói-se e gradualmente expiga a dor ardente, irritante, persistente,
lote diário do insuportável. Temos de continuar a viver. Na verdade, sempre senti profundamente
que, na tua memória, meu filho, tinha de me agarrar à vida. Era o que
certamente irias querer. Continuas a viver através de mim. Tornei-me um pouco a
criança que te prolonga nesta terra (p. 140). O que tentamos construir e
articular aqui é a transmissão de um entendimento e uma (re)definição da
própria autora, por si mesma. A obra, escrita em TU, é dirigida retoricamente ao seu
filho Alexandre. Mas, na realidade, a Janine está a dirigir-se a nós. Ela
conta-nos o que Janine se tornou, através deste drama, muito mais do que a
própria trajectória da personagem principal, Alexandre, que desapareceu aos 23
anos em 2001. A chave para a leitura, para uma adequada captura emocional e
intelectual deste livro, é a exigência de compreender o facto de que não
estamos aqui numa dinâmica de contacto com o suicídio, que continuará a ser um
ser em grande parte desconhecido, misterioso, poupado, mal compreendido, até
mesmo secreto. Não, estamos aqui em contacto com a sua mãe. Aquela que viu os
acontecimentos trágicos desenrolarem-se diante dela, à sua volta, nela... e os
sentiu a lavrar através da sua carne, desde a sã tempestade do parto até aos
gritos penetrantes de luto súbito. Fundamentalmente, sim, Janine permaneceu ela
própria, apesar da dor constante, que também permanece, resiste, e perpetua-se
para sempre, especialmente na forma difusa mas inefável de uma sensação
palpitante de fracasso.
Apesar deste sentimento subjacente e permanente de um certo fracasso na minha vida, o meu passado optimista mantém-me sempre vivo. A minha mãe, ao contrário do meu pai que caiu em depressão aos cinquenta e cinco anos de idade, estava bem disposta. Terei herdado este amor infalível pela vida? Aparentemente tu, Alexandre, sais ao teu avô materno. O problema é que tenho dificuldade em me colocar no lugar de alguém que está completamente desesperado, apesar de eu própria ter alguma ansiedade subjacente. Cheguei ao ponto em que tenho de me proteger de descer contigo (p. 102).
Tens de aguentar, continuar, cuidar de outras crianças, tu mesmo. O que nos
é revelado crucialmente neste livro aberto e intenso é o facto de, pais, não
nos podermos improvisar como terapeutas, tomando tudo sobre os nossos ombros.
Na sua modéstia lúcida, a autora faz-nos entender que quando se tem um filho
que sofre de um problema de saúde mental imparável e persistente, bem, tu tens
que procurar o apoio necessário, sem imaginar que podes jogar o demiurgo
parental, acreditando que podes cuidar de tudo sozinho. Hoje, sei que não se pode ser cuidador
de alguém com uma doença mental. Existem circunstâncias em que a hospitalização
é essencial, bem como cuidados sérios por um profissional de saúde (p. 109). A admissão é
franca, directa, amarga, mas serena mesmo assim. E diz-se, como os outros. A
escrita, muito pessoal, muito impressionista, é aqui sóbria, calma, firme, bem
configurada e claramente formulada. À medida que o lemos, instala-se uma
dinâmica de recordação. Uma recordação que é fatalmente fragmentada, por vezes
quase incompleta, mas acima de tudo, tranquilizada, como se estivesse acalmada.
A reminiscência é incontornavelmente dolorosa, sempre, ainda assim. Somos
convidados, sem cinismo, sem peso didáctico, sem frieza clínica, sem
exaustividade também, a refazer o caminho que foi a vida de Alexandre, através
dos olhos da sua mãe. É um exercício de subjectividade assumida. A gestão tensa
e tenaz da memória terna dos pais. A escrita, cursiva e introspectiva, como uma
reconstrução parcial de um mundo que procurará incessantemente compreender-se a
si próprio.
Hoje, 16 de Março de 2019, o Inverno nunca mais acaba, a neve voltou a invadir o meu espaço exterior. Continuo a tentar trazer-vos de volta à vida. Quando era criança, adorava a neve. Com as crianças mais novas, construiu fortes em frente da casa. Ou iria escavar a neve no ringue de patinagem público porque os municípios já não tinham orçamento para o fazer. Não precisava de vos dizer: "Vão brincar lá para fora". Nem nunca tive de vos dizer: "Levantem-se, vistam-se, tomem o pequeno-almoço para irem à escola". Fez tudo isto sozinho, desde a escola primária, ansioso por tirar partido do que a vida tinha para oferecer, e porque estava cheio de energia. É claro que teria adorado tanto este Inverno de 2018-2019. O que é que lhe foi feito? O que é que a sociedade lhe fez? Porque ficou doente, tão cheio de vida? (pp 41-42)
De facto, tomamos consciência do carácter intangível, indecifrável ou enigmático do que poderia ter levado este tipo de evento a tomar forma, insidiosamente, como que por acaso. Perguntamo-nos, incansavelmente, uma e outra vez, como poderíamos ter evitado que tal coisa acontecesse... e o que deveria ter feito... e deveria ter sabido... e deveria ter pensado nisso... e se, naquele dia, eu tinha... Todas estas questões estão inevitavelmente (omni)presentes. E central entre eles é a questão de toda a questão da presença masculina e a sua associação com a intervenção terapêutica, sobre um jovem que se afunda gradualmente na angústia.
Mais tarde, quando reconto estes acontecimentos, dou-me conta de que, mesmo nessa altura, as mulheres já tinham invadido a profissão médica. Até agora, só lidou com mulheres. Uma psiquiatra em Saint-Jérôme, uma clínica geral feminina e uma psiquiatra feminina no CHUM em Montreal, e também mulheres quando foi ao CLSC (centro de serviço comunitário local) logo no início. Talvez essa seja uma das razões pelas quais gostou tanto das reuniões de AA, onde pôde finalmente confiar nos homens (p. 95).
É importante analisar adequadamente esta descrição específica da situação de Alexandre. Isto não é para afirmar que as mulheres hipotecariam o sector da saúde impondo a sua presença naquele país. Não, não. A observação que aqui se faz, importante, sensível, é que a força das habilidades das mulheres, e mesmo o ardor do amor de uma mãe, não consegue visualizar um certo número de pontos cegos na escuridão do jovem em crise. Sejamos claros, o autor é muito respeitoso e admirador do sistema de saúde e das mulheres que nele trabalham. Também tive um pensamento terno para a minha mãe, venerável enfermeira nightingale quase centenária, que faleceu em 2015, quando reiterei abertamente, por Janine, que aqui no Quebec, sempre tive muita confiança nos enfermeiros. Além disso, não foi uma enfermeira que facilitou o seu nascimento? Têm um treino muito avançado e excelente. Os seus conselhos são geralmente sólidos. Demoram tempo a ouvir, aconselhar e explicar (pp 70-71). O problema aqui não é que haja falta de competência... mas que apesar de tudo exista uma fraqueza sistémica do ângulo de observação e intervenção terapêutica. Com efeito, a questão que está a ser levantada aqui é a do suicídio dos jovens. A questão da interrupção das suas vidas, na juventude precoce (ou mesmo mais tarde). Uma questão complexa, fatalmente subtil, difícil, e que não será necessariamente resolvida escrevendo ou lendo este trabalho, O referido trabalho funciona muito mais como um testemunho, como uma evocação que manifesta uma preocupação para fazer sentir que este problema está fortemente presente e que é dotado de uma delicada carga dialéctica. Além disso, a autora até nos aponta, a certa altura do seu desenvolvimento, que a interrupção de uma vida não é necessariamente uma coisa repreensível... no absoluto ou no abstracto.
Mas
porquê estar tão empenhado em manter vivos os idosos que viveram as suas vidas
e que, sofrendo, anseiam pelo descanso eterno. Já li que entre o povo
aborígene, os idosos, quando sentem que se tornaram inúteis e um fardo para os
outros, vão para a floresta e deixam-se morrer. Divago um pouco, mas esta
questão candente da morte assistida dos idosos está actualmente na ordem do
dia, e aqui estão os meus pensamentos sobre ela, especialmente a partir da
minha própria experiência (p. 96).
Só para
os idosos? Vejamos... Oh!acionalidade dialética, quando nos prendes ao corpo... Seja
como for, esta delicada questão da aprovação, seja ou não circunscrita na
idade, da ajuda na morte, o facto é que o encontro que temos aqui, o encontro
extraordinário que se realiza, é que com a descoberta amigável do
restabelecimento de uma racionalidade, precisamente. Esta mulher, portanto, que
foi devastada por este terrível acontecimento, recompõe-se, reconstrói-se,
baixa os seus marcadores, e volta a pôr em prática um sistema coerente de
existência e conhecimento. É preciso o golpe, mobilizando as virtudes
implícitas da visão a posteriori. Reconfigura-se e redefine-se a si própria.
Consegue mesmo distanciar-se, entre outras coisas, de um património religioso
tradicional. Sem amargura, mas também sem complacência, um filósofo no sentido
mais forte do termo, Janine julga, com toda a serenidade, que o estabelecimento
de uma distância etnocultural e geracional, sobre certas questões fundamentais,
é necessário.
Todo
este mundo de sacerdotes e possuídos lutando uns contra os outros. Mas eu não
acredito em Satanás. Esse era o mundo da religião, onde cresci quando era
criança. Nessa altura, quando eu tinha sete ou oito anos, já sonhava que o
diabo tinha ateado fogo à minha cama. Tenho-me afastado gradualmente destas
crenças desde a minha adolescência. Já não corresponde a nada, esta mitologia
criada pela imaginação para tentar explicar o mistério da vida, do mal e do
bem, do homem, na terra (p. 58).
Para além das crenças de uns e de outros, o ensaio À toi, Alexandre,
desafia-nos de forma crucial, fundamentalmente. Arado através de nós. A sua
leitura, necessariamente desagradável, necessariamente perturbadora, obriga-nos
a colocar a nós próprios questões fundamentais. E quanto a mim? E os meus
filhos? E a minha opinião sobre eles? Como homem com dois filhos, tenho uma
pequena mas importante observação para os leitores masculinos desta obra de choque.
Cavalheiros, a fim de compreender plenamente o que se passa entre estas
páginas, precisamos de fazer um esforço para feminizar os nossos espaços
mentais. E, tal como li, eu fiz. Tornei-me, como se de repente, empático,
preocupado, pensativo, circunspecto, autocrítico. Disse a mim mesmo que não
devia tomar nada por garantido, especialmente na vida dos meus dois jovens
adultos. Assim, depois de ler este livro, escrevi uma nota a cada um dos meus
filhos, apenas para verificar, apenas um pouco, através da mais pequena das
lentes, se tudo estava a correr bem. Sim, Janine, tu... tu fazes-nos
compreender, quando tens filhos adultos, não deves constantemente tomar nada
por garantido. É preciso ter a modéstia de não se pensar misteriosamente imune
ao indizível. Devemos sempre colocar-nos a mesma questão. Está tudo bem? Há
alguma coisa que eu possa fazer? Mesmo se é tão pouco e se é um acto que não
será feito por um profissional que sabe o que fazer... mas por um pai amoroso
que adivinha, tateando, como se compulsivamente, o que deve ser para os seus
filhos, para sempre.
Alexandre, o que devemos sobretudo dizer a nós próprios, ao conhecê-lo, no
seu pequeno manto de tinta e papel, é que o drama terrível vivido pela sua mãe
também se tornou algo como uma lição de vida. E por isso, não é realmente a si
que deve ser agradecido. Mas a pessoa que teve a coragem fria e a generosidade
ardente para ocupar a caneta. O livro abre com um prefácio de Jean-Pierre
Bouvier (pp 5-7). É completado por sete fotografias a preto e branco (pp
83-89), um apêndice do autor intitulado Reflexões sobre Suicídio (pp 157-161),
agradecimentos (p. 162), vinte e duas notas finais (p. 163) e uma bibliografia
de dezasseis títulos (pp 165-166). A ilustração da capa é de Christiane
Pelletier.
Janine Pioger, À toi, Alexandre,
Saint-Narcisse, Éditions du wampum, coll. Ensaio, 2022, 167 p.
Fonte: À TOI, ALEXANDRE (Janine Pioger) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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