sexta-feira, 16 de julho de 2021

Um jantar com chineses

 


 16 de Julho de 2021  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — A moda político-jornalística é atacar a China nos dias de hoje. China aqui, China ali. Brinquedos mal pintados: China. Caos em África: China. Dalai Lama que decepciona: China. Capitalismo desenfreado, leite contaminado e poluição desenfreada: China. Flutuações nos preços, moedas fortes e preços por litro: China novamente! Não é mais a culpa do Outro hoje em dia, é culpa da China... Então, para não ficar para trás da maioria da população do meu doce planeta, jantei na outra noite com chineses da China continental. Chineses de Xangai, muito empíricos como você e eu, e que também falavam excelente francês. Cinco homens e uma mulher. Comemos ravióli (que, contra toda a crença, é um prato chinês) que eles tinham cozido pacientemente. Comemos com pauzinhos seria de esperar, e tivemos a oportunidade de torpedear alguns lugares comuns culturais. A língua principal da China, o chinês pequinês ou chinês padrão, não se chama  mandarim. Os desportos mais populares na China são vólei e o pingue-pongue. O basquete está a tornar-se cada vez mais popular e, sim, eles fazem kung fu. Eles também correm. O pensamento maozedong é extremamente conhecido e respeitado por essas pessoas. A memória de Zao Ziang também ainda está presente nas suas memórias. Eles acreditam que ele era um líder confiável. Eles não sabem nada sobre o budismo. O confucionismo não é uma religião, mas uma bateria de regras morais que podem ser usadas (ou não) para fins de ética pessoal. Eles vêem a história contemporânea de um ângulo completamente diferente do nosso. Assim, por exemplo, eles consideram que a invasão do Afeganistão pelos soviéticos em 1979 deveria ser analisada principalmente como uma manobra na época do cerco da China por países pró-soviéticos: Vietname, Coreia do Norte, Mongólia Exterior, Afeganistão, Índia. Desde então, a China viu dissolver as qualidades e os perigos de tal cerco. Desnecessário dizer que, historicamente, os britânicos e os americanos não interferiram de facto no que se está a assistir em Hong Kong (questão agora resolvida), Taiwan (questão que está a ser resolvida) e Tibete (um falso problema). Os tempos mudam, é claro. Mas os meus companheiros de refeição têm memória histórica. Eles explicaram-me as coisas, com toda a simplicidade. Por exemplo, você já se questionou sobre o que é que significam essas estrelas na bandeira da China?  De acordo com o simbolismo oficial, a grande estrela simbolizou inicialmente o farol do Partido Comunista em torno do qual a chama das quatro principais classes sociais chinesas (representadas por uma das pequenas estrelas) se reúne: camponeses, trabalhadores, a "pequena burguesia" e os "capitalistas patrióticos"... Obviamente, são estes últimos que vão dever que fazer um esforço pela nação nestes tempos... e por que não...

Quando souberam que eu era canadense, a primeira pergunta que fizeram foi: "Você conhece Norman Bethune?" Diante da minha resposta, que foi tão afirmativa quanto entusiasmada, eles estavam interessados num ponto subtil da história canadense, perguntando-me a natureza e o peso do papel de Trudeau na ascensão e declínio da questão da independência do Quebec. Quando fiquei surpreso com o conhecimento deles da história canadense, um deles disse: "Oh, o que sabemos sobre isso, nem todos os chineses sabem. Os agricultores aqui do nosso país não sabem disso." Com estas palavras, a jovem olhou para o seu compatriota com um olhar ternamente severo e disse-lhe:"Não devemos troçar dos camponeses. Se aprendemos tanto é por causa do trabalho deles." O primeiro retorquiu que não estava a troçar e disse à jovem que ela estava certa. Todos os outros concordaram.

Um dos destaques da refeição foi quando Kan se virou para mim e me perguntou, num tom meio gozão, meio sério: "E Mao, o que é que você acha? Você deve acreditar que ele é um louco, como Khomeini? Apressei-me a responder que não, que eu tinha lido e meditado com grande interesse os textos fundamentais de Mao Tsé-Tung, como Prática Contradição e que, além do fenómeno das modas passageiras vivenciadas pelo pensamento de Mao Tsé-Tung num determinado momento no Ocidente, permaneceu uma acção e uma visão a ser classificada entre as mais decisivas do século anterior. Eles não disseram mais uma palavra e observaram-me com muita atenção. Mesmo o mais velho deles, que parecia um pouco com um homem sábio, tinha parado de mastigar o seu ravióli. Então comecei a listar em francês os títulos dos textos de Mao Tsé-Tung que eu tinha lido: Falar sobre Literatura e Arte. O rosto da jovem iluminou-se. Os seus olhos brilhavam, ela traduziu o título para chinês, que ela havia reconhecido. Contra o Culto do Livro, foi Kan quem traduziu o título para chinês. Os rostos alegraram-se, e o sábio velho começou a mastigar o seu ravióli novamente. Então chegamos à sopa (que os chineses bebem num copo ou numa taça após a refeição) e eles explicaram-me que estavam a aprender na escola todos os escritos de Mao Tsé-Tung, que eles consideraram que os seus melhores trabalhos eram de antes de 1959 e que depois ele havia cometido erros. Sobre os quarenta anos do movimento do Maio de 68, eles gozaram muito copiosamente dos ocidentais que o qualificaram peremptoriamente de maoísmo (termo que lhes parecia ser de um ridículo consumado), e disseram-me que, na verdade, o pensamento Maozedong não era realmente conhecido no Ocidente. Concordei com eles, dizendo que via duas razões para isso: o facto de Mao Tsé-Tung ter sido lido traduzido e não no texto e o facto de que ele tinha sido importado para sociedades ignorantes do contexto histórico chinês. Foi então que a coisa mais curiosa de toda a refeição aconteceu... Eu continuei: "Por outro lado, o que eu realmente gosto nos textos de Mao Tsé-Tung é que a sua apresentação é sempre extremamente educativa e clara. Tanto que acabamos apesar de tudo, mesmo quando somos ocidentais, por encontrar o nosso caminho nos nossos debates contra a linha errônea de Li Li San e em..."à palavra  Li Li San, todos os cinco estouraram com a mesma risada e começaram a olhar para mim como se eu tivesse acabado de cair do planeta Marte. O mais novo deles exclamou: "Você conhece Li Li San?" Eu respondi, um pouco pensativo: "Bem, não, não realmente, mas quando lemos Mao Tsé-Tung aprendemos necessariamente sobre os debates dentro do partido entre as diferentes tendências. Agora, em algum momento, nos anos trinta, eu acho, ele denuncia a linha errônea de Li Li San. Nova explosão de riso surpreso e incrédulo. Eles não podiam acreditar que eu sabia o nome de um dos antigos líderes do P.C.C. Por isso, senti-me obrigado a fazer um pequeno esclarecimento:"Acima de tudo, não concluam que as massas canadenses estão intimamente familiarizadas com o pensamento de Maozedong. O que estou aqui a dizer, os camponeses do nosso país... não sabem!

Além disso, de facto, o que sabemos tanto sobre... China, China, China, China?

Comemos ravióli, que eles prepararam pacientemente, com pauzinhos, é claro ...

 

Fonte: D’un souper avec des chinois – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice


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