«Israel Files»: a investigação que revela a interferência israelita nos
tribunais estrangeiros
Resta saber se um Estado está perfeitamente consciente de estar a
violar as regras do direito internacional e está determinado a garantir a sua
impunidade.
Israel colocou-se essa questão em 2009, quando Benyamin Netanyahu iniciou o seu segundo mandato com uma agenda muito clara: ampliar a colonização dos territórios palestinianos e a fragmentação da Cisjordânia, a fim de enterrar, a longo prazo, qualquer perspectiva de criação de um Estado palestiniano.
Israel temia então que a benevolência internacional de que beneficiava diminuísse à medida que as suas violações dos direitos humanos fossem expostas. Particularmente desde a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e com vários Estados europeus a começarem a instruir queixas com base na competência universal – que permite aos tribunais estrangeiros julgar crimes graves cometidos no estrangeiro –, a perspectiva de responsáveis israelitas serem detidos no estrangeiro torna-se concreta.
A investigação conduzida pela
Mediapart em colaboração com a rede European Investigative Collaborations (EIC)
destaca os recursos consideráveis investidos pelo governo israelita para
garantir a impunidade de seus líderes.
Uma fuga de mais de 2 milhões
de e-mails internos do Ministério da Justiça israelita, trocados entre 2009 e a
Primavera de 2023, revela a estratégia multifacetada do Estado hebraico para
instrumentalizar o direito e conduzir o que denomina de «guerra jurídica» contra aqueles que tentam combater os crimes
israelitas perante a justiça.
© Ilustração Simon Toupet
/ Mediapart com AFP
Um
departamento dedicado, o de «assuntos especiais», foi criado em 2010 e colocado
sob a autoridade de um antigo jurista militar, anteriormente encarregado de
elaborar argumentos jurídicos para justificar as execuções extrajudiciais do
exército. A missão oficial do departamento é «gerir
todas as questões relacionadas com os processos judiciais internacionais [...]
decorrentes das ações do Estado».
Impedir processos judiciais
por porte de armas
Parte das suas missões consistia em avaliar os riscos de
detenção quando responsáveis militares ou civis israelitas viajavam para o
estrangeiro. Em vários casos, o departamento de assuntos especiais conseguiu
que personalidades políticas de primeiro plano, possivelmente sob
mandados de detenção ou suscetíveis de serem interrogadas por crimes de guerra,
cancelassem as suas viagens a países europeus.
Num
documento confidencial datado de 2020 e relatando as suas realizações, o
departamento de assuntos especiais afirma ter «transformado irrevogavelmente a forma como Israel lida com os desafios
colocados pela “guerra jurídica” e [...] várias realizações profissionais excepcionais»,
tais como «o encerramento de dezenas de
processos penais e civis em todo o mundo contra o Estado e os seus altos
responsáveis».
Na verdade, a maior parte do
trabalho do departamento foi feito nos bastidores: em várias ocasiões, o
departamento interveio para influenciar o curso de processos penais instaurados
em tribunais ocidentais contra empresas fornecedoras do exército israelita ou
processadas pelas suas actividades na Cisjordânia.
Em 2018, por exemplo, o
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) foi chamado a pronunciar-se sobre
a legalidade de um decreto do Ministério da Economia francês que determinava
que os produtos importados das colónias israelitas deveriam ser rotulados como
tal.
Avaliando o risco de um caso
local se transformar em jurisprudência europeia, o departamento especial entrou
em acção para pressionar o viticultor israelita Psagot, autor do pedido, a
retirar a sua queixa. «O simples risco de
que uma decisão prejudicial sobre questões-chave do direito internacional seja
proferida pelo TJUE no momento em que Israel tenta impedir a eventual abertura
de uma investigação pelo Tribunal Penal Internacional sobre este assunto
específico é extremamente preocupante para o governo israelita», argumentou
o departamento em Setembro de 2019, dois meses antes de o TJUE proferir a sua
decisão.
Pressões sobre os tribunais
espanhol e holandês
Os documentos internos do
governo israelita também mostram que os ministérios da Justiça, dos Negócios
Estrangeiros e do Comércio concordaram em solicitar aos «países amigos» de Israel na União Europeia que apresentassem ao
TJUE um parecer favorável ao Estado hebreu.
Essas pressões e tentativas de
interferência foram ocultadas, provavelmente violando a lei israelita, e
permitiram, por exemplo, que fosse arquivado um processo contra a empresa
holandesa Riwal, envolvida na construção do muro de separação na Cisjordânia.
Em Espanha, os esforços de
lobbying do departamento de assuntos especiais contribuíram, em 2009, para o
arquivamento de um processo penal em que o então ministro da Defesa, Binyamin
Ben-Eliezer, e seis oficiais superiores do exército eram acusados do
assassinato de catorze civis em Gaza, entre os quais várias crianças e bebés.
O departamento de assuntos
especiais também foi muito activo na protecção de soldados bi-nacionais que
servem no exército israelita, mobilizando dezenas de milhões de euros em
honorários de advogados – na Espanha, Bélgica, Alemanha, França, Estados Unidos
e África do Sul, entre outros.
Trabalhando em estreita
colaboração com a unidade militar responsável por garantir a conformidade com o
direito internacional, o departamento também teve a missão de desenvolver
argumentos jurídicos para encobrir as acções do exército israelita.
Dez anos ganhos no TPI
Entre os sucessos mais notáveis
reivindicados pelo departamento especial está o de ter adiado durante dez anos
a abertura de uma investigação do Tribunal Penal Internacional por crimes de
guerra cometidos em território palestiniano. Após a operação militar «Chumbo
Fundido», que causou a morte de mais de 1400 habitantes de Gaza no Inverno de
2008-2009, a Autoridade Palestiniana solicitou ao TPI que abrisse uma
investigação. Em 2015, após o procurador ter anunciado a abertura de uma
investigação preliminar, Benyamin Netanyahu autorizou «a abertura de um diálogo discreto com o gabinete do procurador»
para contestar a competência do tribunal.
O departamento de assuntos
especiais desempenhou um papel central neste diálogo. Nos seus relatórios
anuais de actividades, ele orgulha-se de ter «mantido uma presença constante em Haia, identificado os centros de
poder dentro do gabinete do procurador e estabelecido laços com
personalidades-chave». O seu director, Roy Schondorf, visitou pelo menos
duas vezes a sede do TPI em 2015 e 2018 para se reunir com um membro do
gabinete do procurador.
Após várias reviravoltas, o TPI
acabou por abrir uma investigação em 2021 sobre os crimes cometidos nos
territórios palestinianos desde 2014. O departamento de assuntos especiais não
conseguiu totalmente atingir os seus objectivos, mas considera ter conseguido
ganhar um tempo precioso. O seu lobbying «contribuiu
amplamente para que Israel conseguisse adiar durante uma década a decisão do
gabinete do procurador de abrir uma investigação sobre o conflito
israelo-palestiniano», pode-se ler num relatório de actividades
confidencial. Contactado pelo Mediapart, o TPI não respondeu ao nosso pedido de
entrevista.
Eu pensava estar a negociar com
um advogado que representava uma empresa holandesa, quando, na realidade, ele
estava sob o controlo de Israel.
Liesbeth Zegveld, advogada
A justiça internacional não foi
o único alvo do departamento de assuntos especiais. Este também se intrometeu
em processos judiciais de vários países europeus. Em 2017, foi apresentada uma
queixa nos Países Baixos contra a empresa Four Winds, um grupo holandês que
fornece cães ao exército israelita.
Em 2014, um desses animais
atacou Hamzeh Abu Hashem, um palestiniano de 16 anos, ferindo-o na perna e no
ombro. A sua advogada, Liesbeth Zegveld, exigiu uma indemnização, mas também
solicitou a proibição da Four Winds de exportar cães para Israel. Isto é
impensável para as autoridades israelitas, que farão tudo para evitar um
processo judicial.
O Ministério da Justiça
israelita encarrega Robbert de Bree, um advogado holandês, de assistir a
empresa, que por sua vez é obrigada a manter em segredo a ajuda prestada por
Israel. Quando aborda Liesbeth Zegveld, Robbert de Bree não diz que, além dos
interesses da Four Winds, defende também os do Estado israelita.
Desde 7 de Outubro, o que
aconteceu ao departamento de assuntos especiais?
Os últimos e-mails
confidenciais em que se baseiam os «Israel Files» datam da Primavera de 2023,
quando Israel foi abalado por manifestações massivas que denunciavam os ataques
sem precedentes do governo Netanyahu contra o Estado de direito. A ascensão da
extrema direita supremacista e a intensificação da política colonial são uma
fonte recorrente de preocupação nas correspondências.
O pessoal do Ministério da
Justiça, bem como os advogados estrangeiros que trabalham para Israel,
expressam uma angústia manifesta nas comunicações internas. No entanto, não há
qualquer reflexão sobre a forma como os seus próprios esforços contribuíram
para reforçar as forças políticas que agora se voltam contra eles.
Os ataques de 7 de Outubro de
2023 e a guerra genocida que o exército israelita travou em Gaza desencadearam
uma vaga de processos judiciais e reforçaram o papel central do departamento no
aparelho estatal israelita. Paralelamente, o flagrante desrespeito do exército
israelita pelo direito internacional e o fracasso total dos tribunais militares
em julgar mesmo os casos mais evidentes de crimes de guerra contrastam com as
recomendações do departamento antes de 2023, até então preocupado em dar a
impressão ao exterior de que Israel era capaz de punir os excessos do seu
exército.
No entanto, a direcção do
departamento de assuntos especiais continua a defender vigorosamente a
legalidade da conduta de Israel.
Acreditando estar a negociar
directamente com a empresa holandesa, a advogada do jovem palestiniano aceita
assinar um acordo: uma indemnização de 20 000 euros em troca do abandono do
processo. O que ela não sabe é que o montante não foi realmente pago pela Four
Winds, mas secretamente pago pelo governo israelita. Nesse acordo, já não se
fala em proibir a Four Winds de fornecer cães ao exército israelita.
«Pensava estar a negociar com um advogado que representava uma
empresa holandesa, quando, na realidade, ele estava sob o controlo de Israel»,
indigna-se hoje Liesbeth Zegveld ao NRC, o nosso parceiro holandês, membro da
EIC. Também contactado, Robbert de Bree garante respeitar «todas as obrigações legais e éticas no [seu] trabalho» e nunca ter
«pretendido representar um cliente
quando, na realidade, se tratava de [outro] terceiro».
Questionado de forma precisa
pelo Mediapart e seus parceiros sobre todos os elementos abordados nesta
investigação, o Ministério da Justiça israelita acusou a recepção das nossas
perguntas, mas não lhes deu seguimento. Em Israel, uma lei impõe o silêncio aos
meios de comunicação nacionais e proíbe-os de mencionar o conteúdo da fuga de
dados em que se baseia esta investigação.
Yunnes Abzouz, Samia Dechir e Yossi Bartal
Caixa
negra
A
investigação «Israel Files», conduzida por oito meios de comunicação
internacionais coordenados pela rede European Investigative Collaborations
(EIC), baseia-se em documentos confidenciais disponibilizados pelo site sem
fins lucrativos Distributed Denial of Secrets (DDoS).
Ela revela o papel de um
departamento criado especialmente em 2010 pelo governo israelita para conduzir
a sua «guerra jurídica» no exterior,
a um custo de dezenas de milhões de euros. O objectivo: defender os interesses
de Israel e impedir processos judiciais no exterior.
Além do Mediapart, os meios de
comunicação que participaram na operação «Israel Files» são o NRC (Países
Baixos), Le Soir (Bélgica), VG
(Noruega), Expresso (Portugal), InfoLibre (Espanha), Reporters United (Grécia),
todos membros do EIC, bem como o WOZ (Suíça).
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Se tiver informações para nos
comunicar, pode contactar-nos através do endereço enquete@mediapart.fr.
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Este artigo foi traduzido para
Língua Portuguesa por Luis Júdice


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