sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

NOTAS SOBRE A DEMOCRACIA

 


Notas sobre a Democracia

Falar de democracia é falar de um dos princípios centrais do modelo capitalista de produção, sendo um lugar tão comum e sólido que a crítica a ela é alvo de controvérsia mesmo no meio radical, onde é, nos melhores dos casos, uma posição minoritária e contra a corrente, dado que geralmente há uma visão da democracia como algo diferente do Estado, como uma forma a-histórica de administrar os assuntos colectivos da maneira mais harmoniosa e pacífica, e também a mais respeitosa à liberdade e autonomia individuais. Para nós, ao contrário, a democracia é a forma necessária de organização política de uma sociedade organizada em torno da mercadoria. As relações sociais de mercadoria implicam ao mesmo tempo uma igualdade formal entre os seus membros e um contraste, um antagonismo permanente entre eles: assim, longe de ser pacífica e garantidora da autonomia individual, a democracia é o caminho de organizar uma guerra de todos contra todos, na qual o único árbitro possível é o Leviatã. É por isso que a democracia, produto das relações de mercado, morrerá junto com eles.

Mas, bem, vale a pena começar com uma pergunta: o que é democracia? A própria etimologia do termo dá-nos um vislumbre do seu carácter: o poder do povo. O termo pessoas, assim como o próprio termo democracia, visa, com o seu caráter unificador, diluir as contradições que existem em todas as sociedades de classes, tanto na grega, que foi a que a gerou – a propriedade de escravos – quanto na sociedade capitalista actual. Como a nossa corrente historicamente sustentou, e como Jacques Camatte explica em A Mistificação Democrática:

Democracia implica, portanto, a existência de indivíduos, classes e do Estado; É por isso que a democracia é ao mesmo tempo um modo de governo, um modo de dominação de classe e o mecanismo de união e conciliação. […] Nos nossos dias, o processo económico levou à socialização da produção e dos homens. A política, ao contrário, tende a dividi-los, mantendo-os como simples superfícies de troca por capital. (Mistificação Democrática, tese 5).

No capitalismo, a produção está destinada a mercadorias. Mas as commodities, como Marx nos lembra, não vão ao mercado sozinhas. Todos os membros da sociedade são proprietários isolados de commodities que se relacionam entre si através do mercado. Como todos são proprietários na mesma função, todos devem ser legalmente iguais. E ainda assim, os seus interesses estão em conflito: o vendedor compete com outros vendedores para colocar a sua mercadoria no comprador e estabelece uma relação com o comprador que é ao mesmo tempo complementar (cada um precisa do outro) e antagónica (cada um precisa tirar o máximo do outro). Assim, o capitalismo é um agregado social de átomos iguais e opostos que estão relacionados entre si pelo mercado e seu garantidor legal, o Estado.

Isso é transferido para a realidade concreta de duas maneiras. Do lado da classe dominante, implica uma competição permanente entre capitalistas individuais, entre facções da burguesia e entre nações entre si. Do lado da relação entre classes, como explicamos no texto sobre a lei, o proletário é mais um dono que vai ao mercado para colocar a sua mercadoria, a única que possui: a sua força de trabalho. Como proprietário, ele é legalmente igual ao seu comprador, o capitalista, e assinará um contrato de trabalho com ele no qual a força de trabalho em mercadoria será trocada por salários. Com essa assinatura, a forma específica de exploração no capitalismo é sancionada. Em modos anteriores de produção, a exploração de classe ocorria através de coerção extra-económica: o escravo era forçado a trabalhar com chicotes, o servo era obrigado a dar uma parte da sua colheita. No capitalismo, a coerção é interna, económica: o proletário vende livremente a única mercadoria que possui para obter dinheiro com o qual tem acesso às restantes mercadorias no mercado e conseguir sobreviver. Dessa forma, a igualdade formal da lei é o veículo necessário para reproduzir a desigualdade real do capitalismo.

A democracia é, portanto, a articulação política mais apropriada para uma sociedade de átomos livres, iguais e opostos. É o ser social do capital, a desconfiança organizada, a forma de gerir antagonismos de classe e átomos sociais na guerra de todos contra tudo o que a competição capitalista provoca. A soma das vontades individuais em maiorias e minorias, a consulta recorrente para garantir a representatividade dessas vontades conflitantes, as regulamentações abstractas para impedir que alguns imponham a outros, o equilíbrio de poderes, tudo isso é o aparelho necessário para que esta guerra hobbesiana possa ser produzida por outros meios menos desestabilizadores para a administração do Estado.

Implícita nessa concepção está, é claro, a naturalização da mercadoria e de tudo que lhe é intrínseco. Para que tal organização política aconteça, é necessário fazer uma cisão que não era conhecida antes do capitalismo: aquela que separa a economia – a esfera dos interesses conflitantes – da política – onde todos somos livres e iguais. Criticamos noutras ocasiões a ideia típica da esquerda do capital do Estado como uma entidade neutra, que poderia ser bem tomada e gerida se essa tarefa fosse realizada pelas pessoas certas (seja o PC da época ou a camarilha universitária esclarecida que formou o Podemos). Essa concepção traz consigo outra concepção, que é a que estamos a tratar aqui: que a produção de mercadorias pode ser gerida de forma a beneficiar toda a sociedade. Isso é o mesmo que assumir que o modo de produção capitalista é de alguma forma neutro, que o Estado seria a personificação do interesse da sociedade como um todo — e não do interesse da mercadoria — e que todos somos iguais — além da igualdade formal da lei — nele. A lei e a política permitem, graças à sua abstracção acima dos elementos concretos da sociedade, ser reconhecidas como entidades neutras que cuidam do interesse geral – que não é outro senão o da mercadoria – mesmo que isso signifique ir contra um capitalista específico. O céu da política, portanto, brilha sobre o despotismo da fábrica, e isso permite-nos entender como o capitalismo gera desigualdade – material – a partir da igualdade que o caracteriza – a democracia formal – sendo a democracia uma expressão notável disso. Na democracia, assim como na lei, não existem classes sociais, cada voto tem exactamente a mesma validade, independentemente de ser o de Amancio Ortega ou o do mendigo que dorme numa caixa electrónica.

A nossa rejeição da democracia não é uma posição a priori, assim como a sua adoção como princípio pela burguesia com base num suposto livre-arbítrio, que não seria nada além da vontade das próprias coisas, expressa da soberania individual à nacional. O início de Bordiga no seu discurso Sobre a Questão do Parlamentarismo (do Segundo Congresso da Internacional) é ilustrativo:

Camaradas! A facção de esquerda do Partido Socialista Italiano é anti-parlamentar por razões que não dizem respeito apenas à Itália, mas são de natureza geral. Isso é uma discussão de princípio? Não, aliás. Em princípio, todos somos anti-parlamentares, pois rejeitamos o parlamentarismo como meio de emancipação do proletariado e como forma política do Estado proletário. Anarquistas são anti-parlamentaristas por princípio, pois declaram-se contra qualquer delegação de poder de um indivíduo para outro; Da mesma forma, os sindicalistas, que são opositores da acção política do partido e que têm uma concepção completamente diferente do processo de emancipação proletária. Quanto a nós, o nosso anti-parlamentarismo está ligado à crítica marxista da democracia burguesa.

Esse apriorismo idealista é o passo necessário para a mistificação da democracia, elevada ao nível de princípio, perdendo de vista a sua condição como corpo coordenador no conjunto de relações sociais que compõem o sistema capitalista. Nossa posição de rejeição, como todas as que dizem respeito ao programa revolucionário, não é – ao contrário da burguesia – uma questão de formas organizacionais (de política), como Bordiga já disse, mas de conteúdo[1].

Assim como a produção não é neutra, a sua gestão também não pode sê-lo. Portanto, a democracia é orientada, tem um determinado interesse, que, naturalmente, transcende a vontade daqueles que nela participam (que pode muito bem ser revolucionária, não entramos em julgar isso). Quando a esquerda do capital critica o nosso abstencionismo por ser uma posição «privilegiada», não podemos deixar de ver o privilégio daqueles que nos criticam, que é o privilégio de estar representado nalguma das facções que participam na direcção do Estado e disputam o seu controlo (que, pelo que ficou dito, são necessariamente burguesas). A discussão política é, como vemos diariamente, uma questão de formas, e nunca de conteúdos, pois, dada a sua abstracção acima dos elementos concretos da sociedade, não pode questionar as relações sociais que a fundamentam. Não é que a democracia política seja falsa, assim como não o é a democracia na produção (que é a auto-gestão da miséria mercantil), mas sim que ela está orientada, pela sua própria natureza capitalista, a gerir os imperativos da produção mercantil em detrimento da imensa maioria da sociedade, dos despossuídos, dos proletários. Esta é a questão: a democracia é, pela sua própria natureza, contra o proletariado.

A nossa rejeição à democracia é, pelo que explicamos, uma posição integral e programática, e não circunstancial. O parlamentarismo implica uma contradição com a crítica à democracia, é uma táctica que vai contra a questão estratégica da destruição do Estado burguês. Essa rejeição inclui qualquer forma de democracia, pois é necessariamente uma expressão de uma sociedade fragmentada, entre o facto – a existência de classes com interesses opostos – e a lei – que nos torna todos iguais. Uma sociedade emancipada não precisará da democracia, assim como não precisa do Estado, da política ou da lei, porque simplesmente não haverá antagonismo de classe para reconciliar, já que não há mercadoria para gerá-la.

Não defendemos uma "democracia real" ou uma "democracia operária", porque já conhecemos e vivemos a democracia, porque já escolhemos, porque aspiramos a uma sociedade unida como um quadro no qual possamos articular as nossas diferenças de modo que não impliquem uma fractura (na medida em que nossas relações não serão reificadas). É por isso que consideramos falsa a dicotomia que geralmente é colocada entre ditadura e democracia (quando se trata de administrar capital), porque só pode existir ditadura: pode ser a do capital, que vivemos hoje, ou a das nossas necessidades, que é aquela que, como revolucionários, aspiramos implantar. Como Camatte aponta na tese 11 do texto citado[2]:

O acesso do proletariado ao Estado é a sua própria negação como classe, assim como a negação de outras classes. É o início da unificação das espécies, da formação da comunidade. Exigir democracia implicaria a exigência de uma conciliação entre as classes, o que significaria duvidar que o comunismo seja a solução de todos os antagonismos, que seja a reconciliação do homem consigo mesmo.

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[1] "A revolução não é um problema de formas de organização; a revolução é, por outro lado, um problema de conteúdo." (Bordiga, O Princípio Democrático). Pode ler tanto este discurso quanto o de Sobre a Questão do Parlamentarismo aqui: https://barbaria.net/2022/08/26/amadeo-bordiga-la-ilusion-democratica/  

[2] O texto completo pode ser lido em: https://barbaria.net/2023/02/15/jacques-camatte-la-mistificacion-democratica/

 

Fonte: Notas sobre la democracia – Barbaria

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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