sábado, 7 de setembro de 2024

ANTOLOGIA EM TRÊS ETAPAS (Lise Gingras)

 


 7 de Setembro de 2024  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Na sua Florilège en trois temps, Lise Gingras dá-nos a oportunidade de experimentar os três principais tipos de textos curtos de que é autora.

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Parte I — Notícias (pp. 13-89). A primeira série de textos é constituída por uma colecção de treze contos. Seguem o procedimento habitual da ficção curta. Os contos de Lise Gingras, cujo conteúdo manterei em segredo para não comprometer o vosso prazer de leitura, são escritos num estilo muito sóbrio, claro e agradável. Acima de tudo, evocam fatias de vida que estão inteiramente de acordo com as realidades regionais e pessoais. Entramos aqui em contacto com um mundo comum, cujas particularidades são, podemos supor, em grande parte as do autor. Estamos, portanto, perante um estilo textual realista, como se dizia antigamente, em que algumas queixas vêm ao de cima. Isto porque o exercício narrativo se esforça discretamente por transmitir a incongruência das situações comuns. E assim, insidiosamente, uma certa ansiedade e angústia emergem, entram pela porta do fundo e acabam por se instalar. De momentos de existência particulares, concretos, comuns, os ângulos são suavemente alterados. O carácter incongruente, insólito e de difícil apreensão, sobretudo emocional, ganha forma através do tratamento da escrita e da flutuação dos temas.

Com a sua grande sensibilidade, não conseguia conciliar os mundos da nossa sociedade nem adaptar-se a esta realidade. Já em jovem adulto, brincava com o lúpulo.

Posso contar-vos todos os serões em que a minha paciência foi torturada cem vezes por histórias de guerra, de astronomia ou do princípio de Arquimedes, enquanto ele elaborava a sua invenção para fornecer água às crianças de África... que continuaria a ser uma vaga ideia. Todas as suas ideias e planos estão na sua pequena mala preta, para o caso... para a sua filha de um casamento de curta duração.

Já se estava a afundar no alcoolismo quando veio viver connosco durante a sua licença na marinha mercante. Dez semanas de trabalho, três semanas de férias. (p.36, extracto de Michel)

Os textos são curtos, e Lise Gingras evita cuidadosamente cair no beco sem saída ritual de alguns contistas que tendem a tentar sempre ter uma piada para o seu texto. O problema da famosa piada é adequadamente evitado por Lise Gingras. A autora consegue dar-nos uma sensação de algo que se distingue do efeito involuntariamente jornalístico da ficção curta contemporânea. O mundo que cria é mais da ordem dessas pequenas fatias de vida que são evocadas com grande precisão e das quais emerge algo como uma sabedoria e uma serena gestão das emoções, mesmo quando essas emoções podem ser temperadas, aqui e ali, com um certo picante doloroso.

Parte II - Poemas (pp 91-121). A segunda parte do livro apresenta a poesia de Lise Gingras. Nos vinte e seis poemas aqui publicados, a autora apresenta-se como uma poeta que cultiva um estilo bastante formalista. Temos sonetos, louvores, baladas... textos escritos em ritmo, onde a preocupação com o ritmo, por vezes, se esquiva e corta um pouco a expressividade.

 

Tudo é caos

O caos na minha cabeça

Na minha alma danificada

Os pensamentos giram

Sob a crista negra

 

Caos de conquistas

Autocracia imposta

O nosso mundo despedaçado

Liberdade a pedido

 

O caos no homem honesto

Gritos abafados a plenos pulmões

O seu trabalho é ostracizado

O seu coração pára de terror

 

Caos, pára a tempestade

Um doce poema declina

Dança, gira e gira num só pé

O sábio na sua busca
(p.95)

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Os clichés habituais da poesia versificada encontram-se, de forma inevitável, aqui. Alguns destes textos dariam para canções populares. Por outro lado, Lise Gingras beneficiaria se desconstruísse um pouco o seu verso e considerasse um encontro com a sabedoria de Jean de la Fontaine. Devemos sempre lembrar que Jean de la Fontaine escreveu poesia versificada, mas, como homem astuto que era, trabalhou em versos assimétricos. Protegia-o imperceptivelmente do ruído do ábaco... Maximizava assim a sua expressão, mantendo com firmeza a qualidade do ritmo e a musicalidade completa, toda clássica, da rima. Penso que Jean de Lafontaine é uma referência da versificação francesa que pode ser citada entre os francófonos (em vez do mais rigoroso Hugo)... da mesma forma que os ingleses se referem a Shakespeare (em vez do mais confidencial Marlowe).

Parte III - A prosa poética (pp 123-135). A terceira parte do livro intitula-se Prose poétique. O exercício é o da textualidade livre e tem a qualidade de nos colocar numa espécie de estado intermédio entre a prosa e a poesia. Um estado intermédio que dá à autora, agora filósofa, a oportunidade de nos fazer sentir a sua intimidade com o mundo e a sua preocupação em fazer com que a reflexão e a escrita funcionem em conjunto, com total fluidez de expressão. E há momentos muito felizes, quando descobrimos que por detrás da escritora há também uma observadora arguta do mundo dos factos e das ideias. A protecção do prazer da leitura não me impede de constatar que Lise Gingras conhece intimamente os poetas, o que nos dá a esperança de um dia vir a juntar-se a eles.

 

Os poetas

Os poetas nascem com um botão no coração.

Sensíveis ao som desvanecido da melodia. Cheirando a fragrância do feno, espalhando o perfume do jasmim.

As suas vozes de barítono percorrem os longos caminhos da estrada de troncos.

Os seus ecos ecoam nos penhascos íngremes.

Em libreto, notas suspensas no tempo.

Os seus pés mergulham nos riachos para refrescar os seus léxicos.

Nos seus cadernos, ramos de palavras.

Palavras que contam a história do mundo, dos seres humanos e da sua humanidade.

Os poetas poetizam. (pág. 132)

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O livro abre com uma epígrafe de Annie Ernaux (p. 7). Segue-se um prefácio do autor Denis Morin (pp. 8-9), prefácio de Ruth Benchétrit, directora de Éditions Le Baladin (pp. 10-11). Quatro reproduções fotográficas de pinturas da aquarelista Nicole Gélinas decoram a capa e a abertura de cada uma das três secções, Nouvelles (p. 12), Poèmes (p. 90) e Prose poétique (p. 122). Duas outras imagens coloridas aparecem dentro do livro (p. 102, parte inferior da p. 137). O livro termina com agradecimentos (p. 136), seguidos de uma nota biográfica de Lise Gingras (p. 137) e do índice (pp. 138-139).

 

Lise Gingras, Florilège en trois temps — Nouvelles et poésie, Éditions le Baladin, 2023, 139 p.

 


Fonte : FLORILÈGE EN TROIS TEMPS (Lise Gingras) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice






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