19 de Fevereiro de 2025
Equipa de edição
Publicado em International Council Correspondence , Chicago, vol. 1, No. 3, Dezembro de 1934. Postado anteriormente em www.left-dis.nl .
1. O SIGNIFICADO DO BOLCHEVISMO
2. O bolchevismo criou um campo fechado de prática social na economia e no estado soviético . Ele fez da Terceira Internacional um instrumento capaz de liderar e influenciar o movimento operário à escala internacional. Ele desenvolveu as suas directrizes de princípios e estratégia no "Leninismo". Resta saber se a teoria bolchevique expressa, como disse Estaline, o marxismo na era do imperialismo e se, neste caso, representa o eixo do movimento revolucionário proletário internacional.
3. O bolchevismo ganhou reputação internacional dentro do movimento operário, por um lado, devido à sua oposição revolucionária sistemática à guerra mundial de 1914-1918 e, por outro lado, devido à revolução russa de 1917. A sua importância histórica mundial vem do facto de que, sob a liderança consistente de Lenine, ele reconheceu os problemas da revolução russa e foi capaz de forjar, ao mesmo tempo, dentro do partido bolchevique, o instrumento pelo qual esses problemas poderiam ser resolvidos na prática. Essa adaptação do bolchevismo aos problemas levantados pela Revolução Russa foi consequência de vinte anos de desenvolvimento contínuo e paciente, bem como de um profundo conhecimento das relações entre as classes.
4. Para saber se esse perfeito domínio demonstrado pelo bolchevismo lhe dá direito à liderança teórica, táctica e organizacional da revolução proletária internacional, é necessário examinar, por um lado, as bases e premissas sociais da revolução russa e, por outro lado, os problemas da revolução proletária nas grandes nações capitalistas.
5. AS PREMISSAS DA REVOLUÇÃO RUSSA
6. A sociedade russa tem sido fortemente condicionada pela sua localização entre a Europa e a Ásia. Enquanto a força económica mais progressiva da Europa Ocidental e a sua posição internacional mais poderosa destruíram os primeiros começos do desenvolvimento comercial de tipo capitalista na Rússia antes do final da Idade Média, a superioridade política do despotismo oriental lançou as bases da organização estatal absolutista do Império Russo. Assim, não só em virtude da sua localização geográfica, mas também do ponto de vista económico e político, a Rússia ocupou uma posição intermédia entre os dois continentes, cujos diferentes sistemas sociais e políticos combinou de forma muito particular.
7. A posição ambígua da Rússia no mundo teve uma influência decisiva não só no seu passado longínquo, mas também nos problemas da sua revolução nas duas primeiras décadas do século. Na época da ascensão do imperialismo, o sistema capitalista criou dois centros mutuamente opostos, mas estreitamente interligados: o centro capitalista altamente desenvolvido da marcha em frente do imperialismo activo nas áreas altamente industrializadas da Europa Ocidental e da América do Norte, e o centro colonial da pilhagem imperialista passiva nas regiões agrícolas da Ásia Oriental. A partir destes dois centros surgiu simultaneamente uma oposição de classe ao sistema imperialista: a revolução proletária internacional, por um lado, organizada em torno das nações capitalistas altamente desenvolvidas da Europa e da América do Norte, e a revolução agrária nacional, por outro, nascida nas nações agrícolas da Ásia Oriental. A Rússia, que se encontrava na linha divisória entre as esferas de influência destes dois centros imperialistas, viu estas duas tendências revolucionárias combinarem-se no seu território.
8. A economia russa era uma mistura de produção agrícola arcaica, característica dos países asiáticos, e de uma economia industrial moderna, característica da Europa. A servidão, nas suas diferentes formas, continuava a ser praticada pela grande maioria do campesinato russo e impedia o desenvolvimento da agricultura capitalista, que apenas começava a tomar forma. Estes novos métodos conduziriam simplesmente à desagregação da aldeia russa (1) e a uma situação de pobreza indescritível, enquanto o camponês permanecia acorrentado a uma terra que já não o podia alimentar.
9. A agricultura russa, que envolvia quatro quintos da população russa e era responsável por mais de metade da produção total do país, era, até 1917, uma economia feudal com elementos de capitalismo. A indústria russa foi enxertada no país pelo regime czarista, que pretendia tornar-se independente dos países estrangeiros, nomeadamente no que respeita ao equipamento militar. No entanto, como a Rússia não tinha nem as bases de um sistema artesanal bem desenvolvido nem os rudimentos necessários para criar uma classe de “trabalhadores livres”, este capitalismo de Estado, embora baseado na produção em massa, não deu origem a uma classe operária assalariada. Até 1917, este sistema de servidão capitalista deixaria marcas indeléveis da sua especificidade, por exemplo, no modo de pagamento dos salários, na habitação dos operários, na legislação social, etc. Assim, os operários russos eram não só tecnologicamente atrasados, mas também, em grande parte, analfabetos e ligados, directa ou indirectamente, à aldeia. Em muitos ramos da indústria, a mão de obra era constituída principalmente por trabalhadores camponeses sazonais que não tinham qualquer contacto permanente com a cidade. Até 1917, a indústria russa representava um sistema de produção capitalista misturado com elementos feudais. Assim, a agricultura feudal e a indústria capitalista impregnaram-se mutuamente dos seus elementos essenciais e combinaram-se num sistema que não podia ser governado de acordo com os princípios da economia feudal, nem desenvolver-se segundo as linhas do capitalismo.
10. Estas foram as bases sobre as quais se construiu o absolutismo do Estado czarista. A existência de tal Estado dependia do equilíbrio entre as duas classes possuidoras, nenhuma das quais podia dominar a outra. Enquanto o capitalismo era a espinha dorsal económica do Estado czarista, a nobreza feudal era a sua base política: “constituição”, “direito de voto”, um sistema de “autonomia do Estado” - tudo termos que não podiam esconder a impotência política das classes no Estado czarista. Dado o atraso económico do país, o método de governo que se encontrava a meio caminho entre o absolutismo europeu e o despotismo oriental.
11. No plano político, a revolução russa devia prosseguir com as seguintes tarefas: destruição do absolutismo, abolição da nobreza feudal como primeira ordem, e criação de uma constituição política e de um aparelho administrativo, garantes políticos da execução do trabalho económico da revolução. Deste modo, os objectivos políticos da revolução russa estavam em harmonia com as suas premissas económicas... os objectivos da revolução burguesa.
III. CLASSES NA REVOLUÇÃO RUSSA
12. Devido a esta mistura social particular de elementos feudais e capitalistas, a Revolução Russa também enfrentou outros problemas difíceis. Na sua essência, diferia tão fundamentalmente da revolução burguesa de tipo clássico como a estrutura social do absolutismo russo do início do século diferia, por exemplo, da do absolutismo francês do século XVII.
13. Esta diferença, que correspondia à dualidade da estrutura económica, encontrou a sua expressão política mais clara na atitude das várias classes da sociedade russa em relação ao czarismo e à revolução. Embora, em princípio, todas estas classes estivessem unidas pelos seus interesses económicos na sua oposição ao czarismo, na prática não lutavam com a mesma intensidade nem com os mesmos objectivos
14. A nobreza feudal lutava sobretudo para alargar a sua influência sobre o Estado absolutista, que desejava manter intacto para preservar os seus privilégios.
15. A burguesia, fraca em número, politicamente dependente e directamente ligada ao czarismo através de subsídios estatais, iria sofrer muitas mudanças de orientação política. O movimento dezembrista de 1825 foi a sua única acção revolucionária contra o Estado absolutista. Nas décadas de 1870 e 1880, apoiou passivamente o movimento revolucionário terrorista dos Narodniki (2), esperando assim aumentar a pressão contra o czarismo. Com o mesmo objectivo, tentou utilizar os movimentos grevistas revolucionários, até às lutas de Outubro de 1905, altura em que a burguesia já não estava preocupada em derrubar o czarismo, mas simplesmente em reformá-lo. Durante o período parlamentar, de 1906 até à Primavera de 1917, entrou numa fase de cooperação com o czarismo. E, finalmente, fugindo às consequências das lutas revolucionárias das massas proletárias e camponesas, rendeu-se incondicionalmente à reacção czarista por ocasião do putsch de Kornilov (3), cujo objectivo era restituir ao czar os seus antigos poderes. A burguesia russa tinha-se tornado contra-revolucionária muito antes de ter completado a sua própria revolução. Como revolução burguesa, a revolução russa realizou-se não só sem a burguesia, mas directamente contra ela, o que teve repercussões fundamentais em toda a sua política.
16. Quanto ao campesinato, que constituía a esmagadora maioria da população russa, este viria a desempenhar um papel decisivo, embora passivo, na Revolução Russa. Enquanto o médio e o alto campesinato, com o seu número limitado, estavam politicamente do lado do liberalismo pequeno-burguês, a grande massa de pequenos camponeses, famintos e escravizados, era forçada a levar a cabo expropriações violentas de grandes propriedades para sobreviver. Incapazes de seguir uma política de classe própria, os camponeses russos tiveram de se colocar sob a direção de outras classes. Com excepção de algumas revoltas isoladas, até Fevereiro de 1917 representaram a espinha dorsal do czarismo. Essas massas inertes e atrasadas foram responsáveis pelo fracasso da revolução de 1905. No entanto, em 1917, os camponeses desempenharam um papel decisivo na queda do czarismo, organizados por este último em grandes unidades do exército russo, e a sua passividade paralisou a condução da guerra. Finalmente, durante o período revolucionário, através das suas revoltas primitivas mas eficazes, puseram fim à grande propriedade fundiária e criaram as condições necessárias para a vitória da revolução bolchevique: durante os anos da guerra civil, a revolução não teria podido sobreviver sem as suas acções de solidariedade.
17. O proletariado russo, igualmente atrasado, tinha, no entanto, acumulado uma grande reserva de espírito de luta sob o domínio impiedoso da opressão czarista e capitalista. Participou tenazmente em todas as acções da revolução burguesa russa, da qual se tornou o instrumento mais agudo e fiável. Transformou cada confronto com o czar num acto revolucionário, desenvolvendo uma consciência de classe primitiva que, durante as lutas de 1917 (em particular durante a tomada espontânea das principais empresas), atingiu o ponto culminante da vontade subjectiva de comunismo.
18. A intelligentsia pequeno-burguesa desempenhou um papel específico na revolução russa. Os elementos mais combativos da intelligentsia, com os seus recursos culturais e materiais extremamente limitados, o seu limitado progresso profissional e o seu contacto com as ideias mais avançadas da Europa Ocidental, estavam na vanguarda do movimento revolucionário que iriam marcar com o seu cunho jacobino e pequeno-burguês. O movimento social-democrata russo, dirigido por revolucionários profissionais, era essencialmente um partido da pequena-burguesia revolucionária.
19. A revolução russa apresentava certos problemas cuja solução social dependia de uma curiosa combinação de forças: as massas camponesas, na sua passividade, constituíam as bases da revolução; as massas proletárias, numericamente mais fracas mas poderosas na acção revolucionária, eram o seu braço de combate; e a pequena fração de intelectuais revolucionários era o seu cérebro.
20. Esta estrutura triangular era um sub-produto inevitável da sociedade czarista, dominada por um Estado absolutista autónomo baseado nas classes proprietárias, privadas do direito de voto: a nobreza feudal e a burguesia. Os problemas específicos de levar a cabo uma revolução burguesa sem e contra a burguesia decorrem do facto de que, para derrubar o czarismo, era necessário mobilizar o campesinato e o proletariado numa luta pelos seus próprios interesses, o que implicava não só a destruição do czarismo, mas também das formas existentes de exploração feudal e capitalista. Os camponeses, pelo seu número, teriam podido enfrentar a situação; politicamente, eram incapazes de o fazer, só podendo actualizar os seus interesses de classe submetendo-se à autoridade de outra classe que, por sua vez, determinava a medida em que esses interesses podiam ser satisfeitos. Em 1917, os operários russos esboçaram uma política de classe comunista autónoma. No entanto, faltavam-lhe as bases sociais necessárias para ter êxito, uma vez que a vitória da revolução proletária tinha de ser também uma vitória sobre o campesinato. O proletariado russo, cujo número, repartido por diferentes sectores, não ultrapassava os dez milhões, não podia triunfar sobre o campesinato. Por isso, tal como o campesinato, teve de se submeter à autoridade de um grupo de intelectuais que não estava intrinsecamente ligado aos seus interesses.
21. O trabalho dos bolcheviques consistiu em criar a liderança da revolução russa e desenvolver tácticas adequadas. Conseguiram o que parecia impossível: a criação de uma aliança entre duas classes antagónicas, as massas camponesas que lutavam pela propriedade privada e o proletariado que lutava pelo comunismo. Nas condições difíceis que existiam na altura, tornaram a revolução possível e asseguraram o seu êxito, unindo estes elementos operários e camponeses nos grilhões da ditadura do Partido Bolchevique. Eles representam o partido líder da intelligentsia revolucionária pequeno-burguesa da Rússia. Cumpriram a tarefa histórica da revolução russa de ligar a revolução burguesa do campesinato à revolução proletária da classe operária.
22. A ESSÊNCIA DO BOLCHEVISMO
23. O bolchevismo tem todas as caraterísticas da revolução burguesa, mas intensificadas por um conhecimento profundo, extraído do marxismo, das leis da luta de classes. Quando Lenine disse: “O social-democrata revolucionário é um jacobino unido às massas”, estava a fazer mais do que uma comparação superficial. Para ele, havia uma profunda afinidade no método e nos objectivos entre a social-democracia russa e a pequena burguesia revolucionária da revolução francesa.
24. O princípio básico da política bolchevique (a conquista e o exercício do poder pela organização) é jacobino; a grandiosa perspectiva política bolchevique é jacobina; a sua realização prática no decurso da luta da organização bolchevique pelo poder é jacobina; a mobilização de todos os meios e forças da sociedade capazes de derrubar o absolutismo, e a utilização de qualquer método susceptível de levar este projecto a bom termo; as manobras e compromissos do partido bolchevique com qualquer força social que possa ser utilizada, nem que seja por um período muito curto, e no sector menos importante... tal é o espírito jacobino. Finalmente, a concepção essencial da própria organização bolchevique é a criação de uma organização rígida de revolucionários profissionais que permanecerão o instrumento obediente de uma direcção omnipotente.
25. Em termos de teoria, o bolchevismo estava longe de ter desenvolvido um pensamento autónomo que pudesse ser considerado um sistema coerente. Pelo contrário, apropriou-se do método marxista de análise de classes, adaptando-o à situação revolucionária russa; por outras palavras, alterou fundamentalmente o seu conteúdo, preservando os seus conceitos.
26. A única conquista ideológica do bolchevismo foi ligar a sua própria teoria política, como um todo, ao materialismo filosófico. Como protagonista radical da revolução burguesa, apoiou-se na ideologia radical da revolução burguesa, que transformou no dogma da sua própria concepção da sociedade humana. Este apego ao materialismo filosófico foi acompanhado por um recuo constante em direcção a um idealismo que defendia que a prática política devia emanar, em última instância, da acção dos dirigentes (a traição do reformismo, a idolatria de Lenine e Estaline).
27. A organização do bolchevismo nasceu dos círculos social-democratas de intelectuais revolucionários e evoluiu, através das lutas, cisões e derrotas das facções, para uma organização de dirigentes cujos postos essenciais estavam nas mãos de intelectuais pequeno-burgueses. A situação de ilegalidade que se manteve na Rússia favoreceu o crescimento do bolchevismo. O bolchevismo impôs-se como uma organização política de carácter militar, apoiada por revolucionários profissionais. Sem este rígido instrumento de poder, as tácticas bolcheviques não poderiam ter sido levadas a cabo, e o trabalho histórico da intelligentsia revolucionária russa não poderia ter sido realizado.
28. A táctica bolchevique, concebida para prosseguir a conquista do poder, revelou-se - particularmente até Outubro de 1917 - altamente uniforme internamente. As suas perpétuas flutuações externas eram apenas adaptações temporárias a situações em mudança e a alterações no equilíbrio de poder entre as classes. De acordo com o princípio da subordinação absoluta dos meios aos fins, e sem qualquer consideração pelos efeitos ideológicos que poderia ter nas classes lideradas pelo partido bolchevique, as tácticas foram revistas, mesmo em pontos aparentemente fundamentais. A tarefa dos funcionários era tornar estas manobras acessíveis às “massas”. Por outro lado, dado que o único objectivo da política do partido era a conquista incondicional das massas (atitude necessária porque as massas eram constituídas pelas classes operárias e camponesas, cujos interesses e consciência de classe eram completamente diferentes), qualquer agitação ideológica no seio das massas era utilizada, mesmo quando contradizia radicalmente o programa do partido. É precisamente nisto que o método táctico do bolchevismo está próximo da política da revolução burguesa; e é de facto o método dessa política que o bolchevismo reviveu.
29. AS DIRECTRIZES DA POLÍTICA BOLCHEVIQUE
30. O bolchevismo nasceu do desejo de derrubar o regime czarista. Como ataque ao absolutismo, tinha as características da revolução burguesa. No decurso das lutas travadas no seio da social-democracia russa sobre as tácticas a adoptar para atingir este objectivo, o bolchevismo desenvolveu os seus métodos e palavras de ordem.
31. A tarefa histórica do bolchevismo consistia em unir duas revoltas opostas, a do proletariado e a do campesinato, assumindo a liderança e orientando-as para um objectivo comum: a abolição do Estado feudal. Era necessário combinar a revolta camponesa (uma fase da revolução burguesa no início do desenvolvimento da sociedade burguesa) com a do proletariado (uma fase da revolução proletária no final do desenvolvimento da sociedade burguesa) numa acção comum. Isto só foi possível graças a um grande desdobramento estratégico que utilizou as mais variadas agitações e tendências de classe.
32. Esta estratégia (que consistia em utilizar o descontentamento das massas) provinha do desejo de explorar até as mais pequenas divergências e as mais pequenas fissuras no campo inimigo. Numa ocasião, Lenine qualificou os proprietários liberais como “os nossos aliados de amanhã”; noutra, apoiou os padres porque se opunham a um regime que não os satisfazia materialmente; e declarou-se disposto a apoiar as seitas religiosas perseguidas pelo czarismo.
33. No entanto, Lenine clarificou a sua táctica ao colocar correctamente a questão dos “aliados da revolução”; em particular, baseando-se nas experiências de 1905, opôs-se categoricamente a qualquer compromisso com os grupos capitalistas dominantes e limitou a política de “aliados” e de compromisso a elementos da pequena burguesia ou do campesinato - por outras palavras, os únicos elementos que podiam ser historicamente mobilizados para uma revolução burguesa na Rússia.
34. Em 1905, a palavra de ordem táctica “ditadura democrática dos operários e camponeses” indicava a orientação geral do bolchevismo e exprimia ainda a ideia ilusória de um sistema parlamentar sem burguesia. Mais tarde, foi substituída pela palavra de ordem “aliança de classes entre operários e camponeses”. Esta fórmula não escondia outra coisa senão a necessidade de pôr em movimento cada uma destas classes para permitir a tomada do poder pelos bolcheviques.
35. Estas palavras de ordem temporárias, que mobilizavam as duas classes decisivas da revolução russa com base nos seus interesses antagónicos, resultavam da vontade implacável de utilizar os pontos fortes destas classes. Para mobilizar o campesinato, os bolcheviques cunharam, por volta de 1905, a palavra de ordem “expropriação radical dos proprietários pelos camponeses”. Do ponto de vista dos camponeses, esta palavra de ordem podia ser entendida como um convite à divisão das grandes propriedades entre eles. Quando os mencheviques chamaram a atenção para o conteúdo reaccionário das palavras de ordem agrárias bolcheviques, Lenine respondeu que os bolcheviques estavam longe de ter decidido o que iriam fazer com os latifúndios expropriados; a resolução desta questão seria da competência da social-democracia no poder. Por conseguinte, a exigência de expropriação dos latifúndios pelos camponeses, embora essencialmente demagógica, afectava directamente os interesses do campesinato. Da mesma forma, os bolcheviques difundiram as suas palavras de ordem entre os operários, nomeadamente a palavra de ordem soviética. O facto de a palavra de ordem determinar a táctica dos operários foi, em si mesmo, apenas um êxito momentâneo; o partido não considerava, de modo algum, que a palavra de ordem o ligava às massas por uma obrigação de princípio; pelo contrário, via-a como o instrumento de propaganda de uma política que visava, em última análise, a tomada do poder pela organização.
36. Durante o período de 1906-1914, o bolchevismo desenvolveria a táctica do "parlamentarismo revolucionário" por meio de uma combinação de actos legais e ilegais. Essa táctica estava de acordo com a situação da revolução burguesa na Rússia. Com essa táctica, o Partido Bolchevique conseguiu unificar a guerra de guerrilha contra o absolutismo, que estava a ser travada em duas frentes pelos operários de um lado e pelos camponeses de outro, e torná-la o elemento essencial na preparação da revolução burguesa no contexto russo. Em particular, devido à política ditatorial czarista, cada avanço da social-democracia russa na actividade parlamentar trazia a marca da revolução burguesa. Essa táctica de mobilização do campesinato e do proletariado (essas duas classes decisivas para a revolução russa) continuaria durante o período que se estendeu da revolução de 1905 até a guerra mundial, e a Duma serviria como uma plataforma de propaganda para os operários e camponeses.
37. O bolchevismo resolveu o problema histórico da revolução burguesa na Rússia feudal e capitalista com a ajuda do proletariado, seu instrumento activo e combativo. Também se apropriou da teoria revolucionária da classe operária, transformando-a para as suas próprias necessidades. O “marxismo-leninismo” não é marxismo, mas um preenchimento da terminologia marxista adaptada às necessidades da revolução burguesa na Rússia com o conteúdo social da revolução russa. Embora esta teoria tenha permitido compreender a estrutura social russa, tornou-se também, nas mãos dos bolcheviques, um meio de ocultar o conteúdo de classe da revolução bolchevique. Por detrás dos conceitos e das palavras de ordem marxistas, escondia-se uma revolução burguesa que era conduzida, sob a direcção de uma intelligentsia revolucionária pequeno-burguesa, pelas forças unidas de um proletariado socialista e de um campesinato ligado à propriedade privada, contra o absolutismo czarista, a aristocracia fundiária e a burguesia.
38. A pretensão absoluta de liderança da intelligentsia revolucionária pequeno-burguesa e jacobina estava escondida por trás da concepção bolchevique do papel do partido em relação à classe operária. A intelligentsia pequeno-burguesa só poderia alargar a sua organização e transformá-la numa arma revolucionária activa se conseguisse atrair e utilizar as forças proletárias. Por isso, chamava ao seu partido jacobino um partido proletário. A subordinação de uma classe operária combativa a uma direcção pequeno-burguesa era justificada pela teoria bolchevique da “vanguarda” do proletariado - uma teoria que conduzia, na prática, ao princípio de que o partido encarnava a classe. Por outras palavras, o partido não é um instrumento da classe operária; pelo contrário, é a classe operária que é o instrumento do partido.
39. A necessidade de basear a política bolchevique nas duas classes mais baixas da sociedade russa foi expressa na fórmula de uma “aliança de classe entre o proletariado e o campesinato” - uma aliança na qual, logicamente, interesses de classe antagónicos são voluntariamente reunidos.
40. Com a fórmula “supremacia do proletariado na revolução”, os bolcheviques disfarçaram o seu desejo de dominar incondicionalmente o campesinato. Ora, como o proletariado é, por sua vez, dirigido pelo partido bolchevique, a “supremacia do proletariado” não é outra coisa senão a supremacia do partido bolchevique e a sua vontade de governar as duas classes.
41. Esta pretensão dos bolcheviques de quererem tomar o poder com a ajuda das duas classes encontra a sua expressão máxima no conceito bolchevique de “ditadura do proletariado”. Esta fórmula, ligada à concepção do Partido como a organização dirigente da classe, significa naturalmente a omnipotência da organização jacobino-bolchevique. Além disso, o seu conteúdo de classe é totalmente ignorado pela definição bolchevique da ditadura do proletariado como “uma aliança de classe entre o proletariado e o campesinato sob a direcção do proletariado” (Estaline e o programa do Comintern). O princípio marxista da ditadura da classe operária é assim distorcido pelo bolchevismo, que o transforma na dominação, por um partido de estilo jacobino, de duas classes opostas.
42. Os próprios bolcheviques sublinharam o carácter burguês da sua revolução com a sua fórmula revista de “revolução popular”, ou seja, a luta comum de diferentes classes de um povo numa revolução. Esta é a palavra de ordem típica de qualquer revolução burguesa, que mobiliza as massas de camponeses pequeno-burgueses e proletários sob a direcção da burguesia para servir os interesses da classe burguesa.
43. No que diz respeito à luta da organização para assegurar o seu poder sobre as classes revolucionárias, qualquer atitude democrática por parte do bolchevismo é um mero movimento táctico num jogo de xadrez. Isto tornou-se claro quando surgiu a questão da democracia operária nos sovietes. A palavra de ordem leninista de Março de 1917, “todo o poder aos sovietes”, manteve-se fiel à característica fundamental da revolução russa (o sistema de duas classes), uma vez que os sovietes eram “conselhos de operários, camponeses e soldados” (sendo os soldados camponeses). Além disso, a palavra de ordem tinha sido lançada por Lenine durante a revolução de Fevereiro para fins tácticos. Parecia susceptível de assegurar uma transição “pacífica”, à cabeça da revolução, da coligação social-revolucionária menchevique para o bolchevismo, graças à influência crescente deste último nos sovietes. Após a manifestação de Julho, os bolcheviques perderiam a sua influência sobre os sovietes e Lenine, abandonando temporariamente a palavra de ordem dos sovietes, pediu ao partido bolchevique que elaborasse outras palavras de ordem insurreccionais (4). Só com o putsch de Kornilov é que a influência bolchevique nos sovietes aumentou e o partido de Lenine decidiu retomar esta palavra de ordem. (A partir do momento em que os bolcheviques viram os sovietes como órgãos de insurreição e já não como órgãos da classe operária, tornou-se mais claro que, para eles, os sovietes não eram mais do que um instrumento para permitir ao seu partido tomar o poder. Isto ficou demonstrado na prática, não só pela sua organização do Estado soviético após a conquista do poder, mas também no caso particular da repressão sangrenta da insurreição de Kronstadt. No final desta insurreição, as exigências capitalistas feitas pelos camponeses deviam ser satisfeitas pela NEP, enquanto as exigências democráticas do proletariado eram afogadas no sangue da classe operária.
44. As divergências de opinião sobre a forma e a composição dos sovietes russos conduziram, a partir de 1920, à formação no seio do Partido de uma verdadeira corrente comunista, ainda que globalmente fraca. A “Oposição Operária” (5) baseava-se no desejo de concretizar a democracia soviética no interesse da classe operária. Como todas as oposições sérias ao regime, foi mais tarde esmagada pela prisão, exílio e execução militar, mas o seu programa continua a ser o ponto de partida histórico para um movimento proletário-comunista independente contra o regime bolchevique.
45. A questão dos sindicatos foi igualmente determinada pela vontade do partido bolchevique de dominar e dirigir os operários. Na Rússia, os bolcheviques eliminaram dos sindicatos tudo o que tinha a ver com a organização do trabalho, impondo-lhes uma estrutura disciplinar e militar após a conquista do poder. Noutros países, o resultado final da política bolchevique foi a protecção das organizações sindicais reformistas e burocráticas; longe de desmantelar estas organizações, os bolcheviques defenderam a “conquista” da sua máquina. Os bolcheviques eram ferozes opositores da ideia de organizações industriais revolucionárias, que para eles encarnavam a democracia. Os bolcheviques lutaram pela conquista ou renovação de organizações controladas por uma burocracia centralizada, que acreditavam poder dirigir a partir das suas posições de comando.
46. Como líderes de uma ditadura de tipo jacobino, os bolcheviques lutaram implacavelmente em todas as fases contra a ideia de auto-determinação da classe operária e apelaram à subordinação do proletariado à organização burocrática. Antes da guerra, durante as discussões que tiveram lugar no seio da Segunda Internacional sobre a questão da organização, Lenine revelou-se um opositor violento e vingativo de Rosa Luxemburgo e apoiou-se directamente no centrista Kautsky, que se revelaria um inimigo de classe durante e após a guerra. Já nessa altura, o bolchevismo tinha provado (e nunca viria a negar) não só que não compreendia o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e das suas organizações, mas também que combatia por todos os meios todas as tentativas teóricas e práticas de desenvolver verdadeiras organizações de classe e uma verdadeira política de classe.
VII. A REVOLUÇÃO BOLCHEVIQUE
43. O bolchevismo chamou à revolução de Fevereiro a revolução burguesa e à revolução de Outubro a revolução proletária, fazendo passar o seu próprio regime como o reino da classe proletária e a sua política económica como socialismo. Esta visão da revolução de 1917 é absurda, simplesmente porque parte do princípio de que um desenvolvimento de sete meses teria sido suficiente para criar as bases económicas e sociais de uma revolução proletária num país que tinha acabado de entrar na fase da sua revolução burguesa - por outras palavras, para saltar por cima de todo um processo de desenvolvimento social e económico que levaria pelo menos várias décadas. Na realidade, a revolução de 1917 foi um processo de transformação unitário, que começou com a queda do czarismo e culminou com a vitória da insurreição armada bolchevique de 7 de Novembro. E este violento processo de transformação só pode ser o da revolução burguesa russa, nas condições históricas particulares da Rússia.
44. Durante este processo, o partido da intelligentsia revolucionária jacobina tomou o poder apoiando-se nos dois movimentos sociais que tinham desencadeado a insurreição de massas, o dos proletários e o dos camponeses. Para substituir o governo triangular desfeito (czarismo, nobreza e burguesia), criou o triângulo do bolchevismo, do campesinato e da classe operária. E tal como o aparelho de Estado do czarismo governava autonomamente sobre as duas classes possuidoras, também o novo aparelho de Estado bolchevique começou por se tornar independente das duas classes que o tinham levado ao poder. A Rússia saiu das condições do absolutismo czarista para as do absolutismo bolchevique.
45. Durante o período revolucionário, a política bolchevique culminou na mobilização e no controlo das forças sociais da revolução. A táctica revolucionária bolchevique culminou na preparação e execução da insurreição armada. Para os bolcheviques, a insurreição violenta tornou-se uma acção militar concertada e meticulosamente organizada, com o partido bolchevique e as suas tropas de combate como força motriz e poder de liderança. A concepção, a preparação e a execução da insurreição armada pelos bolcheviques tinham a marca da conspiração jacobina (que na Rússia era, repetimos, a única política possível): uma insurreição no contexto particular de uma revolução burguesa contra a burguesia.
46. As palavras de ordem económicas da revolução bolchevique revelam o seu carácter de revolução burguesa. Para as massas camponesas, os bolcheviques simbolizam a expropriação violenta dos latifúndios pela acção espontânea do pequeno campesinato sedento de terra. Os bolcheviques exprimem perfeitamente, na sua prática e nas suas palavras de ordem (Paz e Terra), os interesses dos camponeses que lutam para salvaguardar a pequena propriedade privada (interesses capitalistas). Longe de defenderem os interesses do proletariado socialista contra a propriedade fundiária feudal e capitalista, tornaram-se assim, no que respeita à questão agrária, os apoiantes descarados dos interesses do pequeno capitalista.
47. No que diz respeito aos operários, as reivindicações económicas da revolução bolchevique também não tinham qualquer conteúdo socialista. Em várias ocasiões, Lenine teve de rejeitar severamente a crítica menchevique de que o bolchevismo propunha uma política utópica de socialização da produção num país que ainda não estava preparado para tal situação. Os bolcheviques tiveram de responder que não se tratava de socializar a produção, mas de colocar o seu controlo nas mãos dos operários. A palavra de ordem do controlo da produção foi usado numa tentativa de preservar a eficiência dos métodos capitalistas na organização técnica e económica da produção, mas para remover o seu carácter explorador. O aspecto burguês da revolução bolchevique, bem como o facto de os próprios bolcheviques se terem limitado a uma economia de tipo burguês (em vez de consolidarem os resultados da vitória de 1917), é iluminado de forma exemplar por esta palavra de ordem de controlo da produção.
48. A violência elementar do ataque dos operários, por um lado, e a sabotagem dos patrões destronados, por outro, levaram os bolcheviques a apoderarem-se das empresas industriais e a confiarem a sua gestão à burocracia governamental. A economia estatal, que durante todo o período do comunismo de guerra foi quase sufocada pelo excesso de organização (glavkismo), foi descrita por Lenine como capitalismo de Estado. Só na época estalinista é que a economia estatal passou a ser designada como economia socialista.
49. Para Lenine, porém, o conceito básico de socialização da produção não ia além de uma economia estatal dirigida pelo aparelho burocrático. Para ele, a economia de guerra alemã e os serviços postais eram exemplos típicos de organização socialista: uma organização económica de natureza abertamente burocrática, dirigida por uma centralização a partir de cima. Do problema da socialização, ele via apenas os aspectos técnicos e não os aspectos proletários e sociais. Da mesma forma, Lenine baseou-se, e com ele o bolchevismo em geral, nos conceitos de socialização propostos pelo centrista Hilferding (6) que, no seu Capital Financeiro, desenhou uma imagem idealizada de um capitalismo totalmente organizado. O verdadeiro problema, no que diz respeito à socialização da produção - a tomada de controlo das empresas e a organização do sistema económico pela classe operária e as suas organizações de classe, os conselhos operários - foi completamente ignorado pelo bolchevismo. E teve de ser ignorada porque a ideia marxista de uma associação de produtores livres e iguais é totalmente oposta à concepção jacobina de organização, e porque a Rússia não possuía as condições sociais e económicas necessárias para o estabelecimento do socialismo. O conceito bolchevique de socialização não é, portanto, mais do que uma economia capitalista tomada pelo Estado e dirigida a partir do exterior e de cima pela sua burocracia. O socialismo bolchevique é o capitalismo organizado pelo Estado.
VIII. O INTERNACIONALISMO BOLCHEVIQUE E A QUESTÃO NACIONAL
50. Durante a Primeira Guerra Mundial, os bolcheviques representaram consistentemente a posição internacionalista com a palavra de ordem: “Transformar a guerra imperialista numa guerra civil” e comportaram-se exteriormente como marxistas consistentes. Mas este internacionalismo revolucionário fazia parte das suas tácticas, tal como a sua posterior viragem para a NEP. O apelo ao proletariado internacional era apenas um aspecto de uma vasta política que procurava ganhar apoio internacional para a revolução russa. O outro aspecto era a política e a propaganda da “auto-determinação nacional”, na qual os horizontes de classe eram sacrificados de forma ainda mais radical do que no conceito de “revolução popular”, e que apelava a elementos de todas as classes.
51. Este internacionalismo de duas faces correspondia à
situação internacional da Rússia e da revolução russa. Geográfica e
sociologicamente, a Rússia estava situada entre os dois pólos do sistema
imperialista mundial. O encontro entre a tendência imperialista activa e a
tendência colonial passiva conduziu ao colapso deste sistema. As classes
reaccionárias revelaram-se impotentes para o restabelecer, como o provou a sua
derrota decisiva no putsch de Kornilov e, mais tarde, na guerra civil. O
verdadeiro perigo que ameaçava a revolução russa era o da intervenção
imperialista. Só uma invasão militar do capital imperialista poderia derrubar o
bolchevismo e restaurar o czarismo - o antigo regime, incorporado no sistema
mundial de exploração imperialista para servir como seu instrumento. Para se
defender contra o imperialismo mundial, o bolchevismo tinha de organizar uma
contra-ofensiva contra os centros imperialistas dominantes. A política
internacional do bolchevismo, com duas vertentes, fez exatamente isso.
52. Em nome da revolução proletária internacional, o bolchevismo lançou o proletariado internacional contra o imperialismo mundial nos países capitalistas mais avançados. Em nome do “direito à auto-determinação nacional”, lançou os povos camponeses oprimidos do Extremo Oriente contra o centro colonial do imperialismo mundial. Com esta política internacional em duas etapas, que abria imensas perspectivas, o bolchevismo procurava impulsionar a infiltração de elementos proletários e camponeses na esfera do capitalismo mundial.
53. Para o bolchevismo, a “questão nacional” era uma questão prática e, portanto, não apenas um expediente da revolução burguesa russa - uma revolução que usou os instintos nacionais dos camponeses e das minorias nacionais oprimidas do Império Russo para derrubar o czarismo. Esta posição reflecte também o internacionalismo camponês de uma revolução burguesa que teve lugar na era do imperialismo mundial e que só podia sobreviver nas garras do imperialismo com a ajuda de uma activa contra-política internacional.
54. Para orientar esta política de apoio internacional à revolução burguesa no território russo, o bolchevismo procurou criar duas organizações internacionais: a Terceira Internacional, que mobilizava os operários dos países capitalistas altamente desenvolvidos, e a Internacional dos Camponeses, que reunia sob a sua bandeira os povos camponeses do Leste. O objectivo último desta política internacional, que se apoiava nas classes operárias e camponesas, era a revolução mundial, incluindo a revolução proletária internacional (europeia e americana) e a revolução camponesa nacional (essencialmente oriental) no quadro de uma política mundial bolchevique sob as ordens de Moscovo. Assim, para os bolcheviques, o conceito de “revolução mundial” tinha um conteúdo de classe completamente diferente e já não tinha nada a ver com a revolução proletária internacional.
55. A política internacional do bolchevismo era, portanto, simplesmente uma repetição, à escala mundial, da revolução russa (combinando a revolução proletária e a revolução burguesa-camponesa), e colocava o partido bolchevique russo à cabeça de um sistema bolchevique mundial no qual os interesses comunistas do proletariado se combinavam com os interesses capitalistas do campesinato. Esta política teve o resultado positivo de proteger o Estado bolchevique da invasão imperialista, mantendo os Estados capitalistas preocupados. Permitiu assim que o Estado bolchevique ocupasse o seu lugar no sistema imperialista mundial, utilizando métodos capitalistas de relações comerciais, acordos económicos e pactos de não-agressão. Deu à Rússia a oportunidade de consolidar nacionalmente e alargar a sua própria posição internacional. Mas falhou na sua tentativa de trazer a política activa do bolchevismo para a cena mundial. A experiência da Internacional dos Camponeses chegou ao fim com o fracasso da política bolchevique na China. A Terceira Internacional, desde o lamentável colapso do Partido Comunista Alemão, já não representa um factor importante na política bolchevique mundial. O gigantesco esforço para alargar a política bolchevique russa à cena mundial foi um fracasso histórico que provou as limitações nacionais do bolchevismo russo. Seja como for, a experiência bolchevique na Machtpolitik (política de poder) internacional deu ao bolchevismo tempo para recuar para as suas posições nacionais (russas) e converter-se aos métodos capitalistas imperialistas de política internacional. Em teoria, este recuo foi justificado pela fórmula “socialismo num só país”. Com esta fórmula, o conceito de “socialismo”, que já tinha sido despojado do seu conteúdo de classe proletária pela prática económica russa, perdeu as suas cores internacionais e, sob a capa do capitalismo de Estado, já não estava longe do reformismo pequeno-burguês e do fascismo.
56. Na verdade, não é essencial, agora que podemos ver os resultados de quinze anos de bolchevismo, tanto nacional quanto internacionalmente, saber se Lenine esperava, na época da fundação da Internacional Comunista - ou antes - um resultado diferente desta internacional bolchevique. Na prática, o bolchevismo, com o seu conceito de "direito à auto-determinação nacional", desenvolveu tendências em direcção a uma Machtpolitik mundial bolchevique. Ele também é responsável, através da Internacional Comunista, pela incapacidade do proletariado europeu de ascender ao nível do comunismo revolucionário e por seu afundamento na lama do reformismo, ressuscitado pelo bolchevismo e adornado com frases revolucionárias. Em última análise, o conceito de "Pátria Russa" tornou-se o obstáculo na política dos partidos bolcheviques, enquanto para o comunismo proletário a classe operária internacional deve estar no centro de qualquer orientação internacional.
57. O BOLCHEVISMO DE ESTADO E O COMINTERN
58. A instauração do Estado soviético foi a instauração do domínio do partido do maquiavelismo bolchevique. A base sociológica deste poder estatal, que se tornou independente das classes que o apoiavam e que criou este novo elemento social, a burocracia bolchevique, era constituída pelo proletariado e pelo campesinato russos. O proletariado, agrilhoado pelos sindicatos (filiação obrigatória) e pelo terrorismo da Cheka, representava a base da economia nacional bolchevique, sob o controlo da burocracia. O campesinato escondia, e ainda esconde nas suas fileiras, as tendências desta economia para o capitalismo privado. Na sua política interna, o Estado soviético estava dividido entre estas duas tendências. Procurou controlá-las através de métodos violentos de organização, como o plano quinquenal e a colectivização forçada. Na prática, porém, apenas aumentou as dificuldades económicas, exacerbando as contradições económicas até ao ponto de explosão e levando ao auge as tensões entre operários e camponeses. A experiência de uma economia nacional burocraticamente planeada dificilmente pode ser considerada um sucesso. Os grandes cataclismos internacionais que ameaçam a Rússia só podem aumentar as contradições do seu sistema económico até se tornarem intoleráveis, apressando assim provavelmente a queda desta gigantesca experiência económica.
59. A economia russa é essencialmente determinada pelas
seguintes caraterísticas: baseia-se na produção de mercadorias; está centrada
na rentabilidade; revela um sistema abertamente capitalista com salários e
ritmos de trabalho acelerados; finalmente, levou os refinamentos da racionalização
capitalista aos seus limites extremos. A economia bolchevique é uma produção
estatal com métodos capitalistas.
60. Esta forma de produção estatal foi também acompanhada de mais-valia, o que significou a máxima exploração dos operários. É claro que esta mais-valia não beneficia directa e abertamente nenhuma classe em particular na sociedade russa, mas enriquece o aparelho parasitário da burocracia como um todo. Para além da sua dispendiosa manutenção, a mais-valia assim produzida ajuda a aumentar a produção e a apoiar a classe camponesa; serve também para saldar as dívidas externas do Estado. Desta forma, a mais-valia produzida pelos operários russos beneficia não só o elemento economicamente parasitário da burocracia no poder, mas também o campesinato russo como um sector separado do capital internacional. A economia russa é, portanto, uma economia de lucro e exploração. Representa um capitalismo de Estado nas condições históricas particulares do regime bolchevique, ou seja, um tipo de produção capitalista diferente do dos países mais industrializados e aparentemente muito mais avançado.
61. A política externa da União Soviética é estreitamente determinada pela necessidade de reforçar a posição do partido bolchevique e do aparelho de Estado que este dirige. A nível económico, o governo russo envidou todos os esforços para estabelecer e manter uma base industrial forte. O isolamento da economia soviética exigiu uma política enérgica para pôr fim à autarquia forçada, mantendo o controlo do monopólio do comércio externo. Tratados comerciais, concessões e transacções para a obtenção de vastos créditos restabeleceram os laços entre a economia soviética e a produção capitalista mundial e o seu mercado, no qual a Rússia entrou tanto como cliente solicitado como concorrente feroz. Por outro lado, esta política económica, ligada ao capitalismo mundial, obrigou o governo soviético a cultivar relações amigáveis e pacíficas com as potências capitalistas. O princípio de uma política mundial bolchevique, onde ainda existia, foi oportunisticamente subordinado a tratados puramente comerciais. Toda a política externa do governo russo foi carimbada com o selo da diplomacia capitalista e, consequentemente, na esfera internacional, separou definitivamente a teoria bolchevique da sua prática.
62. O bolchevismo introduziu a tese do “cerco imperialista da União Soviética” no centro da propaganda externa do Comintern, embora esta definição dificilmente se enquadre no emaranhado de conflitos de interesses imperialistas e nas suas combinações constantemente renovadas. O Comintern procurou mobilizar o proletariado internacional ao serviço da sua política externa e, através de uma política meio parlamentar, meio pugschista, emanada dos partidos comunistas, criar, a partir do interior, mal-estar nos países capitalistas, reforçando assim a posição diplomática e económica da União Soviética.
63. As oposições entre a União Soviética e as potências
imperialistas desencadearam a contra-propaganda do Comintern com as palavras de
ordem: “Ameaça de guerra contra a URSS” e “Proteger a União Soviética”. Como
estas oposições eram apresentadas aos operários como os únicos factores
determinantes da política mundial, estes não conseguiam compreender o
verdadeiro contexto da política internacional. Os membros dos partidos
comunistas estrangeiros tornaram-se, acima de tudo, os defensores cegos e
oportunistas da União Soviética, e foram mantidos na ignorância do lugar
proeminente que a União Soviética há muito ocupava na política mundial.
64. O constante grito de alarme sobre a iminência de uma guerra das potências imperialistas aliadas contra a URSS foi utilizado na política interna para justificar a militarização intensiva do trabalho e o aumento da pressão sobre o proletariado russo. Ao mesmo tempo, porém, a União Soviética tinha, e continua a ter, o maior interesse em evitar conflitos militares com outros Estados. A sobrevivência do governo bolchevique dependia em grande medida da sua capacidade de evitar qualquer convulsão, quer militar quer revolucionária, na política externa. Consequentemente, o Comintern, na prática e em flagrante contradição com a sua teoria e propaganda domésticas, empenhou-se em sabotar qualquer desenvolvimento revolucionário genuíno do proletariado. Propagou mais ou menos abertamente nos partidos comunistas a ideia de que a União Soviética deve primeiro ser consolidada nas suas bases económicas e militares antes que a revolução proletária possa ser levada mais longe na Europa. Por outro lado, embora o governo soviético, para salvaguardar o seu prestígio, tenha passado muito tempo a fazer gestos hostis contra as potências imperialistas, na prática sempre se curvou perante essas potências. A “venda” da linha de caminho de ferro da Manchúria é um exemplo da capitulação sem resistência da URSS perante os seus adversários imperialistas. O reconhecimento mais do que apressado da URSS pelos Estados Unidos, que teve lugar ao mesmo tempo, é a prova recíproca de que as potências imperialistas, dentro dos limites da sua política de interesses antagónicos, também foram capazes de reconhecer a União Soviética como um factor importante. Acima de tudo, a URSS ilustrou os seus laços com o capitalismo ao estabelecer relações económicas estreitas com a Itália fascista e a Alemanha nazi. A União Soviética parecia ser o sólido apoio económico e, portanto, político, da maioria das ditaduras fascistas mais reaccionárias da Europa.
65. Esta política de entente absoluta entre a URSS e os países capitalistas e imperialistas não se baseia apenas em considerações económicas. Nem é apenas uma expressão de inferioridade militar. De facto, a “política de paz” da União Soviética depende decisivamente da situação do bolchevismo no país. A continuação da sua existência como potência estatal autónoma dependia do seu sucesso em manter o equilíbrio entre a classe operária dominada e o campesinato. Apesar dos progressos do país na via da industrialização, o campesinato russo mantinha uma posição de força. Em primeiro lugar, apesar de uma política repressiva vinda de cima, o campesinato detinha em grande parte os recursos alimentares do país. Em segundo lugar, a colectivização reforçou não só o poder económico mas também o poder político do campesinato que, tal como antes, continua a lutar pelos interesses privados capitalistas. (Porque “colectivização”, na Rússia, significa uma união colectiva de camponeses proprietários que continuam apegados aos métodos capitalistas de contabilidade e distribuição). Em terceiro lugar, em caso de guerra, o armamento maciço do campesinato poderia desencadear uma vaga de revoltas camponesas violentas contra o sistema bolchevique — tal como uma revolução do proletariado europeu daria provavelmente início a uma rebelião aberta dos operários russos. Nestas condições, a política de entendimento entre o governo soviético e as potências imperialistas afigura-se como uma necessidade vital para o absolutismo bolchevique.
66. O próprio Comintern foi utilizado para manipular a classe operária internacional, a fim de servir os objectivos oportunistas de glorificação nacional e a política de segurança internacional da União Soviética. Foi formada, fora da Rússia, a partir da combinação dos quadros revolucionários do proletariado europeu. Utilizando a autoridade da revolução bolchevique, o princípio organizativo e táctico do bolchevismo foi imposto ao Comintern de uma forma extremamente brutal e sem qualquer consideração por cisões imediatas. O Comité Executivo do Comintern (I.E.K.K.I.) - outro instrumento da burocracia russa no poder - recebeu o comando absoluto de todos os partidos comunistas, e a política partidária perdeu completamente de vista os verdadeiros interesses revolucionários da classe operária internacional. Palavras de ordem e resoluções revolucionárias foram usados como cobertura para a política contra-revolucionária do Comintern e dos seus partidos que, nos seus modos bolchevistas, tornaram-se tão especialistas em trair a classe operária e em demagogia desenfreada quanto os partidos social-democratas. Ao mesmo tempo que o reformismo, fundindo-se com o capitalismo, declinava no sentido histórico, a Comintern foi destruída ao unir-se à política capitalista da União Soviética.
1. O BOLCHEVISMO E A CLASSE OPERÁRIA INTERNACIONAL
2. O bolchevismo, nos seus princípios, nas suas tácticas e na sua organização, é um movimento e um método de revolução burguesa num país predominantemente camponês. Sob a autoridade ditatorial da intelectualidade jacobina, ele liderou o proletariado (orientado para o socialismo) e o campesinato (orientado para o capitalismo) numa revolta revolucionária contra o estado absolutista, o feudalismo e a burguesia, com o objectivo de derrubar o absolutismo feudal-capitalista. Hábil em transformar tudo em sua vantagem, ele uniu os interesses de classe antagónicos dos proletários e camponeses, graças à sua compreensão do carácter de classe das leis do desenvolvimento social.
67. Consequentemente, o bolchevismo não é apenas incapaz de liderar a política revolucionária do proletariado internacional, mas também é um dos obstáculos mais intransponíveis e perigosos para ele. A luta contra a ideologia bolchevique, contra a prática bolchevique e, através dela, contra todos os grupos que procuram reancorar essa ideologia e prática dentro do proletariado, é uma das primeiras tarefas da luta por uma reorientação revolucionária da classe operária. Uma política proletária só se pode desenvolver dentro da classe operária, com os seus próprios métodos e formas de organização.
Os direitos autorais deste texto pertencem
às autoridades competentes. É publicada aqui, num espaço cidadão, sem fins
lucrativos e livre de conteúdos publicitários, para fins estritamente
documentais e em total solidariedade com a sua contribuição intelectual,
educativa e progressista.
Fonte: https://les7duquebec.net/archives/229439
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
Sem comentários:
Enviar um comentário