sábado, 22 de fevereiro de 2025

Três fracturas nos postulados das nossas classes dominantes


21 de Fevereiro de 2025 Ysengrimus

YSENGRIMUS — Tudo está a correr mal. A economia está mal. Põe a cabeça nos ombros. Tudo está a correr mal. Podem ter a certeza de que, quando a burguesia vos prega esta mensagem, através dos seus aparelhos ideológicos nos meios de comunicação social e noutros locais, é porque tudo lhes corre mal e ela gostaria de poder continuar a montar o burro morto e muito morto do consenso de classe. O dito consenso de classe é a deglutição axiomática e inquestionável deste dogma pelos nossos estratos dominantes, quando não conseguem parar de rebocar e pedalar para que se perpetue acriticamente a sinonímia estruturalmente mentirosa, cada vez mais estalada e espúria, entre Economia e Capitalismo. Mas os pressupostos outrora tranquilos das nossas classes dominantes acima mencionadas estão actualmente a sofrer sérios golpes. E não devemos ter ilusões. Não confundamos, como alguns querem fazer crer, o declínio de um modo de produção específico com a grandessíssima confusão cosmológica de todo o universo social. Surdamente, como que inconscientemente (mas cada vez mais abertamente), a sociedade civil resiste aos postulados estreitos das nossas actuais classes dominantes. Para além dos pormenores fervilhantes das conjunturas nacionais e dos escândalos locais, em cuja poeira flatulenta se procura constantemente afogar e dissolver a nossa atenção militante, destacam-se três princípios tendenciais. Desde a crise financeira de 2008, três fracturas cruciais nos postulados das nossas classes dominantes têm vindo a emergir, confusamente, reformistamente, mas uma dentro da outra: sem ambivalência e, finalmente, quando olhamos com os olhos certos, bem, com toda a simplicidade de tendência também. Vejamos as grandes linhas.

1-     A IMPUNIDADE PARA OS RICOS: PERSEGUIDOS . Um dos grandes postulados da burguesia é a impunidade das fortunas. O acumulador privado considera que as imensas porções do bem colectivo que desviou em proveito próprio e impudente lhe pertencem. Os confettis que devolve à vida social sob a forma de impostos aparecem-lhe como outras tantas manifestações da rigidez ditatorial dos seus próprios subordinados. A classe média alta acredita conscientemente que não tem qualquer responsabilidade social. O mundo é o seu jardim, e cabe à plebe pagar os albergues, as infra-estruturas urbanas, os transportes públicos, as escolas... da plebe. É por isso que a burguesia defende e valoriza um espaço nacional onde os impostos são baixos. Quando isso já não acontece, muda a sede do seu conglomerado para as Bahamas ou Omã, sem ter de prestar contas a ninguém, e considera que esses pontos de contacto mais acomodados com o imponderável que é o mundo social são seus por direito. A noção de paraíso fiscal é uma noção fundamentalmente burguesa. Com efeito, a burguesia concebe um paraíso fiscal da mesma forma que um paraíso tropical: um fenómeno meteorológico afortunado de que se pode beneficiar com três cliques no computador, sem qualquer preocupação nem segundas intenções. Atualmente, os paraísos fiscais estão a ser atacados de uma forma sem precedentes na história dos grandes Estados. O seu desaparecimento é agora abertamente encarado. A Suíça está à beira de perder o seu segredo bancário. A natureza opaca, mas silenciosamente consensual, da impunidade da riqueza está a ser posta em causa com um radicalismo sem precedentes, que transcende a fachada das divisões políticas. Ah, continua a assumir a forma obscura e burguesa de uma sistematização da famosa rapacidade do fisco. Mas não é preciso mentir. O ataque ao segredo das imensas fortunas “privadas” do mundo é frontal e irreversível. Há uma tendência tímida para reequilibrar a distribuição da riqueza. A propriedade privada dos resultados dolorosos da produção colectiva está na mira.

2-     COMPADRIO DE ALTO NÍVEL: COMPROMISSO. A guerra interna do capitalismo , já discutida, prossegue incessantemente. Aprofunda-se tanto quanto se aprofunda a própria crise do capitalismo. A maior empresa de pilhagem de ouro do mundo (uma empresa canadiana, para que conste) acaba de emitir uma nota famosa e histórica. O seu conselho de administração tencionava atribuir um bónus de recrutamento de doze milhões de dólares ao trevo que acabava de nomear coniventemente para o cargo de director-geral. A ideia era simplesmente fazer com que os accionistas aprovassem a faraónica manobra de compadrio, aliás bastante clássica. Patatras! Os accionistas disseram não. Não só recusaram este bónus de entrada (seja lá o que isso for!) a este personagem específico, mais um gestor de topo falaciosamente salvífico, como os referidos accionistas exigiram que os membros do Conselho de Administração que tinham votado a favor deste bónus se demitissem. Um estrondo no mundo da finança. As ovelhas dos accionistas continuam dispostas a pastar na erva proletária, mas já não querem ser tosquiadas pelo pastor cada vez mais ganancioso da gestão empresarial. E, a partir de agora, um gestor de topo que vote um bónus para um colega júnior arrisca-se não só a ser abertamente exposto pela sua falta de poder efectivo, mas também a arriscar a sua própria cabeça. O compadrio de classe, um avatar abertamente decadente e insensivelmente cínico, se é que alguma vez existiu, é apreendido e comprometido. É claro que tudo isto continua a ser feito em nome de uma melhor repartição dos fenos entre os investidores e os órgãos administrativos do capitalismo (o inchaço gangrenoso destes últimos não é um sintoma vão - está longe disso), mas... há um pouco da ideia comunista de gestores que podem ser demitidos a qualquer momento e sem privilégios especiais que está adormecida. Para não falar do descrédito inequívoco da ideia de conluio, muito em voga atualmente...

3-     A EXTORSÃO DA MAIS-VALIA: MINADA . O eixo central do capitalismo continua a ser a extorsão da mais-valia, cuja prova empírica mais evidente é a procura despudorada e sedenta de massas de trabalhadores com salários e encargos mais baixos. A falsa miragem do capitalismo justo é já uma manifestação tímida e burguesa de uma clara rejeição da exploração cínica e retrógrada dos trabalhadores (homens, mulheres e crianças) cujas oficinas lhes caem em cima na DanLaDèche, esmagando-os e salpicando com o seu sangue as empresas ocidentais envolvidas nestas sweatshops dantescas. As referidas empresas, enfiando as mãos no saco malcheiroso deste tipo de exploração profundamente desacreditado, escondem-se e escondem-se e, quando as suas capotas são levantadas, inundam o problema com várias compensações e descontos que mostram claramente que a extorsão da mais-valia já não tem a vantagem que tinha no passado. Então, num dia normal, num pequeno país ocidental não muito maior do que este (o Canadá, para que conste), pede-se a quarenta e cinco empregados bancários, prestes a serem despedidos, que formem os quarenta e cinco trabalhadores temporários do Terceiro Mundo que vieram substituí-los a um preço mais baixo. Grande clamor nacional. Uma fractura qualitativa. A gota de água. Não estamos a falar de postos de trabalho “redundantes”, mas de quarenta e cinco postos de trabalho que continuam activos e em relação aos quais a intenção é simplesmente baixar quarenta e cinco vezes o contador de extorsão. Perante o protesto profundo e generalizado (e, note-se de passagem, muito mais livre desta pequena xenofobia desacreditadora do que a burguesia teria gostado), o banco em questão, que se arrisca a ver os seus clientes abandonarem o banco em massa, apressa-se a retropedalar-se. Até o governo do pequeno país em questão, um governo de rosto azul e reaccionário até ao tutano, é obrigado a comprometer-se a que os trabalhadores temporários do Terceiro Mundo não sejam contratados a preços mais parcimoniosos do que os preços utilizados para compensar os trabalhadores locais. Não se trata ainda de uma guerra de classes aberta, mas o facto é que a sociedade civil que ladra e se queixa já não é automaticamente um consenso a favor do explorador.

Então, digam-me uma coisa: o que é que faz uma grande burguesia, já semi-arruinada pela sua própria incompetência produtiva e financeira, se um consenso social maciço começa, cada vez mais, como que implicitamente, em três fracturas patentes dos velhos postulados, a privá-la da ilha fiscal onde pode esconder o seu último saque, do corpo administrativo para alimentar as suas indispensáveis conivências pecuniárias, e dos mecanismos sociais que lhe permitem extorquir a crucial mais-valia proletária. Bem, hum... esta classe dirigente está em apuros, exclamando na ágora e em todos os tons: Tudo vai mal. A economia vai mal. A economia está a correr mal. Recoloquem a cabeça nos ombros. Tudo vai mal, com os movimentos amplos de um maestro de orquestra, na esperança de arrastar a civilização que parasita abertamente para a esteira estéril do seu beco sem saída directivo, ele próprio inexoravelmente estrangulado pelas tensões da História. No entanto, as forças contrárias - e colossais - acumulam-se perante esta classe dirigente, que está à beira do colapso. Estas tendências latentes, deletérias e voláteis estão apenas à espera da faísca revolucionária para se acenderem. As condições estão a aproximar-se. Como dizia Mao: uma faísca pode incendiar toda uma pradaria.

E viva o belo mês de Maio (que ainda não chegou)...

 


Fonte: https://les7duquebec.net/archives/260683

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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