1 de Fevereiro de 2025 Ysengrimus
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Um tipo de génio, sabe. Culto. Cerebral. Ele fala pelo menos oito línguas.
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E o que é que ele faz na vida?
- Mímica (p. 43).
YSENGRIMUS — Não se trata de forma alguma de tentar de uma forma linear resumir o conteúdo do romance Le sentier des lunatiques , de Claude Desjardins , que me proponho analisar aqui. Fazê-lo seria trair a dinâmica diáfana e oscilante de um móbile de cristal, um objecto particularmente etéreo e delicado, quase frágil, cujo funcionamento mental e textual exige que não nos familiarizemos antecipadamente com a sua sinopse. Em vez disso, vamos debruçar-nos sobre as técnicas de escrita do romancista, tal como ele no-las confessa aos bocadinhos, voluntariamente ou não, no interior da própria obra. Estamos perante uma obra hábil, modernista. Um exercício aperfeiçoado de escrita ficcional. O conteúdo da obra é complexo e rico, polimorfo e multidireccional. Pouco reterei do corpo da narrativa, em favor das técnicas de escrita. Quer se apercebam ou não, o que estou a apresentar aqui é, no fundo, bastante convencional, académico, quase escolástico. É um pouco como um quadro negro. Admito que é um cliché. Mas, no fim de contas, e sobretudo neste tipo de quadro negro, é melhor fazer o papel do filisteu barbudo do que o seu oposto. A inteligência nem sempre vence (p. 93). A ideia principal deste comentário é a de que Claude Desjardins é um homem subtil, que nem toda a gente será necessariamente capaz de o seguir escrupulosamente no seu trabalho e que se propôs, hic et nunc, a ser dito.
Vejamos o nosso caso de um ponto de vista lógico (e não cronológico). Em primeiro lugar, temos uma personagem/narrador que se declara ubíquo, ou seja, alguém que tem a capacidade, meio psicológica, meio paranormal... tudo fictício, em todo o caso... de se mover entre dois universos, o seu universo imaginário e/ou memorial e o universo real (e/ou memorial também, na maior parte das vezes) que é o do nosso mundo. Este procedimento omnipresente situar-nos-á abertamente entre o relato faccioso e o empirismo tacteante. Estabelecerá um conjunto de caraterísticas originais, ou mesmo exploratórias. O processo que assim se instaura tem muito a ver com a riqueza narrativa, o ritmo sincopado, o desdobramento fragmentado e o ímpeto muito particular que este romance cultiva. O nosso omnipresente autor permite-se um pouco de tudo: memórias, impulsos, especulações, observações, alusões, considerações, analepse ( flashbacks ) e prolepse ( flashforwards ). Tudo está interligado. Vamos sentir o clique da máquina. É preciso compreender que uma outra caraterística, esta relativa à mecânica interna da organização da narrativa, emerge do carácter omnipresente do nosso escritor omnipresente. Trata-se de uma personagem que permite abertamente a coexistência do narrador omnisciente, aquele que escreve em Ele, como nos romances de Honoré de Balzac, e do narrador com conhecimento individualmente circunscrito, aquele que escreve em Eu, como nos romances de Albert Camus. Por outras palavras, podemos, sem vergonha e sem pudor, fazer funcionar em conjunto estes dois grandes tratamentos informativos da nossa tradição literária. O autor omnisciente, ao estilo do século XIX, e o narrador subjectivado, ao estilo do século XX, juntam-se no omnipresente século XXI. E tudo se passa numa rapsódia aberta e ostensiva. Isto abre um corpo muito complexo e denso de possibilidades de escrita... e de cogitação sui-referencial.
Como
é que eu consigo pensar em tudo isto nestas circunstâncias? Já vos disse, sou
uma pessoa omnipresente. Não é novidade. Por vezes, permite-me escapar a um
episódio infeliz desligando-me, ou esvoaçar como uma borboleta louca que não
consegue decidir qual das flores seria a melhor pista de aterragem, mas também,
como acontece actualmente, e aqui estou a revelar outra dimensão do meu
universo lunático, viver o momento em pleno enquanto imagino como o vou contar.
Já estou a começar a escolher as palavras e a organizar a construção sequencial
da minha história. O tom pode ser dramático. Ou mesmo cómico, porque não? Estou
a hesitar. Ainda me faltam alguns elementos (p. 97).
Abrimos o relógio de escrita e vemos as suas engrenagens. O tipo não está a falar do seu universo lunático. Está a abrir a porta do seu estúdio de escritor. E, em todo o caso, o que é que se passa com um lunático? Oh, começa com o título do livro. Bem, isso é óptimo. Mas cuidado com o choque. Uma reminiscência vertiginosa. O ilustrador Jörg Müller escreveu um livro intitulado O livro dentro do livro dentro do livro… Não vou entrar em detalhes. Com este tipo de efeito de espelho, o título da obra vai encontrar-se embutido na obra com esse título. Não é, portanto, uma questão trivial o que se vai passar no jogo com o título em causa. No seu registo temático, o título Le sentier des lunatiques mobilizará um certo eco técnico (no sentido estrito das técnicas de escrita) de ubiquidade. Com efeito, mesmo (ou sobretudo) ao percorrer um caminho estreito sob o céu noturno, o lunático (no velho sentido quebequense do termo, não no francês ou no inglês) é uma personagem muito susceptível à coexistência de uma dinâmica concreta e de uma dinâmica oniróide. É um sonhador. É alguém que tem a cabeça um pouco nas nuvens e que, por isso, não olha muito bem para onde está a pisar, o que por vezes o leva a caminhar sobre gelo fino. Não vamos falar demasiado. Então, aqui, um efeito de loop, um mise en abyme , dizem os especialistas. Porque o facto é que Le sentier des lunatiques é também o título de uma colecção de poesia póstuma, inexistente, que a filha do poeta desaparecido sob o gelo tenciona publicar. Segundo a filha do poeta, que é também ervanária, fotógrafa e ilustradora. Ouço-a, sobretudo, dizer-me que produziu um número suficiente [dos seus fotogramas de plantas - P.L.] para escolher, no momento oportuno, aquele que poderia ilustrar a capa e talvez também o interior, se o editor aceitar pagar o preço, de uma colecção póstuma que pretende publicar com este título: Le sentier des lunatiques. É um belo título. Penso que não é preciso dizê-lo (p. 103). Este título é, de facto, um título duplo. Refere-se tanto ao caminho real percorrido pelos lunáticos reais e empíricos que o percorreram, como ao título Le sentier des lunatiques, previsto ou desejado para este livro póstumo de poesia, que talvez venha a ser coligido ou escrito um dia (ou não). Duplo título, múltiplo romance. E deixo ao vosso critério descobrir quem são os verdadeiros lunáticos em tudo isto. Há pelo menos dois deles... e, sabem que mais, nem todos são fictícios...
Portanto, estamos a falar de poetas. A experiência do poeta no seio da ficção sobre o poeta também vai jogar a sua própria pequena dialéctica, no ritmo. E depois há aqueles efeitos de hiper-realismo descritivo, quase sociológico, que nos escapam sempre um pouco quando se trata de uma ficção próxima da nossa experiência quotidiana. Nunca me esquecerei de um autor de romances populares (cujo nome vou modestamente omitir aqui) que, um dia, estava a escrever um dos muitos romances que se acumulavam na sua copiosa e polpuda obra e sofria de uma intensa dor de dentes. Acontece que a sua personagem não só desenvolveu a sua própria dor de dentes, como também encontrou alívio numa solução semelhante à que o nosso romancista popular tinha encontrado ao ler outro romance popular em que se mencionava a realidade de uma dor de dentes. Isto é apenas para dizer que as nossas dores de dentes reais acabam por emergir na nossa escrita de ficção e aí se instalam, quase apesar de nós próprios. Aqui, não se trata de uma dor de dentes, mas das pequenas dores interiores da vida, da existência e do percurso quotidiano do verdadeiro poeta contemporâneo. Regra geral, com excepção de alguns dândis excêntricos, o poeta não usa traje de poeta. Nunca se anuncia como tal, a não ser na companhia dos seus pares, nas noites de leitura pública de segunda-feira, quando há pelo menos seis ou sete deles que se revezam no pequeno palco de um café aberto cortesmente para a ocasião. Se estiverem acompanhados, são uma boa dúzia de espectadores. Não, o jornal local não publicou o comunicado de imprensa (p. 25). O que mostra que nem toda a gente pode ser um poeta vivo, visível, publicado, adulado e fazer parte do programa de estudos do bacharelato francês... sobretudo na nossa querida República das Letras contemporânea, uma deusa cega e indulgente, se é que alguma vez existiu. Ufa... e isso não é razão para abandonar a nossa busca do absoluto, claro. Devidamente anotado.
A busca do escritor... de facto, já que estamos a falar disso... é, entre outras coisas, invejar, insidiosa ou abertamente, espontaneamente ou por método, aqueles que têm uma busca (diferente). Mas não se trata de afirmar, como acabámos de fazer, que estamos numa situação em que a personagem fictícia nos dá, por acaso, alguns fragmentos dispersos do que é a vida real e efectiva do escritor. Não, não se trata de uma autobiografia disfarçada. E não estamos certamente envolvidos no impulso gélido de uma personagem que, em busca de uma confissão, se esconde nas nossas consciências. Mas a busca é a questão aqui. É mesmo um tema central, para além de toda a confusão, intencional ou não. E o facto de se ter uma demanda é algo de apaixonante, quando se olha para aqueles que a têm. E a manifestação desse desejo talvez seja precisamente a constatação de que também nós já o temos.
Invejo as pessoas que têm uma verdadeira demanda, ou seja, o tipo de impulso que as leva até ao fim de um projecto singularmente pessoal, um sonho que realizam para si próprias. Sem fazer alarido. Eu ainda estou à procura do meu.
Quem me dera ter tido essa ideia. Caminhar pela minha cidade. Ou plantar bolotas aqui e ali para fazer crescer lentamente uma floresta. Construir um castelo, uma pedra de cada vez, durante décadas. Pintando um quadro toda noite para meu amante . Todas as melhores ideias já foram tomadas. Quero dizer aquelas que nutrem a alma em vez do orgulho (p. 35).
Implorar ou não implorar? É esta a questão (e não a única). O jogo do romancista consiste em fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que não tenhamos a mesma dor de dentes de sempre. É uma questão de manter cuidadosamente a distância em relação aos temas evocados e às teses defendidas. Não nos devemos apegar a coisas ou pessoas, reais ou fictícias. Raramente me apego a pessoas. Tenho medo que aconteça o contrário. Nunca sei o que hei-de dar em troca. Neste caso, não saberei mais nada. Talvez isso seja uma vantagem (p. 15). Em tudo isto, também eu, leitor e recenseador, mantenho vivo o mistério. Mantenho-me à distância da ficção móvel, que se organiza em rizomas, e que me será imposta, a nós, por Claude Desjardins, escritor e orquestrador dessa distância que tão bem sei manter, graças a ele. Também ele sabe mantê-la. E as suas personagens também a sabem manter. Le sentier des lunatiques é, entre outras coisas, uma reflexão sobre a nossa capacidade de olhar para os outros, um olhar mais ou menos bem enquadrado, mas cauteloso, modesto e por vezes difrativo. Um olhar que produz uma síntese abrangente e suficiente, simplesmente mantendo uma distância calibrada tanto empírica como emocionalmente.
Por isso, teremos sempre de fugir do mundo, até certo ponto. Não nos envolvermos demasiado no mundo e dispersarmo-nos por vários caminhos, nomeadamente imaginários. Tudo isto faz parte da mesma luta. Mas a fuga do mundano será também garantida, solidamente, pelos livros. O amor pelos livros, vindo de quem ama os livros, será o garante ideal do bom e velho refúgio dos livros. Livros, livros, livros, lembremo-nos sempre que tudo aqui é um livro. O que é que posso dizer? Outro facto implícito que temos de admitir é que estamos entre gente literária. Gente que, no coração da República das Letras, não esconde o seu amor ostensivo pelos livros, pelos livros e pelo objecto livro. Mas de onde vem esse amor? Poderíamos supor que este amor pelos livros vem da sua linhagem. Não tenho tanta certeza disso. Também não estou a excluir nada. É verdade que o seu pai lhe lia teatralmente quando ela era muito pequena, e ela ficou encantada ao descobrir que entre duas capas de cartão, tudo se tornava possível e nada era igual (p. 116). É assim, ao percorrer pilhas de livros, que algumas das personagens de Claude Desjardins identificam as características fundamentais da sua relação com o mundo, consigo próprias e com o conjunto de ideias que pretendem transmitir. Eles vão arranhar o mundo. Esforçam-se por gravar a sua marca na grande parede da sala de armas das coisas. O primeiro grafiteiro ataca. Mas será seguido? No entanto, o primeiro grafiteiro dá testemunho de uma ideia, de um pensamento que o seduziu. Pelo menos, algo que lhe fala. Pode imaginar-se que, ao fazê-lo, ele exibe uma certa gravidade. Quer que os transeuntes a leiam, que a façam sua, que reflictam sobre ela, que a transmitam de alguma forma. Sem dúvida porque a ambivalência se presta a isso, sinto-me sinceramente tocado pelo seu desejo de partilhar algo que vem da mente, que faz parte do património imaterial da humanidade (p. 90). Este romance enigmático leva-nos ao âmago do que somos. A escrita, como estado de espírito e como processo, é o seu tema central, muito mais do que qualquer outra coisa. Ficamos enredados numa situação em que o artista golpeia uma superfície com a sua garra. Ao fazê-lo, envia flashes de segmentos textuais para todo o lado, para a nossa psique, com a esperança implícita de que o que surja seja uma ondulação das curvas dessa garra, repetições, ressonâncias, ecos, salpicos. Algo como o que incute toda a permanência: o impacto da leitura.
Deixo-vos agora, a sós, com a misteriosa
contracapa deste livro. Será também a oportunidade perfeita para continuar a
não falar demasiado.
A
tragédia acontece no trilho dos lunáticos. Um poeta morre, afogado, num pequeno
lago gelado, na presença de um homem que se habituou a passear por ali como um
sonhador solitário. Ele afunda-se. A culpa interpõe-se entre os dois mundos que
habita. Teria podido salvá-lo? Em quem pode confiar? Este homem omnipresente
com a capacidade de viver em dois universos paralelos, o seu e o nosso, o real
e o imaginário, tem de encontrar o caminho de volta através do labirinto dos
seus pensamentos e da sua vida quotidiana. Tal como Teseu e o fio de Ariadne,
ele refaz os passos das suas memórias, vagueando pelo seu passado e presente,
até que um dia encontra... a filha do homem que desapareceu..
Fonte: https://les7duquebec.net/archives/293263?jetpack_skip_subscription_popup
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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