Documento sobre a Acção em Massa na Indonésia
A seguir, uma declaração
do grupo indonésio Komunis Internasionalis Kolektif. Um grupo solidário com as
posições da esquerda comunista. O movimento de protesto na Indonésia no final
do último Verão reflecte o descontentamento social geral que pode ser observado
em todo o mundo. Mas se pretendemos combater as causas que estão na origem do
descontentamento, precisamos de um movimento da classe operária e não de um
movimento cívico. Para tal, é necessário que os comunistas de hoje se empenhem
no trabalho real que irá formar o futuro partido mundial da classe operária.
Há muitos anos, a
repressão contra comunistas, anarquistas e organizações operárias tem sido
intensificada na Indonésia. Um ponto de viragem importante ocorreu com a
dizimação, através de prisões em massa, da PPAS (Fraternidade
Anarco-Sindicalista dos Trabalhadores) entre 2020 e 2021. Também houve muitas
outras repressões contra organizadores e jornalistas, submetidos a confissões
forçadas e tortura. Este foi especialmente o caso durante o protesto contra a
Lei de Criação de Empregos de 2020, que enfraqueceu drasticamente os direitos
dos operários e as protecções salariais, enfraquecendo severamente o âmbito de
acção das organizações proletárias e de esquerda. A lei foi veementemente
contestada por uma aliança de organizações operárias e grupos ambientalistas.
Também houve muitos relatos de repressões contínuas a organizadores sindicais,
organizadores estudantis, jornalistas e a criminalização generalizada da
dissidência através da vigilância.
A agitação e a
turbulência que actualmente assolam quase toda a Indonésia são, por falta de
uma descrição melhor, muito intensas, chocantes e terríveis. A polícia está a
agir fora dos limites do que é considerado civilizado e legal, com acções que
vão desde o uso imprudente de gás lacrimogéneo e balas de borracha até
sequestros ilegais e espancamentos. Um incidente que me tocou particularmente
foi a morte de um camarada e manifestante, Rheza Sendy Pratama, baleado e
espancado até a morte pela polícia. Antes da morte de Rheza, houve também outro
crime hediondo perpetrado pela polícia, o atropelamento de um motorista de
aplicativo que estava envolvido em manifestações; ele morreu no hospital. O nome
da pessoa é Affan Kurniawan.
A agitação que assolou a
Indonésia entre 25 de Agosto e 9 de Setembro não começou como um protesto
generalizado «anti-governamental», como acabou por se tornar. Começou com
mobilizações lideradas pelos operários em torno de questões básicas como
salários, sub-contratação/trabalho temporário e segurança no emprego. Essas
reivindicações ampliaram-se após a morte de Affan Kurniawan, quando estudantes
e grupos da sociedade civil se juntaram às manifestações para contestar os privilégios
dos funcionários do governo, os assassinatos cometidos pela polícia e o
retrocesso democrático.
Na quinta-feira, 28 de Agosto, as principais confederações sindicais reuniram-se em Jacarta (Câmara dos Representantes/Senayan e Palácio Presidencial). Os porta-vozes dos sindicatos apresentaram seis reivindicações: rever a Lei de Criação de Empregos de 2020, restringir a terceirização, aumentar o salário mínimo, fortalecer as protecções contra demissões e reduzir a carga tributária dos trabalhadores. À primeira vista, essas são questões puramente do trabalho.
Mesmo antes da acção dos
sindicatos em 28 de Agosto, estudantes e grupos progressistas da sociedade
civil já haviam começado a protestar contra um novo auxílio à habitação de Rp50
milhões por mês (≈US$3.000) e outros benefícios para deputados, que é quase uma
ordem de magnitude maior que o salário mínimo de Jacarta. Esse simbolismo de
isolamento das elites durante uma pressão no custo de vida irritou muitas
pessoas. Após a notícia da morte de Affan Kurniawan, protestos e tumultos espalharam-se
para Makassar, Surabaya, Bandung e, por fim, na minha cidade, Yogyakarta, entre
outras.
Em várias cidades, a
polícia usou gás lacrimogéneo e canhões de água para dispersar os
manifestantes. Também houve múltiplas agressões e uso excessivo de força
cometidos por policiais contra manifestantes e também transeuntes que apenas
tentavam contornar e passar. Um desses espectadores é um estudante da UNY
[Universidade Estadual de Yogyakarta] que foi espancado até sangrar da cabeça.
Há muitos casos de
violência excessiva usada pela polícia. Eu mesmo testemunhei as consequências
dessa vaga de brutalidade policial, incluindo ver manifestantes com ferimentos
graves na cabeça e dezenas dos meus próprios amigos a ser gaseados e
espancados.
Em Jacarta e outras
cidades onde os protestos estão a ocorrer, há relatos de detenções em massa e
até sequestros de manifestantes pela polícia. A polícia impediu a representação
legal, impedindo muitas organizações, como a LBHI [Fundação Indonésia de
Assistência Jurídica], de contactar manifestantes detidos ou entrar em centros
de detenção. Essas tácticas têm sido comumente utilizadas pela polícia em
protestos anteriores.
A polícia utilizou de
forma desproporcional gás lacrimogéneo (incluindo novos relatos que alegam o
uso de munições de gás lacrimogéneo fora de prazo), canhões de água e veículos
blindados em áreas movimentadas, colocando em risco tanto os manifestantes como
os transeuntes. Centenas de manifestantes teriam sido detidos em Jacarta,
Makassar e Surabaya. Muitos foram detidos sem acusações claras e sem
representação legal. As autoridades também restringiram a documentação em tempo
real dos protestos, suspendendo as transmissões ao vivo do TikTok, limitando a
capacidade dos jornalistas e cidadãos de monitorizar a conduta da polícia; um
esforço deliberado e consciente da polícia para silenciar as pessoas e atacar a
liberdade de expressão.
Também houve casos de
pessoal do departamento de inteligência da polícia nacional a infiltrar-se nos
protestos, pessoas que chamamos de «intel». Esse pessoal de inteligência
geralmente usa medidas secretas, como disfarçar-se de entregadores para seguir
e entrar nas residências ou casas dos manifestantes. Também houve casos em que
se disfarçaram de estudantes à procura de lugares para alugar, tentando entrar
nos Kosan (apartamentos compartilhados para estudantes universitários). Os
agentes secretos também têm usado tácticas de provocação para incitar a acção
da própria polícia, tornando-se agentes provocadores.
Muitos manifestantes
foram baleados pela polícia, alguns na cabeça, outros no joelho e também nos
tornozelos, mas muitos dos ferimentos parecem ser ferimentos na cabeça
resultantes de espancamentos e balas de borracha. Na cidade de Yogyakarta,
especificamente na área de Pakuwon, a polícia é vista a incendiar os veículos
que os manifestantes usaram para chegar lá, principalmente scooters e
motocicletas, para limitar a mobilidade e os meios de fuga disponíveis aos manifestantes.
Mesmo agora, a situação está a evoluir e é incerta, e as coisas podem mudar a
qualquer momento. No momento em que este artigo foi escrito, acabaram de chegar
relatos de que a polícia está novamente a disparar contra os manifestantes com
balas de borracha e cortou a electricidade nas áreas afectadas. E até agora, a
polícia continua a realizar monitorização e vigilância intensivas e, mais
recentemente, prendeu centenas de pessoas e confiscou vários livros radicais.
Declaração política sobre a espontaneidade em massa na
Indonésia
Em 1 de Setembro de
2025, durante os protestos em toda a Indonésia, surgiu uma exigência popular: as
«17+8 Exigências do Povo» (17+8
Tuntutan Rakyat). As 17 exigências de curto prazo foram formuladas para serem
cumpridas dentro de uma semana, exigindo medidas imediatas, como a retirada das
forças armadas da aplicação da lei civil, o cancelamento dos aumentos dos
subsídios parlamentares, a libertação dos manifestantes detidos e a protecção
dos direitos trabalhistas. As oito exigências de longo prazo, destinadas a
serem cumpridas dentro de um ano, pressionavam por mudanças estruturais: uma
reforma completa do Conselho Representativo do Povo, uma supervisão mais forte
dos partidos políticos, regimes fiscais mais justos, a aprovação de uma lei de
apreensão de bens e reformas institucionais mais profundas nas instituições
policiais e de direitos humanos.
No entanto, a história
do 17+8 também revela como os movimentos actuais caminham na corda bamba entre
a energia popular e a influência dos influenciadores. As reivindicações foram
formalmente redigidas por personalidades das redes sociais — entre elas Jerome
Polin e outros — que organizaram e divulgaram os 25 itens, consolidando mais de
200 propostas originais da sociedade civil e dos trabalhadores. Embora isso
tenha dado ao movimento uma certa coerência e visibilidade viral, os críticos
apontaram que o processo carecia de consulta e que o formato liderado por
influenciadores corria o risco de marginalizar vozes estruturais mais
profundas, sem mencionar que essas reivindicações estão impregnadas de
moralidade burguesa e exigências liberais. Na prática, a agenda reformista era
mais fácil para as elites e o Estado se envolverem (ou cederem parcialmente),
enquanto desafios mais radicais — sobre classe, desapropriação ou crítica
sistémica profunda — eram frequentemente deixados à margem.
Não consigo enfatizar o
suficiente a volatilidade dessa situação. No entanto, acreditamos que o
proletariado na Indonésia deve passar agora de manifestações espontâneas para
uma organização sólida — da indignação populista para a verdadeira luta de
classes. O movimento de oposição actual na Indonésia está dividido entre uma
mistura de radicais populistas com uma noção vaga de mudança e um movimento
anti-elitista sem organização real, e várias facções de esquerda que foram
levadas à clandestinidade.
Além de servir como um
veículo para a raiva das massas, os protestos também podem tornar-se uma arena
para lutas políticas internas dentro das próprias massas. É por isso que muitos
observadores externos costumam responder cinicamente às alegações de que os
manifestantes estão a ser «explorados» ou «manipulados» por certos actores, a
fim de demonizar e deslegitimar a acção das massas. Tais acusações podem conter
alguma verdade — é possível que haja realmente grupos a provocar
deliberadamente as massas para desmoralizar o movimento. É neste contexto que
os protestos de massa são profundamente políticos e frequentemente infiltrados
por oportunistas. Tomemos, por exemplo, as reivindicações apresentadas por um
grupo que se identifica como o colectivo 17+8.
Os influenciadores que
aderiram e apoiaram este movimento de massa e as suas exigências foram alvo de
escrutínio durante o protesto. Foram acusados de sequestrar o movimento para
impulsionar a sua própria reputação política. Para nós, não há nada de
intrinsecamente errado nisso, dado que ninguém num protesto de massa pode agir
como polícia moral. Portanto, as agendas políticas de cada grupo de interesse
são da sua própria responsabilidade política.
A questão é: como é que
a classe operária deve responder a isso? Devemos compreender que nem todas as
reivindicações apresentadas por esses influenciadores podem ser aceites. A
classe operária precisa das suas próprias reivindicações independentes, mesmo
enquanto marcha ao lado deles nas ruas. A classe operária deve demonstrar que a
sua agenda política é digna de ser defendida e começar a agitar a sua posição
política entre as massas. Por esta razão, é crucial ter uma organização
política da classe operária que lute pelos seus próprios interesses de classe.
Esse tipo de movimento
corre o risco de se esgotar, e exigências como opor-se à corrupção ou restaurar
a democracia não são suficientes para prevenir a violência de classe e resistir
ao contínuo declínio do padrão de vida. Quaisquer que sejam os resultados dessa
vaga actual de protestos, é apenas uma organização de classe diligente e de
longo prazo que trará resultados significativos na luta contra a brutalidade
estatal e a exploração capitalista. Devemos continuar a lançar as bases de um
movimento proletário mais forte, independente da política burguesa e pronto
para enfrentar o capital de frente.
Portanto, encorajamos
que o processo de organização seja realizado nos locais de produção e
reprodução — ou seja, entre os operários formais e, especialmente, entre os operários
informais, que muitas vezes são ignorados, mas que diariamente são subordinados
e forçados a trabalhar de maneiras que sustentam a exploração capitalista
dentro do processo de produção.
A organização da classe operária
pode manifestar-se sob a forma de comités de operários que tecem colectivamente
ligações como uma espécie de polinização cruzada que, eventualmente e organicamente,
se une em órgãos de classe capazes de transformar a totalidade das relações
capitalistas.
A vaga de agitação e
protestos que ocorre em todo o mundo — em lugares como o Nepal, as Filipinas, a
França, a Índia e os sindicatos de trabalhadores em Itália para intervir na
logística de Israel no âmbito do seu genocídio da Palestina — demonstra que a
luta de classes não é uma luta fragmentada ou isolada, confinada por fronteiras
territoriais.
A luta de classes é uma
luta internacional que vai além da autoridade dos Estados. A luta de classes é
internacional ou não é nada.
Komunis Internasionalis Kolektif
Quinta-feira, 13 de Novembro de 2025
Fonte: Report
on the Mass Action in Indonesia | Leftcom
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice