sábado, 18 de novembro de 2023

TOI EN MOI (Francine Allard)

 


 18 de Novembro de 2023  Ysengrimus 

Saber que o que refutamos

Que mandamos embora

Volta para nos assombrar

Para todo o futuro

(p. 28)

 .

YSENGRIMUS — Convite à leitura da quinta colectânea de poesia da escritora quebequense Francine Allard. Descobrimos uma mulher hierática que lutou por cada segundo, em nome da intimidade determinante da sua vida e da sua sobrevivência. A poetisa teve três filhos, duas filhas e um filho, este último ensanduichado entre as suas duas filhas. Em princípio, o que esta obra evoca inicialmente é o problema secreto e omnipresente de uma criança do sexo feminino que foi inicialmente indesejada. A minha mãe não queria um filho. Não sabia como me amar. Não fez nada para se obrigar a isso. Só amava o meu pai (p. 34). Encontramos, acima de tudo, uma mãe e portadora de palavras que se tem remexido constantemente para se definir através da auto-aceitação, em constante resistência a uma mãe que a rejeita. É evidente que esta tensão de luta está no centro das determinações que dão origem ao pensamento actual, nomeadamente sobre a maternidade dos filhos (dos filhos e não das filhas, note-se). Não se coloca a questão de saber se a própria poeta queria ter filhos. Ela quis. O que é, é. Nela se desenrola o jogo das determinações que envolvem as mulheres de um tempo. Fim do aparte. O escotoma artístico assombroso, fixador e quase encantatório - o facto de a mãe não ter querido ter filhos - é um tema recorrente. E é de facto uma luta que emana dele.

A minha mãe não queria ter filhos

Eu saí do nada

Sem febre, sem expectativas

Cresci na ponta de um pau

Na ponta de uma mão cruel

De uma mulher que tinha tudo para ser feliz

Cresci apertado no seu abdómen

Ela engoliu abortivos

Na esperança de que a minha teia se rasgasse e ela se libertasse de mim

(p. 19)

 Na relação tensa que aqui se estabelece com a maternidade, não há uma dádiva apaziguadora a oferecer. A articulação primordial e primária desenrola-se nas dobras da relação mais profunda que se pode imaginar entre dois seres humanos, a de uma mãe com a sua filha. E aqui, neste caso, a situação vai desenvolver-se nesta dinâmica de antagonismo que tem tanto de virulento como de definidor. E o poeta compreende intimamente que este antagonismo não pode ser tomado como um dado adquirido. Sobretudo quando se trata de lançar as bases para o esclarecimento de uma descendência do sexo oposto. Por isso, há uma necessidade crucial de explicação máxima. Esta tensão crítica entre a filha de outrora, que era a mãe de hoje, e a mãe de outrora, que era o que era.... o que podemos dizer sobre isso? E, sobretudo, o que é que podemos dizer ao nosso filho?

Da minha mãe

Eu tinha de esquecer, meu filho, os golpes de bengala

Os seus sorrisos cruéis e dolorosos

Os arranhões do seu anel de diamantes nos meus lábios

Tinha de me afastar do seu marido, meu pai

Para apagar o fogo do seu amor ciumento

Derrubar a paliçada de ferro

Que me impedia a ternura.

Para esquecer como o amor pode impedir

O amor filial

(p. 68)

 Esboço da formulação do problema da relação com o pai. Entram em jogo os determinismos axiomáticos. Querer distanciar-se do pai é querer dar-se ao mundo. E é também querer sobressair e fazer sentir a todos a protuberância carnuda e viva da sua própria vida. Esta luta pela existência, pela definição principal do eu, tem o seu próprio conjunto de consequências para a forma como nos queremos posicionar no referido mundo. Com Francine Allard, sob o cabresto da sua pesada problemática, encontramo-nos na companhia de uma artista que carrega dentro de si um pouco da doença do século. A doença da ânsia de fama, a doença da sede de reconhecimento. Como tantas figuras despaternizadas de hoje, a nossa poetisa está totalmente dependente do Efeito Cyber-gloriole, essa propensão para querer ser reconhecida absolutamente e a todo o custo, quanto mais não seja para poder existir, finalmente, para esse vasto mundo fora do papá... e para além das tentativas muito explícitas (da mãe da mãe) de absorver ou negar essa existência, desde o início.

És o filho de uma mulher comum

Que fugiu da rejeição

Que quis deixar a sua marca

Numa prateleira cheia da Grande Biblioteca

Com a cabeça apoiada no antebraço

Chorando os seus fracassos

Danificada pela vida

(p. 43)

 

A nossa poetisa admite a sua busca compulsiva de adulação com a maior franqueza. Ela vê através da sua terrina. Dito isto, na noite da sua vida, a poetisa, que se tornou uma filósofa inexorável, compreende também que todas estas questões de auto-engrandecimento e de glória, cibernética ou não, são, no fim de contas, bastante acessórias e secundárias em relação ao imenso ciclo da vida e ao desenrolar cósmico das entranhas e dos factos. E, depois de ter lutado tanto para que a olhassem, a ouvissem, a lessem e a citassem, a poetisa procura tranquilizar o seu filho, assumindo que todos esses reconhecimentos são, de facto, muito pouco valiosos em comparação com a relação profunda que aqui se evoca. Não tens nada a temer de um autor ensacado num grande vestido de algodão que tenta a todo o custo sair do grupo (p. 42). Assim, gradualmente nos afastamos da questão do reconhecimento, que é apenas periférica para a presente discussão, em direcção à relação central... que é com a personagem central, ou, como diz a dedicatória do livro, aquela que está no meio (p. 7). Se há um reconhecimento e se há uma correlação humana que a poetisa aqui necessita urgentemente, é precisamente a do filho, e com o filho. Estou marcada por um ferro incandescente. Amei demasiado para ser livre. E preciso de ti, meu filho (p. 70). Excepto que a questão do reconhecimento não desaparece completamente. Para a nossa poetisa, é ainda uma questão de se destacar, de ser considerada, de ser percepcionada, de estar na mira da câmara que conta. E persiste. Lancinante. Obsessiva. Recorrente. Preciso do meu filho, sim, e em particular, preciso que ele fale de mim aos seus descendentes.

Com a tua descendência

A quem não te esqueceste de falar de mim

Sem medo nem censura

Meu filho

Meu único filho

(p. 70)

 

É porque, bom, o filho é livre. Ele é uma engrenagem flutuante. Ele faz o que quer. Voa com as suas próprias asas. E o pensamento crítico do filho é um fenómeno intelectual que se instala de uma forma bastante sentida neste livro. Como qualquer pai, e de uma forma que acaba por ser bastante vulgar, espontânea e autêntica, a mãe que aqui se exprime tem uma certa propensão para se imaginar como o modesto demiurgo da articulação do pensamento do seu filho. Deveríamos citar-lhe... e a todos nós, que imaginamos sempre a mesma coisa... o famoso aforismo atribuído aos chineses mas que, muito antes de ser chinês, era universal, e que diz: o teu filho não é o teu filho, é o filho do seu tempo. Aqui, a nossa poetisa continua a ficar mais ou menos aquém desta sabedoria milenar. A mãe imagina sempre que é a educação que deu, ou que pensou ter dado, ou que pensou não ter dado, que determina os parâmetros da visão do mundo filial.

Nunca te ensinei nada

Nenhum dogma, nenhum rito

Que possa embaraçar a tua estrada fluvial

Escolheste a liberdade

Desligado de um deus

(p. 60)

 

É o que se diz. E, no entanto, de forma fugaz, somos levados a compreender que o filho é, acima de tudo, um homem do seu tempo. Por outras palavras, através dele, as prioridades da época são expressas, estabelecidas e postas em prática, sem nunca terem de se destacar, em termos de relações com o pai, a mãe e os irmãos. O filho é de facto a voz de uma fase histórica que o atravessa. E tudo isto adquire uma dimensão misteriosa para a mãe. Entre Darwin (darwinismo natural ou darwinismo social?) e os deístas ingénuos aqui presentes, é com todos os recursos cognitivos que nos restam que tentamos compreender, o melhor que podemos, a visão do mundo eco-ansiosa contemporânea do filho.

Acreditas que o Homem é responsável pela sua própria queda

E queres refazer o mundo

Como ele era antes

Quando Darwin o viu

Em opróbrio

Na negação

No descontentamento dos deístas ingénuos.

(p. 47)

 

De facto, tanto hoje como no passado, como observa abertamente a poetisa, o filho não gosta de se ver muito nos escritos da mãe (p. 42). Mas, oh... a mãe persiste. Além disso, ela deixa bem claro que não é de modo algum motivada pelo tipo de culpa antiquada que está frequentemente subjacente ao discurso compensatório de algumas mães em relação a certos filhos. Esta obra não é uma reparação. É, antes, uma intervenção verbal que pretende ser uma manifestação densa e intensa do triunfo, da amplitude e da maximalidade do filho. Não estou a escrever este longo poema para fazer reparações. Estou a fazê-lo para que saibas como és bom (p. 64). Por isso, há que jogar o jogo e seguir a velha estrada. A evocação da infância do filho, segmento incontornável do desenvolvimento, atravessa este texto que, naturalmente, se desenrola num universo assombroso, distendido, onde a matriz sente o filho a mover-se dentro de si. E, entre outras coisas, sentirão também a vossa infância a mexer. Por falar em infância. Talvez isto não seja em si uma lei do género, mas é certamente um constrangimento do tema. E assim, inevitavelmente, instala-se uma certa dimensão regressiva, na dinâmica evocativa de Toi en moi. Ora, é de certo modo inevitável que quando uma mulher, com tudo o que isso implica em termos de intimidade profunda, tanto afectiva como carnal, evoca a sua maternidade, não pode deixar de se instalar na memória suave da infância do seu rebento. E porque não? Porque não voltas a ser o meu menino, no chuvisco da minha jovem vida de mãe? (p. 56) E o problema que aqui se coloca mais concretamente, o problema que se perpetua e perdura, é mais uma vez o problema do eu. Eu, tal como fui definido, tal como fui configurado, tal como me amplifiquei, tal como me inchei... Por isso, acreditamos, com razão ou sem ela, que o filho criança seria... assim... um pouco envergonhado e um pouco incomodado precisamente por esta volumosa amplitude materna, este assombro da mãe que, física e mentalmente auto-suficiente, nunca deixa de estar fortemente consciente de si própria.

Estás a ver, meu filho

Eu esqueço-me de como sou volumosa

Mas lembro-me sempre que

Que vejo o teu olhar

Para as minhas protuberâncias

O teu embaraço em frente aos teus amigos

Quando te vejo a correr atrás do vento

(p. 38)

O tom está definido. Nesta pequena colectânea, a evocação da infância do filho será fugaz, alusiva, e isso dá-nos a oportunidade de medir alguns traços deslumbrantes da força poética de Francine AllardA caixa de fotografias deixada para trás quando eras criança lembra-me os teus olhos de lobo que brilham como aço (p. 24). Desta dinâmica evocativa furtiva emergem também alguns aforismos sublimes. Porque é que a infância dirige o navio quando nega o poder do capitão? (p. 29) Quando falamos de infância, regressamos sempre à poderosa sabedoria da juventude paternal e infantil, que já não existe.

Os determinismos axiomáticos estão em jogo. A matriz move-se, esvoaça e confronta-se surdamente com a Storia. Fundamentalmente, este texto é uma mulher. E algures na linha, o que perdura, inevitavelmente, dada a curvatura histórica que ainda nos determina, é a resistência. As mulheres articulam a dor das mulheres... e a dor das mães. Há certos factos profundos e ardentes que não podem ser reduzidos às particularidades pequenas, esfareladas e pluralistas do pecadilho histórico-jornalístico. A mulher faz sair do seu ventre, da sua cona e das suas entranhas, esta vida. E esta puta de vida vai catapultar questões tão contraditórias para todo o lado. E tantas vezes... demasiadas vezes nas condições actuais... ela desfaz-se em pedaços.

Por isso, não me digam que as pessoas estão a sofrer na Ucrânia

Quando a mulher vê o seu filho despedaçado pelas minas

 

Tenho de te dizer, meu filho

Que a guerra mata todas as mães

Aquelas que vêem o seu filho morto

E aquelas que vêem o seu filho matar outras crianças

As mulheres nascem para sofrer a ausência

Seja qual for o lado em que ela esteja

(p. 13)

 

A coletânea de poemas está dividida em dez pequenas secções: Meu Filho (pp 11-21), Sua Cabeça (pp 23-29), Seus Braços (pp 31-36), Suas Pernas (pp 37-40), Seu Coração (pp 41-49), Seu Sexo (pp 51-54), Sua Alma ( pp 55-61), Tu e Eu (pp 63-64), A Despedida ( pp 67-70), Post maternam (pág. 71-73). O livro abre com uma pequena citação de Simone de Beauvoir (p. 9). A capa é uma reprodução de uma das muitas aguarelas não figurativas de Francine Allard, fotografada por André Côté. Uma fotografia de Beatrice Cardin, apresentada na contracapa, mostra o rosto da autora.

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Francine Allard, Toi en moi, Saint-Narcisse, Éditions du wampum, col. Poesia, 2023, 73 p.

 


Fonte: TOI EN MOI (Francine Allard) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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