YSENGRIMUS -
Vamos ler Karl Marx, criticando o
pensador anarquista Proudhon (quando este prefere a abstracção especulativa à
análise real dos problemas específicos da economia política):
Não é de admirar que tudo, na última abstracção, porque há abstracção e não análise, se apresente no estado de categoria lógica? É de admirar que ao deixar cair gradualmente tudo o que constitui a individualidade de uma casa, que ignorando os materiais de que é composta, a forma que a distingue, chegue-se a ter apenas um corpo, — que ignorando os limites deste corpo logo tem apenas um espaço, — que ignorando finalmente as dimensões deste espaço, acabou por ter apenas a quantidade pura, a categoria lógica. Ao ponto de assim abstrair de qualquer assunto todos os chamados acidentes, animar ou inanimar, homens ou coisas, temos razão em dizer que na última abstracção chegamos a ter como substância as categorias lógicas. Assim, os metafísicos que, ao fazerem estas abstracções, se imaginam a fazer análises, e que, à medida que se separam cada vez mais dos objectos, imaginam-se a aproximarem-se deles ao ponto de os penetrar, estes metafisicistas estão, por sua vez, à direita a dizer que as coisas deste mundo são bordados, cujas categorias lógicas formam a tela. Isto é o que distingue o filósofo do cristão. O cristão tem apenas uma encarnação dos Logos, apesar da lógica; o filósofo não termina com encarnações. Que tudo o que existe, que tudo o que vive na terra e debaixo de água, pode, por força da abstracção, ser reduzido a uma categoria lógica; que desta forma todo o mundo real pode afogar-se no mundo das abstracções, no mundo das categorias lógicas, quem ficará surpreendido?
Tudo o que existe, tudo o que vive na Terra e debaixo de água, existe, vive apenas por algum movimento. Assim, o movimento da história produz relações sociais, o movimento industrial dá-nos produtos industriais, etc., etc.
Tal como por força da abstracção, transformámos tudo numa categoria lógica,
por isso só temos de ignorar qualquer carácter distintivo dos diferentes
movimentos, para chegar ao movimento no estado abstracto, no movimento
puramente formal, na fórmula puramente lógica do movimento. Se encontrarmos nas
categorias lógicas a substância de todas as coisas, imagina-se a encontrar na
fórmula lógica de movimento o método absoluto, que não só explica
tudo, como também envolve o movimento da coisa.
É este método absoluto de que Hegel fala nestes termos:
O método é a força absoluta, única, suprema, infinita, que nenhum objecto
pode resistir; é a tendência da razão para se reconhecer em todas as coisas.
[Hegel, Logic. vol. III]
Tudo sendo reduzido a uma categoria lógica, e cada movimento, cada acto de
produção ao método, naturalmente, segue que cada conjunto de produtos e
produção, objetos e movimentos, é reduzido a uma metafísica aplicada. O que Hegel
fez pela religião, lei, etc., o Sr. Proudhon procura fazer pela economia
política.
Então, o que é este método absoluto? A abstracção do movimento. O que é a
abstracção do movimento? Movimento no seu estado abstracto. O que é movimento
no estado abstracto? A fórmula puramente lógica de movimento ou o movimento da
razão pura. Qual é o movimento da razão pura? Pedir a si mesmo, opor-se,
compor, formular-se como uma tese, antítese, síntese, ou mesmo afirmar-se,
negar a si mesmo, negar a negação de alguém.
Como é que se faz a razão, afirmar-se, fazer-se passar por uma categoria
determinada? É a questão da própria razão e dos seus apologistas.
Mas uma vez que conseguiu fazer-se passar por uma tese, esta tese, este
pensamento, oposto a si mesmo, divide-se em dois pensamentos contraditórios, o
positivo e o negativo, o sim e o não. A luta destes dois elementos antagónicos,
fechadas na antítese, constitui o movimento dialéctico. O sim torna-se não, o
não se torna sim, o sim torna-se sim e não, o não se tornar ambos não e sim,
opostos balançam, neutralizam, paralisam. A fusão destes dois pensamentos
contraditórios constitui um novo pensamento, que é a sua síntese. Este novo
pensamento ainda se desenrola em dois pensamentos contraditórios que, por sua
vez, se fundem numa nova síntese. Deste trabalho de parto nasce um grupo de
pensamentos. Este grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialéctico como
uma categoria simples, e tem um grupo contraditório como a sua antítese. Destes
dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo de pensamentos, que é a síntese
deles.
Assim como do movimento dialéctico de categorias simples o grupo nasce,
assim do movimento dialéctico de grupos a série nasce, e do movimento dialéctico
da série todo o sistema nasce.
Aplique este método às categorias da economia política, e terá a lógica e a
metafísica da economia política, ou, por outras palavras, terá as categorias
económicas conhecidas de todos, traduzidas numa linguagem pouco conhecida, o
que as faz parecer recém-nascidas numa cabeça de razão pura; tanto que estas
categorias parecem gerar-se umas às outras, para acorrentar e envolver-se
mutuamente pelo único trabalho do movimento dialéctico. Que o leitor não tenha
medo desta metafísica com todos os andaimes de categorias, grupos, séries e sistemas.
O Sr. Proudhon, apesar da grande dificuldade que tomou para escalar o auge
do sistema
de contradições, nunca foi capaz de se elevar acima dos dois primeiros
escalões da simples tese e antítese, e ainda assim só os enrolou duas vezes, e
destas duas vezes caiu uma vez para inverter.
Até agora só expusemos a dialéctica de Hegel. Veremos mais tarde como o Sr. Proudhon conseguiu reduzi-la às proporções mais mesquinhas. Então, para Hegel, tudo o que aconteceu e o que ainda está a acontecer é apenas o que está a acontecer no seu próprio raciocínio. Assim, a filosofia da história não é mais do que a história da filosofia, da sua própria filosofia. Já não existe a "história de acordo com a ordem dos tempos", há apenas a "sucessão de ideias no entendimento". Ele acredita que está a construir o mundo através do movimento do pensamento, enquanto ele só sistematicamente reconstrói e arruma sob o método absoluto, os pensamentos que estão na cabeça de todos.
MARX, Karl (1977), Misère de la philosophie, Éditions sociales, pp 115-118. (Livro escrito em
1846)
Marx brinca abertamente sobre abstracção. Denuncia, goza, o movimento vazio e gesticulador do formalismo de raciocínio. Deve entender-se a partir desta rejeição que serve a economia política de Proudhon que, sem o retorno do concreto, o movimento perpétuo da abstracção permite, um no outro e no final, dizer tudo sobre tudo, dando a si mesmo a aparência de ter a gramática fatal ou a lógica profunda da realidade. Como já demonstrei um pouco no caso da minha pequena ontologia, podemos dizer que quem abraça demasiado a largura abstracta abraça mal a nuance, carnuda, assimétrica, vívida e contraditória realidade. É perfeitamente possível não dizer nada falso sem dizer nada de útil, e acima de tudo: mantendo-se no vazio, o principal, o generalista.
Só que o
regresso do concreto, se não virmos com cuidado, poderá também tornar-se
noutra bacia formalista. Como é que trazemos tanto o concreto, sem virar as
costas à cogitação demonstrativa? Vamos olhar para isto um pouco, mobilizando o
pensamento vernáculo, o pensamento da cozinha, literalmente. É de facto na
nossa cozinha que vamos olhar para a correlação entre a abstracção e o retorno
do concreto na sistematização das categorias filosóficas. Agora, da nossa
cozinha, criamos duas pequenas operações da nossa actividade comum. Colocamos
uma galinha no forno, bem preparada e picante. Depois enchemos um molde de
cubos de gelo como este com água...
E colocamos no congelador. Depois, há duas pequenas horas de acções, muito
activas e bem livres da mais pequena metafísica aplicada. Uma vez que o nosso
frango é cozinhado, nós gentilmente comemos alguns bons pedaços,. Como estamos
sozinhos, ainda há alguns. O resto é colocado no frigorífico. Então, no final
da noite, servimos a nós mesmos uma pequena limonada com um cubo de gelo
retirado do molde do cubo de gelo. E esquecemos o molde do cubo de gelo com os
cinco cubos de gelo restantes no balcão da cozinha. Está a me seguir-me?
Indubitável. Não há mais concreto, ordinário, não especulativo e banal, vamos
admiti-lo juntos.
Na manhã seguinte, o bolor de cubos de gelo é encontrado e os ditos cubos tornaram-se água morna novamente. Redescoberta de água morna. O processo de passagem de água para gelo e gelo em água é, portanto, reversível. Muito bem, muito bem. O molde do cubo de gelo é colocado de volta no congelador. O frango assado é então retirado do frigorífico. Está arrefecido, agora é frango frio. Tornou-se frio, mas não voltou a ficar cru. Não se desmoronou no frigorífico, como os cubos de gelo descongelaram no balcão. É um frango assado arrefecido, sem menos, sem mais. Ele não voltou para a aldeia, por assim dizer. É bom que o processo de cozedura seja irreversível. Eis uma abstracção de boa conduta, vinda directamente da vida normal e concreta: a oposição reversível/irreversível. É uma abstracção muito miserável, bem no meio do que precisamos. Por alguns segundos, esta pequena abstracção, fazemo-la viajar na nossa cabeça. Quando o tio ou a Tata adoecem, ele ou ela cura-se, é reversível. Quando o tio ou a Tata morrem, ele ou ela já não vive de novo, é irreversível. Quando sujamos e lavamos as nossas roupas (processo reversível), quando quebramos o ramo de uma árvore (processo irreversível), observamos a existência destes dois tipos de processos. Até conseguimos, uma coisa de cada vez, tirar-lhe os ditados populares. No irreversível, os americanos costumam dizer: não é possível voltar a colocar a pasta de dentes no tubo. Os franceses optam, em vez disso: o vinho é tirado, deve ser bebido. Há reversível (gorro branco, branco gorro) e irreversível (tanto vai o cântaro à fonte que no final se parte). Note que esta observação saudável e útil é filosófica e não científica. As descrições físicas e químicas detalhadas de cada um dos dois fenómenos que ocorreram desta vez na nossa cozinha (água gelada, frango de cozinha) iriam engolir a análise com detalhes finos e impor classificações completamente novas, menos gerais, menos grosseiras, menos vernáculas, menos transversais, mais subtis também.
Mas a verdade é que, na implementação muito ordinária e vernácula do
casal reversível/irreversível, não se comete a
falha formalista proudhoniana. Ambas as categorias impuseram-se à consciência
não por importação de um sistema de pensamento pré-estabelecido (Hegeliano ou
não), mas por emergir e estabilizar na consciência desde a flutuação
problemática da constituição ordinária. Assim, estas duas categorias (reversíveis e irreversíveis) defendem a
realidade, no sentido de manterem um nível de generalização suficientemente
baixo, despojado, sóbrio, pobre (miséria da abstracção) para não cair em
especulações ocas, passe-patout, triunfalistas e formalistas. Assim,
permitindo-nos uma generalização filosófica mínima, não cultivaremos o
hocus-pocus dialéctico que Marx censura acima a Proudhon. Perguntar-nos-emos
simplesmente o que, neste mundo empírico, tem precedência, do reversível e do
irreversível? Vamos fazer esta pergunta a nós mesmos, utilizando as nossas
cabeças durante vários meses. O frango assado, entretanto, será devorado,
desossado, digerido, defecado e amplamente espalhado nas várias partes
correlativas do cosmos que lhe concernem. O molde do cubo de gelo, por seu
lado, permanecerá sabiamente no congelador, imutável. Imutável?
Num belo dia, o molde do cubo de gelo é removido do congelador e o gelo desapareceu em grande parte. Este fenómeno misterioso, observável especialmente em congeladores antigos, deve-se a uma espécie de efeito de evaporação bizarro que o motor hélice da antiga congelação impõe aos cubos de gelo quando permanecem demasiado tempo em frente ao seu incansável respirador giratório. Escusado será dizer que, por outro lado, se o molde de cubos de gelo cheio de água fosse deixado no balcão por mais um ano, a água também evaporaria gradualmente.. O processo reversível de gelo de água-gelo não o é tanto, quando a observação continua. Fenómenos transversais acabam por comprometê-lo incansavelmente. O processo reversível aparece, portanto, como transitório, temporário, circunscrito, localizado, cercado. É ele que é abstracto, na verdade. Uma das doenças do tio ou tata pode ser fatal. Quando lavo minha roupa, nunca a separo da mesma sujidade e, além disso, ao lavá-la, ela desgasta-se. Tudo, a longo prazo, parece, portanto, fadado à irreversibilidade. Por isso, concluiremos, no momento do nosso exercício cogitativo de cozinhar (e sujeito a possíveis falsificações subsequentes), a um primado ontológico do irreversível sobre o reversível.
Esta conclusão problemática é filosófica. Irá orientar o pensamento futuro,
certamente, mas apenas como um organon crítico, não como um modelo, como dogma,
tão absoluto, ou como formalismo. A verdadeira prioridade metodológica é
basicamente manter os dez dedos na galinha e os olhos no gelo... na peculiar e
especificada concretização dos problemas a analisar, para confessar tudo. Foi
isso que Marx fez com a economia política (especialmente no Capital) e foi por isso que não hesitou em
censurar Proudhon por não ter feito o mesmo (especialmente na Filosofia da
Miséria)...
.
Do
meu livro, PHILOSOPHY FOR
THE THINKERS OF ORDINARY LIFE, na editora ÉLP, 2021.
Fonte: Poulet rôti, cubes de glace et misère de l’abstraction – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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